Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL SILVA | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO PROCESSUAL SERVIDÃO LEGAL DE PASSAGEM DIREITO POTESTATIVO EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA INDEMNIZAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 04/18/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recorrido: | COMARCA DE LAGOS | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
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Sumário: | a) - Por força do princípio da aquisição processual (art. 515º CPC), o juiz terá que ter em conta todos os factos que se mostrem pertinentes à solução jurídica do caso, ainda que alegados por quem não tinha o respectivo ónus. b) – O pedido de reconhecimento da constituição duma servidão legal de passagem traduz o exercício dum direito potestativo, pelo que, em termos processuais, ao Autor basta o ónus de alegação e prova __ por em tanto se traduzir a previsão legal para o reconhecimento do direito potestativo de constituição de servidão de passagem __, de ser dono de prédio encravado e de ser o Réu proprietário dum prédio confinante pelo qual se podia efectuar o acesso à via pública: art. 1550º e art. 342º nº 1 CC. c) – Atenta a natureza potestativa desse direito, a possível existência de outros prédios, com igual ou melhor potencialidade para proporcionar o acesso do prédio do Autor à via pública, ou que sofram menos prejuízos/inconvenientes, constitui uma excepção peremptória, na medida em que consubstancia um facto impeditivo da eficácia do direito potestativo do Autor. Enquanto excepção peremptória, incumbe ao Réu o ónus da respectiva alegação e prova: art. 342º nº 2 CC. d) - A contradição entre os fundamentos e a decisão, a que se refere o art. 668º nº 1 al. c) do CPC, é __ tal como ocorre num silogismo, em que a conclusão é a consequência necessária das premissas, maior e menor __, a contradição lógica, aquela que se verifica quando «(...) o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, (...).». e) - Perante a constituição duma servidão de passagem, a desvalorização do prédio serviente (e ainda que o prédio serviente já se encontre onerado com idêntica servidão a favor doutro prédio), é um facto notório, a desnecessitar sequer de alegação, e que o juiz deve ter em conta, no caso de ser pedida indemnização. f) – Sendo o prédio serviente um prédio misto, no qual está implantada a casa de habitação do seu proprietário, também é um facto notório que a constituição da servidão irá perturbar a intimidade e o sossego desse proprietário. Sumário da relatora | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I - HISTÓRICO DO PROCESSO1. S...instaurou acção contra H...pedindo a sua condenação a reconhecer o direito de servidão de passagem a favor do seu prédio, a pé e por veículos, e onerando o prédio da Ré. Para o efeito, e em resumo, invocou ser o seu prédio encravado e ser o prédio da Ré aquele que, com menor prejuízo, reúne as condições para lhe proporcionar acesso à via pública. A Ré contestou, invocando a existência de outros prédios com potencialidades de servir a passagem pretendida com menor prejuízo e impugnando parcialmente a factualidade alegada. Por outro lado, e para a hipótese de procedência da acção, deduziu reconvenção, peticionando a quantia de € 14.000,00, a título de indemnização pela constituição da servidão. A Autora respondeu à excepção e contestou a matéria da reconvenção. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença julgando-se procedente a acção e parcialmente procedente a reconvenção. 2. Inconformadas com tal decisão, dela apelaram Autora e Ré. A Autora formulou as seguintes CONCLUSÕES [[1]]: 1. Vem o presente recurso de Apelação interposto da douta sentença proferida nos autos à margem referenciados, na parte em que a mesma condena a Autora a pagar à Ré a quantia de dez mil euros a título de indemnização, nos termos do disposto no art.º 1554º do Código Civil. 2. Erra o Mmo. Juiz a quo ao conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, e ao assentar a determinação do montante da indemnização em pressupostos/factos não provados e nem sequer alegados e em suposições e conjecturas desprovidas de qualquer fundamento factual ou jurídico, terminando por apresentar no final uma decisão que claramente colide com os fundamentos em que assenta. 3. É absolutamente indiscutível que: · Nos termos do art.º 1554º do C.C. «pela constituição da servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao prejuízo sofrido» (sublinhado nosso) – cfr. al. b) do ponto 10 da fundamentação; · A generalidade da Doutrina e da Jurisprudência é pacífica em considerar que o cálculo da indemnização prevista no art.º 1554º do C.C. deve ser “…orientado pelo disposto nos artigos 562º e seguintes do C.C.” - cfr. al. c) do ponto 10 da fundamentação; · Dispõe o art.º 562º do C.C. que “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga a reparação.” (sublinhado nosso); · Dispõe o art.º 566º n.º 3º do C.C. que “Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.” (sublinhado nosso) cfr. al. f) do ponto 10 da fundamentação. 4. É também indiscutível que, no caso em apreço, estamos perante “…o caso típico previsto no art.º 566º nº3 do Código Civil…” , pelo que, é indiscutível que a determinação do valor da indemnização deverá ser feita com recurso a juízos de equidade desde que não sejam ultrapassados os limites legalmente impostos. 5. Das disposições legais supra referidas, resultam claros os principais limites legalmente impostos ao julgador na determinação do quantum indemnizatório- a saber – 1. Ao determinar o montante da indemnização devida pela constituição da servidão o julgador tem de atender ao montante dos danos/prejuízos sofridos, os quais a indemnização se destina a reparar, sendo que o valor desses danos constitui o limite máximo do valor da indemnização; 2. Na determinação do montante indemnizatório o julgador só pode fazer o seu juízo de equidade “…dentro dos limites que tiver por provados…”, isto é, só pode basear o seu cálculo em factos provados que sustentem o montante atribuído. 6. Nos termos do art.