Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
| ||
Relator: | JOSÉ LÚCIO | ||
Descritores: | ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA FALSIDADE DE TESTEMUNHO RETRACTAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 11/16/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | 1 – Tendo o MP deduzido acusação onde imputa ao arguido a prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360°, n.º 1 do CP, e descrevendo nela a retractação do arguido, nos termos do art. 362º do mesmo CP, deve essa acusação ser rejeitada, por ser manifestamente infundada. 2 – Com efeito, a retractação constitui uma causa pessoal de exclusão da pena, que o legislador estabeleceu como tratamento penal adequado para casos onde, apesar de existir merecimento de pena, relativamente ao facto, em si mesmo, concorrem no agente circunstâncias especiais que afastam a necessidade de pena, a que se atribui eficácia dirigida à retroactiva eliminação da punibilidade já surgida. 3 - Consequentemente, havia que rejeitar a acusação, nos termos do art. 311º, n.º 1, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal, assim evitando um julgamento inútil e penoso, visto que provando-se integralmente os factos incluídos na acusação haveria então que decretar a absolvição do arguido. 4 – Para efeitos do despacho regulado no art. 311º do CPP há que ter presente que só constitui crime o facto descrito e declarado passível de pena pela lei penal, o que não acontece na situação em apreço, onde, por força do art. 362º do CP, está excluída a punição da conduta do arguido eventualmente integrante do art. 360º a que se reporta a acusação. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: A) Nos presentes autos n. º 335/09.7TABJA (Comarca de Beja), foi proferido despacho de rejeição da acusação, nos termos do art. 311º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do CPP, considerando-a manifestamente infundada por os factos nela descritos não constituírem crime. Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso para esta Relação, pedindo a revogação de tal despacho e a sua substituição por outro que designe dia para julgamento. O arguido MR respondeu, sustentando que deve ser mantido o despacho impugnado. Nesta Relação, a Ilustre Sra. Procuradora-Geral Adjunta que teve vista dos autos emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, por no seu entender os factos em discussão não integrarem a prática do crime imputado. Notificado nos termos e para os efeitos do art. 417º, n.º 2, do CPP, o arguido não apresentou resposta. Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.
B) Considerando os elementos relevantes para o efeito, decorrentes do processo, cumpre apreciar e decidir. Recorde-se que o objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação - arts. 403º, n.º 1, e 412°, n.° 1, do Código de Processo Penal. Começamos portanto por reproduzir as conclusões do recorrente: 1. O Ministério Público vem interpor recurso do despacho proferido a fls. 56 a 58 dos autos à margem referenciados, que rejeitou a acusação deduzida contra o arguido MR, pela prática, em autoria material, do crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.°, n.º 1 do CP. 2. Nos termos do disposto no art. 362.° do CP, "há retractação quando o agente repõe a verdade, desdizendo-se ou dando como não dito o que antes havia afirmado. Ao repor a verdade, o agente desfaz a falsidade que cometeu; nisto se distingue a retractação da confissão, pois nesta o agente limita-se a afirmar que cometeu os factos que lhe são imputados" - Ac. do STJ de 1.10.969, BMJ 110°-223. 3. ln casu, e tal como consta do libelo acusatório proferido a fls. 65 a 67, o arguido, ainda em fase de inquérito, alterou as suas declarações, no entanto, certo é que do mesmo não se pode extrair a voluntariedade de tal comportamento. 4. Não consta, nem tem de constar da acusação, que as declarações que o arguido efectuou a posteriori em sede de inquérito, junto do Órgão de Polícia Criminal foram efectuadas de forma voluntária, ou se as mesmas foram dependentes de ao arguido lhe terem sido apresentados os elementos constantes dos autos que levavam, inegavelmente, à conclusão de que as suas primeiras declarações não correspondiam à verdade. 