Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | CHAMBEL MOURISCO | ||
Descritores: | ABUSO DE DIREITO RESCISÃO PELO TRABALHADOR | ||
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Data do Acordão: | 05/30/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO SOCIAL | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | Incorre em abuso de direito o trabalhador que rescinde o seu contrato de trabalho ao abrigo da lei dos salários em atraso, peticionando indemnização por antiguidade, quando dois meses antes foi informado do plano da entidade patronal, que tem vindo a cumprir, para pagar esses salários em atraso, não tendo na altura deduzido qualquer oposição. | ||
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Decisão Texto Integral: | Rec. nº 502/05-3 Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora: A. …, propôs acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum contra B. …, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia global de € 6 890,15, referente a indemnização ( € 5. 328,10) e prestações pecuniárias em dívida ( € 1.562,05), acrescida de juros de mora até integral pagamento. Para o efeito alegou, em síntese, o seguinte: - Prestou trabalho sob ordens, direcção e fiscalização da R., desde Novembro de 1991, mediante contrato de trabalho a termo certo, auferindo ultimamente a retribuição de € 326,25; - A R. deixou de pagar pontualmente as retribuições respeitantes aos meses de Novembro e Dezembro de 2003, bem como o subsídio de férias e Natal; - Com tal fundamento e ao abrigo da lei nº 17/86, de 14/6, rescindiu o seu contrato de trabalho com efeitos a partir de 15/03/2004. A R. contestou, alegando factos tendentes a impugnar parcial e especificadamente os alegados pela A. sustentando que a esta não assiste direito ao peticionado, tendo até havido abuso de direito no que concerne à forma como foi efectuada a rescisão do contrato de trabalho. Concluindo pede a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido. Foi dispensada a audiência preliminar e relegou-se para sede de audiência final a selecção da matéria de facto. Procedeu-se a julgamento tendo sido proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a R. a pagar à A. a quantia de € 1.553,27, a título de retribuições, subsídio de férias e subsídio de Natal e proporcionais de férias subsídio de férias e subsídio de Natal, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 27/5/2004, até integral pagamento. Inconformado com a sentença, a A. apresentou recurso de apelação tendo concluído: 1. Ocorre abuso de direito quando o respectivo exercício ofende clamorosamente a boa fé, os bons costumes, o fim social e económico que lhe subjaz; 2. O trabalhador que rescinde o contrato de trabalho com a sua entidade patronal, fundamentando-o no não pagamento atempado do salário, em período que excede trinta dias sobre a data do vencimento da primeira retribuição não paga, não ocorre em abuso de direito; Pois, 3. O legislador não ignora o significado e importância que para ele tem o salário, pelo que, com a LSA pretende assegurar o pagamento tempestivo das retribuições aos trabalhadores; 4. À apelante não é imputável a falta de pagamento atempado dos salários, ou que para ele tenha contribuído, pois, nenhuma intervenção tinha ou teve no devir dos negócios sociais; 5. Também o facto de ter auferido retribuição por trabalho prestado fora do objecto do contrato, tal não co-envolve qualquer favorecimento, já que aquela se fundava em título diverso deste; 6. Igualmente, a intenção da apelada de alterar o objecto do contrato, não faz a apelante incorrer no sobredito vício, já que, a ter lugar aquela, somente com acordo de ambas as partes o mesmo poderia ser alterado; 7. Pese embora a recorrência da situação de salários em atraso, como disse, tal não lhe era imputável, nem tão pouco a apelante tinha de demonstrar a sua indigência para que pudesse exercitar o direito que exercitou; 8. Apenas e só as condições objectivas da situação de salários em atraso, previstas na LSA, a tanto era suficiente para preencher os requisitos legais e, assim, peticionar a indemnização prevista no art. 6º, al. a), da referida Lei; 9. Outro entendimento não pode colher, mesmo que tal situação se tenha protelado no tempo, pois, ao trabalhador não é exigível o não exercício do seu direito de rescisão para salvaguarda dos interesses da empresa, in casu, associação civil, em detrimento dos seus próprios interesses; 10. Ao decidir-se pela improcedência da pretensão indemnizatória deduzida pela apelante, o ilustre julgador aplicou indevidamente o regime previsto no art. 334º, do C.C., fazendo-a incursa em abuso de direito, vício em que não incorre, atentas as especiais finalidades de protecção do salário dos trabalhadores por conta doutrem, tidas em conta pelo Legislador na Lei nº 17/86, quando devia ter aplicado o disposto no art. 3º, nº1 e condenado a apelada no pedido, acrescido da indemnização prevista no art. 6º, al.a), ambos da citada Lei; A R. contra-alegou, tendo concluído pela improcedência da apelação. