Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
885/04-2
Relator: RUI VOUGA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
CASO JULGADO
Data do Acordão: 11/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - Com a reforma do CPC de 1995/96 a legitimidade activa para embargar de terceiro deixou de estar vinculada à posse e para se fundar na titularidade dum direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência ofensiva (cfr. o art.º 351º, nº 1, do C.P.C. de 1995/96).
II – A sentença proferida nos embargos, transitada em julgado, tem, nos termos do disposto, no artº. 358º do C.P.C. (preceito introduzido ex novo pelo DL. nº 329-A/95) eficácia externa ao processo executivo porquanto aí se estabelece que “A sentença de mérito proferida nos embargos constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelo embargante ou por algum dos embargados, nos termos do nº 2 do artigo anterior”.
III- O alcance do caso julgado terá de ser aferido em função dos fundamentos dos embargos e assim :
- Se os embargos se fundarem em direito de fundo do terceiro, ficará assente a sua existência ou inexistência deste direito;
- Se a causa se mantiver no âmbito da posse, ficará assente que o terceiro era ou não possuidor do bem penhorado à data da penhora;
- Se for invocado em reconvenção o direito de propriedade (ou outro direito real de gozo) do executado, ficará assente que este é ou não o proprietário do bem penhorado (ou titular do direito real menor invocado)
Decisão Texto Integral:
Agravo nº 885/04-2
Acção Ordinária nº 93/2002 do 1º Juízo do TJ da Comarca de …..
ACÓRDÃO

Acordam na Secção Cível da Relação de ÉVORA:

ALZIRA ………., alegando, nuclearmente, ter adquirido, por usucapião, em 2 de Setembro de 1991, três fracções autónomas dum prédio urbano submetido ao regime da propriedade horizontal e sito na Rua ……., n°s 17, 19, 21 e 23, na freguesia de …….., do concelho de ………. sobre as quais o BANCO PORTUGUÊS DO ATLÂNTICO, S.A. (sociedade que depois se fundiu, por incorporação, com o BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A.) veio a registar a seu favor, em data (11FEV1994) posterior àquela, a penhora realizada no âmbito duma execução para pagamento de quantia certa que instaurou contra a sociedade “M…… & M….., Lda.”, propôs contra o BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A., na comarca de ……, acção declarativa com processo comum, na forma ordinária, pedindo:

a) que seja judicialmente declarado que a Autora adquiriu por usucapião as três fracções autónomas atrás identificadas;

b) que, ainda que assim não se decida, seja declarado que a Autora é proprietária plena das referidas fracções autónomas;

c) que se declare que a Autora e o Réu não são terceiros, para efeitos de registo;

d) que, em consequência, seja ordenado o cancelamento do registo de penhora que, a favor do Réu, onera as referidas fracções autónomas.

O Réu contestou, por excepção (invocando o caso julgado formado nos Embargos de Terceiro deduzidos pela ora Autora contra a referida execução para pagamento de quantia certa na qual foi realizada a penhora registada a favor do aqui Réu, embargos esses julgados improcedentes por Acórdão, já transitado em julgado, do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/1998, com base na inoponibilidade ao exequente/embargado da aquisição a favor da embargante, por ter sido registada posteriormente ao registo da penhora) e por impugnação (alegando, em síntese, que, como a causa da aquisição das referidas fracções pela Autora é a compra titulada por escritura pública celebrada em 15/12/78 e levada a registo em 22/11/94, a ora Autora não pode pretender ter adquirido originariamente, por usucapião, o que já antes havia adquirido derivadamente, pelo que improcede necessariamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade fundado na aquisição, por usucapião, das fracções em questão, com vista a afastar a prevalência da prioridade do registo da penhora no confronto com o registo da propriedade, prevalência essa definitivamente declarada por decisão judicial proferida ao abrigo de lei anterior e já transitada em julgado).

