Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO AMARO | ||
Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL | ||
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Data do Acordão: | 04/10/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | I - Para a verificação dos elementos objetivos do crime em análise exige-se que o agente tenha, efetivamente, recebido dos clientes o valor da contraprestação devida pelos produtos vendidos ou pelos serviços prestados, em relação aos quais deve proceder à entrega, ao Estado, do IVA respetivo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - RELATÓRIO. Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº 123/13.6TAACN, do Juízo Local Criminal de Torres Novas, por sentença datada de 09 de março de 2017, foi decidido: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a acusação pública improcedente, e, em conformidade: 1. Absolvo “A…, Lda.”; MG; CG e DL, todos arguidos melhor identificados nos autos, da prática, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º/1, 4 e 7 (e artigo 7º, quanto à sociedade), do RGIT, e artigo 30º/2 do C.P. 2. Sem custas - artigo 513º do CPP”. * Inconformado com a decisão absolutória, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões: “1- Recorre o Ministério Público da douta sentença que absolveu os arguidos A…, Ld.ª, MG, CG e DL, da prática, em coautoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art.º 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, do RGIT e art.º 30.º, n.º 2, do Código Penal; 2- Na visão do paradigmático homem médio, que utiliza as regras de experiência comuns e as presunções legais, exerce a gerência de uma empresa quem dirige os seus destinos, praticando os atos necessários à prossecução do seu objeto social, com o necessário cumprimento das obrigações legais a que esta está vinculada; 3- Uma sociedade que se vincula com a intervenção de dois de três dos gerentes nomeados, e se estes três gerentes nomeados exercem todos e efetivamente funções em empresa de pequena/média dimensão, necessariamente praticam todos eles atos gestionários quotidianos, bem sabendo e conhecendo todas as circunstâncias que integram a vida societária; 4- É incongruente e contraditório afirmar, tal como se afirmou no texto da douta sentença em recurso, que dois desses gerentes não são gerentes de facto, pois tal é manifestamente contrário à presunção legal do exercício efetivo da gerência, bem como das regras da experiência comum, que impõem que quem é gerente nomeado, cuja intervenção é necessária à vinculação legal da sociedade, e exerce funções na empresa, tem de necessariamente conhecer as circunstâncias do seu funcionamento; 5- Sobre estes gerentes impendem deveres de fiscalização e vigilância no cumprimento das obrigações fiscais da sua representada; 6- A meritíssima Juiz a quo manifesta o entendimento que, para efeitos da verificação dos elementos do tipo criminal de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art.º 105.º do RGIT, necessário se torna discriminar no libelo acusatório todas as transações efetuadas pela sociedade arguida, bem como indicar a data de cada um desses pagamentos; 7- Contudo, tal posição é contrária ao disposto no art.º 105.º, n.ºs 1 e 7, do RGIT, em conjugação com os artigos 41º, n.º 1, alínea a), e 29.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código do IVA, que afirmam que a não entrega de valor superior a 7.500,00 € tem por referência os valores que devam constar de cada declaração periódica do IVA a apresentar à Autoridade Tributária; 8- Os factos objetivos do tipo legal são os apuramentos globais mencionados em cada declaração periódica do IVA, sendo estes que devem constar na acusação pública, não sendo pois elemento do tipo cada uma das transações económicas efetuadas pelo operador económico; 9- O elemento típico do recebimento terá correlativamente de corresponder aos montantes globais de imposto recebidos até ao termo do prazo legalmente disposto para a entrega da prestação tributária; 10- Ao contrário do entendimento expresso pela meritíssima Juiz a quo os factos relativos ao apuramento global, seja do IVA apurado a favor do Estado, seja do efetivo recebimento, são concretos, diretos e individualizados, tendo por referência os somatórios da totalidade do imposto liquidado e a totalidade do imposto efetivamente recebido até à data limite de entrega; 11- Aferir se esses factos de apuramento global, com base em somatórios, se encontram devidamente enquadrados e calculados, pertencem à questão da apreciação e validação da prova, documental e testemunhal, oportunamente carreada e produzida nos autos; 12- Ainda que se considerasse, tal como fez a meritíssima Juiz a quo, que cada uma das transações económicas e dos seus recebimentos devessem constar na acusação, e sendo certo que, nessa perspetiva, tais factos assumiam relevo para a decisão a proferir, deveria a meritíssima Juiz a quo ter dado cumprimento ao art.º 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, pois é certo que toda a prova documental correspondente já se mostrava constituída nos autos; 13- Ao não o ter feito, entende implicitamente a meritíssima Juiz a quo que o art.º 358.º, n.º 1, do CPP, não se aplica a factos relevantes à boa decisão da causa; 14- Uma livrança ou uma letra de câmbio são títulos de crédito, de modalidade cartular, à ordem do seu portador, com características de literalidade, abstração, independência recíproca e de autonomia da obrigação, pela qual um sacador determina a um sacado o pagamento, a si ou a um terceiro tomador, de um determinado valor pecuniário. 