5. A voluntariedade, a ser atendida para efeitos de retratação tem de ser espontânea, tem de partir de iniciativa do arguido, tem de partir, tal como referido supra, da existência de um visível arrependimento pelo facto de ter faltado à verdade num primeiro momento, o que não sucede, claramente, in casu. 6. Para preenchimento do tipo legal de crime de falsidade de testemunho, não é necessário, ao contrário do constante do douto despacho recorrido, que da acusação constem factos que afastem, necessariamente a existência de uma retratação válida pelo arguido. 7. Tal apreciação deve ser efectuada em sede de audiência de discussão e julgamento e não no despacho que recebe a acusação que deve apenas versar sobre os factos constantes da mesma, isentando-se o MmO Juiz de efectuar qualquer consideração quanto a uma hipotética conclusão a que chegaria em termos de sentença, abstendo-se, in totum, de consultar os autos de inquérito. 8. A previsão da alínea d) do art. 283.° do CPP, que impõe a rejeição da acusação, só contempla os casos em que os factos nela descritos, claramente, notoriamente, não constituem crime. 9. Tal não pode ser o caso em que o juiz, no despacho de saneamento, fazendo um juízo sobre a relevância criminal desses factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, outra, ou outras, seriam possíveis. 10. Mais, não pode ser tal possível, ainda, quando no despacho que recebe a acusação o juiz efectua um juízo de valor relativamente aos factos, presumindo que, nada se dizendo na acusação, uma vez que existem dois depoimentos díspares em sede de inquérito, existiu, necessariamente retratação por parte do arguido. 11. Assim, e por tudo o exposto, o despacho recorrido deve ser revogado, por violar o disposto no art. 360.°, n.º 1 do CP e 311.°, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d) do CPP e, por isso, deve ser substituído por outro que determine o recebimento da acusação relativamente ao arguido MR.
E recordemos então os dados da questão, tal como resultam dos autos e os aceita o próprio recorrente. O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, nos seguintes termos (transcrevemos):
1- O arguido foi vítima de um disparo de uma arma de fogo que o atingiu na cabeça, facto esse que deu origem aos autos de inquérito nº 1003/08.2TABJA. 2- No âmbito desses autos, o arguido foi inquirido na qualidade de testemunha no dia 08 de Janeiro de 2009, pelas 11h00, e no decurso de tal inquirição, quando questionado sobre se conhecia a identidade do autor dos factos sob investigação, "declarou desconhecer por completo a sua identidade, isto por não se encontrar acompanhado e por não ter visto ninguém nos momentos que antecederam a agressão". 3- Referiu ainda que" o facto de estar virado para fora do bairro da Esperança e se encontrar com o capuz do casaco na cabeça apenas lhe permitia visibilidade para o descampado, não sendo possível observar alguém que se aproximasse pelas costas". 4- Finalmente, "confrontado com a informação de que as suspeitas existentes apontam para que o autor da sua agressão tenha sido seu primo JM ao negligenciar o manuseamento de uma arma de fogo, referiu que apesar de o admitir como possível não pode atestar a veracidade de tal informação pelo facto de não ter visto o seu agressor nem ter ouvido de seu primo ou de outrem tal notícia". 5- Quando inquirido, complementarmente, no âmbito dos referidos autos de inquérito, no dia 09 de Março de 2009, pelas 11h00, declarou, "ao contrário das informações inicialmente prestadas o depoente conhece a identidade do seu agressor, a qual por razões de ordem familiar tentou, até à presente data ocultar, visando exclusivamente proteger o autor dos factos seu primo conhecido por si como "ZM", de 15 anos de idade (JM) (. . .) tendo apenas tido conhecimento que havia sido seu primo o autor dos disparos, já após alta hospitalar. (. ..) Refere ter desculpado seu primo, tendo-o na altura tranquilizado dizendo que não informaria as autoridades que havia sido ele a disparar contra si". 6- O arguido sabia que havia sido o seu primo a disparar contra si tendo, no entanto, declarado desconhecer quem seria o autor do disparo. 7- Mentiu, com o propósito de afastar quaisquer suspeitas que pudessem recair sobre o seu primo enquanto autor dos factos investigados no âmbito do inquérito n.º 1003/08.1 TABJA. 8- Prestou um depoimento não verdadeiro, no âmbito de um Inquérito criminal, perante um Inspector da polícia Judiciária, estando ciente de que as suas palavras valiam como meio de prova. 9- Agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punível por lei. Pelo exposto, constituiu-se o arguido, como autor material e de forma consumada, de 1 (um) crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360.°, n.º 1 do CP.
