Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
40/10.1TAFAL.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: FALSIDADE DE TESTEMUNHO
Data do Acordão: 11/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Comete o crime de falsidade de testemunho a testemunha que, sobre a mesma realidade, presta dois depoimentos contraditórios, ainda que não se apure qual deles é o falso.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, do Tribunal Judicial de Ferreira do Alentejo, realizado o julgamento, sob acusação do Ministério Público imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal (CP), decidiu-se, por sentença proferida em 04.05.2011, procedendo à respectiva convolação, condenar o arguido PM pela prática do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.º, n.º 1, do CP, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa à razão diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo a quantia de €550,00.

Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:

O recurso versa sobre a decisão proferida sobre matéria de facto

A) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados

1.
O recorrente não se conforma com a fundamentação da douta sentença que o condenou pela prática de um crime de falso testemunho p. e p. pelo nº 1 do artigo 360° do Código Penal

2.
O ora recorrente vinha acusado da prática do crime de falso testemunho p. e p. pelos nº 1 e 3 do artigo 360° do Código Penal

3.
Foi condenado pela prática do referido crime, apenas pelo do nº 1 do artigo 360° do CP e absolvido do nº 3 do artigo 360° do CP.

4.
Face à factualidade provada e não provada a decisão tomada pelo tribunal devia ter sido diferente, isto é, devia ter sido de absolvição total.

5.
Salienta-se da douta sentença, com interesse para o recurso que:

- o ora recorrente prestou um depoimento falso sem ter sido possível aferir em qual dos momentos faltou à verdade, se perante o órgão de policia criminal ou em sede de audiência de julgamento.

- que o ora recorrente em sede de inquérito, na qualidade de testemunha, declarou falsamente sobre factos relativamente aos quais tinha conhecimento directo.

- não se provou que o arguido omitiu a realidade dos factos em sede de audiência de julgamento.

6.
Assim, e tendo em conta a teor da acusação e, os factos provados e não provados em audiência de julgamento, outra coisa não seria de esperar senão a absolvição total do ora recorrente,

7.
No entanto o Tribunal recorrido decidiu condenar o ora recorrente, pela prática do crime p.p. pelo nº 1 do artigo 360 do Código Penal, porquanto entendeu estarem reunidos os elementos típicos do tipo de ilícito base.

8.
Entendeu o Tribunal recorrido, estarem preenchidos os elementos típicos do tipo de ilícito base porque “o arguido em sede de inquérito na qualidade de testemunha declarou falsamente sobre factos relativamente aos quais tinha conhecimento.”

9.
A conclusão a que o tribunal chegou, com o devido respeito que é muito, está desprovida de qualquer fundamento.

Concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida

10.
Não tendo sido provado que o arguido omitiu a realidade dos factos em sede de audiência de julgamento, e,

11.
Não existindo no processo, e, também não tendo sido produzida prova em audiência de julgamento que leve a concluir que o recorrente faltou à verdade em sede de inquérito, o mesmo terá que ser absolvido da prática deste crime.

12.
Até porque os factos levados a julgamento são distintos dos factos pelos quais o ora recorrente acabou por vir a ser condenado.

13.
Nenhuma prova existe nos autos, ou foi produzida em julgamento que leve a concluir qual das versões corresponde à verdade, muito menos que a versão constante do inquérito não é verdadeira.

14.
Apenas e, só, existem duas versões contraditórias do mesmo facto.

15.
Como aliás, e bem, o tribunal recorrido afirmou na sua douta sentença, que “não foi possível apurar em qual dos momentos o arguido faltou a verdade”.

16.
Até porque não se encontra fixada a verdade objectiva e, sem se saber qual é essa verdade, não se pode afirmar a falsidade do depoimento do recorrente, prestado na qualidade de testemunha, num ou noutro momento.

