Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1167/11.8TBOLH.E1
Relator: JOÃO MANUEL MONTEIRO AMARO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÕES
RECURSO
NULIDADE DA DECISÃO
Data do Acordão: 03/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1. Na vigência do RCP não é devida taxa de justiça pela interposição de recurso para o tribunal da Relação da sentença que conheceu do recurso de impugnação judicial da decisão administrativa proferido em processo de contraordenação.

2. Mesmo em matéria contraordenacional devem constar, da narração acusatória, os factos relativos à culpabilidade, devendo descrever-se o conhecimento (representação) e a vontade de realização do facto material típico (do tipo objetivo, isto é, dos elementos objectivos, naturalísticos ou normativos, de uma infracção).

3. In casu, não chega, na decisão da autoridade administrativa, descrever, resumidas as coisas, que a arguida agiu “a título de dolo”. Era preciso dizer, especificando e concretizando, quem actuou, por forma consciente e voluntária, em clara violação dos seus deveres, praticando, desse modo, as infrações em análise. Ora, na decisão da autoridade administrativa isso não foi feito, faltando, desde logo, factos que descrevam sequer quem era o responsável, quem agiu em concreto.

4. Esses factos deviam constar da decisão da autoridade administrativa (equivalente à "acusação") e, não constando, não podem ser levados à sentença da primeira instância (como o foram), sob pena de violação do princípio do acusatório.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


I - RELATÓRIO

L, impugnou judicialmente a decisão administrativa proferida pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), que a condenou no pagamento de uma coima no valor de € 6.000,00, pela prática de duas contra-ordenações, uma prevista nos artigos 3º e 4º, nº 2, conjugados com os nºs 1 e 2 do Capítulo I, os nºs 2 e 3 do Capítulo VI e com o Capítulo XII do Anexo II, todos do Regulamento (CE) nº 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, e outra prevista no artigo 5º do referido Regulamento, puníveis pela alínea b) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-lei nº 113/2006, de 12 de Junho, e ainda no pagamento de € 300,00 relativo a custas do processo, nos termos do disposto no artigo 94º do Regime Geral das Contra-Ordenações.

A impugnação foi remetida ao 2º Juízo do Tribunal Judicial de Olhão, onde, como recurso de contra-ordenação, recebeu o nº 1167/11.8TBOLH.

Admitido o recurso da aludida decisão administrativa, e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 11 de Outubro de 2011, pertinente sentença, na qual se decidiu:

“Julgar parcialmente procedente o recurso, e, em consequência, alterar a decisão recorrida no que concerne ao valor das coimas parcelares e valor da coima única aplicada, e, assim:

a) Condenar a recorrente L, pela prática de uma contra-ordenação prevista pelos artigos 3.º e 4.º, n.º 2, conjugados com o n.º 1, n.º 2 e n.º 10 do Capítulo I, n.º 2, e n.º 3 do Capítulo VI, do Anexo II do Regulamento (CE) n.º 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, e punida pelo artigo 6.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Decreto-lei n.º 113/2006, de 12 de Junho, numa coima no valor de € 2.000,00 (dois mil euros);

b) Condenar a recorrente L, pela prática de uma contra-ordenação prevista pelo artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, e punida pelo artigo 6.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-lei n.º 113/2006, de 12 de Junho, numa coima no valor de € 2.000,00 (dois mil euros);

c) Proceder ao cúmulo jurídico das coimas referidas em a) e b) e condenar a recorrente L numa coima única no valor de € 3.000,00 (três mil euros);

d) Condenar a recorrente nas custas pelo decaimento no presente recurso, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, nos termos dos artigos 93.º e 94.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e do artigo 8.º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais”.

*
Inconformada com a decisão do tribunal, recorreu a arguida, extraindo da sua motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“A. O presente procedimento contra-ordenacional já se encontra prescrito desde 3 de Janeiro de 2009, relativamente a todos os factos por que a Recorrente foi condenada.

B. Ao considerar, designadamente, que “existiam teias de aranha nos cantos das paredes e nas janelas” ou que “existiam paletes de produtos hortofrutícolas para serem inutilizadas com a presença de moscas”, a Decisão da CACMEP procede a uma descrição genérica dos factos, não consubstanciada e recorrendo a conceitos vagos e indeterminados, inviabilizando o exercício do direito de defesa, por parte da Recorrente, erro em que também incorre a Sentença Recorrida.

C. A falta de clareza na descrição dos factos torna a Decisão e a Sentença Recorrida nulas por violação do disposto nos artigos 58.º, n.º 1, alínea b), do RGCO, e artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aplicáveis ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO.

D. No que respeita ao elemento subjectivo das infracções em causa, a Decisão da CACMEP limitou-se a considerar como provados – erradamente – os elementos objectivos da contra-ordenação, daí concluindo que a Recorrente agiu com dolo.

E. Se a CACMEP pretendia imputar à Recorrente a contra-ordenação em causa a título de dolo, deveria ter indicado quais os factos em concreto que conduziram a tal conclusão e quais as provas obtidas que sustentaram a mesma.

F. Ao considerar que a omissão de factos que permitam ponderar a verificação do elemento subjectivo da infracção não afecta a validade da Decisão da CACMEP, relevando, somente, em sede de apreciação do mérito, a Sentença Recorrida encontra-se irremediavelmente viciada.

G. Ao omitir a descrição dos factos integradores do elemento subjectivo das contra-ordenações em causa, a Decisão da CACMEP é nula por violação do disposto nos artigos 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RGCO e artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aplicáveis ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO.

H. A Decisão da CACMEP limita-se a fazer uma enunciação genérica e vazia dos elementos referidos no artigo 18.º do RGCO, os quais deveriam ter sido devidamente concretizados e explicitados na Decisão, de modo que a Recorrente pudesse compreender qual a ponderação realizada para a determinação da medida da coima e, querendo, contestar tal ponderação em sede de impugnação judicial.

I. Também por essa razão a Decisão é nula por falta de fundamentação da determinação da medida da coima.

J. Andou mal o Tribunal a quo ao condenar a Recorrente pela prática da contra-ordenação prevista nos artigos 2.º e 4.º, n.º 2, conjugados com o n.º 1, n.º 2 e n.º 10 do Capítulo I, n.º 2 e n.º 3 do Capítulo VI, do Anexo II do Regulamento, com base na existência de diversos produtos alimentares para devolução sem indicação do fim a que se destinavam, uma vez que não se vislumbra, em qualquer das normas mencionadas, qualquer proibição da existência de produtos alimentares para devolução sem indicação do fim a que se destinavam, nem sequer se alcança em que medida tal constatação influi no cumprimento das regras de higiene.

K. Para além de o facto que se acaba de mencionar não se subsumir na conduta típica constitutiva da contra-ordenação relativa a incumprimento dos requisitos gerais e específicos de higiene, os restantes factos dados como provados que fundamentam a aplicação da referida contra-ordenação não permitem concluir pelo preenchimento do respectivo tipo objectivo.

L. A descrição genérica e conclusiva dos factos dados como provados relativamente à existência de teias de aranha e de moscas no armazém não permite proceder à subsunção dos mesmos na conduta típica.

M. Em boa verdade, é do conhecimento geral que as teias de aranha se formam em poucas horas, pois que, ainda que se proceda a uma limpeza diária e minuciosa de um espaço com as características de um armazém de supermercado, é expectável que, em poucas horas, se forme uma teia de aranha.

N. Mas esse facto não pode ser tido como constituindo violação do Regulamento, porquanto não parece possível evitar a formação esporádica de uma teia de aranha, ao menos sem utilizar produtos químicos susceptíveis de pôr em risco a saúde dos consumidores.

O. Um juízo de moderação e razoabilidade impõe que se não procure interpretar as normas do Regulamento como obrigando a garantir o impossível, isto é, a inexistência absoluta, em todos os lugares e a todo o tempo, de uma teia de aranha.

P. Por outro lado, foi considerado provado que “existiam paletes de produtos hortofrutícolas para serem inutilizadas com a presença de moscas”, facto conclusivo que serviu de fundamento à condenação da Recorrente pela prática da contra-ordenação em apreço.

Q. Um armazém de um supermercado é, por natureza, um espaço de cargas e descargas, de permanente circulação de pessoas e mercadorias e, por conseguinte, amplo e aberto, não sendo de estranhar a existência de moscas num armazém com estas características.