15- A letra é uma ordem de pagamento expressa por escrito que visa permitir ao credor a antecipação do recebimento do seu crédito, em momento anterior ao prazo do cumprimento da obrigação, através do seu desconto em entidade bancária ou através do seu endosso a uma terceira entidade; 16- A nível contabilístico, por se alterar a natureza do crédito, quando o pagamento é efetuado através de letra, o correspondente valor sai da conta 211 clientes c/c), dando-se assim por integralmente recebido o respetivo valor, e colocado na conta 212 - clientes título a receber; 17- Com o efetivo recebimento da letra, e da sua disponibilidade para ser colocada no comércio jurídico cambiário, comprova-se o efetivo recebimento da transação económica originária; 18- Os pontos a. a e. dos factos dados como não provados encontram-se incorretamente julgados pois, por via documental de natureza tarifada, de âmbito direto, claro e objetivo, nomeadamente através de elementos recolhidos junto dos clientes e da contabilista da arguida pessoa coletiva; 19- Ponto a.: A folhas 187 a 200, 207 a 209, 216 a 224, 229 a 231 e 268 a 270, que a sociedade arguida efetivamente recebeu dos seus clientes, através de letras e cheques, por referência ao período de imposto referente ao mês de Outubro de 2012 e até ao dia 12/12/2012, o montante global de imposto de € 21.469,15; 20- Ponto b.: A folhas 236 a 237 e 376, que a sociedade arguida efetivamente recebeu dos seus clientes, através de letras e numerário, por referência ao período de imposto referente ao mês de Outubro de 2012 e até ao dia 10/01/2013, o montante global de imposto de € 22.868,54; 21- Ponto c.: A folhas 238, que a sociedade arguida efetivamente recebeu da sua cliente, através de letras, por referência ao período de imposto referente ao mês de Fevereiro de 2013 e até ao dia 10/04/2013, o montante global de imposto de € 16.658,78; 22- Ponto d.: A folhas 451, que a sociedade arguida efetivamente recebeu da sua cliente, através de letras, por referência ao período de imposto referente ao mês de Março de 2013 e até ao dia 10/05/2013, o montante global de imposto de € 19.497,92; 23- Ponto e.: A folhas 666/667 e 743, que a sociedade arguida efetivamente recebeu da sua cliente, através de letras, por referência ao período de imposto referente ao mês de Maio de 2013 e até ao dia 10/07/2013, o montante global de imposto de € 36.023,59. 24- Os pontos f. e g. dos factos dados como não provados encontram-se incorretamente julgados, face ao teor de folhas 774 a 780 (extrato informático do teor comercial da sociedade arguida), e pelos motivos melhor invocados nos pontos 2 a 5 destas conclusões; 25- Os pontos h. a k. dos factos dados como não provados decorrem, essencialmente, dos factos que acima se impugnaram, pelo que, dando-se os mesmos como provados, deverão, em consequência, serem estes também dado como provados. Pelo exposto, deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que condene os arguidos A…., Ld.ª, MG, CG e DL, pela prática, em coautoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art.º 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, do RGIT e art.º 30.º, n.º 2, do Código Penal”. * Os arguidos não responderam ao recurso. Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso dever proceder, na esteira da fundamentação apresentada pelo Emº Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta. Colhidos os vistos legais, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO. 1 - Delimitação do objeto do recurso. Tendo em conta as conclusões acima enunciadas, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, é apenas uma a questão que vem suscitada no presente recurso: a fixação da matéria de facto. 2 - A decisão recorrida. A sentença revidenda é do seguinte teor (integral): “I. Relatório O Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, contra “A…., Lda.”; MG; CG; DL (arguidos, todos melhor identificados nos autos), imputando: À sociedade arguida, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, e 7.º/1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT); aprovado pela Lei 15/2001, de 5-06, e artigo 30.º/2 do Código Penal; e Aos demais arguidos, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 105.º/1, 4 e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 5-06, e artigo 30.º/2 do Código Penal. O arguido DL apresentou contestação, advogando, em súmula, pela sua absolvição, uma vez que nunca exerceu de facto a gerência da sociedade arguida “A”, praticando atos atinentes a essa função, exclusivamente cometida ao arguido MG, e, como tal, nunca teve qualquer intervenção no não pagamento do valor do IVA em causa. Arrolou prova testemunhal. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com a observância do formalismo legal, como melhor consta das respetivas atas. Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância, não ocorrendo quaisquer nulidades, exceções ou questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa. II. Fundamentação De Facto Factos Provados: Com relevo à boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos: 1. “A., Lda.”, pessoa coletiva n.º---, com sede na Rua …- Alcanena, tem como objeto social o comércio por grosso de peles e couros, curtimenta e acabamentos, importação e exportação de peles e couros, a que corresponde o CAE 15110-R3. 2. Desde a data da sua constituição, registada em 01/10/2008, e até ao dia 10/10/2013, vinculava-se com a intervenção de dois gerentes, estando nomeados nessa qualidade os arguidos MG, CG e DL. 3. O arguido DL renunciou à gerência da sociedade arguida em 28/05/2013, a arguida CG renunciou à gerência em 15/09/2013. 4. E, desde o dia 10/10/2013, a gerência da sociedade arguida está cometida ao arguido MG, vinculando-se apenas com a sua intervenção. 5. No exercício da atividade referida em 1., a sociedade arguida estava obrigada a enviar mensalmente à Autoridade Tributária e Aduaneira a declaração a que se reportam os artigos 41.º, n.º 1, al. a), e 29.º, n.º 1, al. c), do CIVA, donde constassem as operações efetuadas no decurso desse período, com indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviam de base ao respetivo cálculo. 6. Bem como a entregar nos cofres da Autoridade Tributária Aduaneira o valor do imposto devido, apurado nos termos do CIVA. 7. Durante o mês de Outubro do ano de 2012, no exercício da referida atividade comercial, a sociedade arguida realizou operações comerciais tributáveis, através de vendas e serviços prestados a diversos clientes e, consequentemente, foi submetida no dia 05/12/2012, por via eletrónica, a correspondente declaração periódica do IVA, onde consta o valor a entregar ao Estado de € 19.133,72. 8. Contudo, a sociedade arguida não procedeu ao envio ao credor tributário do respetivo meio de pagamento do imposto no prazo legalmente fixado para o efeito, designadamente até ao dia 20/12/2012. 