Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
44/06-1
Relator: F. RIBEIRO CARDOSO
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
CAUSALIDADE
Data do Acordão: 04/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
1. É um facto estatístico que o uso do cinto de segurança pode, em caso de acidente de viação, reduzir as lesões sofridas.

2. O não uso do cinto de segurança pelo passageiro do veículo (em violação do dever imposto pelo artigo 82 n.º1 do Código da Estrada) não pode ser considerado concausal para as lesões por ele sofridas, de que veio a resultar a sua morte, por em termos de previsibilidade normal e típica se encontrar à margem do processo causador/desencadeador das lesões sofridas.

3. O arguido não pode deixar de ser responsável em primeiro grau pelo evento danoso, desde logo porque foi ele que provocou o despiste e era ele que tinha o “domínio sobre o facto” enquanto condutor do veículo. Se não fosse a conduta do próprio arguido, a da falecida, só por si, nunca poderia ter causado a morte, dado que era aquele que conduzia o veículo. Pelo que nem se pode falar aqui de indeterminação ou de interrupção do nexo causal.

FRC
Decisão Texto Integral:
Acordam, precedendo audiência, os juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I
1. No âmbito do processo comum n.º …do Tribunal Judicial da Comarca de…, sob acusação do Ministério Público, a que aderiram os assistentes …foi submetido a julgamento o arguido …, com os sinais dos autos, sob imputação da prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137 n.º1 e 2 do Código Penal, e de uma contra-ordenação, prevista e punida pelo art. 81 n.º 1 e 5, alin. b) do Código da Estrada.

2. C.C. e sua mulher A.F.C., enquanto únicos herdeiros da falecida N.F.C deduziram pedido de indemnização cível contra … – Companhia de Seguros, SA, enquanto seguradora do veículo conduzido pelo arguido, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia global de € 267.825,38, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal.

3. O arguido não apresentou contestação.

4. Demandantes e demandada chegaram a acordo quanto à questão cível, que foi objecto de homologação judicial.

5. Efectuado o julgamento, o tribunal, por sentença datada de 28 de Junho de 2005, (v.fls.338 a 331), decidiu, no que ao caso interessa, absolver o arguido da prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo art. 137.º, nº2 do Código Penal por que fora acusado, mas condenou-o, como autor material de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137º, n.º1 do mesmo diploma legal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, que suspendeu na sua execução, pelo período de 2 (dois) anos. E condenou ainda o arguido pela prática de uma contra-ordenação prevista no artigo 81.º do Código da Estrada, na coima de € 400 e na sanção acessória de inibição de conduzir todo e qualquer veículo motorizado, pelo período de 5 (cinco) meses.

6. Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, nos termos constantes de fls.357 a 378, extraindo da sua motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

1° - O arguido foi condenado como autor material de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.137°, n° l do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 2 (dois) anos e pela prática de uma contra-ordenação prevista no art. 81° do Código da Estrada, na coima de € 400,00 e na sanção acessória de inibição de conduzir todo e qualquer veículo motorizado, pelo período de 5 (cinco) meses.

2° - Não foi considerado como provado o facto alegado pelo arguido de que a viatura em que seguia embateu numa pedra e capotou.

Do depoimento das demais testemunhas não resulta que se possa concluir em sentido diverso.

3° - Dos documentos (fotografias) juntos aos autos resulta existirem no local do acidente e na berma do lado esquerdo (onde o arguido circulou com a sua viatura) diversas pedras de grandes dimensões e que a viatura sinistrada está bastante amolgada na parte do tejadilho acima do assento ao lado do condutor: factos estes que indiciam ser verdade a versão apresentada pelo arguido.

5° - Pelo que, podendo o Tribunal da Relação conhecer da matéria de facto, cf. art. 431°, al. b) do C.P.P. deverá proceder-se à alteração da matéria de facto apurada na Primeira Instância e aditar aos factos considerados como provados os seguintes:

- a viatura do arguido embateu numa pedra que se encontrava no local do acidente;

- e que esse embate se deu no tejadilho da mesma viatura no lugar onde seguia a falecida N..

6°. Foi considerado, na Sentença, como provado que a vítima N. circulava sem ter colocado o cinto de segurança.

7°. Pelo que, se deverá concluir que o arguido não contribuiu de forma exclusiva para a produção do acidente nem para o resultado morte que lhe sobreveio.

8° - A obrigatoriedade de usar cinto de segurança (p. e p. no art. 82°, n° l do C.E.) na circulação automóvel tem como objectivo evitar a ocorrência de danos que, em último caso, podem ocasionar a morte: como foi o caso. Assim, se a vítima levasse o cinto de segurança ter-se-ia mantido no seu lugar e não teria a cabeça junto ao tejadilho, quando a viatura capotou e embateu na pedra (ou no solo).

9º - Neste caso, a conduta da vítima contribuiu para as lesões que provocaram a sua morte.
10° - Não é possível determinar com segurança um nexo de causalidade entre a conduta do arguido e a morte de N.

11° - Pelo que, deverá considerar-se que a Sentença recorrida violou o estatuído nos art. 410°, n° 2, al. a) e c) do C.P.P. e art. 137°. n° l do Código Penal, devendo o arguido ser absolvido do cometimento de um crime de homicídio negligente.