R. À semelhança do que ficou dito para as teias de aranha, a existência de moscas no armazém, por si só, não constitui uma violação do Regulamento, porquanto não é possível assegurar que não entra nenhuma mosca num armazém com aquelas características, ao menos sem utilização de produtos químicos susceptíveis de põe em risco a saúde dos consumidores.

S. Nestes termos, não deverá dar-se por preenchida a conduta típica prevista pelas mencionadas normas do Regulamento.

T. O Tribunal a quo condenou a Recorrente pela prática da infracção prevista no n.º 10 do Capítulo I do Anexo II do Regulamento, ou seja, por violação da seguinte conduta: “os produtos de limpeza e ou os desinfectantes não devem ser armazenados em áreas onde são manuseados alimentos”.

U. In casu, resulta dos factos provados que se encontravam no interior do armazém, no momento da acção inspectiva, baldes, vassouras e esfregonas de limpeza sem qualquer resguardo, nada resultando quanto ao armazenamento de produtos de limpeza.

V. Por outro lado, não resulta dos factos provados que os utensílios de limpeza são armazenados em área onde são manuseados alimentos.

W. A circunstância de aqueles utensílios se encontrarem no armazém, “no lado oposto à zona de recepção de mercadorias”, não permite concluir que são armazenados na área onde são manuseados alimentos.

X. Do que antecede resulta, pois, que se não poderá concluir dos factos considerados provados pelo Tribunal a quo o preenchimento do tipo objectivo da contra-ordenação em causa, devendo, pois, ser revogada a Sentença Recorrida e arquivado o presente processo, sem aplicação à Recorrente de qualquer sanção pelos factos analisados.

Y. O Tribunal a quo condenou a ora Recorrente pela deficiente implementação no Estabelecimento de processo baseado nos princípios do HACCP, em violação do artigo 5.º do Regulamento.

Z. No entanto, a ora Recorrente implementou oportunamente um sistema de controlo de géneros alimentícios HACCP, tal como previsto naquele Regulamento, identificando todas as fases das suas actividades, de forma a garantir a segurança dos alimentos que comercializa e velar pela criação, aplicação, actualização e cumprimento de procedimentos de segurança adequados.

AA. Para além deste manual, a Recorrente implementou ainda uma Norma de Qualidade e Segurança, igualmente aplicável a todos os seus estabelecimentos, relativa aos processos de controlo de qualidade baseados nos princípios HACCP.

BB. O Tribunal a quo assenta a condenação da Recorrente na omissão de identificação de pontos críticos de controlo, a qual seria necessária devido à circunstância de a Recorrente manipular alimentos.

CC. Sucede, porém, que, a Recorrente sustenta e sustentou ao longo de todo o presente processo contra-ordenacional que a sua actividade não envolve a manipulação de alimentos, já que todos os produtos chegam ao armazém devidamente embalados.

DD. Ora, embora o Tribunal a quo se fundamente na convicção de que a Recorrente manipula alimentos não embalados, tal não resulta da matéria de facto provada. O Tribunal a quo fundamentou o juízo de condenação da Recorrente pela prática de uma contra-ordenação num facto controvertido que nem sequer considerou provado.

EE. Por outro lado, não são especificados, pela Recorrente, quaisquer pontos críticos de controlo, pois que se forem detectadas anomalias face ao previamente determinado, as mercadorias são retiradas da venda.

FF. Seja como for, não basta a consideração de que a Recorrente manipula alimentos para daí poder concluir-se a necessidade de definição de pontos críticos de controlo, uma vez que a Recorrente, ante qualquer anomalia ou dano nos produtos que vende, retira imediatamente esses produtos de venda.

GG. Com efeito, não resulta da matéria de facto provada qualquer circunstância que permita concluir pela necessidade de a Recorrente, atentas as características da actividade que prossegue, proceder à definição daqueles pontos críticos de controlo e respectivos elementos conexos.

HH. O Tribunal a quo fundamenta, também, a contra-ordenação por deficiente implementação no Estabelecimento de processo baseado nos princípios do HACCP na falta de conservação do registo de entrada de mercadoria com indicação da temperatura, a qual seria imposta pelo n.º 4 do artigo 5.º do Regulamento.

II. No entanto, do mencionado artigo 5.º do Regulamento não decorre para a Recorrente qualquer obrigação de verificação da temperatura da mercadoria e de apresentação dos respectivos registos às entidades fiscalizadoras.

JJ. Tal não significa, porém, que o controlo da temperatura da mercadoria não seja efectuado relativamente à mercadoria vendida nas lojas da Recorrente.

KK. Pelo contrário, no Estabelecimento, como resulta da matéria de facto provada, aquando da recepção dos produtos é efectuado um controlo de temperatura do ar do camião de transporte, sendo o registo efectuado na própria guia de transporte e entregue uma cópia à Recorrente. Este é o procedimento adequado a assegurar a adequada temperatura de conservação dos alimentos, não sendo feita no Regulamento qualquer outra exigência a este respeito, pelo que não pode a Sentença Recorrida imputar qualquer falha à ora Recorrente quanto a este aspecto.

LL. No entanto, convém sublinhar que o artigo 5.º do Regulamento não exige, de forma alguma, a apresentação de tais documentos às entidades fiscalizadoras, pelo que, também por esta via, não é exigível a apresentação de tais documentos.

MM. Em face do que antecede, deverá a Sentença Recorrida ser revogada, sem aplicação à Recorrente de qualquer sanção relativa aos factos que se acaba de analisar.

NESTES TERMOS,

- deve a Sentença Recorrida ser considerada nula ou, caso assim não se entenda,

- deve a Recorrente ser absolvida da prática das contra-ordenações em causa, ordenando-se, consequentemente, o arquivamento do presente processo contra-ordenacional, sem aplicação à Recorrente de qualquer sanção”.

*
O Exmº Magistrado do Ministério Público na primeira instância apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso.

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, no seu douto parecer, aquando da vista a que se refere o artigo 416º, nº 1, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de os autos serem remetidos ao tribunal de primeira instância, a fim de aí se dar cumprimento à tramitação do artigo 80º do Código das Custas Judiciais (por falta de pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do presente recurso).

Notificada a arguida, nos termos e para os efeitos consignados no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, a mesma disse, em síntese, que não há lugar ao pagamento de taxa de justiça pela interposição do recurso, face ao disposto no artigo 7º, nº 2, do Regulamento das Custas Processuais.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.


II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objecto do recurso.

Diversas questões são suscitadas no presente recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objecto e poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal:

1ª - Saber se o procedimento contraordenacional dos autos se mostra ou não extinto por prescrição.

2ª - Determinar se, quer na decisão da autoridade administrativa quer na sentença recorrida, estão ou não suficientemente descritos os factos relativos aos elementos objectivos e subjectivos das contra-ordenações em causa.

3ª - Ponderar se, perante os factos dados como provados, foram ou não praticadas as contra-ordenações pelas quais a arguida foi condenada.

Porém, e como questão prévia, importa ainda apreciar e decidir se é ou não devida taxa de justiça pela interposição do presente recurso (questão suscitada pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta, no seu douto parecer, aquando da vista a que se refere o artigo 416º, nº 1, do C. P. Penal).

2 - A decisão recorrida.

Na sentença objecto do presente recurso ficou consignado o seguinte (quanto a factos provados, não provados e motivação da convicção do tribunal):

“A) Factos Provados:
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:

1. No dia 3 de Julho de 2007, pelas 12.30horas, foi efectuada uma acção de fiscalização por inspectores da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica ao estabelecimento comercial de supermercado designado L, sito na Estrada Nacional 125,...., concelho de Olhão, e propriedade da L, a qual foi acompanhada por JS, chefe de loja da recorrente.

2. Nas circunstâncias descritas em 1), no interior do armazém do estabelecimento em causa, existiam teias de aranha nos cantos das paredes e nas janelas.

3. Nas circunstâncias descritas em 1), no interior do armazém do estabelecimento em causa, junto à zona de recepção de mercadorias, existiam paletes de produtos hortofrutícolas para serem inutilizadas com a presença de moscas.

4. Nas circunstâncias descritas em 1), no interior do armazém do estabelecimento em causa, no lado oposto à zona de recepção de mercadorias, encontravam-se baldes, vassouras e esfregonas de limpeza sem qualquer resguardo.

5. Nas circunstâncias descritas em 1), no interior do armazém do estabelecimento em causa, existiam diversos produtos alimentares para devolução sem indicação do fim a que se destinavam.