9. Durante o mês de Novembro do ano de 2012, a sociedade arguida realizou operações comerciais tributáveis, através de vendas e serviços prestados a dois dos seus clientes e, consequentemente, foi submetida no dia 07/01/2013, por via eletrónica, a correspondente declaração periódica do IVA, onde consta o valor a entregar ao Estado de € 8.380,43. 10. Contudo, a sociedade arguida não procedeu ao envio ao credor tributário do respetivo meio de pagamento do imposto no prazo legalmente fixado para o efeito, designadamente até ao dia 10/01/2013. 11. Durante o mês de Fevereiro do ano de 2013, a sociedade arguida realizou operações comerciais tributáveis, através de vendas e serviços prestados a um dos seus clientes e, consequentemente, foi submetida no dia 03/04/2013, por via eletrónica, a correspondente declaração periódica do IVA, onde consta o valor a entregar ao Estado de € 8.165,23. 12. Contudo, a sociedade arguida não procedeu ao envio ao credor tributário do respetivo meio de pagamento do imposto no prazo legalmente fixado para o efeito, designadamente até ao dia 10/04/2013. 13. Durante o mês de Março do ano de 2013, a sociedade arguida realizou operações comerciais tributáveis, através de vendas e serviços prestados a dois dos seus clientes e, consequentemente, foi submetida no dia 03/05/2013, por via eletrónica, a correspondente declaração periódica do IVA, onde consta o valor a entregar ao Estado de € 12.958,08. 14. Contudo, a sociedade arguida não procedeu ao envio ao credor tributário do respetivo meio de pagamento do imposto no prazo legalmente fixado para o efeito, designadamente até ao dia 10/05/2013. 15. Durante o mês de Maio do ano de 2013, a sociedade arguida realizou operações comerciais tributáveis, através de vendas e serviços prestados a um dos seus clientes e, consequentemente, foi submetida no dia 09/07/2013, por via eletrónica, a correspondente declaração periódica do IVA, onde consta o valor a entregar ao Estado de € 26.827,18. 16. Contudo, a sociedade arguida não procedeu ao envio ao credor tributário do respetivo meio de pagamento do imposto no prazo legalmente fixado para o efeito, designadamente até ao dia 10/07/2013. 17. Os arguidos MG e “A”, para além de não terem feito o pagamento dos valores das prestações tributárias aludidas até aos termos dos prazos legalmente dispostos, continuaram a não proceder à sua entrega, quer dentro dos noventa dias após os termos dos prazos legais, quer dentro dos trinta dias após notificações para o efeito. Resultaram ainda evidenciados os seguintes factos: 18. A sociedade arguida está inativa e apresenta uma dívida à Autoridade Tributária no valor global de € 683.202,43. Tem os seguintes antecedentes criminais: - Por sentença judicial datada de 2012/06/26, transitada em julgado a 2012/09/11, proferida no PCS n.º ---/11.7IDSTR da Secção Única do Tribunal Judicial de Alcanena, a arguida foi condenada, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 24.º do DL n.º 20-A/90 e DL n.º 394/93, de 24-11, ocorrido a 2010/09, na pena de multa de 250 dias, à taxa diária de € 20, perfazendo o total de € 5.000, ainda não declarada extinta; - Por sentença judicial datada de 2015/11/20, transitada em julgado a 2016/01/05, proferida no PCS n.º ---/12.6TAACN do Juízo Criminal de Torres Novas - Comarca de Santarém -, a arguida foi condenada, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, ocorrido a 2009/07/01, na pena de multa de 300 dias, à taxa diária de € 8, perfazendo o total de € 2.400, ainda não declarada extinta. 19. O arguido MG é licenciado em gestão de empresas e exerce a atividade de empresário. Aufere o rendimento mensal de € 660 (seiscentos e sessenta euros). Vive com a mãe. Paga uma prestação mensal ao banco no valor de € 250 (duzentos e cinquenta euros), por conta de um empréstimo contraído para aquisição da habitação. Ajuda pontualmente o seu filho com 20 anos e ainda estudante, que vive com a mãe. Entre outros, tem os seguintes antecedentes criminais: - Por sentença judicial datada de 2008/11/13, transitada em julgado a 2008/12/16, proferida no PCC n.º ---/04.4IDSTR da Secção Única do Tribunal Judicial de Alcanena, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 24.º do DL n.º 20-A/90 e DL n.º 394/93, de 24-11, ocorrido a 2003/07/01, na pena de prisão de 15 meses, substituída por 450 horas de trabalho a favor da comunidade, já extinta pelo cumprimento; - Por sentença judicial datada de 2012/06/26, transitada em julgado a 2012/09/11, proferida no PCS n.º --/11.7IDSTR da Secção Única do Tribunal Judicial de Alcanena, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 24.º do DL n.º 20-A/90 e DL n.º 394/93, de 24-11, ocorrido a 2010/09, na pena de prisão de 6 meses, substituída por 180 dias de multa, à taxa diária de € 14, perfazendo o total de € 2.520, já extinta pelo cumprimento; - Por sentença judicial datada de 2013/07/03, transitada em julgado a 2013/09/18, proferida no PCS n.º ---/12.9TAACN da Secção Única do Tribunal Judicial de Alcanena, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, ocorrido a 2012/01/30, na pena de prisão de 18 meses, substituída por 480 horas de trabalho a favor da comunidade, já extinta pelo cumprimento; - Por sentença judicial datada de 2015/11/20, transitada em julgado a 2016/01/05, proferida no PCS n.º ---/12.6TAACN do Juízo Criminal de Torres Novas - Comarca de Santarém -, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, ocorrido a 2009/07/01, na pena de prisão de 22 meses, suspensa na sua execução por 5 anos, com a condição de pagar à Segurança Social o valor de € 52.718,32 durante o prazo da suspensão, devendo metade do valor ser pago no prazo de 2 anos e 6 meses, ainda não declarada extinta. 20. CG estudou até ao 9.º ano de escolaridade. Exerce a atividade de operadora de curtumes, auferindo o salário mensal de € 1.000 (mil euros). Vive sozinha em casa própria. Não tem encargos fixos mensais. Não tem antecedentes criminais. 21. DL concluiu o 12.º ano e, ingressando no Ensino Superior, frequentou o 3.