Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARTINHO CARDOSO | ||
Descritores: | REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO DOLO | ||
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Data do Acordão: | 02/23/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – A omissão de factos relativamente ao elemento subjectivo do crime imputado ao arguido no requerimento de abertura da instrução não pode ser suprida pelo JIC. | ||
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Decisão Texto Integral: | I Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Évora: Nos autos de inquérito acima identificados, do J1 da Secção de Instrução Criminal da Instância Central da Comarca de Setúbal, em que é arguido A., a assistente M. não se conformou com o despacho do Mmo. Juiz de Instrução Criminal que, na sequência do despacho de arquivamento do inquérito ordenado pelo M.º P.º, lhe indeferiu o requerimento de abertura de instrução (RAI) por este, das indicações exigidas pelos art.º 283.º, n.º 3 al.ª b) e c) e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não conter os factos integradores do elemento subjectivo do tipo legal de crime que imputa aos arguidos e que é o de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1 al.ª a) e e), do Código Penal – e do mesmo interpôs o presente recurso, que motivou concluindo: 1ª - Consta do requerimento de abertura de instrução, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, a indicação das disposições legais aplicáveis e o rol de testemunhas. 2ª - Consta designadamente do requerimento de abertura de instrução que o arguido, em 26/07/2012, apresentou-se na Conservatória do Registo Predial e Comercial de Santiago do Cacém com um requerimento de transmissão da propriedade do veículo, supostamente assinado pela assistente, tendo o arguido aí assinado, na qualidade de comprador, o referido requerimento para registo automóvel, constante de fls. 14 e 15. 3ª - Bem como consta ainda do requerimento de abertura de instrução, o seguinte: Não podem existir dúvidas de que o facto praticado pelo arguido se destinou a obter para si benefício ilegítimo, logrando, graças ao documento falso, averbar em seu nome a titularidade do veículo que, pouco tempo depois, transmitiu por venda a terceiro (C). 4ª – A pronúncia supõe um facto ou um conjunto de factos que, indiciariamente, apontem para a probabilidade razoável do Arguido vir a ser condenado em julgamento. 5ª - Como assim, e salvo o devido respeito, a aliás douta decisão instrutória violou o disposto no 1º segmento do artº 308º/1, CPPEN. Por todo o exposto, e dando-se provimento ao presente recurso, deve revogar-se o aliás douto despacho de não-pronúncia e, consequentemente, determinar-se a sua substituição por outro que, considerando o requerimento de abertura de instrução e a prova documental constante dos autos, pronuncie correspondentemente o Arguido, como autor do crime de falsificação de documento previsto no artº 256º/1., als.a) e e) do Código Penal e punido pela al.f) cit.artº., com as legais consequências. # A Digna Procuradora da República junto da 1.ª Instância respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões: 1. De acordo com o preceituado no artigo 283°, n° 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal - por força da remissão operada pelo seu artigo 287°, n° 2 -, o requerimento do assistente para abertura de instrução, nos casos de arquivamento do processo pelo Ministério Público, deve configurar substancial e materialmente uma verdadeira acusação alternativa, de onde conste, sob pena de nulidade, a indicação precisa e completa dos factos que se entende estarem indiciados, integradores tanto dos elementos objectivos do crime, como dos seus elementos subjectivos e que justificariam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. 2. No caso vertente a assistente, no requerimento por si apresentado, para além de não ter identificado a pessoa a submeter a julgamento, não procedeu à narração de forma encadeada dos factos, optando por alinhar constatações e deduções – que intercalou com elementos probatórios -, não curando de as densificar, de as concretizar, não explicitando de forma clara e inequívoca a conduta que atribuiu ao arguido, essencial para que se tenha por preenchido o elemento objectivo do crime em causa. 