6. Nas circunstâncias descritas em 1), no interior do armazém do estabelecimento em causa, existiam paletes de produtos alimentares, designadamente de massa e arroz, junto de produtos de higiene, ambos para venda.

7. Desde o ano de 2005 a recorrente tem implementado em todos os seus estabelecimentos um controlo de géneros alimentícios HACCP, no qual são identificadas fases da sua actividade, com vista a garantir a segurança dos alimentos que comercializa e velar pela criação, aplicação, actualização e cumprimento de procedimentos de segurança, bem como tem implementada em todos os seus estabelecimentos uma Norma de Qualidade e Segurança, relativa aos processos de controlo de qualidade baseados nos princípios HACCP.

8. O sistema de criação, aplicação e manutenção de um processo baseado nos princípios do HACCP implementado pela recorrente e referido em 7) não possuía:

a) Identificação de qualquer perigo que devesse ser evitado, eliminado ou reduzido para níveis aceitáveis;

b) Identificação dos pontos críticos de controlo na fase ou fases em que o controlo fosse essencial para evitar ou eliminar um risco ou para reduzi-lo para níveis aceitáveis;

c) Estabelecimento de limites críticos em pontos críticos de controlo que separassem a aceitabilidade da não aceitabilidade com vista à prevenção;

d) Estabelecimento e aplicação de processos eficazes de vigilância em pontos críticos de controlo;

e) Estabelecimento de medidas correctivas quando a vigilância indicasse que um ponto crítico de controlo não se encontrava sob controlo.

f) Estabelecimento de processos, a efectuar regularmente, para verificar que as medidas estabelecidas funcionam eficazmente.

9. Nas circunstâncias descritas em 1), a recorrente exibiu registos inerentes à limpeza das instalações sanitárias, controlo diário após abertura e fecho da loja, controlo visual de higiene e controlo de parasitas.

10. Nas circunstâncias descritas em 1), a recorrente não exibiu registos de entrada de mercadorias com indicação da respectiva temperatura de conservação, certificados ou programa de formação, nem fichas de aptidão médica para manipuladores de alimentos.

11. Em 3 de Outubro de 2008 a recorrente remeteu à Direcção Regional do Algarve da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica os certificados de frequência do Curso de Formação Profissional de HACCP e Norma de Qualidade e Segurança Alimentar, referente a cinco funcionários do estabelecimento em causa, realizado em 9 de Agosto de 2006.

12. O manual e a norma referidos em 10) encontravam-se à disposição da ASAE nas circunstâncias descritas em 1).

13. No estabelecimento referido em 1) aquando da recepção dos produtos é efectuado um controlo de temperatura do ar do camião de transporte, sendo o registo efectuado na própria guia de transporte e entregue uma cópia à recorrente.

14. A zona do armazém do estabelecimento referido em 1) é limpa diariamente, com excepção das paredes e das janelas.

15. Em Março de 2007 foi celebrado entre a recorrente e a Q, Lda. um contrato de prestação de serviços, nos termos do qual esta última está obrigada a realizar auditorias trimestrais aos estabelecimentos da recorrente, as quais incidem sobre “a avaliação das áreas de recepção e armazenamento, zona de venda ao público, higiene do pessoal, limpeza e higienização, acondicionamento de lixos, controlo de temperaturas, instalações sanitárias, controlo de pragas e documentação de HACCP”, conforme consta do escrito junto aos autos a fls. 133 a 139 dos autos, cujo conteúdo damos por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

16. A recorrente sabia que estava obrigada por lei, e por intermédio dos seus funcionários, a cumprir todas as normas de higiene aplicáveis ao seu estabelecimento, bem como as normas referentes à aplicação no mesmo dos princípios de HACCP, as quais em momento algum poderá ignorar.

17. Ao agir do modo descrito em 2) a 10) (não conservando nem limpando as instalações ou equipamentos de modo a evitar eventuais contaminações e não mantendo e exibindo os registos de entrada de mercadorias com indicação da respectiva temperatura de conservação e certificados ou programa de formação), a recorrente, através dos seus funcionários, não agiu com o cuidado a que, atendendo ás circunstâncias, estava obrigada e era capaz, não se assegurando de que as suas instalações se conservavam limpas e que eram exibidos os registos exigidos pelas autoridades competentes, nem sequer representando como possível que tais condutas poderiam colocar em perigo a saúde dos consumidores e com isso violar a lei.

18. A recorrente agiu de livre vontade, consciente e deliberadamente.

19. A recorrente apresentou no ano de 2010 um volume de negócios de € 1.147.533.512,17.

20. Não consta dos autos que a recorrente tenha antecedentes contra-ordenacionais.

B) Factos Não Provados:

Não se provaram todos os demais factos que se não compaginam com a factualidade apurada, designadamente não se apurou que:

a) No armazém referido em 1) existia acumulação de sujidade no chão.

b) No armazém referido em 1) os funcionários da recorrente não têm qualquer contacto directo com alimentos.

c) Os funcionários da recorrente tenham actuado contra as instruções fornecidas pela mesma quanto à necessidade de assinalar com a indicação “produto para devolução - impróprio para consumo”, os produtos destinados a ser devolvidos.

Consigna-se que a demais factualidade constante da decisão administrativa e alegada pela recorrente na sua impugnação judicial não foi aqui considerada por se considerar sem relevo para a decisão da causa, bem como ser conclusiva ou de direito.

C) Fundamentação da Matéria de Facto:

A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento, designadamente e no essencial:

i. Nas declarações das testemunhas:

- AF, inspector da ASAE reformado desde Junho de 2009, o qual depôs de forma isenta, objectiva, calma e credível, referindo ter estado no estabelecimento da recorrente a efectuar uma fiscalização às condições de higiene do seu armazém, em Julho de 2007, sendo certo que, quando confrontado com o teor do auto de notícia elaborado pela sua colega EC, confirmou todo o seu conteúdo, precisando que, efectivamente, no local em causa constataram a existência, junto à entrada de alimentos, de produtos hortícolas, como couves e frutos, provavelmente para o lixo, sem estarem colocados em contentores próprios; a existência de produtos de limpeza colocados junto de alimentos sem qualquer separação física; a existência de teias de aranha em algumas janelas; o chão encontrava-se sujo; existiam moscas em alguns produtos alimentares.

Acrescentou ainda que, no que respeita à implementação de HACCP, apenas foram exibidos registos de limpeza da casa de banho, tendo sido solicitada a apresentação de outros registos, como, por exemplo, de controlo da temperatura de alimentos, os quais não foram exibidos.

De forma que, segundo o Tribunal, demonstra indubitável credibilidade do seu depoimento, AS referiu, por último, que o espaço em causa é um armazém, ou seja, uma zona de trabalho e de passagem, onde existe diariamente a descarga de alimentos por camiões, sendo certo que,”provavelmente por falta de tempo”, junto ao portão de entrada encontrava-se um amontoado de produtos provavelmente para devolução sem estarem devidamente embalados.

- EC, inspectora da ASAE e agente autuante, a qual, de forma espontânea, segura, objectiva e imparcial, confirmou o teor do auto de notícia por si elaborado, esclarecendo que no dia 3 de Julho de 2007 foi realizada, na sequência de uma operação planificada a nível nacional, uma acção de fiscalização a vários supermercados, tendo um deles sido o estabelecimento da recorrente, sito em Olhão. De forma imparcial referiu que, no que respeita ao armazém do estabelecimento em causa, constataram no mesmo a existência de diversos produtos alimentares, como massa, arroz, pão de forma e outros produtos embalados, misturados com produtos de higiene, designadamente detergentes, ou seja, sem existir separação física entre os mesmos, sendo certo que todos esses produtos eram para venda. Presenciou ainda a existência de vários utensílios de limpeza espalhados pelo armazém, inclusivamente junto a produtos para devolução.

Na zona da recepção e descarregamento havia paletes de produtos alimentares para devolução sem estarem devidamente acondicionados e identificados, e ainda paletes com produtos hortofrutícolas que pareciam já estar no local há algum tempo, os quais se encontravam com moscas.

Por último, no que respeita à implementação dos princípios de HACCP, de forma espontânea e segura, e demonstrando, por virtude das suas funções, claro conhecimento sobre tal questão, a depoente descreveu que a implementação de HACCP implica a existência de duas etapas, uma teórica que consiste na identificação dos pontos que devem ser controlados, e uma prática através da qual se realiza o registo de controlo. Ora, um dos registos que deverá ser mantido pelas empresas como a recorrente é o registo de temperatura, uma vez que a recorrente recebe produtos frescos e congelados relativamente aos quais tem de existir controlo de temperatura, pois que, existindo quebra na cadeia de frio e não se fazendo o controlo da temperatura dos mesmos na recepção da mercadoria, pode conduzir à danificação desses mesmos produtos, sendo certo que tal obrigação de controlo é do transportador e receptador.

