Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4/08.5TBADV.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: INVENTÁRIO
VALOR DOS BENS A PARTILHAR
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
Data do Acordão: 01/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I – No processo de inventário a forma de corrigir o valor dos bens relacionados é reclamação contra o valor atribuído.
II – Na reclamação deve o interessado indicar logo o valor que reputa exacto.
III – A avaliação só terá lugar quando, frustrando-se o acordo acerca da partilha, não haja unanimidade da conferência sobre os bens acusados na reclamação e nenhum dos interessados declarar que os aceita pelo valor declarado na relação de bens (na reclamação por excesso) ou na reclamação apresentada (reclamação por defeito).
Decisão Texto Integral:






Proc. nº 4/08.5TBADV
Almodôvar

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1. Nos autos de processo de inventário que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Almodôvar, para partilha da herança aberta pelos óbitos de Manuel ........ e de Andreza ........das ........, falecidos respectivamente em 7/6/1963 e 21/11/82, no início da conferência de interessados que teve lugar no dia 8/6/2010[1], a interessada ........Rosa G........ requereu a avaliação dos bens imóveis relacionados[2], requerimento que mereceu por parte da Exmª Srª Juiz o seguinte despacho:
Quanto à requerida avaliação dispõe o artigo 1346° nº 2 do Código de Processo Civil, que:
«O valor dos prédios inscritos na matriz é o respectivo valor matricial, devendo o cabeça-de-casal exibir a caderneta predial actualizada ou apresentar a respectiva certidáo.»
Sempre se dirá que o valor dos imóveis relacionados, mantém como regra, a sua avaliação inicial baseada no valor matricial - ou, na terminologia adoptada pela legislação fiscal, o seu valor patrimonial - e não no respectivo valor real ou venal, solução esta que teve como objectivo declarado e assumido obstar a drásticos agravamentos, em todos os processos do montante do valor do inventário e, reflexamente das custas. Todavia, sempre poderão os interessados, e de forma a corrigir o valor patrimonial [tantas vezes desajustado da realidade] lançar mão das licitações, nesta sede de conferência de interessados, sendo esse o meio e a sede própria para correcção dos referidos valores.
Em face do exposto, indefiro a requerida avaliação.
O inventário prosseguiu com licitações, forma da partilha, mapa desta e finalmente sentença que homologou a partilha.

2. Vem agora a interessada ........Rosa G........ interpor recurso da sentença que homologou a partilha e do despacho supra transcrito[3], exarando as seguintes conclusões que se transcrevem:
I. No regime constante do art. 1353° do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n º 227/94, de 8 de Setembro, é à conferência de interessados que compete deliberar das reclamações deduzidas sobre o valor atribuído aos bens.
II. A Apelante requereu a avaliação dos bens imóveis constantes da relação de bens com o fundamento de que o valor matricial não corresponde ao valor real, discordando por isso dos valores atribuídos a cada uma das verbas.
III. A Apelante sabe que estas verbas têm um valor superior ao valor matricial, conforme se verifica pelas verbas constantes da relação de bens, desconhecendo todavia o valor aproximado do valor real ou de mercado.
IV. No entanto, parece-lhe óbvio que atenta a natureza dos bens ­- prédios rústicos e urbanos - os mesmos não poderão valer 0,76 €, conforme consta no valor matricial da verba 12 ou 10,68€ conforme conta na verba 14.
V. Ora e, não havendo acordo entre os interessados, requereu a agravante que os mesmos fossem avaliados nos termos e para os efeitos do art.º 1353, nº 2 do CPC.
VI. É certo que, que o valor dos bens, por imposição do art.º 1346 do C.P.C., corresponde ao valor dos bens inscritos na matriz é o respectivo valor matricial, mas também é igualmente certo que, nos termos do art.° 1362 do mesmo Código, até inicio das licitações, podem os interessados reclamar contra o valor atribuído.
VII. A explicação e ratio da Lei, para se manter o dever de indicar para os imóveis o valor matricial, e não o valor real, é facultada pelo legislado no preâmbulo do D.L. 227/94 de 08/09, que "pretendeu obstar a drásticos agravamentos, em todos os processos, do montante do valor do inventário, e reflexamente das custas e do imposto sucessório devido, sendo certo que a possibilidade conferida aos interessados de reclamar contra o valor atribuídos aos bens os defende satisfatoriamente da não coincidência entra a matriz e o valor real ou de mercado dos imóveis".
VIII. E tal como ensina, Domingos Silva Carvalho, in "Do inventário, 2.ª Edição, pag. 128-130, "( ... ) a possibilidade dos interessados reclamarem contra o valor dos bens antes das licitações, tem como objectivo impedir que a base de licitação esteja acentuadamente falseada e permitir facilmente aos interessados mais abonados apropriarem-se, tendo como base um valor não real, dos bens da herança, frustrando-se por esta vida uma partilha equitativa e justa.
IX. Esta preocupação existe, porque como e sabido, o valor matricial e normalmente muito inferior ao valor real ou de mercado e nomeadamente por continuarem desactualizadas muitas das matrizes.
X. O Juiz a quo devia ter submetido à conferência a apreciação desta questão nos termos do art.° 1362, n.º 4 do CPC, o que não o fez, a pretexto dos imóveis já terem o valor (matricial) atribuído segundo o art.º 1346, n .º 2 do CPC.
XI. Tendo no entanto, a ora apelante requerido por conseguinte, a avaliação dos bens.
XII. Assim, ao ter inferido o pedido de avaliação apresentado pela Apelante, não observou a regra processual constante do artº 1353, nº2, do C.P.C.
XIII. Nestes termos, deve o despacho recorrido ser revogado e ser substituído por outro que submeta esta questão à conferência de interessados, ordene a avaliação dos bens cujos valores foram questionados e observe, adequadamente, as restantes normas dos citados artº 1353 e 2362 do CPC, e demais trâmites até à partilha.
Não foi oferecida resposta.
O recurso foi admitido como de apelação.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