º 1554º do C.C. «pela constituição da servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao prejuízo sofrido» (sublinhado nosso), porém, no caso em apreço, o Mmo. Juiz a quo dá como provado que a constituição da servidão de passagem pelo caminho pré-existente no prédio da Ré não lhe causará quaisquer prejuízos, utilizando expressões como:“Quanto ao prédio da Ré, não se vislumbra qual o inconveniente particular que lhe advém no caso…”;“Estamos, assim, perante uma situação de prejuízo praticamente nulo por parte da Ré…” ;“…pois zero é o prejuízo provado a respeito da Ré, que todavia receberá a sua indemnização…” 7. Pergunta-se: inexistindo prejuízos para o prédio serviente, haverá ou não lugar ao pagamento da indemnização. Parece-nos que a resposta tenderia a ser negativa, pois a indemnização destina-se a reparar os prejuízos sofridos, donde se inexistem prejuízos não haverá lugar a indemnização. Não obstante, compreende a A. que, como refere o conceituado Prof. Vaz Serra “…pode suceder que nenhuns prejuízos resultem da constituição da servidão…Mas claro que, por interpretação, pode concluir-se que o ónus da servidão representa já e sempre um prejuízo.” (Actas da Comissão Revisora do Anteprojecto do Código Civil – BMJ 136 Maio de 1964 – pág. 112), pelo que, nesse sentido, ainda que estejamos na presença de uma quase total ausência de prejuízos, a A. aceita que existirá a obrigação de pagar uma indemnização à Ré pela constituição da servidão. 8. Porém, na presença de uma quase total ausência de prejuízos, o quantum indemnizatório não poderá exceder um valor meramente simbólico pois, já dizia o conceituado Prof. Pires de Lima que “É justo que se indemnize o proprietário do prédio serviente pelos prejuízos ou danos causados, mas não pode permitir-se que ele se aproveite da situação de necessidade do prédio dominante.” (Actas da Comissão Revisora do Anteprojecto do Código Civil – BMJ 136 Maio de 1964 – pág. 113). 9. Nestes termos, não pode o Mmo. Juiz a quo na sua fundamentação considerar provado que da constituição da servidão não resultam prejuízos para a Ré e com base nisso condenar a A. a pagar à Ré um montante tão avultado a título de indemnização pelos prejuízos resultantes da constituição da servidão, é no mínimo incongruente e constitui uma decisão em oposição com os fundamentos que a sustentam. 10. Relativamente ao montante da indemnização atribuído, diga-se que bem andou o Mmo. Juiz ao concluir que “A indemnização pedida - 14.000,00 euros – assenta em factos não provados…” (cfr. a) do n.º 10 da fundamentação). Donde, seria de concluir que não existe factualidade provada que sustente a determinação do valor da indemnização e o Mmo. Juiz não dispõe de elementos que lhe permitam determinar, nesta fase, um valor razoável para a indemnização. 11. Porém, salvo o devido respeito, que é muito, o Mmo. Juiz optou erradamente por determinar o quantum indemnizatório sem qualquer suporte factual ou jurídico, assentando a sua determinação em factos/pressupostos não provados (e nem sequer alegados pelas partes) e em suposições e conjecturas desprovidas de qualquer fundamento. 12. Desde logo, constitui facto dado como provado que o caminho onde é agora constituída a servidão de passagem já dá serventia a um outro prédio vizinho. Logo, a Ré já não tinha a exclusividade do seu caminho, pelo que, erra o Mmo. Juiz a quo ao fundamentar a atribuição da indemnização e a determinação do seu valor, numa perda de exclusividade que não se verifica. 13. Acresce que, o Mmo. Juiz chega ao valor de dez mil euros através de suposições desprovidas de qualquer fundamento, fundamentando a sua decisão numa capacidade construtiva hipotética que o prédio da A. não tem de todo, fundamentando a sua decisão em suposições, hipóteses e opiniões pessoais, desprovidas de fundamento e de qualquer valor jurídico, como são as que a seguir se transcrevem: · “Aceitando que a Autora vai efetuar obras e que, terminadas estas, restituirá tudo, quanto possível, e sem prejuízo da sua nova utilidade, ao statuo quo ante, digamos que no cumprimento destes deveres despenderá 4.000,00 euros.”; · “Resta considerar o valor de 10.000,00; trata-se duma quantia merecedora de ser designada como indemnização; e o seu valor não é tão alto, que possa considerar-se insuportável; na realidade, seria de considerar como muito baixo em inúmeras situações do mesmo tipo; a verdade é que estamos perante uma cifra que se afigura equilibrada, tendo em conta que a Autora, caso pretenda rentabilizar o seu prédio, terá de obter um projecto, cujo custo, num ‘atelier’ mediano, e considerando todas as exigências da lei actual – arquitectura, estabilidade, electricidade, águas, telefones, etc – dificilmente lhe custará menos do que isso; isto sem falar da construção propriamente…” · “Ponderando que, nesta hipótese, aliás, nesta razoável hipótese, a servidão outorgada vale tanto, pelo menos, como o projecto, e tendo em conta que nem o projecto pode ser aceite sem acesso à via pública, diremos que será concedida à Ré a indemnização de 10.000,00 euros, por se mostrar justa e adequada.” 14. Porém, não constam dos autos quaisquer elementos que permitam tecer tais considerandos ou retirar tais ilações. 15. Sobre as pretensões da A. no que respeita à futura utilização do prédio, dos articulados constam apenas as seguintes referências: “… a A. pretende concretizar no seu prédio um melhor aproveitamento agrícola, rentabilizando a cultura arvense já existente.” (art.º 11º da P.I.); “…a A. não pretende fazer no seu terreno nenhuma exploração agrícola sofisticada e com grandes maquinarias, pois a A. não é, nem almeja ser, agricultora de profissão, pretendendo apenas como alegou, desbravar o seu terreno por questões de segurança e responsabilidade, colher os frutos das árvores existentes e, eventualmente, cultivar uma ou outra árvore de fruto adicional, para seu consumo pessoal.” (art.º 33º da Resposta à Contestação). 16. Sendo que, a capacidade construtiva do prédio constitui matéria que em momento algum foi abordada nos autos. 17. É pois, salvo o devido respeito, completamente descabida a fundamentação constante da Sentença ora impugnada e não pode o Mmo. Juiz conhecer das intenções da A. e das capacidades económicas da mesma sem que possua elementos de facto e de direito que lho permitam fazer. 18. Nem pode o Mmo. Juiz, como faz, avaliar a justeza do valor atribuído com base na sua própria capacidade monetária, descurando de saber se o valor atribuído é ou não para a A. demasiado oneroso. 19. Aliás o Mmo. Juiz a quo faz assentar a sua decisão numa capacidade construtiva do prédio dominante, que o mesmo não tem nem nunca terá, o que decorre expressamente da decisão da Câmara Municipal de Lagos, enviada à A. três anos antes da entrada da presente ação em tribunal, que, no seu ponto 4., refere expressamente que o prédio da A. não incide sobre solo urbanizado ou cuja urbanização seja possível, pelo que lhe indefere o pedido de informação prévia sobre a viabilidade de construção. 