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal da Relação de Évora emitiu parecer no sentido da confirmação da sentença recorrida. Os autos foram com vista aos Ex.mos Juízes adjuntos. Nos termos dos art. 690º nº1 e 684º nº3 do CPC, ex vi art. 1º, nº2 al.a) do CPT as conclusões das alegações delimitam o objecto do recurso. A única questão a decidir consiste em saber se a A. quando rescindiu o contrato de trabalho que a ligava à R., ao abrigo da Lei nº 17/86, de 14/6, formulando pedido de indemnização por antiguidade, incorreu em abuso de direito. Na sentença recorrida foram consignados como provados os seguintes factos: 1 - A autora, desde Novembro de 1991 exerceu funções sob ordens, direcção e fiscalização da ré, nas instalações desta sita no … . 2 – Em 01/11/1994, autora e ré subscreveram um escrito que denominaram contrato de trabalho, no qual consta como categoria profissional daquela “auxiliar de secretaria”, como “ordenado mensal” a quantia de 45 000$00 (Base 7 horas diárias) e como “local de trabalho” o …. 3 - A autora auferia, ultimamente, ao serviço da ré, a remuneração mensal de € 326,25. 4 – Datada de 02/03/2004 a autora enviou à ré uma carta registada com A/R, que esta recebeu, pela qual comunicava que rescindia o seu contrato de trabalho a partir do dia 15 de Março de 2004 ao abrigo do art. 3º da Lei 17/86, alegando estarem em dívida os salários referentes aos meses de Novembro e Dezembro, bem como os subsídios de férias e Natal, do ano de 2003, tendo, na mesma data enviado, também, carta registada ao IDICT, comunicando a rescisão do seu contrato de trabalho. 5 – Na data em que a autora enviou à ré a carta de rescisão do contrato de trabalho estavam em dívida os salários relativos aos meses de Novembro e Dezembro do ano de 2003, bem como o subsídio de férias vencido em 01/01/2003 e o subsídio de Natal do ano de 2003. 6 – Em Outubro de 1995 e com efeitos a partir de 01/11/2005 a ré rescindiu o contrato de trabalho que mantinha com a autora, passando a partir dessa data a vigorar pelo período temporal de 3 horas diárias, sendo as funções exercidas em serviço na secretaria, tendo esta aceite. 7 – A direcção da ré foi presidida pelo pai da autora, F. … no período compreendido entre 01/03/1996 e 11/12/2003. 8 – Datada de 28/01/2004 a ré enviou à autora uma carta registada pela qual a informava que “deverá partir do próximo dia 02 de Fevereiro, exercer funções, respeitando o horário supra referido a cumprir das 9.00h às 13.00h e das 15.00h às 18.00h, devendo informar-se junto da Direcção, do valor do respectivo vencimento” dado que a colectividade não tinha interesse no exercício de funções em horário reduzido e a fim de “dar cumprimento ao último acordo escrito celebrado entre as partes” em que o horário era de 7 horas diárias. 9 – A autora, quando a empregada da limpeza se encontrava em gozo de férias, chegou a substitui-la auferindo vencimento por essa tarefa que foi discriminado como “gratificações”. 10 – A ré desde Novembro de 2002 que deixou de pagar atempadamente os salários aos seus trabalhadores, designadamente à autora que em 22/01/2003 recebeu a retribuição referente a Novembro de 2002; em 23/04/2003 recebeu a retribuição referente a Janeiro de 2003; em 28/07/2003 recebeu a retribuição referente a Março de 2003; em 05/08/2003 recebeu a retribuição referente a Abril de 2003; em 16/09/2003 recebeu a remuneração referente a Maio de 2003; em 27/10/2003 recebeu a retribuição referente a Julho de 2003 e em 12/11/2003 recebeu retribuição referente a Agosto de 2003. 11 – A autora assinou o recibo da retribuição referente ao mês de Dezembro de 2003, mas não lhe foram pagos os quantitativos descriminados no aludido documento. 12 - A actual direcção da ré após tomar posse em 12/12/2003, deu conhecimento a todos os funcionários, incluindo a autora, da difícil situação económica que atravessava, herdada da anterior gestão, tendo-se prontificado a pagar os salários em atraso à razão de um por mês, em concomitância com o salário do respectivo mês, o que veio a cumprir, não tendo havido qualquer oposição. 