No que respeita ao caso concreto, referiu que o Sr. João, funcionário da recorrente e que se identificou como responsável aquando da visita inspectiva, quando lhe foram solicitados os registos de controlo ainda procurou em pastas, arquivos e suportes informáticos, mas tais registos não foram exibidos, sendo apenas exibidos registos de higienização.

Esclareceu que no estabelecimento da recorrente não existe manipulação de alimentos mas tão só manuseamento.

- JM, funcionário da recorrente há vários anos, onde desempenha as funções de chefe de secção, o qual se encontrava presente no dia da visita inspectiva em causa nos autos, que foi por si acompanhada. De forma imparcial e credível, referiu que, a existir sujidade no chão do armazém a mesma apenas poderia ser na zona da entrada, local destinado a passagem e a cargas e descargas diárias de mercadorias, sendo certo que toda a zona do armazém é limpa diariamente, o que normalmente acontece apenas ao final do dia, ou quando se verifica alguma necessidade extraordinária de limpeza resultante, por exemplo, do derrame de algum produto, pois que os funcionários andam sempre de um lado para o outro, mostrando-se impossível proceder à limpeza permanente.

Referiu ainda, de forma imparcial, que existiam teias de aranha em algumas janelas, mas que tal se deve ao facto dos tectos serem muito altos, tornando impossível matar a aranha, razão pela qual, não obstante limparem as teias, elas acabam por formar-se novamente ao final de alguns dias.

Esclareceu que, na data da visita inspectiva, os funcionários da recorrente tinham já tido formação em HACCP, e que os registos de controlo da temperatura dos alimentos são feitos pelo transportador nas guias de transporte, sendo certo que a recorrente fica sempre com uma cópia das mesmas.

Referiu que no armazém existe um local próprio para acondicionar os produtos e utensílios utilizados para limpeza do local, sendo certo que não se recorda de os mesmos se encontrarem espalhados pelo armazém no dia em causa, bem como admitiu a possibilidade de existir, no dia em causa, paletes com produtos alimentares como massa e arroz perto de uma outra com produtos de limpeza, todos eles para venda.

Referiu ainda que no estabelecimento em causa não existe manipulação de alimentos, já que todos os produtos chegam devidamente embalados.

Esclareceu que os produtos para devolução têm de estar devidamente identificados, não se recordando se, no dia em causa, existiriam ou não produtos para devolução sem o devido acondicionamento e identificação.
Por último, referiu que exerce as funções de chefe de secção, ou seja, de responsável pela loja em causa, e que todos os problemas com registos e certificados são da sua competência.

- SM, funcionária da recorrente onde exerce as funções de assistente administrativa, a qual depôs, na sua globalidade, de forma clara, espontânea, lógica e credível, esclarecendo que existe um manual desenvolvido pela recorrente onde constam os diversos princípios de HACCP, e no qual é descrita e explicitada a forma de os aplicar na actividade diária da recorrente, manual este que existia já em 2007, pois o mesmo foi implementado em todas as suas lojas da em 2005.

Acrescentou que no referido manual não existe a identificação de pontos críticos, porquanto nas lojas da recorrente não existe intervenção nos produtos, não existindo contacto directo com os alimentos, pois o L apenas adquire produtos pré-embalados, não existindo, por essa razão, qualquer manipulação de alimentos, sendo certo que, nesta parte, o seu depoimento não mereceu a credibilidade do Tribunal quando confrontado com a demais prova produzida, nos termos que infra se fundamentará.

Esclareceu que todos os funcionários da recorrente têm formação sobre o cumprimento do manual de princípios de HACCP, formação esta que já havia sido ministrada em 2007, e que todos os seus colaboradores são submetidos a exames médicos, cujas fichas e o seu conteúdo têm carácter sigiloso.

Por último, referiu que a recorrente possui um serviço interno de auditoria, bem como se submete a auditorias e avaliações externas, e que já no ano de 2007 trabalhava com um laboratório (Q) em regime de prestação de serviços, consistentes na fiscalização das lojas da recorrente.

- JP, funcionário da recorrente onde exerce as funções de director de vendas, o qual depôs de forma clara e credível, esclarecendo que no ano de 2007 desempenhava funções de chefe da zona de vendas, as quais consistiam na gestão administrativa, contratação de funcionários, garantia de bom funcionamento, entre outras, de 4 a 6 lojas da recorrente, sendo certo que tem conhecimento dos princípios de HACCP pois que esta não é uma questão nova para o L já que o manual de HACCP é actualizado com regularidade.

Referiu que em 2007 existia já na loja em causa nos autos um documento interno onde constam descritos os princípios de HACCP a observar, e no qual não são identificados quaisquer pontos críticos.

Confrontado com o documento junto a fls. 115 esclareceu que o mesmo é o HACCP seguido pela loja e que o documento identificado a fls. 121 consiste numa norma de boas práticas pela qual se regem os funcionários do L e na qual estão materializados os princípios de HACCP, ou seja, é um documento contendo normas internas cujo cumprimento a recorrente exige a todos os seus colaboradores.

ii. Nos seguintes documentos:

- Auto de notícia de fls. 2 e 2 verso, relativamente à descrição da infracção imputada à recorrente;
- Manual de Procedimentos baseado nos princípios de HACCP, de fls. 21 a 26;
- Norma de Qualidade e Segurança de fls. 27 a 38;
- Certificados de fls.43 a 46;
- Contrato de prestação de serviços celebrado entre o L e a Q..., Lda., de fls. 133 a 138.
- Declaração de IRS da recorrente relativa ao ano de 2010.

iii. Nas regras da experiência comum, nos termos infra expostos.

Especificadamente:

Factos 1 a 11 – Provados com recurso ao auto de notícia, cujo teor foi confirmado, na íntegra, pelas declarações das testemunhas AF e EC inspectores da ASAE responsáveis pela visita inspectiva realizada ao estabelecimento da recorrente, sendo aquela última responsável pela elaboração do referido auto, prestadas de modo claro, lógico e credível, e corroboradas pelas declarações de JM, funcionário da recorrente, onde exerce funções de chefe de loja, o qual acompanhou o decurso da visita inspectiva realizada.

De facto, ambos os inspectores da ASAE foram peremptórios a referir que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na decisão administrativa, foram detectados no armazém da recorrente vários problemas de higiene, referindo recordarem-se que junto à entrada do armazém em causa existiam paletes de produtos hortofrutícolas para serem inutilizados, com a presença de moscas, bem como a presença de teias de aranha nos cantos das paredes e nas janelas, e ainda de diversos produtos alimentares para devolução sem a indicação do fim a que se destinavam. De forma clara e imparcial, a testemunha EC referiu que presenciaram ainda a existência de diversos utensílios de limpeza, designadamente, baldes, vassouras e esfregonas espalhados pelas instalações em causa sem qualquer resguardo, bem como constatou a existência de paletes de produtos alimentares, designadamente de massa e arroz, junto de produtos de higiene, ambos para venda.

Ora, tais declarações foram corroboradas pelo depoimento da testemunha JM que referiu existirem, por vezes, no armazém da recorrente teias de aranha nas janelas e nas paredes, uma vez que os tectos são muito altos e, embora consigam limpar a teia, não conseguem matar a aranha, assim não evitando que a mesma volte a formar teias.

Com fundamento nos elementos probatórios acabados de referir formou Tribunal a sua convicção positiva quanto à efectiva ocorrência dos factos em causa, razão pela qual, não obstante os inspectores da ASAE não se recordarem com exactidão de todos os pormenores da realidade observada no dia em causa, a verdade é que, após serem confrontados com o teor do auto de notícia, confirmaram na integra e sem hesitações o seu conteúdo. Por outro lado, tais elementos probatórios não foram infirmados por quaisquer outras provas carreadas para os autos, antes foram reforçados pelo depoimento do chefe de loja da recorrente, presente aquando da visita inspectiva, sendo certo que é o próprio a referir que não obstante existir um local próprio no armazém para acondicionar os produtos e utensílios utilizados na limpeza do local, não se recordava se os mesmos estavam efectivamente espalhados sem qualquer resguardo no dia em questão, admitindo ainda a possibilidade de, nesse momento, existirem paletes com produtos alimentares como massa e arroz perto de uma outra com produtos de limpeza, todos eles para venda.