17.
A prova produzida e os factos constantes da acusação, impõem decisão diversa da recorrida, conduzindo irremediavelmente à absolvição do crime de falso testemunho a que o ora recorrente foi condenado,

Termos em que merece provimento o recurso com as legais consequências,
assim se fazendo

JUSTIÇA.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:

I. O crime de falso testemunho é um crime de “mão própria”, perigo abstracto e de mera actividade, pois é praticado por quem reveste certa qualidade, cuja conduta esgota-se na prestação do depoimento falso, não exigindo a lei qualquer resultado;

II. O arguido foi condenado pelo crime de falsidade de testemunho simples, por ter prestado depoimentos contraditórios em inquérito e na audiência de julgamento, sem que tenha sido possível aferir em qual dos momentos faltou à verdade, se perante o órgão de polícia criminal ou em sede de audiência de julgamento;

III. É inquestionável que o arguido prestou depoimentos contraditórios e antagónicos, em inquérito e na audiência de julgamento, e sendo contraditórios forçoso será concluir que um deles é falso e que, portanto, no mesmo processo, embora em fases distintas, o arguido prestou um depoimento falso;

IV. Não havendo dúvidas de que o arguido prestou um depoimento falso, apenas não se tendo apurado em que momento o prestou (inquérito ou audiência de julgamento), não poderá o mesmo ser absolvido da prática de um crime de falsidade de testemunho;

V. O fundamento do ilícito é a própria declaração falsa, não interessando saber para o preenchimento do tipo de ilícito (base) qual é o depoimento falso.

A certeza sobre a data de consumação do crime não é requisito indispensável ao preenchimento do tipo de ilícito;

VI. Não é obstáculo à condenação pelo crime do art. 360.° do Código Penal o facto de não se saber se o depoimento falso é o prestado no inquérito ou o prestado na audiência de julgamento.

Nesta conformidade, deve negar-se provimento ao recurso com o que se fará a costumada JUSTIÇA.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 233.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, concordando com a referida resposta e no sentido de que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido nada acrescentou.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R.I-A Série de 28.12.1995.

Constituindo princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito (art. 428.º do CPP) e embora resulte a manifestação pelo recorrente de que se insurge contra a decisão proferida sobre matéria de facto e tendo inserido, como títulos, aspectos a que se reportam as alíneas a) e b) do n.º 3 do art. 412.º do CPP, não sofre dúvida que a questão colocada se restringe a matéria de direito, ou seja, a de saber se os factos dados como provados se enquadram no crime de falsidade de testemunho por que foi condenado.

No que ora interessa, consta da sentença recorrida:

FACTOS PROVADOS:

1. No dia 11 de Outubro de 2008, pelas 09h50, o arguido depôs como testemunha perante o Cabo da GNR JG no âmbito do inquérito que originou o Processo Comum Colectivo nº --/07.5GABJA, do Tribunal Judicial de Ferreira do Alentejo, em que era arguido, entre outros, LD, e aos quais era imputado, entre outros, a prática de um crime de estupefacientes.

2. O arguido foi advertido pelo Órgão de Polícia Criminal que procedia à sua inquirição de que estava obrigado a responder com verdade às perguntas que lhe iam ser feitas sobre a matéria dos autos, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal.

3. Em tal depoimento o arguido declarou que: “Se deslocou diariamente desde Agosto de 2007 até Abril de 2008, ao encontro de LD para adquirir cocaína, salientando que houve dias que chegou a deslocar-se junto do mesmo cerca de 4 vezes; que nunca comprou cocaína directamente ao LD, sendo por norma o acompanhante que levasse no seu carro que o fazia para si e para o próprio; que habitualmente as pessoas que o acompanhavam era o JL, o M., mais conhecido por “Esturricado” e o “Zé de Moura”, todos residentes em Cuba; que normalmente gastava em média diária €20 ou €30, o correspondente a um saco de cocaína; que para ir ao encontro de LD ou efectuava chamadas telefónicas para o telemóvel do mesmo e este informava-o que estava no “sítio” ou então ia mesmo ao “sítio”, visto ser por norma o local onde LD se encontrava a partir do pôr do sol; observava vários carros e pessoas no “sítio” a fim de adquirirem produtos estupefacientes ao LD.”

4. No dia 11 de Maio de 2009, teve lugar a audiência de julgamento do Processo Comum Colectivo nº ---/07.5GABJA, tendo o arguido prestado juramento legal, na qualidade de testemunha, e foi advertido do dever de falar com verdade sob pena de incorrer em responsabilidade criminal.

