Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2903/08.5TBFAR-A.E1
Relator:
ACÁCIO NEVES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 03/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário:
I - A competência em razão da matéria, deve ser aferida em função da relação jurídica que se discute na acção, tal como ela foi apresentada pelo autor.

II - É da competência dos Tribunais comuns decidir quanto a um contrato de compra e venda celebrado entre um particular e uma Câmara Municipal, embora viessem os bens transaccionados a vir a ser utilizados pela autarquia numa obra pública.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A” intentou, em 13.11.2008, acção declarativa sob a forma sumaríssima contra o Município de …, pedindo que este fosse condenado a pagar-­lhe a quantia de € 3.562,72, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação.
Alegou para tanto e em resumo que no exercício da sua actividade comercial forneceu ao réu diversos materiais e serviços, constantes das facturas juntas, no valor da quantia peticionada, que o réu, não obstante interpelado, se tem vindo a recusar a pagar.
Citado, contestou o réu, invocando a incompetência do Tribunal Judicial de …, onde foi intentada a acção, em razão da matéria, considerando que, estando a contratação do fornecimento em causa sujeito à regulação constante do DL 197/99, de 08.06, por força do disposto no art. 4°, n° 1, al. e) do ETAF, são competentes para dirimir o litígio em causa os tribunais administrativos, para além de se defender por impugnação.
Respondeu a autora à contestação, pugnando pela improcedência da invocada excepção.
Seguidamente foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a invocada excepção de incompetência material.
Inconformado, interpôs o réu o presente recurso de apelação, em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões: .
A) A sentença recorrida deve ser revogada pois nela se fez, salvo o devido respeito, errada aplicação do direito.
B) A recorrida propôs acção contra o Município de … - autarquia local - pessoa colectiva de direito público, que se vincula por via da celebração de contratos ou da prática de actos administrativos, adoptados em respeito das competências instituídas e procedimentos em vigor.
C) Ou seja, está vinculada por lei a respeitar o procedimento, no caso administrativo, que legalmente se lhe impuser, o que decorre dos artigos 1°, 2°, n° 2, al. C) e 3° do CPA (princípio da legalidade).
D) No caso concreto, o procedimento pré-contratual, regulado pelo DL 197/99, de 8 de Junho, o qual definia o regime de realização de despesas públicas com a locação e aquisição de bens e serviços, bem como da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e de serviços - arts. 1 ° e 2°, al. d).
E) A presente acção tem por objecto o (in)cumprimento de um contrato de fornecimento de bens e serviços destinados pelo réu ao arranjo da Praia de … e Centro Náutico de …, em prossecução do interesse público que lhe está legalmente atribuído, mormente no art. 64°, n° 7, al. b) da Lei 169/99, de 18 de Setembro, na redacção da Lei n° 5- A/2002, de 11 de Janeiro.
F) ... Assim, de acordo com o art. 4°, n° 1, al. e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro, compete à administração administrativa e fiscal a apreciação do litígio em causa na presente acção, mesmo não tendo sido adoptado um procedimento pré-contratual, uma vez que o recorrente e relativamente aos contratos de fornecimento de bens e serviços, existe lei que impõe a sua regulação por normas de direito público - Decreto Lei 197/99, de 8 de Outubro.
G) Ao declarar-se competente em razão da matéria o Tribunal Judicial da Comarca de …, para julgar da presente acção, violou o art. 66° do CPC e o art. 4°, n° 1, al. e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que deveriam ter sido aplicados - em conjugação com o disposto nos arts. 1°, 2°, n° 2, al. c) e 3° do Código de Procedimento Administrativo e nos arts. 1 ° e 3°, al. d) e seguintes do DL n° 197/99, de 8 de Outubro - dado que por aplicação dos citados normativos legais o presente litígio está cometido à jurisdição.
H) Pelo que deverá ser revogada a decisão proferida e substituída por outra que declare a infracção das regras da competência em razão da matéria, o que determina a incompetência absoluta do Tribunal da Comarca de … para conhecer da presente acção, o que constitui excepção dilatória, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e em consequência deverá o recorrente ser absolvido da instância, nos termos dos arts. 66°, 101°, 105°,493° e 494°do CPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
Em face do conteúdo das conclusões das alegações do apelante, enquanto delimitadoras do objecto do recurso (art. 685°-A do CPC), a questão de que cumpre conhecer consiste em saber qual o tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da presente acção, o tribunal judicial (onde foi intentada a acção) ou o tribunal administrativo.

Apreciando:
Defende o apelante, em conformidade com o que havia invocado e defendido em sede de contestação, a incompetência material do tribunal judicial, onde foi proposta a acção, e a competência dos tribunais administrativos, para dirimir o litígio inerente aos presentes autos.
E, para o efeito, considera que o contrato, de fornecimento de bens e serviços, invocado pela autora, está sujeito ao procedimento pré-contratual constante do DL 197/99, de 8 de Junho, razão pela qual se verificava a previsão do art. 4°, n° 1, al. e) do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Nos termos desta disposição, "compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto ... e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público".
