Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | JOÃO AMARO | ||
Descritores: | LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA RECONHECIMENTO DE IDONEIDADE | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 05/08/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - Não é de reconhecer “idoneidade” a requerentes de licença de uso e porte de arma que possuam condenações criminais anteriores, pela prática de crimes graves, violentos e dolosos - sem que isso viole quaisquer preceitos ou princípios - quer legais, quer constitucionais. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - RELATÓRIO. Por decisão proferida em 25 de outubro de 2017, no Juízo Central Criminal de Setúbal (Juiz 1), não foi reconhecida a F idoneidade para ser titular de licença de uso e porte de arma de caça. Inconformado com a aludida decisão, dela recorreu F, formulando as seguintes (transcritas) conclusões: “A) O presente incidente constitui-se como o segundo junto aos autos principais, deduzindo o ora recorrente pedido de reconhecimento de idoneidade para obter licença de uso e porte de arma de caça. B) O primeiro requerimento foi apresentado em 10/02/2010, tendo o parecer da Digna Magistrada do Ministério Público, promovido o indeferimento do requerido e o Tribunal a quo proferido Decisão no sentido de não se reconhecer a idoneidade ao requerente para que lhe fosse concedida licença de uso e porte de arma da categoria D, aderindo, na íntegra, ao parecer formulado pela Digna Magistrada do Ministério Público. C) Não concordando o ora recorrente e então requerente com tal decisão recorreu da mesma sendo que, a final, por Acórdão datado de 21/12/2010, o douto Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso, mantendo a douta Decisão recorrida. D) Na Decisão de que ora se apresenta recurso, o douto Tribunal a quo, integrando os factos ao direito, após referir o teor do nº 2 do artigo 14º da Lei das Armas, fundamenta o decidido na condenação de que foi alvo o requerente nos autos principais porquanto, constatada a prática e condenação do recorrente pela prática do crime de homicídio, em seu entendimento está sobejamente indiciada a falta de idoneidade para a pretensão aduzida. E) Não se conforma o recorrente que a condenação penal de que foi alvo seja de per si suficiente e/ou determinante para a Decisão proferida, porquanto existem outros elementos que deviam ter sido tomados em consideração pelo douto Tribunal a quo na Decisão, já que cumpriu a pena em que foi condenado de forma exemplar e encontrando-se em liberdade há alguns anos tem cumprindo as regras e adotado um comportamento de acordo com o direito. F) Importa saber qual o juízo que o Tribunal decisor poderá ou deverá efetuar para poder concluir e decidir pela idoneidade ou pela falta dela, aplicando a justiça ao caso concreto, sendo que para efeitos de apreciação do requisito de idoneidade estabelecido na alínea c) do artº 15º, consagra o nº 2 do mesmo artigo que a apreciação é feita nos termos do artº 14º, nºs 2 e 3, da mesma Lei, e preceituando o mesmo normativo em questão “sem prejuízo do disposto no artº 30º da Constituição e do número seguinte”. G) O ora recorrente não necessita de ter armas ou praticar o desporto da caça para que aconteça a sua reintegração, mas o indeferimento do requerido impossibilita a obtenção de licença de uso e porte de arma de caça e determina a impossibilidade de praticar o desporto que mais gosta e que há muitas décadas pratica, constituindo-se tal uma restrição à sua liberdade, não se conformando assim com a Decisão, já que aceitá-la seria aceitar que não há para si e na totalidade, reinserção social possível, encontrando-se limitado no exercício de direitos. H) Atentos os fundamentos apostos na Decisão de que se recorre, foram exclusivamente razões de prevenção geral que determinaram o decidido, sendo que a mesma, com todo o respeito o dizemos, deveria ter também atendido à reintegração do recorrente. I) É comummente reconhecido que nas doutas decisões judiciais deverá ter-se em conta as finalidades de prevenção geral positiva de integração e de prevenção especial sendo que, acompanhando doutrina e jurisprudência vária se é a prossecução da finalidade de prevenção geral que deve orientar as Decisões judiciais, é a finalidade da prevenção especial de socialização que fixa a sua medida final sendo