A Autora replicou, em resposta à excepção dilatória de caso julgado, pugnando pela improcedência da mesma (quer por os embargos de terceiro julgados improcedentes pelo referido Acórdão do STJ de 12/11/98, invocado pelo ora Réu, terem sido deduzidos na vigência da lei processual anterior à Reforma introduzida no CPC pelos Decretos-Leis nºs 329-A/95, de 12-XII, e 180/96, de 25-IX, em que os embargos de terceiro apenas se destinavam a defender a posse exercida sobre os bens penhorados sobre terceiros alheios à execução, não prevendo sequer aquela lei processual a formação de caso julgado material no âmbito dos embargos de terceiro, quer porque o pedido e a causa de pedir nos embargos de terceiro são claramente distintos do pedido e da causa de pedir na acção de reivindicação).

Findos os articulados, realizou-se audiência preliminar, na qual foi proferido despacho saneador que julgou procedente a excepção dilatória de caso julgado invocada pelo Réu e absolveu o mesmo da instância.

É deste despacho saneador que a Autora interpôs o presente recurso de agravo, formulando, a rematar as alegações que apresentou, as seguintes conclusões:
“I

1. Na presente acção de processo comum, pede a Autora que seja judicialmente declarado que ela, Autora, adquiriu por usucapião as três fracções autónomas identificadas nos autos, que havia comprado por escritura pública em 15/12/1978, mas sem que tivesse inscrito tal compra no registo predial.

2. Acessoriamente, e para a hipótese de o Tribunal não acolher esse pedido, pediu que por sentença fosse declarado que ela, autora, é proprietária plena das referidas fracções autónomas.

3. Pediu ainda que fosse declarado que a autora e o Réu não são terceiros, para efeitos de registo predial.

4. E pediu, por último, que fosse ordenado o cancelamento do registo de penhora que, a favor do Réu, onera as referidas fracções.
II

5. Contestando a acção, alegou o Réu que a questão submetida a juízo já se encontra definitivamente decidida e julgada, pelo que não pode voltar a ser apreciada "nem por este nem por nenhum outro tribunal".

6. E assim, porque, tendo o Banco nomeado à penhora, em execução movida contra terceiro, as três fracções autónomas em causa, a ora Autora havia deduzido embargos de terceiro, que vieram a ser julgados improcedentes pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 12 de Novembro de 1998, com fundamento no Acórdão de Jurisprudência Obrigatória n.° 15/97.

7. Em tais circunstâncias, sustenta o Réu, a questão decidida não pode voltar a ser apreciada judicialmente, não obstante a prolação de outro Acórdão do pleno do Supremo Tribunal de Justiça: o Acórdão n.° 3/99, de 18/05/99.

8. Mais alega o Réu que a causa de pedir na presente acção é precisamente a mesma que nos embargos de terceiro.
III

9. No despacho saneador, a Exma. Juiz do 1° Juízo de Lagos proferiu douta decisão, que absolve o Réu da instância, com fundamento na repetição da causa.

10. Segundo a Exma. Juiz, existe entre os embargos de terceiro e a presente acção não apenas identidade de sujeitos, mas também identidade de pedidos e identidade da causa de pedir (fls. 202/203)
IV

11. Ora, a causa de pedir nos embargos de terceiro (tal como este "meio possessório" era configurado desde o Código de 1939 até à reforma operada em 1996) é, sempre e só, a posse.

12. E foi efectivamente com base na posse que a embargante a configurou, inclusive requerendo a final o levantamento da penhora, "restituindo-se a embargante à sua posse" sobre as fracções B, F e G.

13. Consequentemente, a Exma. Juiz incorre em manifesta confusão, ao sustentar que existe entre as duas diligências judiciais (os embargos de terceiro e a presente acção ordinária) identidade de causa de pedir e identidade do pedido.

14. Deve, em consequência, o douto despacho saneador de fls. 199 a 203 ser revogado, com todas as legais consequências, ordenando-se o prosseguimento da presente acção até final.



O Réu/Agravado contra-alegou, pugnando pela improcedência do agravo e pela manutenção do despacho saneador recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



O MÉRITO DO RECURSO




Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintéctica, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem[1] [2] : efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 684º, nº 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art. 684º) [3] [4] . Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.