Na verdade, não tem o Tribunal qualquer elemento que sequer indicie a falta de imparcialidade do depoimento prestado pelos inspectores da ASAE, sendo certo que, como supra se referiu, confirmaram de forma veemente que o que consta do auto de notícia corresponde à realidade que observaram no dia em causa no estabelecimento da recorrente.

A prova do facto 7) resultou dos depoimentos das testemunhas JM, ES e JP que, de forma coerente, verosímil, clara, imparcial e unânime entre si, referiram que a recorrente desde 2005 tem implementado um controlo genérico de alimentos HACCP, bem como uma norma de qualidade e segurança, relativa aos processos de controlo de qualidade baseados nos referidos princípios, descrevendo de forma clara o processo de implementação de tais documentos internos, bem como a existência de programas de formação ministrados aos seus funcionários.

No que diz respeito ao facto 8), o Tribunal valorou, mais uma vez, os depoimentos das testemunhas AS e EC, os quais referiram que constataram a existência de diversas deficiências e insuficiências na implementação do processo baseado em HACCP, nomeadamente que o mesmo não possuía a identificação de qualquer perigo para os produtos alimentares que devesse ser evitado, eliminado ou reduzido, ou mesmo dos pontos críticos de controlo na fase ou fases em que esse controlo fosse essencial para evitar ou eliminar um risco ou para reduzi-lo para níveis aceitáveis; também não eram estabelecidos limites críticos em pontos críticos de controlo que separassem a aceitabilidade da não aceitabilidade; não se mostrava estabelecidos e aplicados processos eficazes de vigilância em pontos críticos, nem tão pouco de medidas correctivas quando a vigilância indicasse que um ponto crítico de controlo não se encontrava sob controlo. A corroborar tais declarações, deverá sublinhar-se aquilo que, efectivamente, resulta do manual de HACCP junto aos autos pela recorrente.

Senão vejamos.

No ponto dois do manual de princípios de HACCP, intitulado “análise de pontos críticos”, não são, efectivamente, especificados quaisquer pontos críticos de controlo, justificando-se tal ausência com o facto de os riscos identificados, designadamente temperatura, não implicarem riscos para a saúde, e ainda porque tal controlo da temperatura nas carnes frescas e pré embaladas e a desinfestação nas frutas e legumes, não é possível sob o ponto de vista de controlo de pontos críticos porquanto se forem detectadas anomalias face ao definido, as mercadorias são retiradas da venda, tratando-se de uma decisão sim ou não pelo que a execução de um controlo de pontos críticos no âmbito do conceito HACPP não é possível.

Ora, não obstante tal descrição, entende o Tribunal que a mesma não logrou infirmar o juízo probatório a que supra chegamos, porquanto não foi carreado para os autos qualquer elemento que, com suficiente força probatória e verosimilhança, demonstrasse a efectiva desnecessidade ou impossibilidade de identificação de controlo de pontos críticos. Tanto mais que, nesse mesmo manual, são identificados riscos atinentes à temperatura e desinfestação, os quais apenas podem ser combatidos com a imposição de medidas concretas vocacionadas para os perigos que a cadeia de transporte e manuseamento de géneros alimentícios acarreta.

Por outro lado, resultou claro do depoimento da testemunha EC, que, por exemplo, no que respeita aos produtos congelados, a temperatura não é um risco mas sim um ponto crítico, ou seja, uma fase na conservação e distribuição de tais produtos que implica controlo e medidas susceptíveis de reduzir o risco de alterações dessa temperatura que possam danificar os géneros alimentícios, a fim de assim se minimizar a susceptibilidade de danos na saúde dos consumidores.

Atente-se a que, também a explicação trazida pela testemunha EC não logrou convencer o Tribunal, na parte em que refere que no estabelecimento da recorrente os funcionários não têm contacto directo com os alimentos, na tentativa de fundamentar a desnecessidade de identificação de pontos críticos de controlo, porquanto é do conhecimento geral e resulta dos próprios documentos trazidos aos autos pela recorrente, que nas lojas L, e em especial no estabelecimento em causa, há contacto com os alimentos, designadamente, com produtos frutícolas e hortícolas os quais, apesar de se encontrarem acondicionados em paletes, não se encontram pré-embalados, estando em contacto directo com os meios humanos, com o ar e a temperatura, e ainda com diversos outros organismos biológicos, como sejam moscas e aranhas. Para além do mais, resulta das regras da experiência comum que mesmo os produtos congelados e pré-embalados não dispensam a observância de critérios de higiene e segurança, existindo nas fases de distribuição e armazenamento dos mesmos necessidade de assinalar pontos críticos de controlo, com o estabelecimento de limites e medidas minimizadoras dos riscos para a saúde dos consumidores, designadamente no que respeita à temperatura e desinfestação, como supra se referiu.

Assim, não obstante resultar do depoimento de EC e de JS que, por exemplo, a temperatura dos produtos congelados é verificada aquando da sua entrega no estabelecimento, ainda que pelo transportador, a verdade é que não resulta dos autos a existência de qualquer elemento probatório que afaste a necessidade de identificação de controlo de pontos críticos, nomeadamente, na fase do seu transporte para as arcas e equipamentos de frio no interior da loja, bem como possibilidade de se manterem expostos durante algum tempo no armazém, assim não se garantindo a sua correcta cadeia de segurança e higiene, sem verificação de qualquer perigo ou risco para a saúde dos consumidores.

Na verdade, não obstante nos estabelecimentos da recorrente não existir intervenção directa nos alimentos, pois não possui zona de talho ou peixaria, tal não é suficiente para o Tribunal infirmar a sua convicção quanto à desnecessidade de identificação de pontos críticos de controlo nas fases de distribuição e armazenamento de produtos, com a finalidade de controlar, eliminar, reduzir ou atenuar os riscos e perigos de danificação e contaminação daqueles, designadamente no que concerne à temperatura de conservação e contacto com diversos microrganismos, tanto mais que do manual em referência e da norma de qualidade e segurança resultam diversas medidas postas em prática pela recorrente, designadamente cheklists, através das quais se faz o controlo da temperatura dos produtos congelados e a respectiva periodicidade e ainda controlo de análise visual, nomeadamente através de limpeza e higiene na área da desparasitação e zona de entrada de mercadorias.

No que respeita aos factos 9) e 10) resultaram os mesmos provados com base nas declarações dos inspectores da ASAE responsáveis pela fiscalização em causa, sendo certo que ambos foram peremptórios a afirmar que os funcionários da recorrente não lhes exibiram os registos de entrada de mercadorias com indicação da respectiva temperatura de conservação, certificados ou programa de formação, nem fichas de aptidão médica para manipuladores de alimentos, facto este que nem sequer é colocado em causa pela recorrente, pois que a mesma apenas alegou em sede de defesa a desnecessidade e não obrigatoriedade de exibição de tais documentos.

O facto 11) resultou provado com base no depoimento da testemunha AS corroborado pelos documentos de fls. 43 e 46, remetidos à Direcção Regional do Algarve da ASAE no dia 3 de Outubro de 2008.

Factos 12 a 14 – Provados com recurso ao depoimento da testemunha JS que, de forma espontânea e honesta, explicou o procedimento adoptado pela recorrente para o controlo da temperatura dos produtos aquando da sua recepção no armazém, bem como que a limpeza de tal espaço é feita diariamente mas, apenas, no final do dia de trabalho, excepto se alguma circunstância extraordinária reclamar uma limpeza pontual, pois que estamos perante um armazém, o qual é uma zona de passagem e de trabalho e que não se coaduna com uma limpeza permanente. Mais acrescentou que a limpeza mais pormenorizada do armazém, designadamente nos pontos mais altos das paredes e das janelas, é realizada através de empresas contratadas para o efeito, sendo perfeitamente consentâneo com as regras da experiência comum que as limpezas diárias de um estabelecimento como o da recorrente não envolvam a as referidas actividades.

Facto 15 – Provado com recurso ao escrito junto aos autos a fls. 133 a 138, sendo certo que a celebração de tal contrato de prestação de serviços nos termos do qual a Q., Lda. realiza auditorias à recorrente foi confirmado de forma credível e imparcial pela testemunha ST, assistente administrativa da recorrente, a qual demonstrou profundo conhecimento sobre o funcionamento dos estabelecimentos da recorrente em matéria de princípios de higiene e segurança de produtos alimentares.