que o douto Tribunal a quo, fundamentando-se num fim preventivo geral, olvida a reinserção e ressocialização do requerente, ora recorrido. J) Compulsada jurisprudência a propósito em situação semelhante à dos presentes autos, na mesma entende-se que a questão da idoneidade para os efeitos pretendidos pelo ora recorrente não pode ser apreciada tomando apenas como referência determinante a condenação pela prática de um crime, sendo que “(…) se assim fosse, a falta de idoneidade para uso e porte de arma constituiria uma decorrência automática da condenação criminal, o que seria manifestamente inconstitucional (…)” - (TRC, Proc. 47/08.9TAAVZ.C3 de 21/03/2012 in www.dgsi.pt). K) Atenta a doutrina, a Lei das Armas, a remissão para o Artigo 30º da CRP e a jurisprudência sobre o mesmo assunto, nada existe que determine ser esta ou aquela situação em concreto que revelam a falta de idoneidade, importando concretizar o conceito de idoneidade - (TRE de 20/12/2016, Proc. 3/10.7 GBETZ-A.E1 in www.dgsi.pt). L) Nos presentes autos, o requerente e ora recorrente aduz a pretensão de que lhe ser reconhecida a idoneidade para obter licença de uso e de porte de arma de caça e não se conforma com o decidido porquanto, a lei não consagra que o cidadão que cometa um homicídio fique, para sempre, inibido de caçar. M) Atentas as normas aplicáveis, a condenação pela prática do crime de homicídio apenas é suscetível de indiciar falta de idoneidade, um indício, um indicativo, um sintoma, não uma certeza, uma indubitabilidade. N) O Tribunal a quo deveria ter considerado todos os elementos existentes nos autos que lhe permitiriam apurar, de modo concreto, a idoneidade do ora recorrente para os efeitos pretendidos, o que não aconteceu. O) Os elementos existentes nos autos principais e os carreados para os autos do incidente permitiriam concluir pela reinserção social do ora recorrente, a sua aptidão, capacidade e qualidades para obter licença de uso e porte de arma de caça e desempenhar a atividade de caçar. P) Não foram considerados pelo tribunal a quo na sua douta decisão e em abono do requerido que: o crime de homicídio pelo qual foi condenado foi praticado em 16.06.2004, há mais de 13 anos; que a partir do cumprimento de oito meses da pena cumpriu a pena de prisão em que foi condenado, em regime aberto; que teve louvores, que em 08/07/2011 lhe foi concedida liberdade condicional sem restrições; que em 04/07/2016, lhe foi concedida a liberdade definitiva; que não constam do CRC outras condenações; que está integrado profissional, familiar e socialmente. Q) Como também não foi considerado pelo Tribunal a quo na sua decisão, devendo tê-lo sido, que se retira dos autos e do parecer da douta Procura do MP no Incidente de pedido de reconhecimento de idoneidade datado de 2010, que o homicídio praticado pelo ora recorrente encontra-se inserido num contexto muito específico, não tendo o mesmo provocado os acontecimentos nem tendo sido um ato descontextualizado de violência gratuita mas antes o culminar de uma relação tensa e de uma série de acontecimentos que o amedrontaram. R) Deveria ainda ter sido considerado para a douta decisão do Tribunal a quo que, apesar de estar a cumprir pena de prisão, o então e ora requerente, revelando já um comportamento de respeito pelas normas instituídas, requereu o pedido de reconhecimento de idoneidade (02/2010) para possibilitar que as armas de caça de sua propriedade fossem mantidas na sua posse de forma legítima. S) Após o cumprimento da pena em que foi condenado, volvido à liberdade e passado algum tempo, vem o ora recorrente argumentar a sua pretensão, não renunciando a esta, pretendendo “fazer valer” os seus direitos, o que caracteriza um cidadão cumpridor das normas instituídas e um comportamento de respeito pelas instituições. T) Não foram apurados quaisquer factos que permitam ao Tribunal concluir que existem indícios que o comportamento do ora Recorrente venha a ser diferente do imprimido durante e após o cumprimento da pena em que foi condenado, nem que permita seja alterado o juízo de comportamento exemplar do mesmo no tempo de cumprimento da pena de prisão. U) No mui douto parecer da digna procuradora do MP junto do Tribunal de 1ª instância nos Autos de Incidente que correram seus termos no ano civil de 2010, doutamente se concluiu que naquele tempo não se revelava