No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentada pela Agravante ALZIRA ……… que o objecto do presente recurso está circunscrito à questão de saber se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/1998, que julgou improcedentes os Embargos de Terceiro deduzidos pela ora Autora/Agravante contra a execução para pagamento de quantia certa na qual foi realizada a penhora registada, em 11FEV1994, a favor do aí exequente e aqui Réu/Agravado (com base na inoponibilidade ao exequente/embargado da aquisição a favor da aí embargante das três fracções autónomas objecto da aludida penhora, por ter sido registada posteriormente ao registo da aludida penhora), constitui caso julgado material impeditivo do conhecimento do mérito da causa na presente acção declarativa, em que a Agravante pede o reconhecimento de que ela adquiriu, por usucapião, as três fracções autónomas identificadas na p.i., bem como a declaração de que ela e o Réu não são terceiros, para efeitos de registo, e se ordene, consequentemente, o cancelamento do registo de penhora que, a favor do Réu/Agravado, onera as referidas fracções autónomas.



FACTOS PROVADOS



Estão provados documentalmente (por documentos dotados de força probatória plena) os seguintes factos, com relevância para o julgamento da procedência ou improcedência da excepção dilatória de caso julgado:



1) Na execução para pagamento de quantia certa instaurada por “Banco Português do Atlântico, S.A.” contra a sociedade “M…… & M……, Lda.”, que correu termos pelo 2° Juízo do TJ da Comarca de ……, sob o n° 129/92, o exequente nomeou à penhora, entre outros bens, três fracções autónomas do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, situado na Rua ……, n°s 17, 19, 21 e 23, na freguesia de………, do concelho de ……….. inscrito na matriz predial da mesma freguesia sob o artigo 2741º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ……….sob o numero 18391 a fls. 20 vº. do Livro B-49.



2) As fracções autónomas em causa são as seguintes:

a) Fracção designada pela letra "B", correspondente ao rés-do-chão, destinada a comércio, com entrada pela Rua Dr. António ……, n°s 21 e 23;

b) Fracção designada pela letra "F", correspondente ao primeiro andar, letra "C", destinada a habitação, com entrada pela Rua dos ……., n° 11; e

c) Fracção designada pela letra "G", formada pelo primeiro andar, letra "D", destinada a habitação, com entrada pela Rua dos ……., n° 11.



3) Ordenada a penhora, foi lavrado o respectivo termo, vindo a penhora a ser registada pela inscrição n° 8.697, a fls. 129 do Livro F-10, em 11/02/94;



4) A ora Autora adquiriu, por escritura pública de compra e venda celebrada em 15 de Dezembro de 1978 no Cartório Notarial de ………, as três fracções autónomas atras identificadas;



5) Porém, a inscrição da aquisição, a favor da aqui Autora, das três referidas fracções autónomas, só veio a ser feita com data de 22/11/94, a fls. 135 vº do Livro G-45;



6) Tendo a ora Autora, casualmente, tomado conhecimento da penhora aludida em 1), 2) e 3), em princípios de Novembro de 1994, deduziu atempadamente embargos de terceiro, por apenso à execução pendente na comarca de ……… sob o nº 129-E/92;



7) Na petição de embargos de terceiro, a embargante aqui Autora alegou, no essencial, ter adquirido a propriedade e posse de tais fracções anteriormente à penhora realizada na execução, exercendo a sua posse sobre as mesmas, ininterruptamente durante cerca de 17 anos com conhecimento geral e sem oposição de ninguém;



8) Por Acórdão, já transitado em julgado, do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/1998, os referidos embargos de terceiro foram julgados improcedentes, com base na inoponibilidade ao exequente/embargado da aquisição a favor da embargante, por ter sido registada posteriormente ao registo da penhora, uma vez que, sendo o embargado terceiro para os efeitos do n° 1 do art.° 5° do Código do Registo Predial, à luz do conceito de terceiro adoptado no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo pleno do Supremo Tribunal de Justiça em 20/5/1997 e publicado no D.R. Iª Serie-A, de 4/7/97 [5] , tal aquisição só produz efeitos em relação a ele depois da data do respectivo registo;


A EFICÁCIA DE CASO JULGADO, FORA DO PROCESSO EXECUTIVO,
DA SENTENÇA, DE PROCEDÊNCIA OU IMPROCEDÊNCIA,
PROFERIDA EM EMBARGOS DE TERCEIRO.



A procedência, a final, dos embargos de terceiro acarreta o levantamento da penhora, caso esta já tenha sido efectuada ou a definitiva não realização desta (se os embargos tiverem sido deduzidos a título preventivo, ainda antes da efectivação da penhora, mas já depois do despacho que a ordena, nos termos do artº. 359º do C.P.C. de 1995/96).