3. Mas sobretudo, omitiu os elementos subjectivos - a actuação deliberada, livre e consciente, bem como, os elementos intelectual e volitivo do dolo genérico e específico, não podendo de todo ter-se por preenchido tal elemento com a expressão aligeirada utilizada de que "o facto (que ao longo de todo o requerimento nem sequer é referido) praticado pelo arguido destinou-se a obter para si benefício ilegítimo, logrando, graças ao documento falso, averbar em seu nome a titularidade do veículo que, pouco tempo depois, transmitiu por venda a terceiro". 4. Acresce que quanto às disposições legais aplicáveis, a imputação ao arguido do crime de falsificação de documento é efectuada em termos contraditórios, já que se não pode atribuir ao mesmo simultaneamente o fabrico ou a elaboração de um documento falso (alínea a) do artigo 256º, n.º 1, do Código Penal e a sua utilização, que pressupõe a falsificação do mesmo por outra pessoa (alínea e) da citada disposição legal), assim se suscitando a dúvida sobre qual a conduta e, consequentemente, o crime, levado a cabo pelo arguido. 5. Não tendo a falta de tipicidade motivado a rejeição liminar do requerimento para abertura de instrução por inadmissibilidade legal da mesma, nos termos do disposto no artigo 287°, n° 3, do Código de Processo Penal, a decisão a proferir só podia ser a de não pronúncia, por força do preceituado no seu artigo 308°, n° 1, pelo que se não mostram violadas quaisquer disposições legais. # Nesta Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso. Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II A questão a desembargar no presente recurso é, pois, a de saber se, na sequência do despacho de arquivamento do inquérito ordenado pelo M.º P.º, o Senhor Juiz decidiu bem ao indeferir o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente por a mesmo, das indicações exigidas pelos art.º 283.º, n.º 3 al.ª b) e c) e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não conter os factos integradores do elemento subjectivo do tipo legal de crime que imputa aos arguidos e que é o de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1 al.ª e), do Código Penal. Ora bem. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente contra A. contém a seguinte factualidade, ainda que por vezes misturada com os meios de prova, seleccionando desse requerimento os trechos mais conseguidos sobre essa matéria e pondo-se a negrito os que, ainda que de forma remota, aflorem estados volitivos: 1.1. A requerente, como titular do direito de propriedade do veículo automóvel marca Audi A4, matrícula -GM-, negociou a venda do mesmo veículo com o arguido, em Setembro/2008. 1.2. O preço de venda acordado foi de 19.000,00€, a pagar em prestações. 1.3. Como em Novembro de 2010 ainda estivessem em dívida 9.000,00€, foi acordado com o arguido um novo plano de pagamentos: a quantia em falta deveria ser paga mediante 36 prestações mensais no valor de 250,00€ cada. 1.4. O arguido foi cumprindo com irregularidade o plano prestacional e deixou de pagar por completo as ditas prestações mensais de 250€ a partir de Novembro de 2011, inclusive (cf., a fls. 9 e 10, a listagem dos pagamentos efectuados pelo arguido). 1.5. Quando o arguido cessou os pagamentos, estavam ainda em divida, do preço acordado, €6.340 (cf. a referida listagem). 16. Posteriormente, ao ser averiguada a situação registral do veículo, constatou-se que a titularidade do mesmo fora averbada em nome do arguido, em 26/07/2012 e, em 27/12/2012, em nome de AB, a quem o arguido vendeu o referido veículo (cf. fls 11 dos autos). 17. Ora a requerente nunca assinou qualquer requerimento de transmissão da propriedade do veículo (na gíria do comércio automóvel, a chamada "declaração de venda"). 18. Não obstante, o arguido, em 26/07/2012, apresentou-se na Conservatória do Registo Predial e Comercial de Santiago do Cacém com um requerimento de transmissão da propriedade do veículo, supostamente assinado pela requerente, tendo o arguido aí assinado, na qualidade de comprador, o referido requerimento para registo automóvel, constante de fls. 14 e 15 (conforme menção exarada no mesmo, a assinatura do arguido foi feita na presença da funcionária da referida Conservatória, MD). 