possível determinar-se o reconhecimento da idoneidade do então e ora requerente e recorrente, porquanto o mesmo não se encontrava em liberdade e não estava inserido, plenamente, na sociedade, situação que ora acontece. V) Jurisprudência já citada, que reflete uma situação semelhante à dos presentes autos, ensina que a suscetibilidade de se mostrar indiciada a falta de idoneidade na condenação pela prática de um crime terá de ser apreciada casuisticamente, não bastando a verificação da condenação pelo crime de homicídio - (TRC, Proc. 47/08.9TAAVZ.C3, de 21/03/2012) -. W) Seguindo os ensinamentos explanados, o Tribunal a quo deveria ter ponderado, tal não tendo acontecido, as circunstâncias concretas em que o ora recorrente cometeu o crime em que foi condenado, não se revelando suficiente que a mera condenação judicial do recorrente pela prática do crime de homicídio seja suscetível de, por si, revelar a sua falta de idoneidade para os fins de obtenção de reconhecimento de idoneidade para obter licença de uso e porte de armas de caça. X) O ora recorrente com o presente recurso não pretende negar a gravidade do crime que cometeu, mas reclamar que sejam ponderadas as restantes circunstâncias abonatórias e efetuado o juízo de prognose favorável para o deferimento da pretensão que aduziu, sendo que a sua pretensão tem de ser apreciada casuisticamente, devendo ser tomada em consideração tanto nas circunstâncias do cometimento do crime, como do comportamento subsequente do arguido. Y) Durante o cumprimento da pena de prisão, o ora recorrente revelou um comportamento exemplar, aos oito meses de cumprimento da pena foi colocado em regime aberto, os louvores e a concessão de liberdade condicional sem restrições são circunstâncias que revelam que o arguido e ora recorrente beneficiou, durante o cumprimento da pena, de um juízo de prognose favorável, sendo que após ser devolvido à liberdade e atentos os elementos trazidos aos autos, este juízo favorável não se alterou. Z) A decisão de que se recorre violou, assim, o disposto nos artigos 28.º, n.º 1, 15.º, n.ºs 1 e 2, 14.º, n.ºs 2 e 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, alterada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, e Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto e o Artigo 30º da CRP. AA) O ora recorrente reúne as condições para que lhe seja reconhecida idoneidade para obter licença de uso e porte de arma de caça e praticar legitimamente o seu desporto favorito. Nestes termos e nos demais de direito aplicável, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores, deve a douta Sentença do Juízo Central Criminal de Setúbal, do Tribunal da Comarca de Setúbal, ser revogada, substituindo-se por outra em que seja reconhecida a idoneidade ao Recorrente nos termos do artigo 15º, e do artigo 14º, nºs 2, 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações da Lei n.º 59/2007, de 04/09, e Lei 17/2009, de 06/05, a fim de permitir a obtenção de licença de uso e porte de arma de caça, tudo com as legais consequências, com o que se fará mais uma vez, sã, serena e objetiva Justiça”. * A Exmª Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso, entendendo que o mesmo é de improceder, e concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição): “1º - O requerente F solicitou ao tribunal, nos termos do disposto nos artºs 14º e 15º da Lei nº 5/2006, de 23/02, que lhe fosse reconhecida a idoneidade para ser titular da licença de uso e porte de armas de caça. 2º - O Tribunal proferiu decisão desfavorável ao arguido, não lhe reconhecendo tal idoneidade, nos termos e para o fim supra aludido. 3º - O requerente F. insurge-se quanto a esta decisão, alegando, para tanto e em síntese, que a condenação pela prática de um crime de homicídio é apenas suscetível de indiciar falta de idoneidade, devendo o tribunal apurar as circunstâncias concretas em que o arguido o cometeu, bem como todos os factos posteriores e demais circunstâncias abonatórias, com pendor abonatório, decidindo tal como era peticionado. 4º - Para além dos requisitos de ordem genérica elencados no artº 15º da Lei nº 5/2006, de 23/02, o nº 2 do artº 14º do mesmo diploma legal refere que “…é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão”. 