20. Pelo que, ao interpor a ação judicial, a A. sempre esteve consciente que nunca poderia construir no seu prédio, pelo que não se compreende que o valor da indemnização possa ser determinado com base numa capacidade construtiva que o prédio não tem e com base em intenções que a A. nunca teve. 21. A capacidade construtiva do prédio dominante nunca foi alegada nos autos pelo que, constitui questão de que o Mmo. Juiz não pode tomar conhecimento. 22. É notório que o Mmo. Juiz a quo determina o valor da indemnização com base nos benefícios que imagina que a A. poderá vir a ter (aliás utilizando uma imaginação muito fértil e fantasiosa), em vez de se basear nos prejuízos que a Ré terá e os quais a existirem deverão ser ressarcidos pela indemnização. 23. Ainda que assim não fosse, sem conceder, caso fosse efetivamente intenção da A. construir no seu prédio, ao decidir como decidiu o Mmo. Juiz estaria à revelia da mais conceituada Doutrina que conclui que a indemnização pela constituição da servidão se destina a reparar os prejuízos sofridos pelo prédio serviente, sendo que, como referem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela em anotações ao art.º 1554º do C.C.. “O que a indemnização não cobre…são as vantagens ou lucros obtidos pelo proprietário do prédio dominante com a constituição da servidão.” (Pires de Lima e Antunes Varela “Código Civil Anotado”, Vol. III – 2ª Ed. Revista e atualizada, pág. 643) 24. Não pode assim a Recorrente acompanhar a sentença ora impugnada, nem conformar-se com a mesma na parte em que a condena a pagar o montante de dez mil euros a título de indemnização por danos cuja existência não resultou provada. 25. Por todo o exposto, não foi feita uma correta interpretação e aplicação da lei, tendo o Mmo Juiz a quo violado o disposto nos arts.º 1554º, 562º e 566º, n.º 3, todos do C.C., pelo que, forçoso será concluir pela Nulidade da sentença impugnada, na qual os fundamentos estão em oposição com a decisão (al. c) do n.º1 do art.º 668º do C.P.C.) e o Mmo. Juiz se pronuncia sobre questões de que não podia tomar conhecimento (al. d) do n.º1 do art.º 668º do C.P.C.). 3. A Ré, também recorrente, CONCLUI que [[2]]: I – A autora vem exercer o direito potestativo consagrado no artigo 1550º do Código Civil. II – O direito potestativo é a afetação jurídica que consiste na possibilidade de atuação de um poder, por mera vontade de um titular, cujos efeitos se projetam nas esferas de outros sujeitos. III – Incidia assim sobre a autora, o ónus de alegar e provar os factos que integram todos os pressupostos do direito que invoca. (...) V – A autora não fez prova de que é proprietária do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial. VI – O direito de propriedade apenas se prova por documento, nomeadamente pela certidão do registo predial que constitui presunção de propriedade. VII – Não existe nenhum documento nos autos que reproduza a descrição predial e que contenha o registo de aquisição definitiva do prédio a favor da autora. VIII – A simples referência a certidões online de validade limitada a um ano, insuscetíveis de reprodução após o decurso de tal prazo e não consultadas pelo julgador não vale como prova do direito de propriedade da autora. IX – A caderneta predial rústica junta com a petição inicial não constitui prova de propriedade, pois apenas para efeitos fiscais constitui presunção de propriedade. X – A prova do direito de propriedade apenas pode ser feita documentalmente e o momento da apresentação de prova documental esgotou-se com o encerramento da discussão na primeira instância. XI – Na sua petição inicial, cfr. artigos 4º e 5º, a autora identifica a existência de dois acessos para a sua propriedade, que, segundo ela se viu impedida de utilizar. XII – Dá assim a autora a entender que já existiam servidões constituídas, o que está em desconformidade com o pedido formulado pela autora. XIII- A autora, pelos motivos referidos nas conclusões VI a X, não provou igualmente que a ré é proprietária do prédio identificado no artigo 3º da petição inicial. XIV – A autora identifica o prédio sobre o qual deseja constituir a servidão como um prédio composto por uma parte urbana e por uma parte rústica. XV – A autora não alegou nem provou que o caminho que pretende ver constituído apenas afeta a parte rústica do prédio identificado no artigo 3º, sendo certo que era ela quem o tinha de provar, pois a natureza rústica do prédio serviente constitui um dos requisitos do direito que a autora pretende fazer valer em juízo. XVI – Na sua petição inicial, a autora que identifica dois acessos para o seu prédio, não alega factos que permitam em termos objetivos considerar que o prédio identificado no artigo 3º da petição inicial é o prédio menos prejudicado com a imposição da servidão. XVII – E era obrigado a fazê-lo, atendendo a que a autora escolheu intentar a presente ação apenas contra a ré e pedir a constituição da servidão apenas sobre o prédio identificado no artigo 3º da petição inicial. XVIII – Das duas inspeções judiciais feitas e do seu confronto com a planta junta com a petição inicial como documento número 5, em relação ao prédio identificado no artigo 3º da petição inicial conclui-se que o caminho atravessará a zona que serve de logradouro à casa nele existente e que a extrema nascente do caminho ficará a distar cerca de 13 metros da porta de entrada da casa, da janela da sala da casa e da varanda poente da casa. XIX – Por sua vez, em relação aos prédios situados do lado norte foi dado como provado que a constituir-se servidão por esse local, o caminho por onde a servidão se exerceria passaria muito afastada do edifício do prédio 82 Secção AG. XX – Também em relação aos prédios situados a norte, foi considerado (e efetivamente assim é) que não há prova de qualquer incómodo para eles nem quaisquer prejuízos ou inconvenientes para os donos de tais prédios com a constituição da servidão. XXI – Os prédios situam-se numa zona isolada, sem movimento, afastada da estrada e dos ruídos de veículos, motociclos, velocípedes a motor e de máquinas. XXII – A imposição da servidão ao prédio identificado no artigo 3º, obrigará os donos deste a suportar um caminho de acesso para o prédio vizinho que irá ser utilizado por pessoas, veículos automóveis, motociclos, velocípedes a motor e maquinaria que passarão a cerca