Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1343/06-2
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA
TÍTULO EXECUTIVO
OPOSIÇÃO
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO CÍVEL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I – A ineficácia do título executivo é um dos fundamentos possíveis de oposição à execução, sob pena de, não o fazendo, precludir tal direito e o título executivo se consolidar quanto ao executado.

II – A preclusão do direito quanto à ineficácia do título não impede que o executado se oponha à penhora.
Decisão Texto Integral:
PROCESSO Nº 1343/06
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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RELATÓRIO
No Tribunal Judicial de … corre termos a execução hipotecária em processo ordinário com o n° … com o valor de € 39.852,65 euros em que são exequente o “A” e executados “B” e “C”.
A executada “C” citada nessa execução em 29-06-1995 e nada fez ou disse.
Prosseguindo a execução, veio a frustrar-se a cobrança do crédito exequendo pelo produto do imóvel hipotecado, razão porque o exequente entendeu verificar-se motivo para a extinção da execução por inutilidade superveniente da lide, entendimento esse, todavia, que não foi subscrito pelo Mmo Juiz.
Em prosseguimento da execução, foi penhorado 1/3 do vencimento que a executada auferia como auxiliar de educação na Escola EB 2 e 3 …, mediante ofício datado de 08-03-2005 que o Tribunal dirigiu a este estabelecimento de ensino.
E foi então, em 18-03-2005, que esta executada - que desde a citação se mantivera alheada do processo sem que qualquer notificação lhe tivesse sido dirigida - veio requerer a anulação de todos os actos posteriores à sua citação, o reconhecimento da ineficácia do título executivo em relação a ela, a notificação do estabelecimento de ensino para suspender a execução do despacho que ordenou a penhora do seu vencimento até à decisão das questões suscitadas e subsidiariamente a anulação do despacho que indeferiu a extinção de instância por inutilidade superveniente da lide e do que ordenou a penhora do seu vencimento.
Notificada da penhora de 1/3 do seu vencimento em 07-04-2005, voltou a arguir, agora em 18-04-2005, a nulidade de todos os actos praticados no processo após a sua citação, a ineficácia em relação a si da escritura apresentada como título executivo, do despacho que ordenou a penhora por violação do princípio do contraditório e por falta de fundamentação de facto e de direito e a inconstitucionalidade de qualquer norma que, porventura, venha a ser invocada para fundamentar o despacho de penhora.
Todas estas arguições foram rejeitadas.
Daí o presente agravo - admitido para subir em separado e com efeito devolutivo - cuja alegação, oportunamente apresentada, finaliza com a seguinte síntese conclusiva:
I - A decisão recorrida é violadora da dignidade da pessoa humana da Executada.
II - A decisão recorrida violou o princípio do contraditório.
III - A decisão recorrida violou o princípio da confiança, ínsito no art. 2º da Constituição.
IV - A decisão recorrida violou o princípio dispositivo.
V - A decisão recorrida não respeitou o princípio da fundamentação dos actos judiciais pelo que é nula.
VI - A decisão recorrida viola o direito da Executada a um processo justo e equitativo.
VII - A decisão recorrida consubstancia uma denegação de justiça.
VIII - A decisão recorrida viola o princípio da igualdade como princípio de interpretação de direitos fundamentais. Igualdade de armas, proibição de discriminação arbitrárias e como impondo um tratamento igual aos executados.
IX - A decisão recorrida viola o princípio que impõe a aplicação imediata e retroactiva das normas que garantem, protegem ou consagram direitos fundamentais.
X - Essa aplicação imediata e retroactiva é imposta pelo respeito devido aos valores "dignidade da pessoa humana" e "igualdade", sintetizados na fórmula "igual dignidade social" do n° 1 do art. 13° da Constituição.
XI - Este princípio impõe a aplicação imediata da actual redacção do art. 824° do CPC.
XII - O mesmo princípio impõe a aplicação aos autos do art. 235° n °2 do CPC.
XIII - A decisão recorrida viola o art. 17° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
XIV - A decisão recorrida viola o princípio da legalidade,
XV - A decisão recorrida faz aplicação dos artigos 816º, 817° e 824° do CPC, dando-lhe interpretações violadoras das normas e princípios constitucionais.
XVI - A decisão recorrida espelha uma concepção de justiça meramente formal, incompatível com o sistema de valores consagrado na Constituição da República Portuguesa.
Conclui, pedindo o provimento do recurso e a anulação de todo o processado após o despacho de citação, nomeadamente os despachos de fls 48, 65, 101, 107, 119, 133 e o despacho recorrido.