5º - No caso dos autos, o requerente foi condenado pelo crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, bem como pela prática de um crime de detenção de arma proibida, e, em cúmulo jurídico, foi-lhe aplicada a pena única de 11 anos e 2 meses de prisão. 6º - Ao contrário do que afirma o requerente, o seu depoimento foi tomado nos autos, solicitou-se relatório social, atestado médico e foi colhida informação à PSP sobre a existência de licença de uso e porte de armas, por parte daquele, sendo levados em consideração na decisão tomada. 7º - Todavia, o apuramento dos elementos ali referidos tem um pendor menos atenuante do que pretende o requerente, face ao juízo de censura social/comunitária, bem como ao consequente alarme e intranquilidade públicas que causaria uma decisão favorável àquele. 8º - Consequentemente, e tal como maioritariamente decidido pela jurisprudência, parece-nos ser de manter a decisão da Exmª Srª juiz, indeferindo o requerido. 9º - Não se verificam, in casu, quaisquer violações de nomas jurídicas. Razão por que se pugna pela manutenção do decidido e consequente improcedência do recurso”. * Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso dever improceder. Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do C. P. Penal, o recorrente apresentou resposta, reafirmando, no essencial, o já alegado na motivação do recurso. Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência. Colhidos os vistos legais, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO. 1 - Delimitação do objeto do recurso. Tendo em conta as conclusões apresentadas pelo recorrente e acima enunciadas, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, é apenas uma a questão que vem suscitada no presente recurso: saber se, perante a factualidade apurada, o recorrente tem (ou não) idoneidade para obter licença de uso e porte de arma de caça. 2 - A decisão recorrida. A decisão revidenda é do seguinte teor: “I – Relatório Por apenso ao Proc. 194/04.6GBGDL, que correu termos nesta instância central criminal, veio o ali arguido F., com os sinais constantes dos autos, requerer lhe seja reconhecida a idoneidade para ser titular de licença de uso e porte de arma de caça. Invoca para tal, o preceituado pelo artigo 14°/3, "ex vi" do artigo 15/2 da Lei 5/2006, de 23.2 (doravante designada como Lei das armas). E (para além de preceitos legais citados, mormente, a Constituição da República Portuguesa) em síntese, ainda, o seguinte: Não consagrar a lei que um cidadão que cometa homicídio fique, para sempre, inibido de caçar; Encontrar-se judicialmente reabilitado para efeitos de titularidade de uso e porte de arma, estando socialmente reintegrado; Ter sido o crime de homicídio, pelo qual foi condenado, praticado há mais de 12 anos; Apresentar um comportamento social merecedor da especial confiança que o Estado em si depositará, estando preparado para assumir a responsabilidade de ter uma arma; Dever ser considerado o enquadramento histórico e cultural da atividade venatória em Portugal, para flexibilizar o reconhecimento da sua idoneidade para a pretensão que aduz. A fls. 22, foi junto atestado médico, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, onde se declara que após sujeição a exame médico, com incidência física e psíquica, o ora requente tem aptidão para a detenção, uso e porte de arma. Foi elaborado relatório social, junto aos autos, a fls. 25 e ss, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, para todos os legais efeitos, no qual em síntese se conclui "(...) apresenta idoneidade para efeitos de concessão de licença de uso e porte de arma, estando a sua situação criminal ultrapassada". A fls. 7 e ss, foi junto CRC atualizado do arguido, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, sendo que a última condenação nele averbada, se reporta à que sofreu no âmbito dos presentes autos (pela prática a 16.6.2004, de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 6º da Lei 22/97, de 27.6, na pena única de 10 anos e 2 meses de prisão). Foi junta informação da PSP, segundo a qual o requerente não é titular de qualquer tipo de licença ou autorização para usar ou deter armas. Foram tomadas declarações ao requerente, nos termos e para os efeitos previstos pelo artigo 14°/5 da Lei das armas, tendo o mesmo referido, em síntese, gostar de caçar e encontrar-se impedido de o fazer, por não ser titular de licença para o uso e porte de arma de caça (tendo-o sido já, sendo que essa licença