º ano do Curso de Informática e Gestão. Exerce a atividade de empresário, auferindo o vencimento mensal de € 600 (seiscentos euros). A sua esposa é enfermeira e aufere mensalmente cerca de € 1.000 (mil euros). Tem duas filhas, com 4 e 7 anos de idade. Paga mensalmente uma prestação mensal ao banco de € 600 (seiscentos euros). Tem os seguintes antecedentes criminais: - Por sentença judicial datada de 2008/11/13, transitada em julgado a 2008/12/16, proferida no PCC n.º ---/04.4IDSTR da Secção Única do Tribunal Judicial de Alcanena, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 24.º do DL n.º 20-A/90 e DL n.º 394/93, de 24-11, ocorrido a 2003/07/01, na pena de prisão de 12 meses, substituída por 360 horas de trabalho a favor da comunidade, já extinta pelo cumprimento; - Por sentença judicial datada de 2012/06/26, transitada em julgado a 2012/09/11, proferida no PCS n.º --/11.7IDSTR da Secção Única do Tribunal Judicial de Alcanena, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 24.º do DL n.º 20-A/90 e DL n.º 394/93, de 24-11, ocorrido a 2010/09, na pena de prisão de 6 meses, substituída por 180 dias de multa, á taxa diária de € 10, perfazendo o total de € 1.800, já extinta pelo cumprimento; - Por sentença judicial datada de 2013/07/03, transitada em julgado a 2013/09/18, proferida no PCS n.º ---/12.9TAACN da Secção Única do Tribunal Judicial de Alcanena, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, ocorrido a 2012/01/30, na pena de prisão de 15 meses, substituída por 450 horas de trabalho a favor da comunidade, já extinta pelo cumprimento. Factos não provados a. Que a sociedade arguida tenha recebido por parte dos seus clientes, até 12/12/2012, o montante global de imposto de € 21.469,15; b. Que a sociedade arguida tenha recebido por parte dos seus clientes, até 10/01/2013, o montante global de imposto de € 22.868,54; c. Que a sociedade arguida tenha recebido por parte dos seus clientes, até 10/04/2013, o montante global de imposto de € 16.685,78; d. Que a sociedade arguida tenha recebido por parte dos seus clientes, até 10/05/2013, o montante global de imposto de € 19.497,92; e. Que a sociedade arguida tenha recebido por parte dos seus clientes, até 10/07/2013, o montante global de imposto de € 36.023,59; f. Que até 15/09/2013 competisse à arguida CG cuidar, vigiar e supervisionar os efetivos pagamentos dos impostos devidos à Fazenda Nacional; g. Que até 28/05/2013 competisse ao arguido DL cuidar, vigiar e supervisionar os efetivos pagamentos dos impostos devidos à Fazenda Nacional; h. Que o arguido MG, em seu interesse e por conta e no interesse da arguida “A”, tenha agido com a intenção de obter para si e para a sua representada benefícios que sabia indevidos, à custa da defraudação da Fazenda Nacional, pois embora soubesse que tinha a obrigação de entregar nos cofres do Estado as quantias discriminadas e que as mesmas não lhes pertenciam, quis integrá-las no seu património e no da sua representada, fazendo-as destes, o que efetivamente conseguiu, delapidando o Estado nas importâncias correspondentes; i. Que os arguidos MG, CG e DL, ao não cuidarem de fiscalizarem e de atuarem para que a sua representada procedesse à entrega de tais verbas à Fazenda Nacional, previram como possível que as mesmas não fossem devidamente entregues, designadamente nos prazos legalmente impostos e conformaram-se com tais resultados; j. Que ao reiterarem as respetivas condutas, os arguidos MG, CG e DL agiram em espaço temporal próximo devido ao sucesso da sua primeira e das subsequentes atuações, de modo similar, vendo as suas condutas facilitadas pela demora na intervenção dos serviços da Administração Tributária. k. Que os arguidos MG, CG e DL, seja individualmente, seja em nome e no interesse da arguida “A”, agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. A restante matéria articulada na acusação pública e na contestação apresentada pelo arguido DL, configurando matéria de direito, conclusiva ou irrelevante para a decisão a proferir, porquanto prejudicada pela demais, não foi objeto de apreciação. Motivação O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido MG - exercendo os demais o direito ao silêncio -, nos depoimentos de testemunhas FG, FP, arroladas pela acusação, e VM e AA, indicadas no decurso da Audiência de Julgamento. O Tribunal ainda atendeu aos documentos juntos aos autos, a saber, os autos de notícia de fls.38, 55, 70, 85 e 597, extrato informático do teor comercial de fls. 774-780, extratos informáticos das declarações periódicas do IVA de fls. 52/52v.º, 67/67 v.º, 81/81 v.º, 97-98, 612-613, documentos contabilísticos de fls. 183-200, 203-209, 214-224, 227-231, 236-257, 260-263, 266-270, 273-276, 313-400, 402-453, 652-673, 708-740, notificações de fls. 151, 156, 163, 169, 280, 283, 286, 289, 302, 305, 308, 311, 635, 636, parecer de fls. 459-478 e 754-764, certidão de dívidas de fls. 809-856 e de fls. 1048-1126, tudo analisado em si, entre si, e de acordo com a experiência comum, bem como com os depoimentos das referidas testemunhas inquiridas, sendo que a testemunha DD não revelou conhecimento direto dos factos. O arguido MG, prendendo prestar declarações, fê-lo de forma espontânea, declarando ser ele o único sócio que exercia de facto a gerência da sociedade arguida, estando a irmã, a arguida CG afeta à área da produção, e o sócio DL à área comercial. Mais referiu que não beneficiou dos valores não entregues à Autoridade Tributária, tendo tudo feito para assegurar a manutenção da atividade da empresa, aludindo às dificuldades financeiras sentidas, originadas por créditos não pagos por clientes no valor global de cerca de € 400.000 (quatrocentos mil euros). Mais explicou, não conseguindo precisar as transações realizadas que deram lugar ao preenchimento das declarações periódicas do IVA remetidas, que, para além de não ter recebido parte dos respetivos valores, outros foram garantidos pela entrega de letras, não descontadas a ser favor no prazo que dispunha para pagar às Finanças. FG, inspetora tributária, apresentou-se de forma conhecedora, isenta e segura. Explicou os documentos em que sustentou a sua conclusão de não pagamento, pela sociedade arguida, do valor do IVA referente ao período de Maio de 2013, a propósito de transação efetuada com a sociedade “LP”, cujo valor, de acordo com a documentação desta sociedade surge como pago, contrariamente ao que resulta da documentação da sociedade arguida. Não foi segura na afirmação, quando