5. Ao ser instado em sede de audiência de julgamento, o arguido disse, em suma, que nunca comprou aos arguidos que ali respondiam, afirmando que veio, cerca de 10 ou 20 vezes, com outras pessoas, a Ferreira do Alentejo comprar drogas mas não sabia a quem estes compravam, pois não saía do carro.

6. Afirmou igualmente que não telefonava à pessoa a quem comprava antes de vir e que nunca veio a Ferreira do Alentejo comprar drogas na companhia do JL, Zé Moura e “Esturricado”.

7. O arguido sabia que sobre si impendia a especial obrigação de responder com verdade às perguntas que lhe foram feitas sobre os factos sujeitos a julgamento, tendo, para tanto, prestado juramento legal e sido advertido que, caso faltasse à verdade às perguntas que lhe iam ser efectuadas incorreria em responsabilidade criminal.

8. O arguido quis omitir a verdade dos factos de que tinha conhecimento, como efectivamente logrou.

9. Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

10. O arguido está desempregado e vive actualmente na Comunidade Terapêutica há 7 meses.

11. Aufere mensalmente o rendimento social de €189,00 que é canalizado para efectuar o pagamento parcial da comunidade terapêutica, no valor total de €315 por mês, sendo que o restante é pago pelos pais.

12. Não tem filhos.

13, Tem o 9° ano de escolaridade.

14. Tem um empréstimo do veículo automóvel mas o mesmo é suportado pelos pais.

15. O arguido não tem antecedentes criminais.

FACTOS NÃO PROVADOS:
Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que o arguido omitiu a realidade dos factos em sede de audiência de julgamento.

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência de julgamento de forma conjugada com as regras da experiência comum.

Atendeu, desde logo, o tribunal aos documentos juntos aos autos, nomeadamente: (i) a certidão do auto de inquirição de testemunha extraída do Processo Comum Colectívo nº --/08.7GABJA junto a fls. 2 a 4, (ii) a certidão da acta de audiência de julgamento junta a fts. 5 a 25, e (iií) a transcrição das declarações do arguido, prestadas em sede de audiência de julgamento no âmbito do referido Processo.

A conjugação destes documentos foi fundamental na formação da convicção do Tribunal pois do seu confronto é possível concluir que o arguido prestou, sobre os mesmos factos, nas duas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação - audiência de julgamento de 11 de Maio de 2009 e inquirição na GNR de 11 de Outubro de 2008 - depoimentos absolutamente contraditórios entre si.

A testemunha JG, militar da GNR, confirmou que o arguido respondeu às questões que lhe foram colocadas e que após ter redigido o auto de inquirição de acordo com as declarações por ele prestadas procedeu à sua leitura e entregou-o ao arguido para que esta também o lê-se e, posteriormente, o assinasse, como fez.

É certo que o arguido exerceu o seu direito ao silêncio e não prestou declarações. Contudo, formou-se no tribunal a convicção serena e segura que o arguido, de forma livre, voluntária e consciente, prestou um depoimento falso, já que os dois depoimentos em causa são absolutamente contraditórios, não existindo qualquer explicação justificativa para tanto.

No entanto, cumpre referir que a prova produzida em audiência de julgamento foi insuficiente para que o tribunal pudesse dar como provado que o depoimento falso foi o que foi prestado em audiência de julgamento (depois do arguido ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expunha).

Assim, apurou-se apenas que o arguido prestou um depoimento falso sem ter sido possível aferir em qual dos momentos o arguido faltou à verdade: se perante o órgão de polícia criminal ou em sede de audiência de julgamento.

Para prova da ausência de antecedentes criminais do arguido o Tribunal teve em consideração o certificado de registo criminal junto a fls. 194 e, para prova das condições sócio-económicas, as declarações prestadas pelo arguido, as quais mereceram credibilidade ao tribunal.

ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL:

Dispõe o artigo 360.°, n.º 1 e 3 do Código Penal, que:

“1. Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.

(...)
3. Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois do agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.”