19. O exame pericial feito no Laboratório da Polícia Científica confirmou que a "assinatura" da requerente não era de sua autoria, logo, tinha sido falsificada, porquanto, conforme consta do respectivo relatório, admite-se como muitíssimo provável que a escrita suspeita do Grupo I, formado em Notai não seja da autoria de M. (cf. fls.243 a 248), bem como se admite como muito provável que a escrita suspeita do Grupo II não seja da autoria de M nem de A.. (…) o facto praticado pelo arguido se destinou a obter para si benefício ilegítimo, logrando, graças ao documento falso, averbar em seu nome a titularidade do veículo que, pouco tempo depois, transmitiu por venda a terceiro ### A respeito do teor de tal requerimento de abertura de instrução, lavrou o Senhor Juiz de Instrução despacho, no qual, além do mais, consignou o seguinte: I. DA FACTUALIDADE INDICIADA Expurgadas as considerações, conceitos de direito e conclusões constantes do requerimento de abertura de instrução, cumpre, em resultado da conjugação dos atos de instrução realizados neste sede com os elementos probatórios resultantes do inquérito, dar como indiciada, e em síntese, a seguinte factualidade: 1. A requerente, como titular do direito de propriedade do veículo automóvel de marca Audi, matrícula GM, negociou a venda daquela viatura com o arguido em setembro de 2008; 2. O preço de venda acordado foi de € 19.000, com pagamento fracionado; 3. O arguido não cumpriu integralmente o plano de pagamento e, quando cessou os pagamentos, estavam ainda em dívida € 6.340; 4. O arguido apresentou-se, em 26 de julho de 2012, na Conservatória do Registo Predial e Comercial de Santiago do Cacém com um requerimento de transmissão de propriedade do veículo que continha uma assinatura que pretendia conferir a aparência de ser da assistente; 5. O arguido assinou, na qualidade de comprador, o referido documento; 6. A assinatura referida em 4. era, porém, da autoria de terceiro que não a assistente. * Não resultaram indiciados quais outros factos relevantes para a presente decisão. * II. DA FUNDAMENTAÇÃO (…) O assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. A assistente não o fez no seu requerimento de folhas 317 e seguintes, limitando-se a explanar – articuladamente - as razões da discórdia da decisão de arquivamento por parte do Ministério Público, o crime que entende ter o arguido praticado (embora por referência a duas disposições diferentes) e alguns factos (que se dão, na sua essencialidade, como indiciados). Contudo, são aqueles factos constantes do requerimento de abertura de instrução simplesmente insuficientes para o preenchimento do tipo de crime imputado ao arguido – falsificação de documento, previsto e punível nos termos do artigo 256º n.º 1 do Código Penal – seja por que alínea do número 1 daquele artigo for. Dito de outra forma: ainda que dê o Tribunal como indiciados todos os factos imputados pelo assistente ao arguido no seu requerimento de abertura de instrução – o que, no essencial, até faz –, nunca poderia – ou poderá – o arguido ser pronunciado pela prática de um crime de falsificação de documento. Com efeito, o crime em questão – falsificação de documento – é intencional, tendo de haver por parte do agente intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo. Um dolo específico, pois. Nenhum dos factos constantes do requerimento de abertura de instrução permite concluir pela existência daquele dolo. Acresce que se não alcança se pretende a assistente imputar ao arguido a efetiva falsificação do documento ou, pelo contrário, a utilização de documento falsificado por outrem - i.e., a alínea a) ou e) do artigo 256º n.º 1 do Código Penal –, atrevendo-nos a desconfiar que a própria assistente também não saberá - o que, de algum modo, pode ajudar a explicar a ausência de factualidade susceptível de preencher o dolo específico supra mencionado. Nenhum outro resultado pode, enfim, e sem necessidade de mais considerações, ser outro que não a não pronúncia do arguido. (…) III. DA DECISÃO Assim, determina-se a não pronúncia do arguido A. pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punível nos termos dos artigos 256.º n.º 1 do Código Penal, e o consequente arquivamento dos autos. Vejamos, pois. Importa começar por sublinhar que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art.º 286.º, n.º 1, do CPP –, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação. Como está consagrado no n.º 5 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios subordinados ao princípio do contraditório. Esta estrutura do processo penal significa que o seu objecto é fixado pela acusação que delimita a actividade cognitiva e decisória do tribunal, tendo em vista assegurar as garantias de defesa do arguido, protegendo-o contra a alteração ou alargamento do objecto do processo. Também a orientação da Comissão Europeia dos Direitos do Homem é no sentido de que o artigo 6.°, n.