questionada a respeito, se o valor da fatura em causa foi efetivamente pago e quando. VM, técnica de contabilidade, prestando serviços para a sociedade “LP”, através da sua entidade patronal “DICA”, de relevo, e pese embora não se recordasse da transação que deu lugar à operação fiscal de Maio de 2013 pela sociedade arguida, referiu que muitos dos pagamento das transações realizadas com esta, eram realizados através de letras e livranças endossadas por outros clientes. AA, técnica de contabilidade e prestadora de serviços, nessa qualidade, da sociedade arguida, através da sociedade “DICA”, desde 2008, disse não conhecer os arguidos CG e DL, uma vez que os assuntos foram sempre tratados com o sócio MG. Referiu saber da existência de dívidas por falta de pagamento de IVA, causada por falta de liquidez, que, por sua vez, era causada por dificuldades de cobrança junto dos clientes. Não conseguindo fazer qualquer tipo de concretização quanto aos períodos temporais em causa, referiu que muitas vezes a sociedade arguida recebia letras para pagamento, dali a 90 dias, de produtos já faturados. Por último, disse desconhecer que o arguido MG tenha beneficiado de qualquer sociedade da sociedade, que atualmente está sem atividade. FP, inspetora tributária, e com conhecimento direto dos factos em discussão, de forma colaborante e esclarecedora, explicou os procedimentos que adotou na investigação realizada, aludindo aos períodos referidos na acusação, bem como a conclusão que extraiu que os valores faturados e que deram lugar ao imposto do IVA foram recebidos pela sociedade arguida. Contudo, quando questionada a respeito, não foi capaz de asseverar quais os valores efetivamente pagos e em que momentos. Esclareceu que da investigação feita, o único sócio gerente com intervenção de facto na gerência era o arguido MG, estando os demais arguidos CG e DL adstritos à área de produção e comercial, respetivamente. No que concerne à situação socio/profissional e familiar dos arguidos, o Tribunal atendeu às declarações prestadas pelos próprios, as quais não mereceram reparo, atenta a forma singela e espontânea com que sucederam. Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal teve em consideração os certificados de registo criminal dos arguidos juntos a fls. 1025-1045 e 1128-1130. De Direito À sociedade arguida é imputada, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º/1 e 105.º/1, 4 e 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho e com a redação conferida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31-2, e artigo 30.º/2 do Código Penal; e aos demais arguidos é imputada, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 105.º/1, 4 e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho e com a redação conferida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31-2 e artigo 30.º/2 do Código Penal. Nos termos do disposto no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa: 1. O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. 2. Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes. 3. Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei. Assente neste comando legal, entendeu o legislador instituir mecanismos repressores e punitivos com vista à cobrança das receitas necessárias à prossecução do bem-estar social. É neste contexto que surge o RGIT, assim como os diplomas legais atinentes, que lhe antecederam, e que aquele veio revogar. Assim, a obrigação do pagamento de um imposto emerge da lei, e, independentemente da sua natureza, apresenta-se como obrigatório. Ou seja, partindo do pressuposto de que não se verifica uma causa de isenção, ninguém se pode escusar ao pagamento dos impostos. No que respeita, concretamente, ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) este visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, sendo, porém, a base tributável limitada ao valor acrescentado em cada fase, e tem como sujeito ativo o Estado e como sujeito passivo todas as pessoas singulares ou coletivas que, com carácter de habitualidade, exerçam transações de produtos em geral, desde a produção ao retalho, repercutindo-se o mesmo no consumidor final (vide o texto do preâmbulo do Código do IVA - CIVA). Sendo, de resto, esta ideia que se encontra contemplada no artigo 7.º do CIVA, onde se lê 1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, o imposto é devido e torna-se exigível: a) Nas transmissões de bens, no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente; b) Nas prestações de serviços, no momento da sua realização; c) (…). Nos termos do disposto no artigo 8.º do CIVA, sempre que a transmissão de bens ou serviços dê lugar à obrigação de emitir uma fatura ou documento equivalente, nos termos do artigo 29.º, o imposto torna-se exigível, em princípio, no momento da respetiva emissão, e como em qualquer outro imposto, há que proceder ao correspondente lançamento, a fim de apurar o montante da prestação tributária. Tal lançamento, como estatui o artigo 22.º do mesmo diploma legal, compete, em princípio, aos próprios sujeitos passivos, na declaração periódica que são obrigados a apresentar aos serviços fiscais. Os sujeitos passivos - que no dizer do CIVA são os contribuintes - que intervêm na cadeia económica, não suportam qualquer imposto, atuam, sim, como “agentes de coleta”, a quem se impõe o dever de autoliquidarem o tributo e o pagarem aos Cofres do Estado, impondo-se-lhes, igualmente, a obrigação de repercutirem o tributo com o intuito de se atingir o consumidor final, que se apresenta como o destinatário de tal imposto. Os sujeitos passivos do imposto são, em face do disposto no artigo 2.º/1, alínea a), do CIVA (…) as pessoas singulares ou coletivas que, de um modo independente e com carácter de habitualidade, exerçam atividade de produção, comércio ou prestação de serviços (...)”. Ou seja, o IVA configura um imposto instantâneo ou de obrigação única, que incide sobre atos ou factos isolados, sem carácter de continuidade, afigurando-se como um imposto indireto, no sentido de que logo que se verifica o elemento material – a transmissão do bem ou a prestação de serviço – surge a obrigação de pagamento do imposto. Para além do mais, regula o n.º 1 do art. 26.