O exequente “A” contra-alegou, em defesa da manutenção do despacho recorrido.

Instruído o recurso e remetido e esta Relação, após o despacho preliminar, foram corridos os vistos legais.
Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.
FUNDAMENTAÇÃO
Constando os factos relevantes do relatório que antecede, cumpre apreciar as questões suscitadas pela executada recorrente:
Instaurada execução hipotecária, em 1995, contra a aqui agravante - e outro foi ela citada, em 29-06-1995, para a execução, designadamente para pagar, deduzir oposição sob pena de penhora nos bens hipotecados.
A obrigatoriedade da advertência contra cuja alegada omissão a agravante ora se insurge para suscitar a nulidade de todo o processo após a sua citação - falta de indicação da obrigatoriedade de patrocínio judiciário - foi introduzida no processo executivo com o DL n° 329- A/95 de 12/12 e com a redacção por este introduzida ao art. 635° n02 CPC.
E só se este normativo estivesse em vigor na data em que teve lugar a citação da executada, ora agravante - o que não acontece - é que ocorreria nulidade da citação (art. 198° nº 1 CPC).
Como é, por demais, óbvio ...
A executada e aqui agravante foi citada e quedou inerte, não interpondo recurso do despacho que ordenou a sua citação nem deduzindo qualquer oposição à execução, designadamente com qualquer dos fundamentos previstos no art. 813° e 815° CPC.
E a ineficácia do título executivo era um dos fundamentos possíveis de oposição à execução que no decêndio subsequente a tal citação a executada e ora agravante poderia e deveria ter invocado, sob pena de preclusão do direito que daí lhe advinha (art. 811°, 813° nº 1-a), 815° nºl, 816 e 817° nº 1 a) CPC).
Não o tendo feito, o título executivo consolidou-se quanto a ela.
Mas se lhe precludiu o direito de oposição à execução, isso não lhe comprometeu o direito de eventual oposição a actos executivos, maxime à penhora designadamente para correcção da respectiva extensão, pois se trata de realidades diversas.
Acontece que, por vicissitudes várias de que aqui não há que curar, a execução se manteve pendente por vários anos mas veio a frustrar-se a cobrança coerciva do crédito exequendo pelo produto do bem penhorado devido à venda deste em outra execução.
Foi nessa altura e por esse motivo que a exequente requereu a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, no que não foi atendido pelo Tribunal.
Prosseguindo a execução e requerida a penhora do vencimento mensal da executada como auxiliar de educação na Escola EB 2 e 3 … foi esta ordenada na proporção de 1/3.
Reagiu então a executada, alegando a nulidade do processado após a sua citação, a ineficácia do título executivo para com ela, a nulidade do despacho que indeferiu o requerimento de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide por violação do contraditório, a nulidade do despacho que ordenou a penhora do seu vencimento e, mais tarde, também por falta de fundamentos e violação do contraditório deste mesmo despacho bem como, em verdadeira jogada de antecipação, "a inconstitucionalidade de qualquer norma que, eventualmente, seja invocada para fundamentar a ordenada penhora".