Em face dessa acusação, e no momento regulado no art. 311º do CPP, foi então proferido o despacho que vem impugnado, que também passamos a transcrever:
Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra MR imputando-lhe a prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º n.º 1 do C. Penal. Imputa-lhe, em síntese, a prática dos seguintes factos: - inquirido no dia 8 de Janeiro de 2009 na qualidade de testemunha "declarou desconhecer por completo a sua identidade, isto por não se encontrar acompanhado e por não ter visto ninguém nos momentos que antecederam a agressão"; “... o facto de estar virado para fora do bairro da Esperança e se encontrar com o capuz do casaco na cabeça apenas lhe permitia visibilidade para o descampado, não sendo possível observar alguém se se aproximasse pelas costas"; " ... confrontado com a informação de que as suspeitas existentes apontam para que o autor da agressão tenha sido o seu primo JM ao negligenciar o manuseamento de uma arma de fogo, referiu que apesar de o admitir como possível, não pode atestar a veracidade de tal informação pelo facto de não ter visto o seu agressor nem ter ouvido de seu primo ou de outrem tal notícia"; - quando inquirido complementarmente no dia 9 de Março de 2009 o ora arguido declarou "ao contrário das informações inicialmente prestadas o depoente conhece a identidade do seu agressor, a qual por razões de ordem familiar tentou, até à presente data ocultar, visando exclusivamente proteger o autor dos factos conhecido por si como "ZM", de 15 anos de idade (JM) (. . .) tendo apenas tido conhecimento que havia sido seu primo o autor dos disparos, já após alta hospitalar (. . .) Refere ter desculpado seu primo, tendo-o na altura tranquilizado dizendo que não informaria as autoridades que havia sido ele a disparar contra si'. - O arguido sabia que havia sido o seu primo a disparar contra si tendo, no entanto, declarado desconhecer quem seria o autor do disparo e mentiu com o propósito de afastar quaisquer suspeitas que pudessem recair sobre o seu primo enquanto autos dos factos. Estabelece o artigo 360º do C. Penal: "1- Quem, como testemunha, ( ... ) perante Tribunal ou funcionário competente (...) prestar depoimento falso, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias. O interesse especialmente protegido através da punição do falso testemunho é o da boa administração da Justiça, de que é titular o Estado. O bem jurídico tutelado é, essencialmente, a realização ou administração da Justiça, como função do Estado. Quer dizer: o interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão. Na doutrina dominante, o crime de falsidade de testemunho constitui um crime de perigo abstracto. Deste modo, não é necessário que a declaração falsa prejudique efectivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão, nem, sequer, que, in concreto, o haja colocado em perigo. De facto, a protecção da função estadual não é posta em causa apenas quando a declaração falsa é tida em consideração entre os fundamentos da decisão (concorrendo ou determinando, assim, a sua injustiça material, v.g., condenação do arguido), mas mesmo nos casos em que essa influência não se verificou em concreto. O fundamento do ilícito radica logo na própria declaração falsa, independentemente da consideração da sua efectiva influência na prolação da decisão. Isto não implica, porém, que toda e qualquer declaração falsa preencha a tipicidade. Configura um crime de mera actividade, pois o comportamento ilícito esgota-se, precisamente, na efectivação da conduta proibida: a prestação do depoimento falso, não impondo a lei qualquer resultado decorrente dessa conduta e dela autonomizável. O elemento típico comum às várias modalidades típicas da conduta reside na falsidade da declaração (depoimento, relatório, informação ou tradução). Por declaração entende-se toda a comunicação feita por uma pessoa com base no seu conhecimento, quer sobre factos exteriores, quer sobre realidades psíquicas (como as motivações, intenções, etc.). A forma da declaração não é, em princípio, relevante. Para avaliar da eventual