3. Objecto do recurso.
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, como resulta do disposto nos artºs. 684º, nº3 e 685º-A, nº1, ambos do Código de Processo Civil.
Não obstante o recurso haver abrangido também a sentença que homologou a partilha as conclusões de recurso, como aliás as alegações, reportam-se em exclusivo aos despacho que indeferiu a avaliação dos bens imóveis relacionados importando, assim, tão só apreciar se assiste à interessada o direito à avaliação dos bens.

4. Fundamentação.
Dispõe o artº 1346º do Código de Processo Civil (como o serão os demais artigos doravante indicados sem indicação do respectivo diploma) que, além de os relacionar, o cabeça-de-casal indicará o valor que atribui a cada um dos bens e que o valor dos prédios inscritos na matriz é o respectivo valor matricial (nºs. 1 e 2).
Como resulta do preâmbulo do DL 227/94 de 8/9 (que alterou diversas disposições do processo de inventário), aliás já referido nos autos, a manutenção, como regra, da avaliação inicial dos imóveis baseada no valor matricial teve como objectivo “obstar a drásticos agravamentos, em todos os processos, do montante do valor do inventário e, reflexamente, das custas e do imposto sucessório devido, sendo certo que a possibilidade conferida aos interessados de reclamar contra o valor atribuído aos bens os defende satisfatoriamente da não coincidência entre a matriz e o valor «real» de mercado dos imóveis”.
Desiderato legislativo que o corpo do diploma consagrou, vejamos como.
Até ao início das licitações os interessados e o Ministério Público podem reclamar contra o valor atribuído a quaisquer bens (por defeito ou por excesso), devendo os reclamantes indicar logo o valor que reputam exacto (artº 1362º, nºs 1 e 5).
A conferência delibera, por unanimidade, sobre o valor em que se devem computar os bens a que a reclamação se refere [nº 2 do mesmo normativo e 1353º, nº 4, al. a)].
Na falta de unanimidade na apreciação da reclamação deduzida e não se verificando a aceitação por algum dos interessados do valor indicado na relação de bens ou na reclamação, o que equivale a ausência de licitação, pode requerer-se a avaliação dos bens cujo valor foi questionado, a qual será efectuada por um único perito (artºs 1362º, nºs. 2 e 3 e 1369º).
A lei não estabelece qualquer restrição sobre a reclamação do valor dos bens, admitindo-a em relação a quaisquer bens, sejam eles móveis, sejam imóveis. E não havendo unanimidade quanto ao valor do bem ou bens a que a reclamação se reporta, nem licitação por algum interessado pelo valor que constituiu a base da reclamação (ou outro mais alto que resulta da licitação após a sua aceitação por mais do que um interessado) poderá requerer-se a avaliação (sejam eles móveis ou imóveis).