Desatendida a arguição na 1ª instância, veio o presente recurso.
Começa a recorrente por sustentar que, tendo a executada sido citada sob a cominação de penhora nos bens hipotecados, a penhora do seu vencimento decorridos cerca de 10 anos sem que entretanto tivesse sido notificada de qualquer acto processual violaria a sua dignidade humana e, consequentemente, as disposições constitucionais que a protegem.
Salvo o devido respeito, porém, e antes de mais, a dignidade humana da executada seria violada se, v.g., não lhe tivesse sido dada a oportunidade de se defender contra a execução e contra o título no qual ela se funda; o contraditório é, aqui, uma das outras faces da dignidade humana.
Muito embora ela se insurja contra a omissão da notificação dos vários actos processuais que tiveram lugar na fase propriamente hipotecária da execução - e concede-se que alguma razão aqui lhe assista na medida em que, como executada, deveria ter oportunidade de se pronunciar sobre eles - tal omissão em nada a prejudicou, pois que, como ela própria reconhece na sua alegação de recurso, a penhora nos bens hipotecados lhe era completamente indiferente e nunca, em momento algum desses 10 anos, teve qualquer razão para adivinhar que o seu vencimento poderia ser afectado.
Perante esta justificação, a notificação de actos processuais constituiria prática de actos inúteis ou quase-inúteis ... já que o agora seu confessado desinteresse exclui a relevância da omissão: para quê notificar actos nos quais o notificando não estava interessado?
A evidência da resposta a esta questão justifica a conclusão a posteriori de que as nulidades cometidas nenhuma influência tiveram ou poderiam ter no exame da questão e, logo, afastam a sua relevância processual (art. 201° nº 1 CPC).
Ao operar a efectivação da responsabilidade subsidiária do património geral de um dos executados, depois de comprovada a frustração da realização do crédito através da garantia especial da hipoteca, o Tribunal mais não fez que aplicar o preceituado no art. 835º e 836° nº 2-a) CPC que impõe o prosseguimento da execução em outros bens dos executados quando os abrangidos pela garantia não forem suficientes para a satisfação do crédito.
Isto, apesar de haverem decorridos cerca de 10 anos desde a instauração da execução ... 0 que, independentemente da imputação da demora, é sempre de lamentar...
Questão diversa é a da medida e extensão da penhora no vencimento.
Do art. 823° nº 1-e) CPC decorre a proibição absoluta da penhora de 2/3 dos vencimentos dos funcionários públicos; logo, a penhorabilidade de tal direito limita-se a 1/3, mas este é o seu tecto máximo, pois que o nº 4 (2aparte) do art. 823° CPC impõe ao juiz a fixação da medida da penhora, segundo o seu prudente arbítrio e tendo em atenção as condições económicas do executado, entre 1/3 (limite máximo) e 1/6 (limite mínimo).
A penhora de 1/3 do vencimento, sem que a fixação deste limite máximo tivesse sido precedida de apuramento da situação económica da executada, poderá constituir irregularidade processual mas é sempre susceptível de redução correctiva posterior, designadamente mediante requerimento da executada.
Por outro lado, a penhora efectivou-se pela notificação da entidade processadora do vencimento, como a executada reconhece, sem qualquer publicidade, não podendo ser assacadas ao Tribunal quaisquer repercussões - se é que as houve ... - de tal facto.
Não se descortina, pois, qualquer violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Como igualmente se não concorda com a violação do princípio do contraditório do art. 3° nº 2 CPC, pois que os demais bens da executada (v.g., também o vencimento) estariam sempre sujeitos a penhora no caso de insuficiência dos bens abrangidos pela garantia.
Aliás, a executada foi chamada a defender-se na execução - com isso se assegurando a audiência contraditória - e quedou inerte, não visando o art. 3° n° 2 CPC actos concretos de execução de um direito contra a qual não foi deduzida qualquer oposição.
A entender-se de outro modo conforme à pretensão da recorrente, teríamos que reconhecer fundamento na oposição preliminar à realização de concretas penhoras, como se o Tribunal tivesse que perguntar previamente ao executado se ele concordava com a penhora neste ou naquele bem indicado pelo exequente ... 0 que é absurdo, ridículo e desprestigiante ...

Outro princípio constitucional que a agravante diz ter sido violado foi o da confiança do Estado de Direito Democrático (art. 2° da Const. Rep.), na medida em que a executada foi informada de que se nada fizesse seria ordenada a penhora nos bens hipotecados mas o que veio a ser penhorado foi, afinal, o seu vencimento.
Também aqui não lhe assiste razão, pois que a penhora do seu vencimento decorreu da impossibilidade e insuficiência dos bens hipotecados para satisfazer o crédito exequendo e, não podendo considerar-se inadmissível, arbitrária ou excessivamente onerosa a afectação do património geral do devedor à realização coerciva das suas dívidas - aliás, é princípio normativo geral e comum da responsabilidade patrimonial - não pode a advertência feita à executada da penhora dos bens hipotecados, sem qualquer referência à eventualidade da responsabilidade subsidiária do património geral, criar a expectativa legítima de exclusão da possível agressão dos bens do património geral do devedor.
A invocação da violação do princípio da confiança é até abusiva por parte de quem se desinteressou da execução só porque esta começou por incidir sobre bens onerados com hipoteca como se a sua responsabilidade se restringisse ao valor dos bens hipotecados e não ao valor do crédito; a medida da responsabilidade solidária da executada é a da dívida e não a da hipoteca.