Importa assim, antes de mais, verificar se o contrato em causa, invocado pela autora está efectivamente sujeita ao procedimento pré-contratual previsto no referido D L 197/99.
Embora, na contestação, em sede própria de invocação da excepção em causa (incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria), o réu apelante não tenha especificado porque razão é que o contrato em causa nos autos estava sujeito ao referido procedimento pré-contratual, o certo é que, em sede de impugnação, sempre alegou que "as facturas dadas à acção dizem respeito às obras efectuadas com vista à remodelação do Centro Náutico da Praia de … cujo custo total orçou aproximadamente os € 275.000,00" (arts. 23 e 24 da contestação), pelo que "atendendo a esse custo, o procedimento a adoptar para a realização dessa despesa, e nos termos do art. 48° do DL 59/99, de 2 de Março, seria o concurso público, o que não se verificou, despesa que por sua vez, e atendendo ao seu custo, teria que ser autorizada pela Câmara Municipal, nos termos do artigo 18° do Dec-Lei 197/99, de 8 de Junho, o que também não se verificou" (arts. 25° e 26° da contestação).
Desde já se diga que a questão da exigência de concurso público à luz do DL 59/99 - questão esta que o apelante acaba por não invocar em sede de recurso, conforme se alcança das respectivas conclusões - jamais seria aplicável aos presentes autos na medida os procedimentos a adoptar, nos termos do seu art. 48° (concurso público ou limitado ou ajuste directo) se referem apenas às empreitadas de obras públicas, cujo regime foi aprovado por tal diploma - o que não é o caso dos autos.
Com efeito, independentemente da finalidade dos bens fornecidos pela autora, o certo é que em causa nos autos não está qualquer empreitada de obras públicas mas tão só e apenas um contrato de fornecimento de bens (compra e venda) alegadamente celebrado entre as partes.
Ademais, atendendo à causa de pedir invocada e ao pedido formulado pela autora (€ 3.562,72, facilmente se constata que esse valor (valor esse a considerar para o efeito, que não o valor da totalidade das obras relativas à remodelação do Centro Náutico da Praia de …, invocado na contestação - aspecto este a que adiante melhor nos referiremos) sempre permitiria a existência de ajuste directo, atento o disposto na al. e) do n° 2 do citado art. 48°).
Quanto ao DL 197/99 de 8 de Junho, que "estabelece o regime de realização de despesas públicas com locação de e aquisição de bens e serviços, bem como a contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e de serviços" (art. 1°) e que também é aplicável às autarquias locais (art. 2°, al. d), estabelece o seu artigo 18° quem é que tem competência para autorizar despesas com locação e aquisição de bens e serviços (o presidente de câmara e as câmaras municipais).
Todavia, atendendo ao valor do fornecimento em causa, cujo valor é reclamado pela autora (os tais € 3.562,72), por ser (muito) inferior ao valor previsto na al, a) do nº 1 do citado art, 18°, no caso dos autos, não seria necessária a autorização da câmara municipal, bastando a autorização do presidente da câmara - autorização esta que nem sequer é posta em causa pelo réu apelante.
Com efeito, conforme já acima aludimos, o valor a considerar só pode ser o que é reclamado pela autora - correspondente ao valor das aquisições, que não o valor da totalidade das obras relativas, segundo o réu apelante, à remodelação do Centro Náutico da Praia de …, cujo custo orçou, ainda, segundo o réu apelante, aproximadamente em € 275.000,00 ­obras estas às quais a autora é alheia.
Aliás, o réu apelante nem sequer alega ou questiona que a autora (sem prejuízo do fornecimento em causa nos autos ter sido feito no âmbito da remodelação do tal Centro Náutico) tenha algo a ver com as obras relativas a tal remodelação.
O que está em causa nos autos é apenas e tão só o que foi alegado pela autora como causa de pedir - o fornecimento ao réu de determinados bens, cujo pagamento reclama.
E, conforme tem vindo ser entendido na jurisprudência, a competência em razão da matéria, deve ser aferida em função da relação jurídica que se discute na acção, tal como ela foi apresentada pelo autor, em função da pretensão deduzida por este deduzida (vide acs. do STJ de 31.10.2000, em que é relator Miranda Gusmão, e de 25.06.2009, em que é relator Pereira da Silva, e desta Relação, de 12.06.2008, em que é relatara Maria Alexandra Santos, todos in www.dgsi.pt).
Em face do exposto impõe-se concluir no sentido de não estar o contrato invocado nos autos sujeito a procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público e, em consequência, pela inaplicabilidade do disposto no art. 4°, n° 1, al. e) do ETAF.
Por isso, e por estar apenas em causa uma mera questão de direito privado, relativa ao incumprimento de um contrato de compra e venda alegadamente celebrado entre as partes, não estando o litígio dos autos, como tal, sujeito à jurisdição administrativa, é a nosso ver manifesta a competência (residual, nos termos do disposto no nº 1 do art. 26° da LOFTJ) dos tribunais judiciais.
Improcedem assim as conclusões do recurso.
Termos em que se acorda em negar provimento à apelação e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Évora, 17.03.2010