Conforme se constata pela inserção sistemática do referido tipo, o bem jurídico protegido é a plena realização da justiça, como valor supra-individual e de interesse público em que o mesmo consiste, isto é, “o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão”. Assim, estamos perante um crime de perigo abstracto ou de mera actividade, na medida em que o comportamento ilícito se esgota com a efectivação da conduta proibida, não exigindo a lei qualquer resultado decorrente dessa conduta e dela autonomizável. O fundamento do ilícito radica logo na própria declaração falsa, independentemente da consideração da sua efectiva influência na prolação da decisão.

Temos assim que a acção típica está descrita no tipo legal de crime, verificando-se os seus elementos objectivos quando uma testemunha - crime específico próprio - prestar declarações falsas, perante o tribunal ou funcionário competente para receber tal depoimento como meio de prova, depois de ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais no caso de faltar à verdade.

Por declaração entende-se toda a comunicação feita por uma pessoa com base no seu conhecimento, quer sobre factos exteriores, quer sobre realidades psíquicas.

Por outro lado, tendo em conta a função processual do declarante, in casu, testemunha, tem ainda o dever de declarar apenas factos de que possua conhecimento directo, isto é, factos que tenham sido objecto das suas percepções. Deste modo, o dever de verdade só é violado quando a testemunha declara falsamente sobre esses factos ou declara falsamente ter conhecimento directo desses factos.

O dever de falar com verdade restringe-se apenas ao objecto do interrogatório, não se estendendo o dever de verdade a toda e qualquer informação prestada pelo declarante. De facto, o tipo ora imputado ao arguido exige que a declaração seja prestada como meio de prova, ou seja, ter a declaração proferida pelo agente a função de demonstrar a realidade dos factos.

Há ainda que ter em conta o elemento central deste tipo de crime que reside na falsidade da declaração. E, é falsa a declaração quando o conteúdo da declaração diverge do objecto da declaração.

Nem toda e qualquer declaração falsa, prestada por uma testemunha, preenche a tipicidade. Com efeito, a falsidade só releva na medida em que o declarante se encontre sujeito a um dever processual de verdade e de completude (declarar só a verdade mas toda a verdade). O âmbito desse dever encontra-se limitado, essencialmente, por três factores: a função processual do declarante; o objecto do interrogatório; e as regras processuais referentes à prestação da declaração. No caso da testemunha, ela tem o dever de declarar apenas factos de que possua conhecimento directo (cfr. artigo 128.°, n.º 1, do Código de Processo Penal), isto é, factos que tenham sido objecto das suas percepções, acontecimentos ou circunstâncias concretos, quer do mundo exterior, quer da vida anímica.

Igualmente relevante será a inobservância de formalidades essenciais: assim, a forma do juramento e a advertência acerca das consequências da eventual falsidade (nos casos do n.º 3 do citado artigo 360.°), pressuposto para a aplicação da agravação aí inserida.

Quanto ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, o crime de falsidade de testemunho é punível a título de dolo, incluindo, por conseguinte, também o dolo eventual (cfr. artigos 13.°, primeira parte, e 14.°, ambos do Código Penal). Não há, assim, punição das falsas declarações realizadas apenas a título de negligência (cfr. artigo 13.°, segunda parte, do mesmo Código). Requer-se a consciência da falsidade da declaração, ou de parte dela, ou de se estar a silenciar alguma coisa que deveria ser manifestada.

No caso em apreço, e uma vez que é imputado ao arguido a prática do crime de falsidade de testemunho na sua forma qualificada, além da verificação dos elementos objectivos acabados de referir há ainda lugar ao preenchimento dos pressupostos previstos no nº 3, do artigo 360.°, do Código Penal, ou seja, o juramento e a advertência das consequência penais a que o declarante se expõe, feita por autoridade com competência.

A lei impõe que o depoente haja sido expressamente advertido das consequências penais decorrentes da falsidade: faltar à verdade depois de uma tal advertência e da indesmentível solenidade inerente ao juramento, manifesta uma particular intensidade da vontade criminosa, a reclamar uma mais severa punição. Esta advertência constitui formalidade essencial - a sua falta impede o funcionamento da agravante, mesmo se o juramento tiver ocorrido, aplicando-se então, e apenas, o n.º 1 do artigo 360.° do Código Penal.