Põe-se, porém, o problema de saber se a sentença, de procedência ou de improcedência, dos embargos de terceiro terá eficácia de caso julgado fora do processo executivo.

Actualmente, isto é, após a entrada em vigor, em 1JANEIRO1997, da Reforma introduzida no C.P.C. pelos Decretos-Leis nºs 329-A/95, de 12-XII, e 180/96, de 25-IX, a lei processual reconhece, expressamente, no artº. 358º do C.P.C. (preceito introduzido ex novo pelo cit. DL. nº 329-A/95), a formação de caso julgado material nos embargos de terceiro, ao estatuir que: “A sentença de mérito proferida nos embargos constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelo embargante ou por algum dos embargados, nos termos do nº 2 do artigo anterior”.

«Como os embargos de terceiro visam obter o levantamento da penhora através da demonstração de um direito incompatível, poder-se-ia entender que a sua procedência ou improcedência não se estenderia àquele direito: é este entendimento que o artº 358º impede» [6] .

Este artº. 358º não veio senão consagrar explicitamente, no texto legal, o entendimento já anteriormente defendido, na doutrina, por LEBRE DE FREITAS [7] .

A fundamentação da solução adoptada está em que nem as garantias das partes, nem a complexidade da tramitação são inferiores, nos embargos de terceiro, às da acção declarativa com processo comum [8] .

Quanto ao âmbito do caso julgado formado pela sentença de procedência ou improcedência dos embargos de terceiro, como ele está «sujeito às regras gerais que presidem à delimitação subjectiva e objectiva da sua eficácia, será distinto consoante o fundamento dos embargos de terceiro e o facto de, quando baseados na posse, ter sido levantada, na contestação, a questão da propriedade» [9] .

Na verdade, uma das principais – senão mesmo a mais importante – das inovações introduzidas na configuração legal dos embargos de terceiro pela Reforma do Cód. Proc. Civil levada a cabo em 1995/1996 pelos Decretos-Lei nºs 329-A/95, de 12-XII,e 180/96, de 25-IX, foi a que consistiu na desvinculação da legitimidade activa para embargar de terceiro da posse, ao admitir-se que os embargos deixem de poder basear-se exclusivamente na posse para se poderem fundar na titularidade dum direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência (cfr. o art.º 351º, nº 1, do C.P.C. de 1995/96).

Efectivamente, «de acordo com o art. 1036º do CPC de 1939, podia embargar de terceiro, para se fazer restituir à sua posse, todo o terceiro cuja posse fosse ofendida por penhora, arresto, arrolamento, posse judicial, despejo ou qualquer outra diligência ordenada judicialmente» [10] . «O mesmo continuou a dizer-se no art. 1037º-1 do CPC de 1961, que, porém, expressamente excluiu do objecto dos embargos de terceiro a diligência de apreensão de bens em processo de falência ou insolvência, contra a qual se concedia, aliás já desde 1939, o meio, fundado no direito de fundo, da restituição e separação dos bens de terceiro (art. 1237º; art. 1200º do CPC de 1939; hoje, art. 201º do CPEREF)» [11] .

É claro que «a concessão deste meio ao possuidor sempre teve como razão última a presunção da titularidade do direito de fundo que a posse concede ao possuidor em nome próprio (arts. 1268º-1 e 1251º do Código Civil), sem prejuízo de a ele poderem aceder também certos possuidores em nome alheio a quem a lei civil expressamente faculta os meios possessórios (arts. 1037º-2 CC, 1125º-2 CC, 1133º-2 CC e 1188º-2 CC, respectivamente para o locatário, o parceiro pensador, o comodatário e o depositário), com base na presunção da titularidade do direito de fundo por parte da pessoa – necessariamente, um terceiro – em nome de quem possuem» [12] . Precisamente «por isso, o anterior art. 1042º-b) (art. 1040º do CPC de 1939), de sentido equivalente ao do actual art. 357º-2, permitia a destruição da referida presunção mediante a invocação e a prova por parte do embargado de que a titularidade do direito de fundo pertencia, afinal, à pessoa contra quem a diligência tinha sido promovida isto é, tratando-se duma penhora levada a cabo numa execução para pagamento de quantia certa, ao próprio executado» [13] .