13 – A ré, datada de 23/03/2004 remeteu à autora uma carta pela qual dava conhecimento “que se encontram a pagamento as retribuições que se encontram em dívida na sequência da sua rescisão, incluindo o vencimento relativo aos dias do mês de Março, bem como os salários em atraso relativos aos meses de Novembro e Dezembro de 2003 e respectivo subsídio de Natal. Para o efeito deverá dirigir-se aos escritórios da nossa advogada...” 14 – Presentemente, a autora ainda não recebeu da ré as retribuições referentes aos meses de Novembro e Dezembro de 2003, o subsídio de férias vencido em 01/01/2003, o subsídio de Natal relativo ao ano de 2003 e os proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal referentes ao ano de 2004. 15 – A anterior Direcção da ré só entregou os documentos relativos à contabilidade desta em Junho de 2004. *** Feita esta enumeração, e delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações do recorrente, passaremos a apreciar a questão a decidir.A sentença recorrida negou à A. a peticionada indemnização por antiguidade invocando que no exercício do direito foram excedidos os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito, já que nada alegou, nem da prova resultou, que em Março de 2004 estivesse numa situação tal que não lhe permitisse como até aí vinha acontecendo esperar pelo decurso de mais dois meses, com vista a ver toda a sua situação regularizada. Para fundamentar tal posição, para além do mais, refere-se que: - A actual direcção da R. após tomar posse em 12/12/2003, deu conhecimento a todos os funcionários, incluindo à A., da difícil situação económica que atravessava, herdada da anterior gestão, tendo-se prontificado a pagar os salários em atraso à razão de um por mês, em concomitância com o salário do respectivo mês, o que veio a cumprir, não tendo havido qualquer oposição; - A autora, como funcionária da secretaria que era e até pelas relações privilegiadas que mantinha com a direcção da ré bem sabia da difícil situação económica que a colectividade atravessava não se coibiu, ao contrário do que aconteceu com os outros trabalhadores, que se encontravam nas mesmas circunstâncias, de exercer o seu direito de rescisão do contrato de trabalho numa altura em que as “contas” estavam a ser pontualmente acertadas, podendo com a sua conduta pôr em crise a calendarização dos pagamentos com os outros trabalhadores, seus colegas. Vejamos se é de manter a referida posição que sustenta que houve abuso de direito por parte da A.. Segundo a matéria de facto provada a A., rescindiu o seu contrato de trabalho ao abrigo do art.º 3º da Lei 17/86, alegando estarem em dívida os salários referentes aos meses de Novembro e Dezembro, bem como os subsídios de férias e Natal, do ano de 2003 ( ponto 4 dos factos provados). Ficou ainda provado que na data em que a A. enviou à R. a carta de rescisão do contrato de trabalho estavam em dívida os salários relativos aos meses de Novembro e Dezembro do ano de 2003, bem como o subsídio de férias vencido em 01/01/2003 e o subsídio de Natal do ano de 2003 ( ponto 5 dos factos provados). Temos assim que A. fundamentou a rescisão do seu contrato de trabalho na Lei nº 17/86 de 14/6. Esta Lei surgiu para fazer face às situações decorrentes da crise económica que ocorreu na primeira metade da década de oitenta que provocou inúmeras situações de salários em atraso e, para além do mais, veio estabelecer garantias com vista à cobrança dos créditos emergentes do contrato de trabalho. O referido diploma, com o decorrer do tempo, sofreu alterações através dos DL nº 221/89, de 5/7, e DL nº 402/91, de 16/10, e das Leis nº 118/99, de 11/08, e nº 96/2001, de 20/8, vindo a ser revogada com a entrada em vigor da Lei regulamentar do Código do Trabalho (cfr. art. 21 nº2 al. e. da Lei 99/2003, de 27/8 e Lei nº 35/2004, de 29/7). A matéria regulada pela referida Lei encontra actualmente assento no art. 308º da Lei nº 35/2004, de 29/7. De qualquer forma, quando a A. rescindiu o seu contrato de trabalho a mencionada Lei ainda vigorava, dispondo o seu art. 3º nº1, na versão que lhe foi dada pelo DL nº 402/91, de 16/10, que: “ Quando a falta de pagamento pontual da retribuição se prolongue por período superior a trinta dias sobre a data do vencimento da primeira retribuição não paga, podem os trabalhadores, isolada ou conjuntamente, rescindir o contrato com justa causa ou suspender a sua prestação de trabalho, após notificação à entidade patronal e à