O juramento tem de ser realizado perante uma entidade competente. Assim, em processo penal, o juramento só é prestado perante autoridade judiciária (juiz, juiz de instrução ou Ministério Público - cfr. artigo 91.°, n.º 3, em conjugação com o disposto no artigo 1.°, n.º 1, al. b), ambos do Código de Processo Penal).

Reportando-nos agora ao caso dos autos, e face à factualidade provada, dúvidas não restam de que o arguido PM prestou declarações falsas (uma vez que as prestadas em sede de inquérito e em sede de audiência de julgamento são contraditórias).

Contudo, não foi possível determinar que a falsidade tenha sido cometida em sede de audiência de julgamento, ou seja, após ter sido advertido de que se faltasse à verdade na qualidade de testemunha incorreria na prática de um crime de falsas declarações.

Assim, facilmente se constata que a conduta do arguido não preenche o tipo objectivo do crime de falsidade de testemunho na sua forma qualificada, prevista no nº 3 do artigo 360.° do Código Penal.

No entanto, não obstante não se encontrar preenchido o elemento qualificativo do tipo de ilícito pelo qual o arguido vinha acusado, entendemos que tal facto não poderá levar à absolvição do arguido, mas à condenação pelo tipo de ilícito base (constante do n.º 1, do artigo 360.° do Código Penal) pois os seus elementos típicos estão preenchidos pela conduta ilícita do arguido.

Na verdade, o arguido, na qualidade de testemunha, declarou falsamente sobre factos relativamente aos quais tinha conhecimento directo.

Agiu igualmente o arguido com dolo directo, pois sabia que as suas declarações eram falsas e, não obstante, quis prestar declarações falsas, como efectivamente aconteceu.

Assim, e na medida em que o tipo legal constante da acusação e o tipo legal que se encontra preenchido com a factualidade dada como provada, reportam-se ao mesmo tipo de ilícito, existindo uma mera relação de especialidade entre eles, sendo o primeiro uma qualificação relativamente ao segundo, decide-se convolar a qualificação jurídica da conduta do arguido que não pode subsumir-se no crime imputado de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.°, n.º 1 e 3 do CP, mas antes no crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.°, n.º 1 do CP.

Pelo exposto, e não se verificando causas de justificação ou de exclusão da culpa, conclui-se que o arguido praticou, como autor material, o crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo nº 1 do supra citado preceito legal, impondo-se, assim, a sua condenação.

Sendo que a decisão sobre a matéria de facto só pode ser modificada “in casu” se se verificar algum dos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP (art. 431.º do mesmo diploma), é manifesto que a factualidade fixada não enferma de algum deles.

Por seu lado, inexiste qualquer nulidade, mormente por incumprimento dos legais requisitos a observar na sentença (art. 379.º do CPP).

Neste âmbito, note-se que, no tocante à circunstância a que o recorrente se reporta de que lhe tivesse sido imputado na acusação que quis omitir a verdade dos factos, como efectivamente logrou, omitindo em sede de julgamento, a verdade sobre os factos de que tinha conhecimento (fls. 157) e que, segundo a decisão recorrida, só se tenha provado, no facto sob o número 8, que quis omitir a verdade dos factos de que tinha conhecimento, como efectivamente logrou, não conduz à conclusão de que os factos levados a julgamento sejam distintos dos factos sobre os quais o tribunal se pronunciou, com o sentido de que qualquer alteração dos mesmos tenha existido, para o efeito do disposto naquele art. 379.º, n.º 1, alínea b), por referência aos arts. 358.º 359.º do CPP.

Sem prejuízo, é detectável um lapso na sentença, que se impõe corrigir, ao abrigo do art. 380.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do CPP.

Assim, em sede da MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

- onde se lê: (i) a certidão do auto de inquirição de testemunha extraída do Processo Comum Colectívo nº --/08.7GABJA (…);

- passa a ler-se: (i) a certidão do auto de inquirição de testemunha extraída do Processo Comum Colectívo nº --/07.5GABJA (…).