De todo o modo, esta restrição ao possuidor da legitimidade para embargar de terceiro deixou de existir com as alterações introduzidas no CPC em 1995/96, por isso que o cit. art. 351º-1 confere legitimidade para embargar ao titular de direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência ordenada, ao lado do possuidor cuja posse seja incompatível com essa realização ou esse âmbito, quando um ou outro seja ofendido pela diligência.

«A determinação do direito incompatível faz-se considerando a função e a finalidade concreta da diligência que o ofende» [14] .

«Assim, são incompatíveis com a penhora – e, consequentemente, também com o arresto, que a antecipa – o direito de propriedade plena e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, viriam a extinguir-se com a venda executiva (art. 824º-2 do CC), bem como, quando a penhora incida sobre um direito, a titularidade deste de que um terceiro se arrogue, mas não o são os direitos reais de gozo que a subsequente venda não extingue, os direitos reais de aquisição e de garantia que, como normalmente acontece, encontram satisfação no esquema da acção executiva, nem os direitos pessoais de gozo e de aquisição, que são inoponíveis ao exequente ou, no caso especial, do arrendamento, perduram para além da venda executiva» [15] .

Eis por que, consoante o fundamento em que se tiverem estribado os embargos de terceiro será distinto o âmbito do caso julgado formado pela sentença que tiver conhecido do respectivo mérito.

Assim:
    - «Se os embargos se fundarem em direito de fundo do terceiro, ficará assente a sua existência ou inexistência deste direito;

    - Se a causa se mantiver no âmbito da posse, ficará assente que o terceiro era ou não possuidor do bem penhorado à data da penhora;

    - Se for invocado em reconvenção o direito de propriedade (ou outro direito real de gozo) do executado, ficará assente que este é ou não o proprietário do bem penhorado (ou titular do direito real menor invocado)» [16] .

Ora, no caso dos autos, a leitura da petição inicial dos embargos de terceiro deduzidos pela ora Autora/Agravante contra a execução para pagamento de quantia certa na qual foi realizada a penhora registada, em 11FEV1994, a favor do aí exequente e aqui Réu/Agravado, evidencia que a causa de pedir invocada pela embargante de terceiro para fundamentar o pretendido levantamento da penhora levada a cabo sobre as três fracções autónomas em questão foi a pretensa titularidade, por parte da embargante, do direito de propriedade plena sobre esses mesmos imóveis.

Para tanto, a embargante de terceiro ora Autora/Agravante alegou, nuclearmente, ter comprado tais fracções à executada no processo principal “Moreira & Moreira, Lda.”, mediante escritura pública de compra e venda celebrada em 15/12/1978, estando essa aquisição registada a seu favor desde 22/11/94.

É certo que a embargante também invocou (na petição de embargos) ser possuidora das referidas fracções autónomas, alegando, para tanto, havê-las dado de arrendamento a terceiros (duas delas para habitação e uma para comércio).

De qualquer modo, a invocação da sua posse sobre os imóveis em questão foi instrumental da alegação da titularidade do direito de propriedade plena sobre os mesmos. Tanto assim que, no art. 36º da petição de embargos, a embargante ora Autora/Agravante afirmou expressamente ter adquirido, por usucapião, o direito de propriedade sobre os três imóveis em causa, visto a sua posse sobre os mesmos durar já há cerca de dezasseis anos.

De resto, o Acórdão do STJ de 12/11/1998, que julgou improcedentes os referidos embargos de terceiro, situou a discussão, manifestamente, no plano do direito de fundo, que não apenas no da posse, por isso que fez decorrer a improcedência dos embargos da inoponibilidade ao exequente/embargado BANCO PORTUGUÊS DO ATLÂNTICO da aquisição derivada invocada pela embargante, traduzida no contrato de compra e venda materializado na referida escritura pública celebrada em 15/12/1978, apesar de anterior ao registo da penhora feito a favor do exequente/embargado, precisamente porque tal aquisição só foi registada já depois do registo daquela penhora.