º do referido CIVA que, Sem prejuízo do disposto no regime especial referido nos artigos 60.º e seguintes, os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19.º a 25.º e 71.º, na Direção de Serviços de Cobrança do Imposto sobre o Valor Acrescentado, simultaneamente com as declarações a que se refere o artigo 40.º, ou noutros locais de cobrança legalmente autorizados. E, atento o disposto no artigo 40.º/1, Para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 28.º, a declaração periódica deve ser enviada por via postal ao Serviço de Administração do IVA, por forma que dê entrada nos seguintes prazos: a) Até ao dia 10 do 2.º mês seguinte àquele a que respeitam as operações, no caso de sujeitos passivos com um volume de negócios igual ou superior a € 498 797,90 no ano civil anterior; b) até ao dia 15 do 2.º mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitam as operações, no caso de sujeitos passivos com um volume de negócios inferior a € 498 797,90 no ano civil anterior. Nestes termos, a fixação prévia dos elementos pertinentes à tributação cabe, em princípio, ao sujeito tributário passivo, “Trata-se de um imposto de auto-lançamento e de auto-liquidação com inerente cobrança pelo mesmo sujeito e obrigação de entrega à Administração Fiscal. II - Toda esta atividade assenta numa relação de confiança entre o sujeito tributário passivo e a Administração fiscal e num dever de colaboração com verdade do mesmo sujeito perante esta mesma administração. (…)” (leia-se o Ac. STJ de 21/05/2003, consultável em www.dgsi.pt). Importa realçar que, atento o mecanismo de liquidação e cobrança do IVA, muito embora seja o contribuinte que cobra o valor referente ao IVA diretamente dos seus clientes, o dinheiro referente a esses impostos nunca pertence ao sujeito passivo, nunca integra o seu património, apesar de, contabilisticamente, dar entrada nos seus cofres. O contribuinte desse imposto apresenta-se, assim, como um fiel depositário dessas quantias, desde que elas lhe são entregues, até ao momento em que, posteriormente, as há de entregar ao Estado. Por outro lado, e no que contende com os crimes imputados aos arguidos, dispõe o artigo 105.º/1, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05-06, na redação em vigor à data da prática dos factos em apreciação nestes autos (Lei n.º 64-A/2008, de 31-12), que incorre na prática do crime abuso de confiança Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7.500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. E, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 11.º do RGIT, configura Prestação tributária: os impostos, incluindo os direitos aduaneiros e direitos niveladores agrícolas, as taxas e demais tributos fiscais ou parafiscais cuja cobrança caiba à administração tributária ou à administração da segurança social. Atento o disposto no n.º 2 do referido artigo 105.º, para os efeitos do n.º 1, considera-se, também, prestação tributária a que tiver sido deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. O bem jurídico protegido com as incriminações fiscais é o património fiscal do Estado. Mas a dignidade punitiva da violação dos deveres fiscais tem como pressuposto normativo o reconhecimento de deveres de verdade e de lealdade fiscal do contribuinte, no sentido de este dever colaboração à administração fiscal como forma de tornar possível a realização das políticas distributivas de correção das desigualdades, tendo em vista uma sociedade mais justa e mais ordenada. Ou seja, o dever fiscal constitui o fundamento ético da incriminação, constituindo, os deveres de colaboração do contribuinte, um dever técnico instrumental à realização daquele valor. No crime de abuso de confiança fiscal, “o que está em causa é a proteção do regular funcionamento do sistema fiscal e, com ele, a necessidade de assegurar finalidades mais profundas para lá da mera tutela do património, como a reparação igualitária da riqueza e dos rendimentos, da diminuição das desigualdades através do desenvolvimento económico e da justiça social” – leia-se, a respeito, o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25.11.2002, disponível in www.dgsi.pt. Por seu lado, constituem elementos objetivos do crime de abuso de confiança fiscal: (i) a obrigação de entrega pelo agente ao credor tributário; (ii) a dedução ou recebimento da prestação tributária pelo agente, nos termos da lei; e (iii) a não entrega, no tempo devido, da prestação tributária. Acrescentando-se, nos termos sufragados pelo AUJ n.º 8/2015, de 02/06, publicado no Diário da República n.º 106/2015, Série I, de 02/06, com o qual partilhamos inteiramente o entendimento aí consagrado, que, tendo o crime de abuso de confiança fiscal como um dos seus elementos objetivos a dedução ou o recebimento da prestação tributária, o devedor tributário só pratica tal crime se tiver recebido o montante da prestação tributária, ou seja, se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente. Isto é, a omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105º/1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efetivamente, recebido. Por outro lado, tal conduta só é punível se a prestação comunicada à administração tributária, através da correspondente declaração, não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito - alínea b) do referido n.º4 do art.º 105.º do RGIT. Trata-se de uma condição objetiva de punibilidade e o pressuposto processual contende com o próprio direito substantivo, pois a sua teleologia e as intenções jurídico-criminais que lhe presidem estão relacionadas com a efetivação de punição, onde encontram a sua razão de ser, devendo ser dado o tratamento mais favorável. No que concerne ao tipo subjetivo do crime de abuso de confiança fiscal, basta que o dolo assuma qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, ex vi artigo 3.º, alínea a), do RGIT, dirigido à lesão da relação de confiança e à apropriação das quantias. Importa, ainda, atentar no preceituado no artigo 6.