No caso dos autos, a recorrente reclamou contra o valor atribuído aos bens imóveis relacionados pelo seu valor matricial.
E viu a sua pretensão desatendida com os seguintes argumentos:
- O valor dos prédios inscritos na matriz é, como regra, o respectivo valor matricial
- Sempre poderão os interessados, e de forma a corrigir o valor patrimonial [tantas vezes desajustado da realidade] lançar mão das licitações, nesta sede de conferência de interessados, sendo esse o meio e a sede própria para correcção dos referidos valores.
Do que dito ficou já resulta que não se decidiu bem.
A forma de corrigir o valor patrimonial não são as licitações, a forma de corrigir o valor dos bens constantes da relação é reclamação contra o valor atribuído que poderá terminar na avaliação dos bens.
E a explicação vem no já referido preâmbulo do diploma “(…) no sistema adoptado, apenas se procede à avaliação quando se frustrar o acordo acerca da partilha, surgindo as avaliações como forma de evitar que a base de partida das licitações se apresente falseada, permitindo aos herdeiros mais abonados pecuniariamente apropriar-se da totalidade do património hereditário”.

Mas se a decisão não parece ter sido a mais acertada, o requerimento que a motivou também não é um exemplo de perfeição.
O reclamante que impugna o valor de quaisquer bens relacionados – por defeito ou por excesso – tem o ónus de indicar logo o valor que reputa exacto (artº 1363º, nº1).
E este ónus não foi cumprido, isto porque a interessada requereu logo a avaliação dos bens imóveis que fazem parte do acervo hereditário.
Ainda assim, estamos em crer que mau grado o procedimento adoptado o requerimento não deverá ser de imediato indeferido por incumprimento do alegado ónus. E isto porque com a reforma introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12/12 que delineou as chamadas “linhas mestras de um modelo de processo” assentes na “garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, compensado pela previsão do princípio de cooperação”[4] permite-se ao juiz “… em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência” – cfr. artº 266º, do C.P.C.
Assim, devendo “a lei processual civil … agora ser encarada, não como um fim em si mesma, mas com subordinação da sua vertente disciplinadora à finalidade da justa composição do litigio”[5] e resultando suficientemente expresso no requerimento apresentado pela interessada/recorrente que pretende reclamar contra o valor dos bens imóveis, importará convidar a mesma a corrigir o seu requerimento por forma a observar o disposto no artº 1362º, nº1, do C.P.C., antes de o indeferir caso, não aceitando o convite, deixe de observar o ónus de indicar o valor que reputa exacto para os bens sobre os quais reclama.

Em jeito de sumário:
I – No processo de inventário a forma de corrigir o valor dos bens relacionados é reclamação contra o valor atribuído.
II – Na reclamação deve o interessado indicar logo o valor que reputa exacto.
III – A avaliação só terá lugar quando, frustrando-se o acordo acerca da partilha, não haja unanimidade da conferência sobre os bens acusados na reclamação e nenhum dos interessados declarar que os aceita pelo valor declarado na relação de bens (na reclamação por excesso) ou na reclamação apresentada (reclamação por defeito).

5. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que, convidando a recorrente a corrigir o seu requerimento, em conformidade com o decidido e corrigido este, observe o procedimento a que se reporta o artº 1362º, do C.P.C. e, em qualquer caso, os demais trâmites até à partilha.
Custas pelos interessados na proporção que for devida a final.
Évora, 26/1/12

Francisco Matos

José António Penetra Lúcio

João Gonçalves Marques






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[1] Cfr, acta de fls. 183 a 186.
[2] É o seguinte o teor do requerimento:
“Requer-se que sejam os bens imóveis que fazem parte do acervo hereditário avaliados por perito nomeado pelo Tribunal do seu valor real, alterando desta forma os valores constantes nos autos, tudo nos termos do nº2 do artigo 1353º do Código de Processo Civil.”
[3] O processo entrou em juízo no dia 4/1/2008 – cfr. fls. 2 – aplicando-se, por isso, o regime de recursos introduzido pelo D.L. nº 303/2007, de 24/8 (cfr. artº 12º) que permite recorrer das decisões interlocutórias – não incluídas no nº2 do artº 691º, do C.P.C., como é o caso - no recurso que vier a ser interposto da decisão final ou, se mantiverem interesse para o recorrente, mesmo não havendo recurso da decisão final, num recurso único, a interpor após o trânsito desta decisão (artº 691º, nºs. 3 e 4, do C.P.C.).
[4] Preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12/12.
[5] Cfr., entre outros, Ac. STJ de 4/2/2010, proc. 199-D/1982.L1.S1, in www.dgsi.pt