de 13 metros da porta de entrada, da janela da sala e da varanda da habitação existente no prédio, utilizando o logradouro da casa e asfixiando o desafogo desta. XXIII – Não se compreende assim como é possível concluir que o prejuízo para o dono do prédio identificado no artigo 3º da petição inicial com a imposição da servidão legal de passagem é igual a zero, ou seja, é inexistente. XXIV – Existindo prejuízo bem visível para o prédio identificado no artigo 3º e não se tendo provado a existência de prejuízo para os prédios situados a norte do alegado prédio da autora nunca poeria ter sido imposta a servidão legal de passagem. XXV – Não se verificam assim os requisitos referidos na conclusão IV. XXVI – Não existe justificação para abater à indemnização pedida pela ré a quantia de 4.000 euros, atendendo a que o artigo 1554º do Código Civil determina que o único interesse a ter em atenção e os únicos prejuízos e desvalorizações a ter em consideração são as sofridas pelo proprietário do prédio serviente. XXVII – Não é aceitável assim a redução da indemnização com quaisquer eventuais despesas que a proprietária do prédio dominante venha a ter com a constituição da servidão, abertura ou manutenção do caminho, ou com o seu terreno. XXVIII – Disposições violadas: artigos 342º, 1550º, 1553º, 562º, 564º e 1554º do Código Civil. Nem a Autora, nem a Ré, contra-alegaram. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO 4. OS FACTOS São os seguintes os factos considerados na douta sentença: 1 - A A. é dona e legítima possuidora do prédio rústico composto de cultura arvense, amendoeiras, figueiras e sobreiros, sito na P..., inscrito na matriz predial rústica sob o art.º n.º 11 da Secção AO, da freguesia de B...e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o nº 610 da referida freguesia. 2 - O referido prédio rústico não tem qualquer comunicação com a via pública e confina com o prédio da Ré. 3 - A Ré é proprietária do prédio misto que confina a Sul com o prédio da A., sito na P..., inscrito na matriz predial rústica sob o n.º 13 da Secção AO, e na matriz predial urbana sob o artigo 609 da freguesia de B...e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o nº 185 da referida freguesia. 4 - Em virtude do encrave do prédio da A., quando o mesmo foi adquirido, os vendedores indicaram os seguintes acessos possíveis: - Acesso A - um acesso a Sul através do prédio da Ré; - Acesso B - um acesso a Norte através de dois prédios: (1) prédio rústico, que confina a norte e nascente com o da A, inscrito na matriz predial rústica sob o nº 12 da Secção AO e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o nº 73 da freguesia de B...; (2) e através do prédio misto inscrito na matriz predial rústica sob o nº 82 da Secção AG e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o nº 159 da freguesia de B..., o qual confina a Norte com o prédio ora descrito, esse sim com comunicação à via pública, onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio descrito sob o nº 852/19940517 da freguesia de B.... 5 - O Acesso B é feito através dos dois prédios supra referidos, pois o primeiro prédio descrito no artigo anterior, que confina a norte e a nascente com o prédio da A., também não tem comunicação com a via pública; a nascente termina num pequeno riacho, mas a norte dá acesso a um caminho preexistente sito no segundo prédio descrito no artigo anterior, sobre o qual existe a referida servidão de passagem. 6 - O prédio que confina a Poente com o prédio da A. também não tem qualquer comunicação com a via pública e utiliza como acesso o caminho existente no prédio da Ré. 7 - Acontece que o proprietário do prédio dominante na servidão de passagem supra referida, que onera o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o n.º 12 da Secção AO e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º 73 da freguesia de B..., não permite a passagem da A. pelo Acesso B, ameaçando com tiros de caçadeira. 8 - Por essa razão, nas poucas vezes que vai ao seu terreno a A. tem utilizado o Acesso através do prédio da Ré. 10 - Acontece que esta situação tem impedido a A. de utilizar com regularidade o seu terreno, impossibilitando-a de o rentabilizar. 20 - A entrada para o terreno da Autora dista 28,80 metros do murete que define a zona de acesso à porta principal da moradia da Ré. 21 - A moradia da Ré está implantada no terreno pertencente a esta. 22 - Em frente da casa, a Ré tem um terreiro que aplanou e que serve de logradouro à casa. 23 - A frente da habitação da Ré e o terreiro deitam directamente para o caminho que lhes dá acesso. 25 - A Ré canta em sua casa. 27 e 29 - A Ré tem uma mesa e uma cadeira do lado Sul, em frente da porta da sala de estar, onde passa o tempo e toma refeições quando faz sol. 33 - O prédio 82-AG tem acesso por um portão. 34 - O caminho que atravessa o prédio 82 da secção AG deita directamente para a Estrada Municipal, estando a sua entrada aberta. 35 - O caminho passa muito afastado do edifício existente no artigo 82 da secção AG. 41, 42 e 43 - Há um caminho de acesso à moradia da Ré. 5. O MÉRITO DOS RECURSOS QUESTÕES A RESOLVER: Quanto à apelação da Autora, se é nula a sentença, por contradição entre os fundamentos e a decisão, e por se ter pronunciado sobre questões de que não podia tomar conhecimento; quanto ao mérito, se estão verificados os pressupostos para a sua condenação em indemnização pela servidão, e qual o seu montante. Quanto à apelação da Ré, se estão verificados os pressupostos para a constituição da servidão do seu prédio em favor do prédio da Autora e, na positiva, qual o montante da indemnização da fixar. Atentos os objectos das apelações, e, por lógica jurídica, compete abordar primeiro a apelação da Ré, pois a sua eventual procedência torna inútil o conhecimento da apelação da Autora. 6. APELAÇÃO DA RÉ 6.1. QUESTÃO PRÉVIA Ainda uma QUESTÃO PRÉVIA quanto à apelação da Ré: Ao longo das suas alegações, a Ré foi manifestando a sua discordância quanto à matéria de facto, referindo ter havido erro na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto e considerando que a Autora não provou determinados factos (que, não obstante, se mostram considerados provados na douta sentença). Assim, poder-se-ia ser levado a concluir estarmos perante recurso sobre a matéria de facto, mas tal não sucede. Por um lado, como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes (sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se impõe) e não nas alegações, pois estas servem apenas para explanar os argumentos: art. 684º nº 2 e 3, art. 685º-A nº 1 e 660º n.