Passando, então, à apreciação de direito suscitada pelo recorrente:

A sua perspectiva reconduz-se a pôr em crise a fundamentação operada na sentença, alegando, em resumo, que, ao não se ter apurado a verdade objectiva e em qual dos momentos terá faltado à verdade, deveria ter sido absolvido.

Refira-se, desde já, que a invocação, na fundamentação do recurso, de que o tribunal recorrido apenas chegou à conclusão que foi em inquérito que o ora recorrente, declarou falsamente, no entanto, não fundamentou a forma como chegou a essa conclusão, só pode ser vista como implicitamente decorrente da posição jurídica que foi sufragada na sentença, ao ter procedido à convolação da qualificação jurídica e não, manifestamente, como resultado de ter chegado a uma conclusão quanto ao momento em que o recorrente terá faltado à verdade.

Por isso, a sua análise não deixa, também, de se inserir na problemática de direito que o recorrente aqui traz.

As considerações expendidas na sentença ao nível da caracterização do crime de falsidade de testemunho, previsto no art. 360.º do CP, são de acolher e dispensam grande desenvolvimento.

Na verdade, sempre foi entendido como sendo um crime de perigo, prevenindo em especial o interesse do Estado na boa administração da justiça, através de decisões judiciais correctas, havendo estas, inegavelmente, de resultar da colaboração dos intervenientes processuais no tocante ao conhecimento dos factos de que disponham.

Já Leal-Henriques e Simas Santos referiam em “Código Penal”, 2.º volume, Rei dos Livros, 2.ª edição, pág. 1134, citando Nélson Hungria, em anotação ao preceito, que «Entre os meios de prova ou elementos de convicção para a averiguação de facto juridicamente relevante (…) está o testemunho, isto é, informação prestada, perante quem de direito, acerca de tal facto ou de qualquer das suas circunstâncias integrantes, por pessoa que tenha conhecimento a respeito. Muitas vezes, é mesmo o testemunho o único meio probatório que se apresenta in concreto, isto é, a ulterior decisão pela autoridade competente fica adstrita, frequentemente, a louvar-se tão-só no depoimento de testemunhas, posto que o julgador não pode pronunciar-se pelo que acaso saiba fora dos autos…ou pelas simples alegações dos interessados…A presunção juris da verdade do testemunho é admitida pela lei no imperioso interesse da fixação histórica de factos que, afectando a ordem jurídica, têm de ser objecto ou base de julgamento, quer na órbita judiciária, quer na esfera administrativa em geral».

Configura-se como crime de perigo abstracto, na medida em que não é necessário que a declaração falsa prejudique efectivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão, nem sequer que, “in concreto”, o tenha colocado em perigo; como crime de mera actividade, pois o comportamento esgota-se precisamente na efectivação da conduta proibida, não se exigindo qualquer resultado decorrente dessa conduta e dela autonomizável; e como crime de mão-própria, que só pode ser praticado por determinadas pessoas investidas de certa qualidade (v, Medina de Seiça in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, tomo III, Coimbra, 2001, a págs. 462 e seg.).

O núcleo essencial do ilícito coloca-se na prestação de declaração falsa, desde que feita perante entidade competente e que o agente esteja sujeito a um dever processual de verdade e de completude.

Acerca do entendimento do que se deve considerar como falsidade da declaração, têm-se desenhado três teorias, a que Medina de Seiça, ob. cit., a págs. 475/477, esclarecidamente se refere.

Assim, a denominada teoria objectiva, segundo a qual a falsidade reside na contradição entre o declarado e a realidade.

A designada teoria subjectiva, que considera falsa a declaração que não coincida com a representação do declarante no momento da declaração, assentando, pois, na contradição entre a declaração e a ciência ou conhecimento do declarante.

E as teorias ditas intermédias, que põem a tónica na violação do dever processual do declarante, mais orientadas pelo bem jurídico protegido com a incriminação e fazendo residir a falsidade, não no acontecimento histórico, mas sim na percepção que dele a testemunha tenha feito.

Não obstante os elevados contributos que tais teorias têm para a correcta subsunção àquele conceito, afigura-se, salvo melhor opinião, que cada uma delas não deve ser vista com a autonomia e a diferenciação das restantes ao ponto de comportar interpretação em que se revelem incompatíveis.