º 3, da Convenção, impõe que o acusado seja informado de todos os elementos necessários para que possa preparar a sua defesa, isto é, não só os factos materiais que lhe são imputados (causa da acusação), mas também a sua qualificação jurídica (natureza da acusação), o que implica que o acusado seja também informado de toda a alteração da qualificação jurídica (cf. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, I, Editorial Verbo, 2000, pág. 367, nota de rodapé n.º 5). Quanto a este ponto, é pertinente chamar à colação o que expenderam os Prof. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na “Constituição da República Anotada”, 3.ª edição, pág. 206: a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação. Daqui resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar. A estrutura acusatória do processo exige que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzida acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento. Por isso, e não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura da instrução: tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura da instrução, como refere o n.º 4 do art.º 288.º do Código de Processo Penal. O requerimento de abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução. Porém, não tanto pelas fórmulas, mas pelo conteúdo, o requerimento para abertura da instrução terá de ser necessariamente diverso conforme seja o arguido a pretender fazer comprovar judicialmente a decisão de acusar ou o assistente a pretender fazer intervir o juiz de instrução para confrontar a decisão de arquivamento. Sendo assim, poderemos concluir que, por força da conjugação dos art.º 287.º, n.º 2, com o art.º 309.º, n.º 1, a instrução requerida pela assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo M.ºP.º – aquele que aqui importa ter agora em conta –, não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho. Este requerimento, embora não sujeito a formalidades especiais, deve conter, mesmo em súmula, os elementos que são enunciados no art.º 287.º, n. ° 2, do mencionado diploma: a indicação das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283.º n. ° 3. alin. b) e c). Deste modo, o requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório: o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, que é a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público (cf. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", vol. III, pág. 141 e, entre outros, o AC. da Rel. Lisboa de 12-5-1998, BMJ n.º 477, pág. 555; da Rel. Porto de 15-4-1998, BMJ n.º 476, pág. 487; da Rel. Lisboa de 2-12-1998, Boletim do Ministério da Justiça n.º 482, pág. 294; da Rel. Lisboa de 21-10-99, CJ, 1999, IV-158; e da Rel. Lisboa de 9-2-00, CJ, 2000, I-153). Como se referiu no Ac. do TC de 19-5-2004, publicado no Diário da República n.º 150, II Série, de 28 de Junho de 2004 a estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução. Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa. Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis. De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa. Ora bem. Dispõe o art.º 256.º, n.º 1 al.ª e), do Código Penal, que quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. Conforme resulta desta disposição legal, são elementos constitutivos do tipo base da falsificação ou contrafacção de documento: Tipo objectivo: - Que o agente, a) fabrique ou elabore documento falso, b) falsifique ou altere documento, c) abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento, d) faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, e) use documento falsificado ou contrafeito, f) por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito; Tipo subjectivo: - O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade; - O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime. Centrando-nos apenas no elemento subjectivo do tipo, que é o que agora interessa ao caso, escreve Helena Moniz, no comentário que faz ao art.º 256.º no "Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo II, 1999, pág. 684 e ss., sublinhando-se as passagens que referem a matéria de facto que faltou à assistente descrever no RAI: O crime de falsificação de documentos é um crime intencional, isto é, o agente necessita de actuar com "intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo". Não se exige, no entanto, uma específica intenção de provocar um engano no tráfico jurídico (…) (…) isto não significa que apenas se integrem no âmbito deste tipo legal de crime as condutas do agente que apenas tenham como objectivo a obtenção de um beneficio patrimonial ou a provocação de um prejuízo de carácter patrimonial. Não foi essa a posição do legislador mesmo que se considere, como vem sendo tradição, que o bem jurídico protegido é a fé pública nos documentos. Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do acto de falsificação ou do acto de utilização do documento falsificado. O facto de o agente ter de actuar com esta específica intenção não significa que se pretenda proteger outro bem jurídico que não seja o da credibilidade no tráfico jurídico-probatório. Não constitui objecto de protecção o património, tão pouco a confiança no conteúdo dos documentos (…), mas apenas a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, em especial no que respeita aos meios de prova, em particular a prova documental. Aquando da prática do crime de falsificação (onde se integra, por força deste tipo legal, o uso de documento falso por terceiro) o agente deverá ter conhecimento que está a falsificar um documento ou que está a usar um documento falso, e apesar disto quer falsificá-lo ou utilizá-lo. Ou seja, para que o agente actue dolosamente tem que ter conhecimento e vontade de realização do tipo, o que implica um conhecimento dos elementos normativos do tipo. Constituindo o documento um elemento normativo do tipo apenas se exige que o agente tenha sobre ele o conhecimento normal de um leigo de acordo com as regras gerais, não sendo necessário o conhecimento da noção jurídica, maxime, da noção jurídico-penal. (…) Para a prática do tipo legal basta a verificação do dolo eventual (…), isto é, basta que o agente tenha previsto e se tenha conformado com a verificação dos factos inscritos no tipo e considerados perigosos. Ora, retornando ao caso dos autos, se a menção constante do ponto II.6. do RAI de que o facto praticado pelo arguido se destinou a obter para si benefício ilegítimo, logrando, graças ao documento falso, averbar em seu nome a titularidade do veículo que, pouco tempo depois, transmitiu por venda a terceiro satisfaz a parte da descrição do dolo de que o agente necessita de actuar com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo e que é o dolo específico, faltam a enumeração dos factos relativos a que, aquando da prática do crime de uso de documento falsificado por terceiro, o agente tenha conhecimento que está a usar um documento falso e, apesar disso, quer utilizá-lo e que é o dolo genérico. A noção de dolo nas suas modalidades de directo, necessário e eventual é-nos dada pelo art.º 14º do Código Penal. Segundo o Professor Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, vol. II, pág. 162, pode definir-se o dolo como a vontade consciente de praticar um facto que preenche um tipo de crime, constando a vontade dolosa de dois momentos: a) a representação ou visão antecipada do facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual ou cognoscitivo); e b) a resolução, seguida de um esforço do querer dirigido à realização do facto representado (elemento volitivo). Ainda segundo o mesmo autor, na obra citada, não basta o conhecimento de que o facto preenche um tipo de crime, sendo necessária a própria consciência da ilicitude, pois nos expressos termos do art.º 16.º do Código Penal, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo. No mesmo sentido aponta o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, tomo I, págs. 332 e 333. Segundo este Professor, a doutrina hoje dominante conceitualiza o dolo, na sua formulação mais geral, como o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, sendo o conhecimento o momento intelectual e a vontade o momento volitivo de realização do facto. Acerca do momento intelectual do dolo do tipo, escreveu o Professor Figueiredo Dias na obra e local citados: Do que neste elemento verdadeiramente e antes de tudo se trata é da necessidade, para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência (…) das circunstâncias do facto (…) que preenche um tipo objectivo de ilícito (art.º 16.º-1). A razão desta exigência deve ser vista à luz da função que este elemento desempenha: o que com ele se pretende é que, ao actuar, o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento. Só quando a totalidade dos elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta. Por isso, numa palavra, o conhecimento da realização do tipo objectivo de ilícito constitui o sucedâneo indispensável para que nele se possa ancorar uma culpa dolosa e a punição do agente a esse título. Com a consequência de que sempre que o agente não represente, ou represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objectivo o dolo terá, desde logo, de ser negado (…). Fala-se a este respeito, com razão, de um princípio de congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso. Ora no caso vertente, o RAI é parcialmente omisso relativamente à narração dos factos caracterizadores do dolo, mais concretamente do dolo genérico, exigido para a perfectibilização dos mencionados crimes de falsificação de documento, sendo certo que este não é uma simples fórmula jurídica sem conteúdo útil, mas matéria de facto e, como se referiu, elemento constitutivo daqueles crimes. Enquanto elemento constitutivo dos crimes em presença, o dolo não se presume, devendo, isso sim, constar expressamente daquele requerimento. Tão pouco, a circunstância do dolo, pela sua própria natureza subjectiva, ser um fenómeno da vida interior do indivíduo, e por isso insusceptível de demonstração directa, não dispensa a sua concreta alegação. É que uma coisa é a prova do dolo, outra bem diferente é a sua alegação em concreto. Aliás, nos termos do disposto na al.ª b) do n.º 3 do art.º 283.º do Código de Processo Penal, não há lugar à existência de factos implícitos. Assim, também não se pode ter como implícito ou subentendido no requerimento de abertura da instrução aquele elemento subjectivo, constitutivo do aludido crime. Na verdade, é hoje indefensável no direito penal a ideia de dolus in re ipsa, que sempre resultaria da simples materialidade da infracção. Como salienta o Prof. Figueiredo Dias, in RLJ, 105, pág. 142, a moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo. Num processo com estrutura acusatória, como é o nosso, a determinação do objecto do processo assume a maior relevância. Neste caso, o objecto do processo é fixado pelos factos descritos no RAI, que como já dissemos, deve constituir uma acusação alternativa. São esses os factos a que alude a al.ª b) do n.º 3 do art.º 283º do Código de Processo Penal, que devem constar da acusação, sob pena de esta ser nula, bem como o requerimento de abertura da instrução formulado pela assistente no caso do M.º P.º no final do inquérito ter determinado o arquivamento dos autos. Todavia, a exigência ditada por este preceito não se contenta com qualquer descrição de factos, mas com a narração de factos objectivos, concretos e determinados que fundamentem a imputação de um crime certo e determinado a alguém devidamente individualizado. Na verdade, como atrás já dissemos, o RAI, porque definidor e limitador do próprio processo, deve utilizar a veste de uma verdadeira acusação, enformando-a, perfilando-se e apresentando-se substancialmente como uma acusação alternativa, natural e consequentemente descrevendo e exarando factos concretos e objectivos, que sustentam e justificam uma eventual aplicação das sanções prevenidas nas normas que se imputam como violadas. Acresce que qualquer descrição factual descritiva do dolo que viesse a ser feita numa eventual pronúncia, redundaria numa alteração substancial do requerimento, pois implicaria uma total inscrição de factos "novos", da inteira responsabilidade do Juiz de Instrução, que assim se substituiria àquele requerimento e, como tal, estaria ferida da nulidade cominada no art.º 309.° do Código de Processo Penal (acórdão da Relação de Coimbra de 24-11-94, Colectânea de Jurisprudência, 1994, V-61). Deste modo, o requerimento que a assistente apresentou para abertura da instrução não contém os elementos essenciais à função processual que lhe é assinalada e não é processualmente prestável para tal finalidade, o que equivale a dizer que se pode falar em falta ou insuficiência de objecto, que conduz à inadmissibilidade legal da instrução a que refere o art.º 287.º, n.º 3 (entre outros, cf. o acórdão da Relação de Évora de 14-4-95, Colectânea de Jurisprudência, 1995, II, pág. 280). Qual, então, a consequência da falta ou deficiência da indicação daqueles elementos? É a da rejeição do requerimento. E a assistente deve ser convidado a corrigir esse requerimento? E a resposta é: não há lugar a convite à assistente para aperfeiçoar o RAI, apresentado nos termos do art.º 287.°, n.º2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido – Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 12-5-05, proferido no processo n.º 430/04-3, publicado no Diário da República n.º 212, Série I-A, de 4-11-2005 e do qual não vemos qualquer razão para divergir. III Termos em que se decide negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC (art.º 515.º, n.º 1 al.ª b) do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5, do RCP e tabela III anexa). # Évora, 23-02-2016 (elaborado e revisto pelo relator) JOÃO MARTINHO DE SOUSA CARDOSO ANA BARATA DE BRITO |