Inspecção-Geral do Trabalho, por carta registada com aviso de recepção, expedida com a antecedência mínima de dez dias, de que exercem um ou outro desses direitos, com eficácia a partir da data da rescisão ou do início da suspensão.” No caso concreto dos autos, e segundo a matéria dada como provada, na data em que a A. enviou à R. a carta de rescisão do contrato de trabalho (2/3/2004) estavam em dívida os salários relativos aos meses de Novembro e Dezembro do ano de 2003, bem como o subsídio de férias vencido em 01/01/2003 e o subsídio de Natal do ano de 2003. Considerando só estes factos, que constam nos pontos 4 e 5 dos factos provados, parece que a situação de salários em atraso da A. se poderia enquadrar na previsão da disposição legal citada. No entanto, não podemos deixar de efectuar a necessária articulação entre essa factualidade e a que consta nos pontos 10 e 12. Com efeito, a situação de salários em atraso na R. já se vinha arrastando desde Novembro de 2002, quer em relação à A. quer em relação aos restantes trabalhadores e quando a actual direcção da R. tomou posse em 12/12/2003, deu conhecimento a todos os funcionários, incluindo a autora, da difícil situação económica que atravessava, herdada da anterior gestão, tendo-se prontificado a pagar os salários em atraso à razão de um por mês, em concomitância com o salário do respectivo mês, o que veio a cumprir, não tendo havido qualquer oposição. Assim, a A., foi informada, em 12/12/2003, do plano da R. para pagar os seus salários em atraso bem como dos restantes trabalhadores, não tendo deduzido qualquer oposição. Passados quase três meses, quando a R. estava a cumprir o plano de pagamento que traçou, sem oposição dos trabalhadores, é que a A. rescinde o seu contrato de trabalho, ao abrigo da Lei dos salários em atraso, peticionando indemnização por antiguidade. Esta atitude da A., quando exerceu o direito de rescisão, desta forma inesperada, excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé e traduz-se num abuso de direito. Esta figura do abuso de direito está contemplada no art. 334º do C.C. de forma a considerar ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. É certo que a lei impõe que o excesso seja manifesto e a doutrina tem defendido a necessidade do manifesto abuso (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 216, onde se citam os Profs. Manuel de Andrade e Vaz Serra, referindo-se o primeiro aos direitos “ exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça” e o segundo “ à clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”. Enquadrada a questão nestes termos impõe-se salientar a importância das regras da boa fé durante a execução do contrato de trabalho. Numa relação como a laboral, em que existem direitos e deveres de ambas as partes, as regras da boa fé assumem um relevo cada vez maior, pretendendo-se dignificar por um lado, a pessoa do trabalhador e por outro preservar as estruturas empresariais garantindo a manutenção dos postos de trabalho, sendo certo que a dignificação do trabalhador pressupõe a manutenção do seu posto de trabalho, o que lhe permite a realização profissional e auferir os respectivos rendimentos. A manutenção dos postos de trabalho impõe a preservação das estruturas empresariais, havendo para efeito necessidade de uma mútua colaboração e cooperação entre os trabalhadores e as respectivas entidades patronais. Esta mútua colaboração e cooperação, assim como o dever informação, são os pilares das regras da boa fé que devem estar sempre presentes na execução do contrato de trabalho. A forma inesperada como a A. exerceu o direito de rescindir o seu contrato de trabalho, ao abrigo da lei dos salários em atraso, peticionando indemnização por antiguidade, pode-se considerar uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante. Na verdade, a aludida rescisão vem a ocorrer numa altura em que a R. estava a cumprir o plano de pagamento que traçou, sem oposição dos trabalhadores, incluindo da A.. A atitude brusca da A., ao rescindir o contrato e a exigir uma indemnização por antiguidade, nas referidas circunstâncias, podia fazer perigar o compromisso da R. de regularizar os salários em atraso dos restantes trabalhadores e até de pôr em risco todos os postos de trabalho. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a Apelação mantendo a sentença recorrida. Custas a cargo do recorrente. (Processado e revisto pelo relator que assina e rubrica as restantes folhas). Évora, 2005/ 5 / 30 Chambel Mourisco Gonçalves Rocha Baptista Coelho |