falsidade da declaração importa, em primeiro lugar, interpretá-la. A interpretação da declaração deve determinar o seu sentido objectivo. Pode suceder que uma declaração venha a mostrar-se, no seu conteúdo, de sentido objectivo, como falsa, apesar de literalmente parecer verdadeira. Caso o sentido objectivo não possa determinar-se, a opção pela falsidade é passível se, em ambas as interpretações, a declaração é falsa; de outro modo, se apenas uma das interpretações é falsa, tem lugar a aplicação do princípio in dubio pro reo. Nem toda e qualquer declaração falsa, prestada por uma testemunha, preenche a tipicidade. Com efeito, a falsidade só releva na medida em que o declarante se encontre sujeito a um dever processual de verdade e de completude (declarar só a verdade mas toda a verdade). O âmbito desse dever encontra-se limitado, essencialmente, por três factores: a função processual do declarante; o objecto do interrogatório; e as regras processuais referentes à prestação da declaração. No caso da testemunha, ela tem o dever de declarar apenas factos de que possua conhecimento directo (cfr. artigo 128.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), isto é, factos que tenham sido objecto das suas percepções, acontecimentos ou circunstâncias concretos, quer do mundo exterior, quer da vida anímica. Deste modo, o dever de verdade só é violado quando a testemunha declara falsamente sobre esses factos ou declara falsamente ter conhecimento directo dos mesmos. Igualmente relevante será a inobservância de formalidades essenciais: assim, a forma do juramento e a advertência acerca das consequências da eventual falsidade (nos casos do n.º 3 do citado artigo 360.°), pressuposto para a aplicação da agravação aí inserida. O elemento típico central do crime reside, como se frisou, na falsidade da declaração (depoimento, relatório, informação ou tradução). Pese embora a simplicidade do enunciado, a sua concretização traduz-se numa tarefa repleta de dificuldades. A falsidade da declaração afere-se pela sua conformidade com o acontecimento real a que ela se reporta (concepção objectiva de falsidade, sem desconsiderar as dificuldades contra a possibilidade de fixação disso que seja o acontecimento real ou a verdade objectiva - cfr. A. MEDINA DE SEIÇA, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, Março de 2001, pág. 477. Na sua indeclinável tarefa de reconstrução do facto, a actividade judicial nunca logra atingir a verdade absoluta, mas somente uma verdade processualmente válida, a que o trânsito em julgado confere, apenas, o selo da plausibilidade. Por outro lado, não se ignora como em todo o fenómeno de aquisição e "reprodução" do conhecimento humano ocorrem inúmeros factores de erro - aliás, um dos melhores campos de demonstração desta tese é dado, justamente, pela análise das declarações em juízo, maxime das testemunhas. Quanto ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, o crime de falsidade de testemunho é punível a título de dolo, incluindo, por conseguinte, também o dolo eventual (cfr. artigos 13.°, primeira parte, e 14.º, ambos do Código Penal). Não há, assim, punição das falsas declarações realizadas apenas a título de negligência (cfr. artigo 13.°, segunda parte, do mesmo Código). Requer-se a consciência da falsidade da declaração, ou de parte dela, ou de se estar a silenciar alguma coisa que deveria ser manifestada. Contudo, a punição pelo crime em análise não tem lugar se o agente se retractar voluntariamente, a tempo de a retratação poder ser tomada em conta na decisão e antes que tenha resultado do depoimento, relatório, informação ou tradução falsos, prejuízo para terceiro, conforme resulta do disposto no art. 362° n.