Factos 16 a 18 A falta de cuidado imputada à recorrente resultou apurada com recurso às regras da experiência comum das quais, quando confrontadas com os factos objectivos dados como provados, é possível inferir a intenção subjectiva da mesma, na medida em que é presunção natural de uma empresa que se dedica ao comércio e armazenamento de produtos alimentares saber que tem de manter as suas instalações ou equipamentos em condições de higiene de modo a evitar a contaminação dos géneros alimentares, e bem assim a manter e exibir todos os registos de entrada de mercadorias com indicação da respectiva temperatura de conservação e programas de formação profissional. Assim, ao actuar da forma descrita, ou seja, não se assegurando que as suas instalações se encontravam sem aranhas, moscas, produtos inutilizados devidamente acondicionados, e não mantendo um manual de HACCP com identificação dos pontos críticos de controlo, exibindo os registo solicitados, designadamente no que concerne à temperatura dos alimentos e fichas de formação profissional, e por intermédio dos seus funcionários, a recorrente agiu com a falta de cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.

Na verdade, refira-se que se mostra irrelevante as instruções genéricas que são fornecidas pela recorrente aos seus funcionários, pois que tem a mesma de verificar se tais instruções são efectivamente cumpridas na sua actividade diária pelos funcionários, por cuja contratação e formação é responsável, tanto mais que é o próprio chefe de loja da recorrente a referir que desempenha funções de supervisão da mesma, sendo responsável pelo estabelecimento em causa nos autos e pela resolução de todos os problemas relacionados com registo e certificados de formação dos seus trabalhadores.

Assim, através da valoração das regras da experiência comum e do depoimento de JS chefe de loja, formou o Tribunal a sua convicção de que a recorrente, por intermédio dos seus funcionários, não se certificou de que nas suas instalações eram cumpridas todas as regras e normas de higiene, limpeza e segurança dos géneros alimentícios que comercializa, bem como que eram exibidos todos os registos e documentação exigidos pelas autoridades administrativas.

Do que acabamos de expor não podemos deixar de considerar que a falta de cuidado imputada à recorrente resulta apurada atento o dever que qualquer empresa de distribuição e armazenamento de produtos alimentícios (embalados, frescos ou pré-congelados) tem, na sua actividade diária, de se assegurar que são cumpridas as regras de higiene e segurança alimentar.

Facto 19 – Quanto às condições económicas da recorrente foi valorado o teor da declaração de IRC relativa ao ano de 2010 junta aos autos.

Facto 20 - Provado com base na ausência de qualquer prova ou indício relativo à existência de antecedentes contra ordenacionais da recorrente.

Quanto aos factos não provados o Tribunal baseou a sua convicção na prova dos factos contrários, na inexistência de qualquer prova e ainda nas regras da experiência comum, sendo certo que quanto ao facto não provado a) o Tribunal teve em consideração a circunstância do mesmo ser matéria conclusiva, não tendo sido possível, através do depoimento das testemunhas, concretizar qual o tipo, quantidade e natureza da sujidade observada, pois que tal conceito carece de concretização. Assim, não obstante os inspectores da ASAE referirem que o armazém se encontrava sujo, a verdade é que o depoimento de JS foi esclarecedor e verosímil ao descrever o local em causa como uma zona de trabalho, de cargas e descargas, não sendo possível estar constantemente a limpar o chão, razão pela qual não teve o Tribunal elementos bastantes que permitissem concretizar e perceber qual o tipo e quantidade de sujidade.

No que concerne ao facto não provado b) o Tribunal valorou, entre outros elementos, o manual e norma de segurança e controlo juntos a fls. 21 a 38, de onde consta a referência a produtos frutícolas e hortofrutícolas existentes no estabelecimento da recorrente. Ora, não obstante as testemunhas arroladas pela recorrente referirem que no estabelecimento em causa não existe contacto directo com produtos alimentares, pois que os mesmos se encontra pré-embalados, a verdade é que tal circunstância foi infirmada pelo facto de nesse estabelecimento se comercializarem produtos de natureza hortofrutícola, os quais, conforme é do conhecimento geral, por mais que sejam transportados em paletes estão sujeitos ao contacto com o ambiente, com a temperatura, humidades, contacto humano e de outros animais, bem como a sujidades e poeiras.

Relativamente ao facto não provado c) o Tribunal baseou a sua convicção na ausência de qualquer prova, não tendo resultado dos autos qualquer elemento que demonstre que os funcionários da requerente tenham actuado contra as ordens expressamente dadas pela mesma”.


3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) A taxa de justiça devida pela interposição do recurso.

O Regulamento das Custas Processuais (D.L. nº 34/2008, de 26/02) entrou em vigor em 20 de Abril de 2009, aplicando-se imediatamente aos procedimentos, incidentes, recursos e apensos que tenham início após a entrada em vigor de tal diploma legal (cfr. artigo 27º, nº 3, do mesmo diploma).

O recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa foi interposto, nestes autos, em Julho de 2011, a sentença que apreciou esse recurso é de Outubro de 2011, e o presente recurso (interposto dessa sentença) é também datado de Outubro de 2011.

Assim sendo, o Código das Custas Judiciais não é aplicável ao presente processo, mas sim o Regulamento das Custas Processuais.

Dispõe o artigo 8º, nºs 4 e 5, do Regulamento das Custas Processuais:

4. É devida taxa de justiça pela impugnação das decisões de autoridades administrativas no âmbito de processos contra-ordenacionais, quando a coima não tenha sido previamente liquidada, sendo a taxa auto-liquidada nos 10 dias subsequentes ao recebimento da impugnação pelo tribunal, no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, nos termos da tabela III, que faz parte integrante do presente Regulamento, tendo em consideração a gravidade do ilícito.

5. Nos restantes casos, a taxa de justiça é devida a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III”.

Daqui decorre, a nosso ver, que não é devida taxa de justiça pela interposição do presente recurso, sendo esta fixada pelo tribunal e paga a final, pela recorrente, caso fique vencida.

Nestes termos, e decidindo, entende-se que, in casu, não há lugar ao pagamento de taxa de justiça pela interposição do presente recurso, conforme, aliás, foi expressamente determinado no despacho que admitiu o presente recurso (cfr. fls. 293 dos autos) - despacho esse que, notificado aos sujeitos processuais, não foi objecto de qualquer reacção (tempestiva) por parte dos mesmos.


b) A prescrição do procedimento contraordenacional.

Invoca a recorrente a prescrição do procedimento contraordenacional.

Cumpre apreciar e decidir.

Estabelece o artigo 27º do Regime Geral das Contra-Ordenações (D.L. nº 433/82, de 27 de Outubro) - adiante designado por RGCO -, que “o procedimento por contra-ordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação hajam decorrido os seguintes prazos:

a) Cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igual ou superior a € 49. 879,79.

b) Três anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a € 2.493,99 e inferior a € 49. 879,79.

c) Um ano, nos casos restantes”.

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 6º do D.L. nº 113/2006, de 12/06, o valor das coimas aplicáveis às contra-ordenações pelas quais a arguida se mostra condenada é de € 500,00 a € 44.890,00 (por se tratar, neste caso, de um agente que é pessoa colectiva), e, concluindo-se que o agente agiu com negligência, a moldura abstracta das coimas é de € 250,00 a € 22.445,00.

Ou seja, e manifestamente, às contra-ordenações em causa nestes autos são aplicáveis (a cada uma delas) coimas de montante “superior a € 2.493,99 e inferior a € 49. 879,79”.

Assim sendo, é aplicável o prazo de prescrição previsto na alínea b) do artigo 27º do RGCO (3 anos).

Tendo em conta que os factos ora em discussão foram praticados no dia 03 de Julho de 2007, a prescrição do presente procedimento contra-ordenacional teria, por isso, ocorrido em 03 de Julho de 2010.

Contudo, resulta dos autos que a arguida foi notificada da instauração do presente processo contraordenacional em Julho de 2008, e apresentou a sua defesa em Outubro de 2008, ou seja, ainda dentro do prazo de 3 anos após a prática da contra-ordenação.

Por outro lado, a arguida foi notificada da decisão da autoridade administrativa em 02 de Junho de 2011.

Dispõe o artigo 28º do RGCO:

1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:

a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomadas ou com qualquer notificação;

b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;

c) Com a comunicação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;

d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.

2 - Nos casos de concurso de infracções, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação.

3 - A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade”.