º/1, do R.G.I.T., nos termos do qual, quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa coletiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado ou que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante atue no interesse do representado. Pretende-se, com este normativo legal, estender a punibilidade dos tipos legais que supõem uma atuação no próprio interesse àquelas pessoas em que tais elementos típicos se não verificam, mas que, todavia, atuaram como órgãos ou representantes de uma pessoa relativamente à qual se verificaram aqueles elementos pessoais ou aquele interesse próprio. Assim, o agente deve ser tratado como se, efetivamente, se verificassem, nele, certas características especiais exigidas pelo tipo. Provando-se que o titular de um órgão, membro ou representante da pessoa coletiva agiu em nome, no interesse e por conta desta, fazendo-o de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de se subtrair ao cumprimento das obrigações fiscais, estende-se-lhe a punibilidade do tipo legal, ficcionando a lei a apropriação. Bastará que o agente se encontre investido num poder que lhe dá a possibilidade de desencaminhar ou dissipar o bem, e o faça, integrando com a sua conduta omissiva o tipo incriminador. Acresce que, dispõe o artigo 7.º/1, do R.G.I.T., que as pessoas coletivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infrações nele previstas quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse coletivo, só assim não ocorrendo, conforme se dispõe no n.º 2 do mesmo normativo, quando o agente tiver atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito. Mais se dispõe, no n.º 3, que a responsabilidade das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes. Posto isto, e revertendo ao caso em presença e face à factualidade apurada, subsistem dúvidas que os arguidos preencheram com as suas condutas os elementos típicos do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo RGIT. De facto, resultou provado que a sociedade arguida, que tem por objeto o comércio por grosso de peles e couros, curtimenta e acabamentos, importação e exportação de peles e couros, encontrava-se enquadrada no regime de periodicidade mensal para efeitos de IVA, e que, nos períodos em referência (Outubro de 2012, Novembro de 2012, Fevereiro de 2013, Março de 2013 e Maio de 2013), o arguido MG detinha o poder de decisão, quer no domínio da gestão industrial, quer financeira da sociedade, estando dele dependentes os pagamentos a realizar à Administração Fiscal e cumprimento das demais obrigações que a sociedade “A., Lda.” constituísse. Mais se provou que, nesses períodos, através da atuação do referido arguido, foi liquidado IVA a clientes da sociedade, com quem foram encetadas transações comerciais. Sucede que, e porque sequer concretamente articulado na acusação pública - em torno da qual se produz a prova -, desconhecem-se quais os concretos clientes que transacionaram com a sociedade arguida nesses períodos de tempo (pese embora se tenha aludido no decurso da produção da prova, à sociedade “Lançar Prestígio” no que respeita ao período de Maio de 2013), as faturas que subjazeram tais transações, os montantes por eles efetivamente pagos à sociedade arguida e em que datas é que esta recebeu os valores do respetivo IVA. Destarte, pese embora existam nos autos elementos contabilísticos que espelham a existência de transações comerciais entre a sociedade arguida e clientes nos períodos em causa, de acordo com as quais foram preenchidas e remetidas as declarações periódicas em análise, desconhece-se se esses clientes entregaram à sociedade arguida os valores correspondentes ao IVA devido, assim como, em caso de resposta afirmativa, se o fizeram no período em que aquela estava obrigada a entregar à Autoridade Tributária os referidos valores. As testemunhas inquiridas a respeito, com relevo para as inspetoras tributárias com intervenção direta na investigação dos factos em causa, entre o mais confirmado e que se deu como provado em conformidade, não foram capazes de o asseverar com a segurança necessária. E da análise cruzada dos diversos elementos contabilísticos juntos aos autos também não se mostrou possível aferir tal facto, uma vez que, conforme declarado pelo arguido MG e confirmado pela técnica oficial de contas da sociedade, AA, parte das transações realizadas não foram pagas pelos clientes, sendo que outras foram garantidas por meio de títulos cambiários (letras e livranças), cujo pagamento não foi de imediato e na totalidade satisfeito. Ora, todo este manancial de factos, porquanto constitutivos do crime em causa, e subsequente prova, era essencial para que se pudesse ajuizar com o rigor que se impõe que a sociedade “A”, através do seu sócio gerente MG, recebeu dos seus clientes até às datas em que o IVA era devido o montante global do imposto comunicado nas declarações periódicas remetidas. Neste sentido, consulte-se, a título exemplificativo, o Ac. Rel. Évora, datado de 07/04/2015, relatado por Martinho Cardoso, no Proc. nº 159/12.4ISSTB.E1, de acordo com o qual e com palavras nossas, a acusação deve conter, ainda que de forma sintética, a descrição dos factos de que o arguido é acusado, efetuada discriminada e precisamente com relação a cada um dos atos constitutivos do crime, pelo que se hão de mencionar todos os elementos da infração e quais os factos que o arguido realizou, sem imprecisões ou referências vagas - não bastando pois, conforme se observa no caso concreto, uma referência genérica ao montante constante das declarações periódicas de IVA, devendo elencar-se as faturas que preenchem aqueles montante e, mais do que isso, os pagamentos realizados, a fim de, inclusivamente, aferir se chegam a atingir o limiar dos € 7.500 a partir do qual o facto passa a constituir crime. Não ficou provado, pois, mesmo que sob alegação genérica (repita-se), que a sociedade arguida não procedeu ao envio ao credor tributário do respetivo envio de pagamento do imposto no prazo para o efeito legalmente fixado, não obstante ter recebido por parte dos seus clientes até esse data o montante global do imposto. Mais não se provou que os arguidos CG e DL, na qualidade de sócios gerentes da sociedade arguida, sabiam que era sua obrigação entregar à Fazenda Nacional, proceder ao pagamento daquela quantia liquidada a título de IVA, sendo que, conforme reconhecido por todas as testemunhas arroladas, dos documentos juntos aos autos remetidos à Inspeção Tributária pelos clientes da sociedade, e declarado pelo arguido MG, aos