º 1 do C. Penal. Ora dos factos constantes da acusação resulta desde logo que existiu retractação, na medida em que o ora arguido substituiu o conteúdo das declarações falsas anteriormente prestadas, manifestando posteriormente a verdade. Em face de tal retractação, para que houvesse lugar à punição do arguido nos termos constantes da acusação era necessário que fosse ainda alegado que tal retratação não havia sido voluntária ou em tempo de poder ser tomada em consideração na decisão e que tivesse causado prejuízo para terceiro. Não obstante, a acusação nada refere quanto a tal matéria, sendo que uma vez que tal retractação ocorreu no âmbito do mesmo inquérito parece licito concluir que a mesma foi efectuada em tempo de ser tomada em consideração na decisão, não tendo causado qualquer prejuízo. Em face do exposto e atento o disposto no art. 362° do C. Penal, conclui-se que os factos narrados na acusação não constituem crime - motivo por que se rejeita a acusação, ao abrigo do disposto no artigo 311° n.º 2 al. a) do CPP. * * Como se constata, a sorte do recurso depende da posição a tomar perante a divergência que está patente no despacho impugnado e nas conclusões do recurso acima transcritas. Entendeu o despacho recorrido que os factos descritos na acusação não são susceptíveis de conduzir à aplicação de uma pena, pelo que há lugar à rejeição decidida; entende o recorrente que tal situação não se verifica, e que devem os autos seguir para julgamento. Diremos desde já que também se nos afigura que não deve seguir para julgamento uma acusação que se mostra insusceptível de conduzir a uma condenação. Na verdade, o objecto do processo está delimitado pela acusação deduzida; e a factualidade vertida pelo MP na acusação em causa aponta para o preenchimento do art. 362º do Código Penal, referente a retractação em caso de falsidade de testemunho, o que exclui a sua punibilidade. Como salienta a doutrina, a figura da retratação constitui uma causa pessoal de exclusão da pena, consistindo esta no tratamento penal para “casos onde, apesar de existir merecimento de pena, relativamente ao facto, em si mesmo, concorrem no agente circunstâncias especiais que afastam a necessidade de pena”. Tais circunstâncias ou existem no momento da comissão ou “surgem no pós-facto, com eficácia dirigida à retroactiva eliminação de “uma punibilidade já surgida” (perfilando-se como causas de supressão)” – vide Victor Sá Pereira e Victor Lafayette, in Código Penal Anotado e Comentado, ed. Quid Juris, 2008, pág. 878). A retractação acontece quando se substitui o conteúdo falso da declaração por um conteúdo verídico, e deve, segundo a lei, ser voluntária e oportuna ou tempestiva. “Retractação voluntária é a que se afirma como autónoma, no sentido de emergir, segundo a feliz expressão de Faria Costa, da esfera de poder do agente” – continuamos a seguir a obra e local citados. Perante os factos contidos na acusação, afigura-se preenchida a previsão do art. 362º do CP, que se transcreve: “1- A punição pelos arts. 359º, 360º e 361º, alínea a), não tem lugar se o agente se retractar voluntariamente, a tempo de a retractação poder ser tomada em conta na decisão e antes que tenha resultado do depoimento, relatório, informação ou tradução falsos, prejuízo para terceiro. 2 – A retractação pode ser feita, conforme os casos, perante o tribunal, o Ministério Público ou o órgão de polícia criminal.” No caso presente o que se nos depara é uma situação em que o aqui arguido foi inquirido como testemunha num inquérito originado por um acontecimento de que foi vítima: ele tinha sido atingido por um tiro de arma de fogo, quando se encontrava na rua, no bairro onde morava, e conduzido ao hospital, o que levara à instauração do inquérito, mas continuava a ignorar-se neste a identidade do autor do disparo, bem como os efectivos contornos da ocorrência. Ao ser interrogado por um inspector da PJ, a 8 de Janeiro, o ora arguido declarou não saber quem tinha desferido o tiro, alegando que não tinha visto ninguém e estava sozinho na ocasião; confrontado então com as suspeitas de que teria sido um seu primo, então com 15 anos, ao manusear uma arma de fogo, admitiu que tal fosse possível, mas que não o podia confirmar por na altura não ter visto quem foi e posteriormente não ter falado com seu primo ou com alguém que o informasse dessa autoria. Ao ser ouvido pela segunda vez no mesmo inquérito, pelo mesmo inspector, a 9 de Março, dois meses depois, o ora arguido declarou então que