Ao invés, não denotando incompatibilidade, reflectem, sim, as dificuldades a que a interpretação do que seja a falsidade conduz, mormente, no confronto das múltiplas situações que são susceptíveis de se verificar.

As discrepâncias fazem-se notar, afinal, em acentuar-se, mais ou menos, a vertente da realidade histórica, perante o declarado, sem prejuízo da teoria subjectiva se reportar, também, a elementos que, intrinsecamente, se devem entender como referidos ao dolo do agente.

Este, consiste em o agente agir com consciência da falsidade da declaração e em contrário da verdade por si adquirida, com a intenção de prestá-la dessa forma ou, pelo menos, representando a possibilidade da falta de verdade da declaração, conformando-se com esse resultado.

No caso concreto e segundo o que se provou, o aqui recorrente, na qualidade de testemunha e em dois momentos distintos - em inquérito e em audiência de julgamento -, fez declarações contraditórias sobre a mesma realidade inerente a processo criminal em curso, após ter sido devidamente advertido das legais consequências caso não falasse com verdade e, em julgamento, ainda também, depois de prestado o juramento legal.

Mais se provou que quis omitir a verdade dos factos de que tinha conhecimento, tendo agido voluntariamente e com consciência de que a sua conduta era proibida.

Ora, ao ter-se provado que omitiu a verdade, efectivamente não se especificou qual era a verdade histórica dos factos.

Todavia, é de assinalar que a verdade aqui em causa está, sempre, relacionada com aquilo de que tinha conhecimento, e não propriamente com o que na realidade tenha sucedido, só assim se coadunando com as funções da testemunha, que é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, nos termos do art. 128.º, n.º 1, do CPP.

Aliás, certamente ninguém exigirá a qualquer testemunha que tenha o cabal conhecimento da verdade objectiva, tida como correspondendo à realidade histórica, mas sim e apenas que deponha, só com verdade e toda a verdade, relativamente àquela de que tenha conhecimento.

De modo diverso, equivaleria a que a sua declaração se reconduzisse àquilo que cabe ao tribunal, e não à testemunha, ou seja, à descoberta da verdade material (art. 340.º do CPP), pelo que alguma reserva tem de merecer a perspectiva de que a falsidade unicamente decorra de contradição entre o declarado e essa realidade histórica.

Tudo dependerá da análise do caso em apreciação e do que, nesse aspecto, se torne, ou não, imprescindível para aquilatar da existência de mentira.

A exigência que transparece da alegação do recorrente de que a verdade histórica objectiva tivesse de ser, no caso, apurada e, por isso, devesse constar já da acusação, parece-nos excessiva, atentando em que, além do mais, essa mesma verdade consubstancia matéria do âmbito do processo em que depôs, e não, propriamente, do objecto agora em julgamento.

A conclusão de que o recorrente omitiu a verdade resulta da manifesta contradição entre o declarado num e noutro momentos, a que o tribunal recorrido logrou chegar, usando de presunção legalmente admitida (arts. 125.º do CPP e 349.º e 351.º do Código Civil), assente em raciocínio indutivo e lógico, sem que se divise que tivesse, para tanto, de apelar à referida realidade histórica.

Se o recorrente agiu como descrito, mentiu (omitiu a verdade) num dos momentos em que foi inquirido como testemunha, ou em ambos os momentos, acerca dos factos, provados, que ficaram descritos sob os números 3, 5 e 6, sendo que a desconformidade com a realidade resulta de não poder ter tido o conhecimento contraditório, revelado pelos seus depoimentos e, por isso, ter preterido o dever de verdade que lhe era legalmente imposto, independentemente de saber-se qual o sentido da decisão tomada no processo criminal em que depôs.