º 2 Código de Processo Civil (CPC). Ora, como claramente se extrai da leitura de todas as conclusões, em ponto algum se refere quais os factos incorrectamente julgados, qual o facto em concreto que não devia ter sido considerado provado ou, pela inversa, qual o facto que não foi considerado, devendo tê-lo sido. Por outro lado, o recurso sobre a matéria de facto visa a modificação (por adição, eliminação ou alteração) dos factos tidos por provados ou por não-provados, em função das provas produzidas. Como decorre das alíneas do nº 1 do art. 685º-B do CPC, na impugnação da decisão da matéria de facto, o recorrente tem de, obrigatoriamente, referir: · quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados · quais os concretos meios de prova, constantes do processo, que impunham decisão diversa sobre esses factos. Ora, para além de não ter cumprido esse ónus, também em ponto algum das suas conclusões, a Recorrente pede a alteração de qualquer dos factos tidos como provados ou não-provados, ou o sentido em que, uns e outros, deveriam ser considerados. A Ré limita-se a manifestar a sua discordância quanto a determinados pontos de facto, sem nada adiantar quanto à solução que, a seu ver, seria a correcta (o diverso sentido em que cada concreto ponto de facto deveria ter sido decidido). Ora, segundo entendimento a que aderimos integralmente, «II - As meras considerações e especulações sobre meios de prova, não merecem relevo para efeitos de reapreciação da prova.». [[3]] Sem prejuízo, e a título de registo sobre como se continua a litigar em Portugal, não podemos deixar de apontar (art. 514º nº 2 do CPC) que, enquanto nas suas alegações, a Ré continua a questionar não se ter feito prova de que Autora e Ré são proprietárias dos respectivos prédios, consta da inspecção ao local efectuada no decurso da audiência de julgamento de 14.11.2011, na presença de Autora e Ré, e respectivos mandatários: «(...) Vê-se um terreno que ambas as partes convêm em que pertence à autora, (...). (...) ou seja, pelo lado Sul do dito terreno pertencente à autora. Este terreno pertencente à autora (...). (...) Examinando a pedido da ré o interior de sua casa, mostra-nos uma sala (...).»! (destaques nossos) Assim sendo, o mérito desta Apelação passará por analisar as questões de direito, de acordo com os factos considerados na decisão. 6.2. PRESSUPOSTOS DA CONSTITUIÇÃO DA SERVIDÃO Resulta do art. 1543º do Código Civil (CC, diploma a ter em conta nos demais preceitos legais que vierem a ser citados sem outra menção de origem), que uma servidão é um encargo (na medida em que restringe a plenitude do direito de propriedade, já que o proprietário do prédio serviente fica impedido de, no seu próprio prédio, praticar actos que impeçam ou dificultem o uso da utilidade proporcionada pela servidão) imposto a um prédio (prédio serviente), em benefício de outro (prédio dominante). No caso, a utilidade traduz-se no direito de passagem. Segundo o art. 1550º, para a constituição duma servidão de passagem é necessária a demonstração de: · existência de dois prédios, pertencentes a proprietários diferentes · que um desses prédios não tenha comunicação com a via pública · que o outro prédio seja rústico e tenha condições para lhe proporcionar o acesso à via pública Tais requisitos estão demonstrados no caso: o prédio da Autora não tem acesso à via pública e o prédio da Ré reune condições para lhe proporcionar esse acesso. Porém, suscita a Ré a questão de existirem outros prédios, para além do seu, que igualmente permitem a passagem da Autora. E, no seu entender, à Autora incumbia o ónus de alegação e prova de que era o prédio da Ré o menos prejudicado com a imposição da servidão. Não é assim. Como bem refere a Ré, a constituição duma servidão traduz o exercício dum direito potestativo, ao qual, como é sabido, corresponde uma sujeição. «Quer dizer, mal se acaba de concretizar o condicionalismo justificativo, previsto na lei (...), fica a outra parte sujeita à possibilidade de o direito vir (ou não vir) a ser exercido. Porém, uma vez exercido pelo seu titular, os efeitos do direito impõem-se imediatamente à outra parte que se encontra naquele estado de sujeição. Deste modo, o atingido pelo exercício de um direito potestativo não pode subtrair-se ao mesmo, não pode violá-lo; apenas pode, isso sim, fazer valer a falta dos pressupostos para o seu exercício eficaz, ou seja, a não verificação do condicionalismo justificativo (...) ou a invalidade da maneira como o direito (existente) foi invocado ou, eventualmente, ainda, o carácter abusivo com que foi exercido.» [[4]] Portanto, em termos processuais, significa isto que à Autora bastava o ónus de alegação e prova de ser dona de prédio encravado e de ser a Ré proprietária de um prédio confinante pelo qual se podia efectuar o acesso à via pública: art. 1550º e art. 342º nº 1 CC. Em tanto se traduz a previsão legal para o reconhecimento do direito potestativo de constituição de servidão de passagem. A existência de outros prédios, com igual ou melhor potencialidade para proporcionar o acesso do prédio da Autora à via pública, ou que sofram menos prejuízo/inconvenientes, constitui uma excepção peremptória (na medida em que consubstancia um facto impeditivo da eficácia do direito potestativoda Autora). Enquanto excepção peremptória, incumbia à Ré o ónus da respectiva alegação e prova: art. 342º nº 2 CC. A Ré não cumpriu esse ónus. Não obstante, em nome do princípio da aquisição processual (art. 515º CPC) [[5]], há que ter em conta os factos que se mostrarem pertinentes à solução jurídica do caso, ainda que alegados por quem não tinha o respectivo ónus. Ora, ainda que sob inicitiva da Autora, provou-se que, para além do caminho através do prédio da Ré, existe uma outra possibilidade de atingir a via pública. Assim, existe um outro acesso, a Norte (o acesso pelo prédio da Ré ocorre a Sul), o qual se processa através de dois prédios: o prédio rústico inscrito na matriz sob o nº 12 da Secção AO, e o prédio misto inscrito na matriz sob o nº 82 da Secção AG (este sim com comunicação à via pública). Este prédio rústico nº 12/AO, que confina a norte e a nascente com o prédio da Autora, também não tem comunicação com a via pública e termina a nascente num pequeno riacho, mas a norte dá acesso a um caminho preexistente sito no prédio misto nº 82/AG, sobre o qual existe a referida servidão de passagem. Para além