caducou, por não a ter renovado). A Digna Procuradora da República, emitiu douto parecer, a fls. 47, onde, pelos fundamentos ali aduzidos, promoveu o indeferimento do requerimento. O tribunal é competente, o processo não enferma de nulidade total, e inexistem questões prévias ou incidentais de que incumba apreciar oficiosamente. II. Os Factos e o Direito Tendo em conta todos os elementos referidos "supra", o processo já fornece todos os elementos que nos permitem decidir. Assim: O requerente aduz pretensão, no sentido de lhe ser reconhecida idoneidade para obter licença de uso e de porte de arma de caça. Nos termos previstos pelo artigo 14º/3 da Lei das armas, aplicável por força do seu artigo 15º/2, pode o requerente aduzir a pretensão que introduziu em juízo, no decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal, das decisões judiciais em que tenha sido condenado. Constitui indício de falta de idoneidade (nº 2 do citado artigo 14º) para efeitos da concessão, o facto de o requerente ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a um ano de prisão. Ora, o requerente foi condenado pela prática, dolosa, do crime mais grave de todos os que são tutelados no Código Penal. Com efeito, condenado que foi pelo crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, em 11 anos de prisão, a morte que causou foi empreendida através de uso de arma (cuja detenção ilegal demandou fosse punido, também, pelo respetivo crime), em cúmulo jurídico, foi-lhe aplicada a pena única de 11 anos e 2 meses de prisão. Ou seja, não só praticou o crime mais violento do Código Penal, como usou arma para fazê-lo. Do que resulta sobejamente indiciada a falta de idoneidade para efeitos da concessão que visa ser obtida, não colhendo o argumento segundo o qual não existem (como de facto não existem) penas perpétuas, porque é a própria Lei das armas que define, naquele citado artigo 14º/2 da Lei das armas, como indício de inidoneidade, a condenação por crime doloso violento, ressalvando o preceituado pelo artigo 30º da CRP. A não concessão de licença de uso e porte de arma não é uma modalidade penal, nem uma medida de segurança, pelo que não faz sentido algum recorrer ao argumento da perpetuidade aduzido pelo requerente. Sem embargo do teor do relatório social e do atestado médico juntos aos autos, as razões de prevenção geral que podem e devem ser ponderadas quanto à respetiva concessão, não são de molde a permitir, sem que com isso se cause justíssimo alarme social, que alguém (a menos que houvesse razão muito ponderosa - e o gosto que o requerente sente pela atividade venatória, uma atividade de âmbito mais ou menos lúdico, não consubstancia razão, quando mais ponderosa, para derrogar aquele indício, legalmente consagrado -), condenado pelo referido crime, praticado nas referidas circunstâncias, aceda a uma licença de uso e porte de arma, independentemente desta ser de caça, ou de outra natureza. Contrariam essa possibilidade as razões de ordem e de tranquilidade públicas, das quais os tribunais são tributários, que não se compadecem com a autorização pretendida. Razão pela qual, sem ulteriores delongas, se tem como indemonstrada a idoneidade do requerente para obter a pretendida licença. III - Decisão Termos em que, tudo visto e ponderado, se decide: Ter como indemonstrada, nos termos e para os efeitos previstos pelo artigo 14º/3, "ex vi" do artigo 15º, ambos da Lei das armas, a idoneidade de F. para a obtenção de licença de uso e porte de arma de caça, indeferindo-se, na totalidade, a pretensão aduzida nestes autos pelo requerente. Custas pelo requerente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC's. Registe e notifique”. 3 - Apreciação do mérito do recurso. Entende o recorrente, em breve resumo, que o crime de homicídio, pelo qual foi condenado, foi cometido há mais de 12 anos, que cumpriu a pena respetiva, e que possui comportamento social merecedor de lhe ser reconhecida idoneidade para ser titular de licença de uso e porte de arma de caça. Cumpre apreciar e decidir. O nosso sistema legal proíbe, por princípio, a detenção, uso e porte de armas de caça. Essa detenção, uso e porte não são ilegais se o agente tiver sido autorizado para o efeito. Tal procedimento de autorização está previsto nos artigos 7º e 8º da Lei nº 5/2006, de 23/02 (que estabelece o regime jurídico das armas e munições). A