Ficou, portanto, definitivamente assente a existência do direito de propriedade plena que a ora Autora/Agravante se arrogou, nos embargos de terceiro, sobre as três fracções autónomas em questão, mas também a inoponibilidade de tal direito ao exequente/embargado, mercê da anterioridade do registo do direito real de garantia deste adveniente da penhora (art. 822º do Cód. Civil) sobre o registo da aquisição daquele direito real de gozo.

Eis por que a então embargante de terceiro não pode, sem ofensa do caso julgado formado pelo referido Acórdão do STJ que julgou improcedentes os embargos de terceiro por ela deduzidos, pretender agora ver reconhecida, na presente acção declarativa, a prevalência do seu direito de propriedade sobre os mesmos imóveis sobre o direito real de garantia do exequente/embargado ora réu/agravado.

A circunstância de, posteriormente ao trânsito em julgado do referido Acórdão do STJ de 12/11/1998, que julgou improcedentes os aludidos embargos de terceiro, ter sido proferido, pelo Supremo Tribunal de Justiça, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n° 3/99, de 18/5/99 [17] , no qual - à revelia do entendimento anteriormente adoptado pelo mesmo tribunal, no seu Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n° 15/97 [18] [19] , do qual foi feita aplicação no cit. Acórdão do STJ de 12/11/1998 – foi acolhido o conceito dito restrito de “terceiros para efeitos de registo predial” propugnado por MANUEL DE ANDRADE, segundo o qual apenas são terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, “os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa” - o que consequência que o exequente/penhorante não é terceiro em relação ao comprador do imóvel penhorado, podendo-lhe, por isso, ser oposta a aquisição de tal imóvel feita anteriormente ao registo da penhora, mesmo que não registada ou só registada depois do registo da penhora -, não altera, evidentemente, os dados da questão.

Efectivamente, o referido Acórdão do STJ de 12/11/1998, que - fazendo aplicação do conceito dito amplo de “terceiros para efeitos de registo predial” adoptado no cit. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n° 15/97 - julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pela ora Autora/Agravante, transitou em julgado muito antes de ser proferido aqueloutro Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n° 3/99, de 18/5/99.

Por isso, a solução que nele foi dada à questão da oponibilidade ou inoponibilidade ao exequente/embargado BANCO PORTUGUÊS DO ATLÂNTICO, S.A. da aquisição feita pela embargante ora Autora/Agravante em 15/12/1978 mas só registada em 22/11/94, isto é, já depois do registo da penhora feito a favor do exequente/embargado em 11/02/94, não pode, sem ofensa do caso julgado formado nos embargos de terceiro, ser revista pelo mero facto de o STJ ter, entretanto, adoptado (no cit. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n° 3/99, de 18/5/99) um conceito de “terceiros para efeitos de registo predial” distinto do aplicado no Acórdão que julgou improcedentes tais embargos. Impede-o, precisamente, a força do caso julgado que se formou nos embargos de terceiro, traduzida na imodificabilidade da decisão que os julgou improcedentes.

Tão pouco pode a solução dada a essa questão no referido Acórdão do STJ de 12/11/1998 ser revista pelo mero facto de o Decreto-Lei nº 533/99, de 11 de Dezembro, ter, entretanto, aditado, ao artigo 5° do Código do Registo Predial, um número 4, com a seguinte redacção: "Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Trata-se, também aqui, dum corolário da excepção dilatória de caso julgado.

Finalmente, os dados do problema não se alteram pelo mero facto de os embargos de terceiro, que o cit. Acórdão do STJ de 12/11/1998 julgou improcedentes, terem sido deduzidos em 1992, isto é, numa época em que inexistia, no CPC, uma disposição equivalente à do cit. art. 358º, na redacção introduzida pelo DL. nº 329-A/95, de 12-XII.

Efectivamente, mesmo nessa época, a doutrina mais qualificada já vinha entendendo que, «tal como no caso dos embargos de executado (...), não sendo as garantias das partes nem a complexidade da tramitação inferiores nos embargos de terceiro às das restantes acções possessórias, nem, no caso de ser deduzida reconvenção, às do processo comum, o caso julgado produz-se» [20] .

Tão pouco modifica os dados da questão a circunstância de, no regime processual anterior à Reforma de 1995/1996, os embargos de terceiro estarem configurados como um meio específico de o possuidor reagir contra a apreensão judicial do bem possuído.