Aplicando este dispositivo legal ao caso em apreciação, está fora de dúvida que ocorreram diversas causas interruptivas da prescrição do procedimento contra-ordenacional (designadamente as causas interruptivas previstas nas alíneas a) e d) do nº 1 deste artigo 28º do RGCO).

Ou seja, a prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompeu-se, nestes autos, com a “comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação” (alínea a)), e com a “decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima” (alínea d)).

O prazo de prescrição interrompeu-se, pois, com a notificação da arguida ocorrida em Julho de 2008, como também tal prazo de prescrição se interrompeu com a decisão da autoridade administrativa, notificada à arguida em 02 de Junho de 2011.

A partir dessas datas (Julho de 2008, e 02 de Junho de 2011) se iniciou, novamente, a contagem do prazo de prescrição (de 3 anos), já que, como dispõe o artigo 121º, nº 2, do Código Penal, “depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição”.

Ponderando, nestes termos, a situação posta nos autos, constata-se, pelo menos por aqui, que ainda não decorreu o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional.

Por sua vez, prevendo os casos de suspensão da prescrição, estatui o artigo 27º-A do RGCO:

1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:

a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;

b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40º;

c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da autoridade administrativa que aplicou a coima, até à decisão final do recurso.

2 - Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses”.

No presente processo, apenas ocorre a causa de suspensão prevista na alínea c) do nº 1 deste artigo 27º-A do RGCO (pendência do procedimento a partir da notificação do despacho inicial do juiz até à “decisão final” do recurso de impugnação).

Assim colocada a questão, verifica-se que a arguida foi notificada do despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa em 15 de Setembro de 2011 (cfr. fls. 144 e segs.), tendo esse mesmo recurso tido decisão, em primeira instância, em 11 de Outubro de 2011 (com a prolação da sentença sub judice).

Contudo, a suspensão do prazo de prescrição decorre “até à decisão final do recurso”, isto é, até à decisão do recurso com trânsito em julgado.

Esta “decisão final”, com trânsito em julgado, ainda não ocorreu nos presentes autos (como é óbvio), já que estamos, neste tribunal ad quem, e bem vistas as coisas, a apreciar também o recurso em questão.

Finalmente, e como está preceituado no acima citado artigo 28º, nº 3, do RGCO, “a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade”.

Na presente situação, o prazo máximo de prescrição a que alude este artigo 28º, nº 3, do RGCO, e sem contar com o tempo de suspensão, é de 4 anos e meio (3 anos de prazo de prescrição, acrescidos de metade, ou seja, mais 1 ano e meio), contados desde 03 de Julho de 2007.

Ou seja, tal prazo máximo de prescrição (sem contar com o tempo da suspensão) ocorreu em 03 de Janeiro de 2012 (4 anos e meio após a data dos factos).

Porém, descontando o prazo de suspensão supra referido (que vem decorrendo desde 15 de Setembro de 2011 - data da notificação à arguida do despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa), constata-se que, nesta data, ainda não decorreu o prazo máximo de prescrição a que alude o artigo 28º, nº 3, do RGCO – 4 anos e meio (3 anos de prazo de prescrição, acrescido de metade, ou seja, mais 1 ano e meio), mais o tempo de suspensão (que não pode ultrapassar, neste caso, seis meses – cfr. o disposto no artigo 27º-A, nº 2, do RGCO), tudo contado desde 03 de Julho de 2007 (data dos factos).

Assim, o prazo máximo de prescrição prevenido no artigo 28º, nº 3, do RGCO, estará preenchido, se o presente processo ainda estiver pendente sem decisão final (transitada), apenas em Julho de 2012 (3 anos da prescrição, mais 1,5 anos - metade do prazo da prescrição -, mais 6 meses - tempo máximo da suspensão da prescrição), ou seja, cinco anos após a data da prática dos factos (Julho de 2007).

Face ao predito, conclui-se que o procedimento contraordenacional nos presentes autos não se encontra prescrito.

Por conseguinte, e neste ponto, o presente recurso é de improceder.

c) A nulidade da decisão da autoridade administrativa.

Alega a recorrente que não existem factos suficientes, dados como assentes nestes autos, que preencham os elementos objectivos e subjectivos das contra-ordenações em análise.

E, desde logo, entende a recorrente que tais elementos de facto não estão descritos na decisão da autoridade administrativa, o que a torna nula, e o que implica a sua absolvição da prática das contra-ordenações em causa.

Cumpre decidir.

Nos termos do disposto no artigo 7º, nºs 1 e 2, do RGCO, as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas colectivas, sendo estas responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.

Ora, sendo a arguida uma sociedade, a imputação a título de dolo ou de negligência exige a actuação dolosa ou negligente por parte de uma ou mais pessoas físicas, agindo no exercício das suas funções, em nome e no interesse dessa mesma sociedade.

As coimas, tal como algumas reacções penais, são aplicáveis tanto a pessoas singulares como a pessoas colectivas, sendo estas responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções (artigo 7º do RGCO).

Deste modo, a responsabilidade contraordenacional da pessoa colectiva pressupõe, necessariamente, uma conduta de um seu órgão ou de um seu representante, no exercício das suas funções.

Tal conduta do órgão ou do representante (agente, empregado, etc.) da pessoa colectiva pode consistir na autoria (imediata ou mediata) ou na instigação do ilícito contraordenacional imputado à arguida, ou, ainda, na cumplicidade no facto contraordenacional.

Por isso, e por regra, as pessoas colectivas não respondem isoladamente pela prática de contra-ordenações, podendo (e devendo, por via de regra) ser co-responsabilizados o ou os agentes pessoas singulares que, individualmente, praticam a conduta tipificada como contra-ordenação.

De qualquer modo, quer responda pela contra-ordenação apenas a pessoa colectiva, quer só o seu agente pessoa singular, quer ambos ao mesmo tempo, a imputação a título de dolo ou de negligência exige, no caso da pessoa colectiva e considerando a natureza desta, a verificação da actuação dolosa ou negligente por parte de uma ou mais pessoas físicas actuando no exercício das suas funções, em nome e no interesse da pessoa colectiva, designadamente por integrantes dos seus órgãos.

Aqui chegados, verifica-se que a decisão da autoridade administrativa, como alega a recorrente, não faz uma descrição suficiente dos factos que consubstanciam a imputação à mesma das contra ordenações em causa, desde logo no que respeita aos elementos subjectivos das infracções.

Lida e relida a decisão da autoridade administrativa, constata-se, sem hesitação, que, no tocante (designadamente) à fundamentação da imputação subjectiva das infracções, a mesma não é, de modo algum, efectuada.

Da decisão da autoridade administrativa não consta (mesmo me termos simplificados, mas próximos de uma acusação penal) o relato dos factos que possam integrar o dolo ou a negligência.

Quanto aos elementos subjectivos das infracções, é apenas dito, na decisão da autoridade administrativa e na notificação que da mesma foi feita à ora recorrente, que os factos foram “cometidos a título de dolo (porquanto a arguida tinha consciência e, sabendo que a prática daqueles factos constituíam infracção, ainda assim não obviou às consequências da mesma, conformando-se com a situação)”.

Ora, a decisão da autoridade administrativa deve conter os elementos essenciais para, caso haja impugnação judicial, valer como acusação, e, caso não haja, valer como decisão condenatória.

Com efeito, nos termos do disposto no artigo 58º do RGCO, a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:

- A identificação do recorrente;
- A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
- A indicação das normas segundo as quais pune e a fundamentação da decisão;
- A coima e as sanções acessórias.

Assim, quanto a nós, e desde logo no tocante aos factos relativos à imputação subjectiva das condutas da sociedade arguida, a decisão da autoridade administrativa ora em análise é manifestamente infundada, por ausência de descrição de factos relevantes para a incriminação.

Mesmo a entender-se (como parece ter sido entendido na sentença da primeira instância) que, no tocante aos elementos subjectivos das infracções, os mesmos devem inferir-se (ou não) da matéria de facto objectiva, tal não desobriga a entidade administrativa de os enunciar expressamente na sua decisão.

A decisão da autoridade administrativa, ao não enunciar os referidos factos, é nula, de acordo com o disposto nos artigos 58º, nº 1, al. b), do RGCO, 374º, nº 2, e 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal (estes aplicáveis ex vi do artigo 41º, nº 1, do referido RGCO).

Nos termos do preceituado no artigo 62º do RGCO, a remessa dos autos, pelo Ministério Público, ao tribunal, vale como acusação, fazendo portanto o Ministério Público sua, como acusação, a decisão da autoridade administrativa.