disto, provou-se ainda que o caminho que atravessa o prédio nº 82/AG deita directamente para a Estrada Municipal, estando a sua entrada aberta, e que, tal caminho passa muito afastado do edifício existente nesse prédio nº 82/AG. Quanto aos outros prédios, é tudo o que se apurou. Ora, tal matéria factual é insuficiente para se aquilatar sobre se a passagem por estes prédios é menos gravosa ou prejudicial do que a que a Autora pretende pelo prédio da Ré. Desde logo, em termos objectivos, pode considerar-se mais gravosa uma servidão que onera dois prédios do que aquela que onera só um. É claro que tal, só por si, não seria razão bastante, pois tudo dependeria das características desses dois prédios, da utilização que lhes é dada pelos respectivos proprietários, da distância a percorrer, etc. Tudo isso seria necessário para, em comparação com o prédio da Ré se poder concluir, de entre uns e outro, qual o prédio que sofria menos prejuízo e qual a passagem menos inconveniente (art. 1553º CC). Para possível comparação, sabe-se apenas que o (outro) prédio nº 82/AG é um prédio misto e já está onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio nº 12/AO. Mas, o mesmo acontece com o prédio da Ré, também ele misto onerado com servidão de passagem (“o prédio que confina a Poente com o prédio da Autora também não tem qualquer comunicação com a via pública e utiliza como acesso o caminho existente no prédio da Ré.”). Mais nada se sabendo quanto aos outros prédios __ omissão imputável à Ré, como atrás se deixou referido __, resta inviável a possibilidade de efectuar comparação e de se concluir que esses outros prédios sofreriam menos prejuízo e inconveniências que o prédio da Ré. [Naturalmente que o facto de o proprietário do outro prédio “não permitir a passagem da Autora” e de “ameaçar com tiros de caçadeira” é absolutamente irrelevante para a decisão de constituição da servidão! Posto é que se tivesse demonstrado que seria o seu prédio o que menos prejuízo sofria.] Também não colhe o argumento de não se mostrar provado que o caminho por onde se deve processar a passagem afecta apenas a parte rústica do prédio da Ré. Na verdade, resulta da factualidade apurada que o prédio da Ré é um prédio misto e nele está implantada a moradia que lhe serve de habitação. E mais se apurou que em frente da casa, existe um terreiro que a Ré aplanou e que serve de logradouro à casa. «É possível constituir servidão legal de passagem sobre os terrenos adjacentes a prédios urbanos se os donos destes não usarem oportunamente do direito de aquisição do prédio alegadamente encravado.» [[6]] Há um caminho de acesso à moradia e, quer a frente da habitação, quer o terreiro, deitam directamente para esse caminho. Perante estes factos, resulta claro que a servidão irá afectar apenas a parte rústica do prédio pois coincidirá com o caminho já existente. É certo que, para além do mais, a constituição da servidão acarrecta falta de privacidade à Ré, tanto mais que ela gosta de passar tempos de lazer e tomar refeições numa mesa que colocou em frente da porta da sala de estar, do lado Sul. Contudo, a Ré não demonstrou que esses inconvenientes não existissem no outro prédio, também misto. E, para além disso, mostra-se provado que a entrada para o terreno da Autora dista 28,80 metros do murete que define a zona de acesso à porta principal da moradia da Ré, o que é uma distância aceitável para a preservação da intimidade da Ré. Acima de tudo, o valor da preservação dessa intimidade já é relativo pois mostra-se provado que esse mesmo caminho já dá passagem a favor de um outro prédio, o que confina a Poente com o prédio da Autora, também ele encravado. Improcede, pois, a questão em apreço. Quanto à questão da indemnização devida pela servidão, e dado que ela constitui o objecto do recurso da Autora, será tratada de seguida, conjuntamente. 7. APELAÇÃO DA AUTORA 7.1. NULIDADE POR CONTRADIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO É nula a sentença cujos fundamentos estejam em contradição com a decisão: art. 668º nº 1 al. c) do CPC. Elementos essenciais duma sentença, são os fundamentos de facto e de direito em que se estriba a decisão: art. 659º nº 2 do CPC. O juiz, após descriminação dos factos provados, inicia a subsunção desses factos às normas de direito que considera aplicáveis ao caso, para terminar por concluir/decidir se ao Autor assiste ou não razão. Tal como ocorre no silogismo (a conclusão é a consequência necessária das premissas, maior e menor), a decisão tem de ser a consequência lógica desses fundamentos. A contradição a que se refere o normativo em análise é a contradição lógica, aquela que se verifica quando «(...) o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, (...).». Coisa diferente da concordância lógica entre os fundamentos e a decisão é o erro de julgamento: «Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.» [[7]] Como resulta das conclusões de recurso, a Autora imputa o vício em epígrafe à sentença por o Mmo. Juiz a quo ter considerado “provado que da constituição da servidão não resultam prejuízos para a Ré e com base nisso condenar a A. a pagar à Ré um montante tão avultado a título de indemnização pelos prejuízos resultantes da constituição da servidão”. Não é verdade. No ponto da sentença em que se descrevem os factos provados, inexiste qualquer referência a prejuízos decorrentes da servidão. O que sucede é que, na fundamentação de direito, o M.mº Juiz teve de se confrontar com essa evidência de não se terem provado prejuízos. A partir dessa constactação, haveria que averiguar/demonstrar se a ausência de demonstração de prejuízos inibia a fixação de indemnização. Para tanto, desenvolveu raciocínio, escalpelizando argumentos vários (e argumentos não são factos), acabando por concluir que a constituição duma servidão é, só por si e enquanto tal, encargo/incómodo/prejuízo a merecer compensação indemnizatória. Saber se esse raciocínio está correcto, ou se os argumentos usados são atendíveis, remete-nos para a questão do erro de julgamento, e não para a contradição entre os fundamentos e a decisão. Consequentemente, improcede a invocada nulidade. 7.2. NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA Corolário do princípio do dispositivo, e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o juiz apenas pode conhecer das questões suscitadas pelas partes: art. 660º nº 2 do CPC. Em consonância, é nula a sentença em que o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento: art. 668º n.