Outro princípio alegadamente violado foi - diz a agravante - o dispositivo consagrado no art. 3° nº 1 CPC, pois que ela nunca foi notificada ao longo do processo dos requerimentos da exequente, mormente quando este entendeu verificar-se motivo para extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, o que a executada equiparou a desistência, tendo o Tribunal desatendido tal pretensão.
Já se disse, a este propósito, que se é certo que a executada deveria ser notificada do andamento do processo, nem por isso a omissão destas notificações constitui nulidade processual relevante desde que ela "confessou" o seu desinteresse dessa tramitação por nenhum prejuízo dela lhe advir; as notificações seriam sempre, pois, actos inúteis.
No que concerne ao entendimento sufragado pela 1ª instância recusando a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, independentemente da interpretação que a executada faça dessa posição da exequente, concordamos com aquela decisão que recusou a subsunção da situação de inutilidade da lide por motivo superveniente à desistência da execução.
Aliás, o Tribunal, ao recusar a extinção da execução com o fundamento invocado pelo exequente - inutilidade superveniente - limitou-se, no exercício indeclinável do dever de interpretar e aplicar o direito no que, como se sabe, não, está sujeito às alegações das partes (art. 664° CPC), a não acolher esta interpretação do exequente, sem que isso implicasse necessariamente o impulso processual para o prosseguimento da execução na qual veio a ser penhorado o vencimento da agravante; ou seja, a execução avançou, mas a requerimento do exequente, isto é, mediante impulso dispositivo da parte nesse sentido e não por determinação oficiosa do Tribunal
Não se vê, pois, onde esteja a alegada violação do princípio dispositivo.

Invoca também a agravante a omissão de fundamentação do despacho que ordenou a penhora no seu vencimento.
Com isso, tal decisão seria nula (art. 668° nº 1-b) CPC).
Preceitua o art. 158° CPC que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas (n° 1) e que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (nº 2).
Concedendo que o alheamento da executada do processo é imputável ao Tribunal por omissão da notificação dos vários actos processuais, o certo é que subsiste a regra de que contra as nulidades se reclama e contra os despachos se recorre.
O meio de impugnação adequado de um despacho nulo por falta de fundamentação é, pois, o recurso e não a reclamação, pois que a nulidade está coberta pela decisão.
E a executada não interpôs oportunamente recurso do despacho que ordenou a penhora, mas sim do despacho que lhe desatendeu as nulidades que, na sequência do mesmo, arguíra.
Logo, está prejudicada a apreciação deste segmento da argumentação.
Melhor sorte não tem os demais fundamentos invocados, a saber, a alegada violação do direito a um processo justo e equitativo (art. 20° e 202° nº 2 da Const. Rep., 6° da CEDH e 10° da DUDH) , da proibição de denegação de justiça (art. 8° da DUDH e 16° nº 2 da Const. Rep.), da igualdade, da não discriminação e da igualdade material dos executados, da proibição do abuso do direito, da legalidade e as consequentes inconstitucionalidades.
Com efeito, a executada teve ensejo de atacar e de destruir o título executivo que a exequente contra si brandia (no caso inverso, sim, ocorreriam os vícios que ela agora invoca ... ) e não o fez.
Não pode é, mesmo volvidos vários anos de pendência do processo e sem que o crédito exequendo fosse declarado extinto pelo cumprimento coercivo - não estando aqui em causa as razões da frustração de tal satisfação pelo produto dos bens especialmente convencionados para o efeito - ou por qualquer outra causa, e quando, na qualidade de devedora (que lhe advém do próprio título executivo e da ausência oportuna de dedução de oposição contra ele) é demandada para satisfação coerciva desse crédito, opor-se à execução (ou tão só à penhora) com os fundamentos que deveria então ter deduzido.
Sem mais considerações, pois, improcedem as conclusões do agravo, sem prejuízo, todavia, de possível reapreciação da extensão e da medida da penhora do vencimento.
ACÓRDÃO
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao agravo e em confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pela agravante.

Évora e Tribunal da Relação, 19.10.2006