especificação das condições de cuja verificação depende a concessão da licença de uso e porte de armas de caça consta do artigo 15º da referida Lei nº 5/2006, que dispõe, no seu nº 1, que a concessão de licença de uso e porte de armas de caça pode ser atribuída a maiores de 18 anos, desde que preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos: - Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis; - Demonstrem carecer de licença de uso e porte de arma dos tipos C ou D para a prática de atos venatórios; - Se encontrem habilitados com carta de caçador com arma de fogo ou demonstrem fundamentadamente carecer da licença por motivos profissionais; - Sejam idóneos; - Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23º; - Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo. Sobre o requisito da “idoneidade”, estabelece o nº 2 do mesmo preceito legal que a apreciação de tal requisito é feita nos termos do disposto nos nºs 2 a 4 do artigo 14º da Lei nº 5/2006, que preceituam: “2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão. 3 - No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação. 4 - A intervenção judicial referida no número anterior não tem efeitos suspensivos sobre o procedimento administrativo de concessão ou renovação da licença em curso”. Em síntese: a autorização de uso e porte de armas de caça é excecional e depende da verificação das condições acima elencadas, nomeadamente da “idoneidade” para usar tais armas, sendo suscetível de indiciar falta de “idoneidade” a circunstância de o requerente ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão. Importa, pois, face ao alegado pelo recorrente e à questão que nos cumpre apreciar e decidir, caracterizar e definir o conceito de “idoneidade”, não esquecendo, nesta tarefa, o que estatui o artigo 14º, nº 2, da Lei nº 5/2006 (e repete-se): “sem prejuízo do disposto no artigo 30º da Constituição, (…) é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outros, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão”. A remissão para o artigo 30º da Constituição da República Portuguesa está relacionada, a nosso ver, com os chamados “efeitos da condenação”, que se traduzem, em suma, na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecânica, e independentemente de decisão judicial (apenas por força da lei), a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos (artigo 30º, nº 4, da nossa Lei Fundamental). A referida proibição decorre, assim, do princípio jurídico-constitucional subjacente à ideia político-criminal de retirar às penas qualquer efeito infamante ou estigmatizante e do dever do Estado de favorecer a socialização do condenado. Na opinião expressa na motivação do recurso, a remissão para o artigo 30º da Constituição da República Portuguesa está ainda relacionada com a proibição de penas (ou de medidas de segurança restritivas da liberdade) com caráter perpétuo ou de duração ilimitada (artigo 30º, nº 1, da mesma Lei Fundamental). Contudo, na proibição do uso de armas para o exercício da atividade da caça (em determinadas circunstâncias, obviamente), e com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, não estamos em presença de uma qualquer pena, nem existe um direito constitucional ao uso e porte de armas de caça, nem a restrição do uso de armas de caça é meramente decorrente (de forma automática) da lei, dependendo sempre, em última instância, de verificação jurisdicional, operada caso a caso. Nada há, portanto, de ilegal, de inconstitucional ou de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionamentos à posse e ao uso de armas de caça. Numa outra ordem de ideias, a “idoneidade” agora em apreciação traduz, numa formulação genérica, a capacidade ou a qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma, alguém de quem se espera que, em caso de concessão de tal licença, faça um uso da arma em causa correspondente aos fins legais. A esta luz, o requerente do uso da arma será idóneo quando apresente um comportamento social denotador de ser merecedor da especial confiança que o Estado nele vai depositar. Pelo contrário, o requerente do uso da arma será inidóneo quando, por exemplo através de crime por si praticado e pelo qual foi condenado, demonstrou grande desprezo pelas regras da sociedade em que se encontra inserido. Por outras palavras: o requerente do uso da arma