º 1 al. d) do CPC. O exacto conteúdo do que sejam as questões a resolver de que falam tais normativos foi objecto de abundante tratamento doutrinal [[8]] e jurisprudencial [[9]], havendo neste momento um consenso no sentido de que não se devem confundir as questões a resolver propriamente ditas com as razões ou argumentos, de facto ou de direito, invocadas pelas partes, para sustentar a solução que defendem a propósito de cada questão a resolver. Utilizando a singela clareza de exposição de Rodrigues Bastos: «É a nulidade mais frequentemente invocada nos tribunais, pela confusão que constantemente se faz entre «questões» a decidir e «argumentos» produzidos na defesa das teses em presença» [[10]] e «Também devem arredar-se os «argumentos» ou «raciocínios» expostos na defesa da tese de cada uma das partes, que podendo constituir «questões» em sentido lógico ou científico, não integram matéria decisória para o juiz. Temos, assim, que as questões sobre o mérito a que se refere este n.º 2 serão as que suscitam a apreciação quer a causa de pedir apresentada, quer o pedido formulado». [[11]] Considera a Autora que o Mmo. Juiz a quo determinou “o valor da indemnização com base nos benefícios que imagina que a A. poderá vir a ter (...)”, designadamente numa capacidade construtiva do prédio dominante, que nunca foi alegada nem provada. A ser assim, há que repetir o que se disse no ponto anterior: a nulidade em apreço não se reporta a razões/argumentos/bases de raciocínios, mas apenas quanto a questões. A atribuição de indemnização e o seu quantum foi suscitada e pedida pela Ré, pelo que era questão a decidir. Conclui-se não se verificar a nulidade. 7.3. DA INDEMNIZAÇÃO DEVIDA Ambas as partes se mostram desagradas quanto à fixação do montante da indemnização em € 10.000,00. A Ré, tendo pedido € 14.000,00, considera inexistir justificação para abater à indemnização pedida pela ré a quantia de 4.000 euros, e não ser aceitável proceder a essa redução com base em eventuais despesas que a Autora venha a ter com a constituição da servidão, abertura ou manutenção do caminho, ou com o seu terreno. Já a Autora, entende que o montante indemnizatório foi fixado em “pressupostos/factos não provados e nem sequer alegados e em suposições e conjeturas desprovidas de qualquer fundamento factual ou jurídico”; o respectivo cálculo deve ser “…orientado pelo disposto nos artigos 562º e seguintes do C.C.”. Resulta da análise da sentença recorrida que, efectivamente, para fixar o montante indemnizatório, o M.mº Juiz ponderou não só os incómodos/prejuízos que a constituição da servidão iria acarretar à ré, mas também os benefícios que tal traria à Autora. Quanto aos benefícios, assiste razão à Autora, pois estes não são de considerar. «O que a indemnização não cobre, porém, ao contrário do que sustentava M. Rodrigues (...), são as vantagens ou lucros obtidos pelo proprietário do prédio dominante com a constituição da servidão.». [[12]] No mais, já não acompanhamos o entendimento da Autora. Na verdade, a constituição duma servidão pode originar prejuízos variados, de índole material e não material. Basta pensar, por exemplo, que no local onde deva efectuar-se o local da passagem podem existir plantações, que assim deixarão de continuar a poder fazer-se, o que acarretaria danos emergentes e lucros cessantes a ter em conta. Neste âmbito, a Ré alegou ser cantora e professora de canto, necessitando de silêncio quer para fazer os seus ensaios quer para dar lições aos seus alunos; estaria assim prejudicada a sua actividade profissional, pela falta de sossego que a servidão acarretaria, com a passagem de veículos, tractores e maquinaria que se dirijam ao prédio da Autora. Estes factos relativos à actividade profissional, efectivamente não foram provados, pelo que a eles não há que atender-se. Não obstante, não pode esquecer-se que existem ainda os factos ditos notórios, aos quais o Tribunal deve atender, ainda que não alegados (e, pour cause, não provados): art. 514º nº 1 CPC. Ora, consubstanciando um encargo, a constituição duma servidão é, enquanto tal e só por isso, um prejuízo, uma vez que, e quanto mais não fosse, determina uma desvalorização do prédio serviente. [[13]] Essa desvalorização, por evidente, não precisa de ser alegada e provada. [coisa diferente, e face ao princípio do pedido, seria a necessidade de a indemnização ser peticionada, já que se trata de um direito renunciável; no caso, a Ré pediu-a expressamente] E, como é entendimento doutrinal e jurisprudencial, essa desvalorização ocorre ainda que o prédio serviente já se encontre onerado com idêntica servidão a favor doutro prédio, «(...) indemnização essa que não pode, desde logo e sem mais, ser afastada em situações em que, como no presente caso, a servidão a constituir se venha a implantar sobre parte do prédio que já vem sendo usada por outros e no exercício de servidão de passagem, porquanto a constituição de uma nova servidão determina, na generalidade dos casos, uma nova desvalorização do prédio serviente. Na realidade, como a tal propósito e de forma clara já referia Carlos Nascimento Gonçalves Rodrigues [‘In’ Da servidão legal de passagem, pág. 240], “...se um prédio já estiver onerado com uma servidão legal de passagem, na hipótese da constituição de uma nova servidão, o dono do prédio dominante ainda será obrigado a indemnizar, pois, pelo facto da constituição da nova servidão, o prédio serviente sofre nova desvalorização, devendo, por conseguinte, o dono do segundo prédio dominante indemnizar o dono do prédio serviente pelo quantitativo resultante dessa nova desvalorização. ...”