Assim sendo, não podia o tribunal a quo, sem mais, integrar os elementos em falta, dando como provado na sentença recorrida (facto nº 17) que “a recorrente, através dos seus funcionários, não agiu com o cuidado a que, atendendo ás circunstâncias, estava obrigada e era capaz, não se assegurando de que as suas instalações se conservavam limpas e que eram exibidos os registos exigidos pelas autoridades competentes, nem sequer representando como possível que tais condutas poderiam colocar em perigo a saúde dos consumidores e com isso violar a lei”, e dando ainda como provado que “a recorrente agiu de livre vontade, consciente e deliberadamente” (facto provado nº 18).

Constata-se, pois, que a factualidade que consta da sentença revidenda, para responsabilizar contraordenacionalmente a arguida, extravasa a matéria descrita na decisão da autoridade administrativa (equivalente, para o que agora importa, à acusação penal), sendo certo que os factos descritos em tal decisão não são suficientes para estribar a autoria da arguida pelos factos imputados nestes autos.

No fundo, e em síntese, o que consta dos factos descritos na decisão da autoridade administrativa (e que a sentença sub judice, sem mais, tentou suprir, esquecendo, com o devido respeito, o princípio do acusatório) é apenas que a recorrente agiu “a título de dolo”.

Ora, perante uma pessoa colectiva, como é a arguida, e conforme acima exposto, não pode dizer-se, tão-só, que esta actuou “a título de dolo”.

Em suma: a decisão da autoridade administrativa não contém minimamente, como é exigível, os factos relativos aos elementos subjectivos das infracções praticadas (factos do tipo-de-culpa), designadamente não indicando a identidade nem concretizando a actuação do agente ou representante da sociedade arguida que, no interesse desta, violou as normas legais, circunstância esta decisiva para a afirmação do nexo causal dos factos à arguida e da própria culpa desta, pelo que violou o disposto no artigo 58º, nº 1, al. b), do RGCO.

A falta de indicação daqueles factos constitui, ela própria também, falta de fundamentação da decisão da autoridade administrativa, tal como exigido na parte final da al. c) do nº 1 desse mesmo preceito legal.

Tal vício configura nulidade absoluta, conforme previsto no artigo 379º, nº 1, al. a), do C. P. Penal, conhecida nos termos do nº 2 deste mesmo artigo 379º.

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Em face do exposto, perante a detectada nulidade da decisão da autoridade administrativa, na sentença sub judice, ou em despacho prévio, devia essa mesma decisão ter sido, pura e simplesmente, declarada nula, com as legais consequências.

Ou seja, não podemos concordar com o entendimento do tribunal a quo, quando considera que o preenchimento e a descrição dos elementos subjectivos das infracções é “matéria a aferir em sede de valoração probatória” (isto é, entende o tribunal de primeira instância que os elementos em falta na decisão da autoridade administrativa podem ser supridos na própria sentença recorrida).

A nosso ver, mesmo em matéria contraordenacional devem constar, da narração acusatória, os factos relativos à culpabilidade, devendo descrever-se o conhecimento (representação) e a vontade de realização do facto material típico (do tipo objectivo, isto é, dos elementos objectivos, naturalísticos ou normativos, de uma infracção).

In casu, não chega, na decisão da autoridade administrativa, descrever, resumidas as coisas, que a arguida agiu “a título de dolo”.

Era preciso dizer, especificando e concretizando, quem actuou, por forma consciente e voluntária, em clara violação dos seus deveres, praticando, desse modo, as infracções em análise.

Ora, na decisão da autoridade administrativa isso não foi feito, faltando, desde logo, factos que descrevam sequer quem era o responsável, quem agiu em concreto.

Esses factos deviam constar da decisão da autoridade administrativa (equivalente à "acusação") e, não constando, não podem ser levados à sentença da primeira instância (como o foram), sob pena de violação do princípio do acusatório.

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Uma outra questão (decorrente da nulidade da decisão da autoridade administrativa) consiste em saber se, declarando o tribunal a nulidade da decisão da autoridade administrativa que aplicou as coimas, deve absolver a arguida e determinar o arquivamento dos autos, ou se deve ordenar a remessa do processo à autoridade administrativa para que profira nova decisão, indemne à nulidade detectada.

Há que apreciar e decidir tal questão.

O artigo 58º do RGCO segue a estrutura da sentença penal, muito embora de forma simplificada e proporcionada à fase administrativa do processo contraordenacional.

A falta de requisitos da decisão da autoridade administrativa, no caso posto nestes autos, constitui nulidade, como já acima decidido.

Trata-se, por isso, porque a decisão da autoridade administrativa equivale a uma sentença penal, da nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, a), do C. P. Penal.

Dispõe o artigo 379º, nº 2, do C. P. Penal, que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 4 do artigo 414º”.

Este nº 4 do artigo 414º do C. P. Penal estabelece que “se o recurso não for interposto de decisão que conheça, a final, do objecto do processo, o tribunal pode, antes de ordenar a remessa do processo ao tribunal superior, sustentar ou reparar aquela decisão”.

Ou seja, dá-se oportunidade ao tribunal a quo de suprir nulidades, restringindo-se, até onde for possível, as consequências da declaração de nulidade do acto.

Fora dos casos previstos no artigo 414º, nº 4, do C. P. Penal, prevê-se ainda a possibilidade de, já no tribunal de segunda instância, e sempre que se verifiquem os vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal (como é o caso dos autos, pois as deficiências por nós apontadas à decisão da autoridade administrativa consubstanciam, no fundo, “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”), poder ser reenviado o processo à primeira instância para novo julgamento (artigo 426º do C. P. Penal).

Ora, se as coisas se passam assim em processo penal, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não se vê como, em matéria de contra-ordenações, e face ao disposto no artigo 58º do RGCO, não se tenha de obedecer a regras semelhantes e de respeitar os mesmos princípios processuais.

Assim sendo, competia ao tribunal a quo declarar a nulidade da decisão da autoridade administrativa em causa (e dos actos subsequentes à mesma) e determinar o reenvio do processo para tal autoridade administrativa, para esta proferir nova decisão, por forma a, nessa nova decisão, serem supridas as deficiências detectadas na decisão declarada nula, procedendo-se ao cabal cumprimento do disposto no artigo 58º do RGCO.

O tribunal a quo deve, assim, dar oportunidade à autoridade administrativa de proferir nova decisão, extirpada agora da nulidade em questão (e por nós acima assinalada).

Seguindo, a propósito do artigo 79º do RGIT (preceito, no que agora nos ocupa, idêntico ao artigo 58º do RGCO), o ensinamento de Simas Santos e Lopes de Sousa (in “Contra-ordenações – Anotações ao Regime Geral”, Vislis Editores, 4ª ed., 2007, pág.424), entendemos também que “na sequência da declaração de nulidade por falta de requisitos legais de aplicação de coima (…) o processo não é necessariamente extinto, devendo ser praticados os actos necessários para que ela deixe de existir, não impedindo que venha a ser proferida nova decisão, em substituição da anterior (…), desde que a nulidade que afectava a primeira possa ser sanada na nova decisão. O desaparecimento jurídico do acto nulo e dos actos que dele dependam com repetição do acto anulado (se ele não estiver sujeito a prazo que tenha expirado) é a regra generalizada do nosso ordenamento jurídico, como pode ver-se pelos artigos 201º, nº 2, e 208º do C. P. Civil, e artigo 122º, nºs 1 e 2, do C. P. Penal. Assim, se a nulidade, referente à parte administrativa do processo contraordenacional, é constatada em recurso judicial da decisão de aplicação de coima, não deve ser decidida da absolvição da instância, mas sim a remessa do processo à autoridade administrativa para eventual sanação”.

Entende-se, pois, que a nulidade verificada pode ser suprida pela autoridade administrativa, devendo o tribunal recorrido reenviar o processo a tal autoridade para que seja suprida a nulidade detectada.

Perante o exposto, fica prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas pela recorrente no presente recurso.

O recurso apresentado, e na estrita medida do que fica dito, é de proceder.

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida, revogando-se a sentença recorrida, que deverá ser substituída por decisão (simples despacho) que determine o reenvio do processo à autoridade administrativa, para que possa ser suprida na decisão dessa mesma autoridade a nulidade que lhe foi apontada (nos termos acima assinalados).

Sem tributação.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 27 de Março de 2012.

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Maria de Fátima Mata-Mouros)