mesmos, funcionalmente, não incumbia cuidar de fiscalizar e atuar para que a sua representada procedesse à entrega dos impostos à Fazenda Nacional, estando adstritos, ao invés, à área fabril e comercial, respetivamente. Nesta senda, constata-se que não estão verificados todos os elementos objetivos do tipo de ilícito em questão, sendo que os arguidos CG e DL nunca poderiam ser responsabilizados pelo seu cometimento, atenta a natureza das funções que desempenhavam na sociedade, não consentâneas com a sua gestão de facto, cometida esta em exclusivo ao sócio arguido MG. Por outro lado e face ao exposto, o elemento subjetivo do crime de abuso de confiança fiscal mostra-se também não verificado, prejudicada que fica a sua análise mais profunda face à não constatação do elemento objetivo. Impõe-se, por conseguinte, absolver todos os arguidos da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelas disposições legais contidas no artigo 105.º/1, 2, 4 e 7, e artigo 7.º, todos do RGIT, e artigo 30.º/2 do C.P., pelo qual vinham acusados. III. Das Custas Processuais Nos termos do disposto nos artigos 513.º e 514.º, ambos do C.P.P., o arguido condenado em 1.ª instância é responsável pelo pagamento dos encargos processuais e da taxa de justiça, sendo o respetivo quantitativo fixado nos termos do artigo 8.º/5 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais. Atendendo à absolvição dos arguidos, não há lugar ao pagamento de custas. IV. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a acusação pública improcedente, e, em conformidade: 1. Absolvo “A…, Lda.”; MG; CG e DL, todos arguidos melhor identificados nos autos, da prática, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º/1, 4 e 7 (e artigo 7.º, quanto à sociedade), do RGIT, e artigo 30.º/2 do C.P. 2. Sem custas - artigo 513.º do CPP. 3. Os TIRs prestados cessam de imediato - artigo 214.º/1, d) do CPP. Notifique e deposite”. 3 - Apreciação do mérito do recurso - impugnação da matéria de facto. Entende o Emº Magistrado do Ministério Público recorrente, em breve resumo, e na parte relevante, que o tribunal a quo devia ter dado como provado que os arguidos receberam, efetivamente, os pagamentos (dos produtos faturados) por conta dos quais deviam ter entregado ao Estado o respetivo IVA, e que todos os arguidos são responsáveis por tal omissão de entrega. Com o devido respeito pelo esforço argumentativo constante da motivação do recurso, não assiste razão ao Emº Magistrado do Ministério Público recorrente. Senão vejamos. 1º - A este tribunal de recurso cabe verificar se a decisão recorrida fundamentou a sua decisão fáctica de forma consistente, lógica e racional, e de acordo com as regras da experiência comum, isto é, se a opção decisória tomada em primeira instância se mostra convincente do ponto de vista da lógica interna da explicitação da sua motivação, referindo criticamente os meios de prova decisivos para a formação da respetiva convicção, e se a mesma se mostra consentânea com as máximas, os princípios e os ensinamentos da vida (se respeita a lógica normal das coisas). Ora, analisando a decisão revidenda à luz destes considerandos, nada há a censurar-lhe. 2º - Nenhuma das provas concretas indicadas pelo Emº Magistrado do Ministério Público recorrente “impõe” decisão diversa da recorrida, designadamente quanto à questão fáctica (que consideramos essencial) relativa a saber se os arguidos receberam, ou não, dos respetivos clientes, os pagamentos dos produtos vendidos (e faturados) - operações de venda por conta das quais deviam ter entregado ao Estado o respetivo IVA -. Na verdade, e conforme bem se assinala na decisão revidenda, desconhecem-se quais os concretos clientes que transacionaram com a sociedade arguida nos períodos de tempo em discussão, quais são as faturas que subjazem a tais transações, e, sobretudo, não se sabe, com o mínimo de certeza e de segurança, se os aludidos clientes pagaram (ou não) à sociedade arguida os montantes por eles devidos, e em que datas, e se, por isso, eram (ou não) devidos os valores do respetivo IVA. Em resumo: desconhece-se se os referidos clientes entregaram à sociedade arguida os valores correspondentes ao IVA devido. 3º - Nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para Uniformização de Jurisprudência nº 8/2015, de 02/06 (in D.R. nº 106/2015, 1ª Série, de 02-06-2015) - em relação ao qual não temos qualquer motivo para divergir -, tendo o crime de abuso de confiança fiscal como um dos seus elementos objetivos a dedução ou o recebimento da prestação tributária, o devedor tributário só pratica tal crime se tiver recebido o montante da prestação tributária, ou seja, se esta lhe tiver sido entregue pelo cliente respetivo. Por outras palavras: para a verificação dos elementos objetivos do crime em análise exige-se que o agente tenha, efetivamente, recebido dos clientes o valor da contraprestação devida pelos produtos vendidos ou pelos serviços prestados, em relação aos quais deve proceder à entrega, ao Estado, do IVA respetivo. Ora, e repete-se, resulta claro da motivação da decisão fáctica constante da sentença sub judice que essa prova não foi feita, e nenhum elemento de prova indicado pelo Emº Magistrado do Ministério Público recorrente “impõe” (e não apenas permite ou aconselha) decisão diferente da recorrida - como é exigido pelo artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal -. Por último, resta dizer que, não existindo factualidade provada suficiente para integrar os elementos objetivos do crime objeto da acusação, nos termos acima assinalados, fica prejudicado (por preclusão) o conhecimento das demais questões objeto do recurso (todas elas relacionadas com a decisão fáctica tomada em primeira instância). Face ao predito, o recurso interposto pelo Ministério Público é de improceder. III - DECISÃO. Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso do Ministério Público, mantendo-se, consequentemente, a douta sentença recorrida. Sem custas, por o Ministério Público estar isento do seu pagamento. * Texto processado e integralmente revisto pelo relator. Évora, 10 de abril de 2018 __________________________________ (João Manuel Monteiro Amaro) _____________________________________ (Maria Filomena de Paula Soares) |