De facto – como vimos supra -, a causa de pedir invocada pela embargante de terceiro ora Autora/Agravante, para fundamentar o pretendido levantamento da penhora levada a cabo sobre as três fracções autónomas em questão, foi a pretensa titularidade, por parte da mesma embargante, do direito de propriedade plena sobre esses mesmos imóveis. Para tanto, a embargante de terceiro alegou, nuclearmente, ter comprado tais fracções à executada no processo principal “Moreira & Moreira, Lda.”, mediante escritura pública de compra e venda celebrada em 15/12/1978, estando essa aquisição registada a seu favor desde 22/11/94.

È certo que também invocou (na petição de embargos) ser possuidora das referidas fracções autónomas, alegando, para tanto, havê-las dado de arrendamento a terceiros (duas delas para habitação e uma para comércio).

Porém, essa invocação da sua posse sobre os imóveis em questão foi, afinal, instrumental da alegação da titularidade do direito de propriedade plena sobre os mesmos. Demonstra-o o facto de, no art. 36º da petição de embargos, a embargante ora Autora/Agravante ter afirmado expressamente que adquirira, por usucapião, o direito de propriedade sobre os três imóveis em causa, visto a sua posse sobre os mesmos já durar há cerca de dezasseis anos.

Assim sendo, os embargos de terceiro deduzidos pela ora Autora/Agravante acabaram, afinal, por ser decididos no plano da titularidade do direito de fundo, e não no da mera posse. Daí que, com o trânsito em julgado do referido Acórdão do STJ de 12/11/1998 que os julgou improcedentes, tenha ficado definitivamente assente que o direito de propriedade da embargante ora Autora/Agravante não podia ser oposto triunfantemente ao exequente/embargado ora Réu/Agravado.

Sendo este, portanto, o âmbito do caso julgado formado nos embargos de terceiro que a ora Autora/Agravante deduziu contra a execução para pagamento de quantia certa movida pelo aqui Réu/Agravado contra a sociedade “Moreira & Moreira, Lda.”, ocorre caso julgado impeditivo da reapreciação da questão da oponibilidade ou inoponibilidade ao ora Réu/Agravado da aquisição derivada, por parte da ora Autora/Agravante, do direito de propriedade sobre as três fracções autónomas em questão, por môr do contrato de compra e venda celebrado entre ela e a executada “Moreira & Moreira, Lda.”, em 15/12/1978.

Como assim, o despacho saneador recorrido, que julgou procedente a excepção dilatória de caso julgado invocada pelo Réu ora Agravado e absolveu o mesmo da instância, não merece qualquer censura.



DECISÃO

Acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao presente recurso de Agravo, confirmando integralmente o despacho saneador recorrido.

Custas a cargo da Autora ora Agravante.




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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Proceso Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).
[5] "Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente".
[6] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in “Acção Executiva Singular”, 1998, p. 316.
[7] In “A Acção Executiva”, 1993, pp. 239-240 e, mais desenvolvidamente, in “A acção executiva e o caso julgado”, Revista da Ordem dos Advogados, 1993, II, pp. 236-239.
[8] Cfr., neste sentido, JOSÉ LEBRE DE FREITAS (in “A Acção Executiva Depois da Reforma”, 4ª ed., 2004, p. 299) e LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 1999, p. 628).
[9] JOSÉ LEBRE DE FREITAS in “A Acção Executiva Depois da Reforma” cit., p. 299.
[10] LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO in “Código de Processo Civil Anotado” cit., Vol. 1º cit., p. 615.
[11] LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO, ibidem.
[12] LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO, ibidem.
[13] LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO, ibidem.
[14] LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO in ob. e vol. citt., p. 616.
[15] LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO, ibidem.
[16] JOSÉ LEBRE DE FREITAS in “A Acção Executiva Depois da Reforma” cit., p. 300.
[17] Publicado in Diário da República I Série-A, nº 159/99, de 10/7/1999.
[18] Publicado in Diário da República I Série-A, nº 152/97, de 4/7/1997.
[19] Segundo o qual, “Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente”.
[20] JOSÉ LEBRE DE FREITAS in “A Acção Executiva”, 1993, p. 240.