Pese embora não se desconheça posição jurisprudencial que defende uma acrescida exigência no elenco dos factos provados, com vista a suportar a conclusão de que existiu declaração falsa, ainda que em situações em que a factualidade disponível era muito mais escassa do que a presente e, até, relativamente diferente nos seus contornos (v. acórdãos desta Relação: de 15.04.2008, no proc. n.º 2613/07-1, e de 08.04.2010, no proc. n.º 333/07.5TALGS.E1, relatados pelo Exmo. Desembargador Gilberto Cunha, e de 03.06.2008, no proc. n.º 1564/07-1, relatado pelo Exmo. Desembargador Ribeiro Cardoso; acórdão da Relação do Porto de 05.07.2006, no proc. n.º 0546988, relatado pelo Exmo. Desembargador José Piedade; todos acessíveis em www.dgsi.pt; e acórdãos da Relação de Guimarães: de 11.05.2009, sendo relator o Exmo. Desembargador Anselmo Lopes, in Col. Jur. ano XXXIV, tomo III, a pág. 307, e de 01.03.2010, no proc. n.º 2711/07, sendo relator o Exmo. Desembargador Filipe Melo, disponível em www.colectaneadejurisprudencia.com), afigura-se que a tese que se vem explicitando é a mais consentânea, em concreto, com a tutela do interesse da incriminação e não põe em crise princípios fundamentais de salvaguarda das garantias de defesa.

Com efeito, através do sentido explicitado, ficam respeitados os limites interpretativos que o tipo legal consente ao reportar-se a declaração falsa, bem como a conformidade com a natureza e as características do crime, acrescendo que, por um lado, a data da sua consumação não constitui requisito indispensável ao seu preenchimento e, por outro, não contende com o princípio “in dubio pro reo(em contrário, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, 2008, pág. 848).

Desta perspectiva, se dá conta nos acórdãos: da Relação do Porto de 17.11.2004 e de 07.12.2005 (relatados pela Exma. Desembargadora Isabel Pais Martins), in Col. Jur., respectivamente, ano XXIX, tomo V, pág. 211, e ano XXX, tomo V, pág. 223, e de 30.01.2008, no proc. n.º 0712790 (relatado pelo Exmo. Desembargador José Carreto); e da Relação de Coimbra de 28.09.2011, no proc. n.º 157/10.2TAMMV.C1 (sendo relator o Exmo. Desembargador Paulo Guerra); e na decisão sumária da Relação de Coimbra de 18.05.2011, no proc. n.º 195/09.8T3AVR.C1, (proferida pelo Exmo. Desembargador Jorge Jacob); todos estes em www.dgsi.pt.

As dificuldades que, eventualmente, se coloquem ao nível da prescrição, ou da amnistia, decorrentes da ausência de certeza da data da consumação do ilícito, não são de molde a infirmar a referida circunstância atinente à sua falta de essencialidade para o preenchimento do crime, a que acresce que, sempre, virão a ser resolvidas com apelo ao tratamento mais favorável ao arguido.

Por seu turno, tal como já Figueiredo Dias escrevia no seu “Direito Processual Penal”, Coimbra, 1974, a págs. 218 e seg., reportando-se ao funcionamento do princípio “in dubio pro reo”, que existem casos em que o juiz não logra esclarecer, em todas as suas particularidades juridicamente relevantes, um dado substrato de facto, mas em todo o caso o esclarece suficientemente para adquirir a convicção de que o arguido cometeu uma infracção e, nesses casos, ensina-se ser admissível, dentro de certos limites, uma condenação com base em uma comprovação alternativa dos factos e Se assim deve ser ou não constitui porém, claramente, problema que extravaza do âmbito processual, para ir radicar na interpretação dos tipos aplicáveis, à luz da função de garantia que jurídico-constitucionalmente lhe cumpre.

É por isso que, nesta vertente, o princípio “in dubio pro reo” se torna alheio à problemática de que os factos preencham, ou não, o tipo legal em apreço.

Dispensando outras considerações, concorda-se, pois, com a solução do tribunal “a quo” de que os factos provados são idóneos para a conclusão que extraiu de que o aqui recorrente cometeu o referido crime.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, assim,

- sem prejuízo da operada correcção, manter a sentença recorrida que o condenou pela prática do crime de falsidade de testemunho.

Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça em soma equivalente a 3 UC.

Elaborado e revisto pelo Relator.

22 de Novembro de 2011

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(Carlos Berguete Coelho)

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(João Gomes de Sousa)