deverá ser considerado inidóneo quando se demonstrar que não está preparado para assumir a responsabilidade de deter uma arma, designadamente por ter sido condenado pela prática de crime doloso, violento, praticado com uso de arma, e punido com pena de prisão superior a um ano. Revertendo ao caso sub judice, verifica-se que o ora recorrente foi condenado pela prática, em 16-06-2004, de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 6º da Lei 22/97, de 27/06, na pena única de 10 anos e 2 meses de prisão (pena que o ora recorrente cumpriu, tendo-lhe sido concedida liberdade condicional em 08-07-2011, e tendo ocorrido o terminus de tal pena, com a concessão da “liberdade definitiva”, em 04-07-2016). Mais se verifica que o ora recorrente foi ainda condenado pela prática dos seguintes crimes (cfr. C.R.C. junto de fls. 07 a 11 dos presentes autos): - Em 1999, por crime de falsidade de testemunho, por factos datados de 1996, na pena de 180 dias de multa. - Em 2000, por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por factos datados de 2000, na pena de 60 dias de multa e na pena acessória de 30 dias de proibição de conduzir veículos com motor. Em nosso entender, todo o descrito percurso delitivo do recorrente, em especial o cometimento (em 16-06-2004) de um crime de homicídio e de um crime de detenção de arma proibida, é revelador de uma personalidade desconforme aos valores que o Direito Penal tutela, sendo ainda manifestação, inequívoca, de que o recorrente não possui “idoneidade” para deter e usar quaisquer armas de fogo. A este nosso entendimento não obsta a circunstância de o recorrente se encontrar social e familiarmente integrado, e de ter, noutros aspetos da sua vida, um comportamento conforme às regras de convivência social. É que, ao ter praticado, na década anterior (em junho de 2004), e na forma dolosa, um crime de homicídio e um crime de detenção de arma proibida - crimes punidos, em cúmulo jurídico, com pena de prisão superior a 10 anos -, o recorrente demonstrou profundo menosprezo pelas regras da sociedade em que se encontra inserido, e revelou ainda manifesto desprezo pelo valor da vida humana, não sendo, nessa medida, pessoa idónea para ser detentor de uma arma de fogo. Neste ponto, e ao contrário do alegado (e pretendido) na motivação do recurso, não nos cabe (nem cabia ao tribunal a quo) averiguar e aquilatar das circunstâncias em que os aludidos crimes foram praticados, nem dos “motivos” que estiveram na base do respetivo cometimento, porquanto os crimes em causa valem de per si, sendo a gravidade dos mesmos, como se nos afigura óbvio, aferível pela medida concreta da pena com que foram punidos. Do mesmo modo, não nos cabe aqui apreciar do comportamento prisional do ora recorrente, o qual importou, isso sim, para a concessão da liberdade condicional de que beneficiou. É também irrelevante, com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, o “gosto” do ora recorrente pela prática da atividade venatória, do mesmo modo que são irrelevantes os demais “gostos” do recorrente pelo exercício de quaisquer atividades lúdicas ou desportivas. À luz do que vem de dizer-se, o recorrente não reúne condições pessoais (qualidades e aptidões) para obter licença de uso e porte de arma de caça, ou seja, não possui “idoneidade” para esse efeito (este Tribunal da Relação de Évora decidiu já, de modo uniforme e em casos semelhantes ao colocado nos presentes autos, que não é de reconhecer “idoneidade” a requerentes de licença de uso e porte de arma que possuam condenações criminais anteriores, pela prática de crimes graves, violentos e dolosos, sem que isso viole quaisquer preceitos ou princípios - quer legais, quer constitucionais -: cfr. o Ac. de 19-02-2013, sendo relatora Ana Brito, o Ac. de 16-06-2015, sendo relator Alberto Borges, e o Ac. de 20-12-2016, do qual foi relator António Condesso - todos disponíveis in www.dgsi.pt e cuja jurisprudência se subscreve -). Face ao predito, o recurso é de improceder. III - DECISÃO. Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se, consequentemente, a douta decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.. Texto processado e integralmente revisto pelo relator. Évora, 08 de maio de 2018 __________________________________ (João Manuel Monteiro Amaro) _____________________________________ (Maria Filomena de Paula Soares) |