pretendia esclarecer os factos, dizendo em suma que efectivamente tinha sido o seu primo ZM, de 15 anos, a disparar contra si, sem querer, o que ele tinha querido ocultar por razões de ordem familiar, para proteger o primo. Mais declarou que quanto ao resto os factos se tinham passado tal como os relatou inicialmente, só tendo tomado conhecimento de que tinha sido o primo após ter alta do hospital, quando este lhe contou o sucedido e lhe pediu desculpa. Acrescentou ainda que desculpou o primo e lhe prometeu que nada diria às autoridades, e por isso tinha mentido. Em qualquer dos interrogatórios consignou que não desejava procedimento criminal pelas ofensas corporais sofridas. Na sequência desses interrogatórios, o inquérito em causa foi arquivado, e foram extraídas certidões para instaurar processo tutelar educativo, quanto aos factos que eram objecto desses autos, e para instauração dos presentes autos contra o arguido M, por falsidade de depoimento. Esta nossa exposição dos factos, feita com recurso aos elementos constantes do inquérito, em nada se afasta do relato mais sintético contido na acusação que foi deduzida; e em face dessa factualidade não se compreende a argumentação do recorrente MP ao sustentar que a mesma não permite concluir pelo preenchimento da previsão do art. 362º do CPP. O que se encontra nas conclusões do recurso para tentar demonstrar esse ponto de vista é a alusão ao carácter voluntário ou não da retractação efectuada. Porém, o certo é que estamos perante dois depoimentos prestados perante a mesma entidade, intervalados de 2 meses, e não podemos deixar de considerar tão livre e voluntário o depoimento prestado no primeiro como no segundo. Houve retractação, esta foi em acto voluntário, perante o mesmo OPC que tinha recolhido o anterior depoimento onde constava a falsidade corrigida, e a mesma foi efectivamente tomada em conta na decisão do inquérito em que ocorreu, sem que tenha resultado do depoimento falso qualquer prejuízo para terceiro (aliás, a concreta falsidade aqui em causa até era insusceptível de causar prejuízo a terceiro, visando mesmo o contrário). Pensamos, portanto, que tem razão o despacho recorrido: a acusação contém os factos da retractação, e tanto basta para julgar preenchida a disposição do art. 362º do Código Penal. E desse modo não é punível a conduta anterior do arguido, violadora do art. 360º, n.º 1, do mesmo diploma. Consequentemente, havia que rejeitar a acusação, nos termos do art. 311º, n.º 1, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal, assim evitando um julgamento inútil e penoso (provando-se integralmente os factos incluídos na acusação, os quais aliás ninguém discute, haveria então que decretar a absolvição do arguido). O que se descreve na acusação é uma conduta penalmente irrelevante, por opção do legislador penal. Andou bem o juiz de julgamento ao aplicar o disposto no art. 311º, n.º 2, al. a), em conjugação com a al. a) do n.º 3, do CPP: o juiz deve despachar no sentido de “rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada” e será manifestamente infundada a acusação se os factos nela descritos “não constituírem crime”. Ora só constitui crime “o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática”, o que não acontece na situação em apreço, onde, por força do art. 362º do CP, está excluída a punição da conduta do arguido eventualmente integrante do art. 360º, a que se reporta a acusação. Concorda-se que “o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante” (P. Pinto de Albuquerque, in Comentário do CPP, 3ª edição, anotação 8 ao art. 311º). Mas, ao contrário do defendido no recurso, julgamos que o texto da acusação em análise nos coloca, precisamente, perante uma conduta penalmente irrelevante. Acompanhamos, pois, o entendimento expresso no despacho recorrido, o qual não merece censura (tal como, aliás, também foi o entendimento do MP nesta instância superior) pelo que improcede o recurso. * C) Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a decisão recorrida. * Évora, 16 de Novembro de 2010 José Lúcio (relator) – Alberto João Borges |