.». [[14]] Também com desnecessidade de alegação e prova __ e especificamente por o prédio serviente ser um prédio misto, no qual está implantada a casa de habitação da Ré __, a constactação de que a constituição da servidão irá perturbar a intimidade e o sossego da Ré. Quanto a estes, danos morais, é certo que se provou que a entrada para o terreno da Autora dista 28,80 metros do murete que define a zona de acesso à porta principal da moradia da Ré. Contudo, também se provou que, em frente da casa, a Ré tem um terreiro, que deita directamente para o caminho que constituirá a servidão e onde a Ré tem mesa e cadeiras, onde gosta de passar o tempo e tomar refeições quando faz sol. Esta sua privacidade e sossego naturalmente que ficam prejudicadas e merecem a tutela do direito. Quanto à dimensão dessa perturbação, a Autora alega que, no que respeita à futura utilização do prédio, apenas “pretende concretizar no seu prédio um melhor aproveitamento agrícola, rentabilizando a cultura arvense já existente” e não uma “exploração agrícola sofisticada e com grandes maquinarias”. Por outro lado, se bem que refira que o seu prédio não tem capacidade construtiva, logo de seguida dá nota que, três anos antes, efectuou um pedido de informação prévia sobre a viabilidade de construção, que lhe foi indeferido pela Câmara Municipal. Contudo, dando de barato que essa seja a situação actual, não se pode deixar de ponderar que a constituição de uma servidão é encargo para longos anos e que nenhuma realidade é imutável, ou, como diz a sabedoria popular, “a vida dá muitas voltas”! É certo que a constituição duma servidão traduz o exercício de um direito, pelo que é um acto lícito. Justificando a obrigação de indemnizar, mesmo quando se adopta uma conduta lícita, salienta Antunes Varela, «O acto pode ser lícito e obrigar, todavia, o agente a reparar o prejuízo que a sua prática porventura cause a terceiro. Não há contradição lógica entre as duas ideias. O acto (lesivo) pode ser lícito, porque visa satisfazer um interesse colectivo ou o interesse qualificado de uma pessoa de direito privado. Mas pode, ao mesmo tempo, não ser justo (no plano da justiça comutativa ou no da justiça distributiva) que ao interesse colectivo, ou ao interesse qualificado da pessoa colectiva ou singular, se sacrifique, sem nenhuma compensação, os direitos de um ou mais particulares ou os bens de uma outra pessoa.» [[15]] Concluindo, não assiste razão à Autora quando invoca não existirem prejuízos. E serão os danos morais indemnizáveis, em termos de responsabilidade civil por actos lícitos? Desde logo, há que registar que em ponto algum do Código Civil, faz a lei alguma restrição ou menção no sentido de o não serem. Onde a lei não distingue, não deve o intérprete fazê-lo, a não ser que existam diferenças substanciais que assim o determinem. Ora, como refere Almeida Costa [[16]], a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, «Também se afigura justificada relativamente à responsabilidade que derive de intervenções lícitas. (...). Sabemos que não há entre esta e a responsabilidade extracontratual diferenças essenciais que fundamentem outra conclusão.» O mesmo foi considerado pelo Supremo Tribunal de Justiça: «E a verdade é que, à luz dos princípios que doutrinariamente justificam a compensação dos danos não patrimoniais, não há razões que levem a postergar os danos desse tipo causados pelo exercício de uma actividade lícita, tais como estados de ansiedade e outros incómodos de ordem psicológica, em tudo semelhantes aos que podem ocorrer na sequência da prática de um acto ilícito, sem embargo da inexistência de norma de carácter genérico relativa à responsabilidade por intervenções lícitas na esfera jurídica alheia.» [[17]] Portanto, não se encontra justificação legal que impeça a admissibilidade da reparação dos danos morais em sede de responsabilidade civil por actos lícitos. Quanto ao montante da indemnização, temos um dano material decorrente da desvalorização do prédio, e os danos morais relativos à perturbação da reserva da intimidade e ao sossego da Ré. Se bem que a desvalorização do prédio constitua um dano mais ou menos quantificável, já o mesmo não acontece com os danos morais, pelo que sempre se imporia o recurso à equidade (art. 566º nº 3 do CC). Temos por justo e equilibrado o montante de € 10.000,00 fixado em 1ª instância, designadamente atendendo a que existem danos atinentes a direitos de personalidade, os quais perdurarão por largos anos, como é da natureza das servidões. Concluindo, improcedem ambas as apelações. III. DECISÃO 9. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Évora em julgar improcedente ambas as apelações, confirmando-se a sentença recorrida, ainda que por fundamentos não integralmente coincidentes. Quanto a custas, Autora e Ré suportarão as custas do decaimento da respectiva apelação, tendo-se em conta o valor de sucumbência fixado em 1ª instância (10.000,00 euros para a Autora, e 19.001,00 euros para a Ré) que, por não questionado, transitou em julgado. Évora, 18.04.2013 [1] Como é sabido, são as conclusões que delimitam o objecto do recurso ou “thema decidendum”; as alegações servirão para explanar os argumentos na defesa da tese do recorrente quanto à demonstração das questões suscitadas; já as conclusões devem referir, de forma sucinta, os pontos em que se considera ter havido erro de julgamento (seja quanto à matéria de facto, seja quanto à de direito), em conformidade com o nº 1 e 2 do art. 685º-A do CPC.(Relatora, Maria Isabel Silva) (1ª Adjunta, Alexandra Moura Santos) (2º Adjunto, Eduardo Tenazinha)_________________________________________________ Constactando-se que sob a epígrafe "conclusões", a Recorrente apenas reproduz os argumentos das alegações, dispensamo-nos de aqui reproduzir o que não são conclusões. [2] Verificando-se a mesma situação nas contra-alegações, e feitas as devidas adaptações, damos aqui por reproduzido o constante da nota 1. [3] Acórdão da Relação do Porto (RP), de 25.10.2010 (processo 1387/08.2TBMTS.P1) ), disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem. [4] Heinrich Ewald Hörster, “A Parte Geral do Código Civil Português”, Almedina, 2ª reimpressão, pág. 250. [5] Segundo Manuel Domingues de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 385: «Os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária.». [6] Acórdão da RP, de 26.06.2001 (processo 0120953). [7] Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil, Anotado”, Coimbra Editora, 2ª edição, vol. 2º, pág. 704. [8] Cf. Alberto dos Reis, in «Código de Processo Civil Anotado», vol. V, pág. 143; Rodrigues Bastos, in «Notas ao Código de Processo Civil», 1969, vol. III, pág. 228. [9] Cf., entre muitos, acs. do STJ, de 06.01.977 (BMJ, 263º, 187), de 05.06.985 (Ac. Dout., 289º, 94), de 11.11.987 (BMJ, 371º, 374) e de 27.01.993 (BMJ, 423º, 444). [10] obra citada, pág. 247. [11] Obra citada, pág. 228. [12] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 643. [13] Neste sentido, acórdãos da RP, de 03.07.2012 (processo 3696/09.4T2OVR.C1.P1). [14] In acórdão da RP, de 05.12.2005 (processo 0554535). [15] in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 3ª edição, Almedina, pág. 588. [16] Almeida Costa, "Direito das Obrigações", 10ª edição, Almedina, pág. 603. [17] Acórdão de 28.05.1996 (processo 088389, Nº do Documento: SJ199605280883892). |