12° - Não se entendendo como aqui se conclui e

- atendendo ao facto de ter sido dado como provado que o arguido "lamenta muito as consequências do acidente", "necessitou do apoio dos familiares e amigos para superar psicologicamente a morte da sua amiga N. C." e "ainda hoje sofre com o falecimento da amiga", que o arguido está socialmente inserido, é um condutor prudente e respeitador da regras, é trabalhador e - ainda - que a vítima seguia sem cinto de segurança e que, por isso, terá contribuído para o resultado morte,

13° - Deverão todas estas circunstâncias ser consideradas como atenuantes da pena a aplicar ao arguido e ser a Sentença ora recorrida ser substituída por outra na qual seja o arguido condenado em pena de prisão aplicada em limite substancialmente inferior e próximo de mínimo legal, sendo a sua aplicação suspensa por período nunca superior a um ano.

14° - Foi considerado na Sentença recorrida que o acidente não se deveu ao facto de o arguido conduzir sob o efeito de uma TAS de 0,54 g/l.

15°. A coima prevista para este ilícito vai desde 240,00 € até 1200,00 €.

Assim, atendendo ao facto de o arguido conduzir sob o efeito de uma TAS não considerada crime e nos limites mínimos da previsão legal deverá a coima a aplicar situar-se nesses mesmos limites e não ser superior a 240,00 €.

16° - O arguido não praticou qualquer contra-ordenação (grave ou muito grave) nos últimos cinco anos, é um bom condutor e respeitador das regras de trânsito, é, ainda motorista de profissão, implicando para si o cumprimento da pena de inibição de conduzir a perda desse emprego.

17° - Assim, nos termos e para os efeitos do art. 142° do C.E. deverá a pena de inibição de conduzir em que foi condenado o arguido ser suspensa na sua execução.

Por outro lado e, a este propósito:

18° - Da acusação proferida nos autos constava:

"Cometeu, assim, o arguido como autor material, na forma consumada, e em concurso real:
- um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art. 137°, n.º1 e 2 do Código Penal;

- uma contra ordenação, prevista e punida pelo art. 81°, n°s 1 e 5. al. b."

19° - Ou seja, não é feita qualquer referência na acusação à punição prevista no art. 139° do Código da Estrada.

20° - Nos termos e para os efeitos do art. 50° do R.G.C.O.:

“Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.

21° - Em igual sentido o Assento n.º1/2003, de 15 de Janeiro:

O art. 50° do regime geral das contra-ordenacões - sob pena de " ausência processual do arguido, constituindo a nulidade prevista no art. 119°. alínea c) do Código de Processo Penal" – que, antes da “decisão que aplica a coima” (art. 58º), a Administração assegure ao arguido - dando-lhe a conhecer os factos imputados, incluindo os que respeitam à verificação dos pressupostos da punição e a sua intensidade e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável”.

22° - Ora, como se pode constatar pela Acusação e pela Sentença dos autos, não foi assegurado o direito de defesa do arguido, constitucionalmente garantido pelo art. 32º, nº 10 da Constituição da República, quanto à possibilidade de lhe ser aplicada a sanção constante do art.139° do Código da Estrada.

23° - Ou seja, foi o arguido surpreendido com o teor da Sentença proferida que excede os limites da Acusação proferida contra si, nos exactos termos do art.283°, n°3 do C.P.P..

24° - Segundo J. Canotilho e Vital Moreira in CRP Anotada, pág. 305: "a acusação (é) condição e limite do Julgamento"

25° - Como a acusação não previu a aplicação de sanção de inibição de conduzir p. e p. no art. 139° do C.E., não podia a sentença aplicar tal pena ao arguido, em violação do princípio do acusatório e do princípio do contraditório.

26° - Assim, violou a sentença recorrida o art. 32° da C.R.P. e o art. 379°, n.º1, al. c) do C.P.P., pois que o Tribunal se pronunciou sobre questões de que não podia tomar conhecimento, sendo a sentença nula nesta parte.

Em consequência, deverá o arguido ser absolvido da referida pena acessória de inibição de conduzir, com o que se fará JUSTIÇA.

7. O recurso foi admitido por despacho de 20 de Setembro de 2005 (v. fls.391).

8. Apenas o Ministério Público veio responder ao recurso e fê-lo pugnando pela improcedência do mesmo, com excepção do segmento que se reporta à condenação do arguido na sanção acessória de inibição de conduzir, pois, nessa parte, entende que a sentença é nula, nos termos e para o efeito do disposto no art. 379, alin. b) do CPP.

9. Subidos os autos a este Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto na vista que lhe foi dada emitiu o douto parecer de fls.400 a 404, entendendo que a sentença sofre do vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, pois não consta da matéria de facto que a vítima do acidente que sofreu as lesões físicas descritas no ponto 9 dos “factos provados” faleceu por virtude desses ferimentos, afirmação que constava da acusação, vício que entende sanável uma vez que do processo consta o relatório de autópsia efectuado ao cadáver de N.C. que indubitavelmente demonstra que esta faleceu em consequência dos ferimentos sofridos no acidente. Entende também que o recurso não merece provimento, excepto quanto à medida da coima que deve ser reduzida e à sanção acessória da qual o arguido deve ser absolvido.

10. Cumprido o disposto no art. 417 n.º2 do CPP, suscitou-se no despacho preliminar a questão prévia da prescrição do procedimento contra-ordenacional.

11. Teve lugar a audiência a que alude o art. 423 do CPP, impondo-se, agora, decidir:

12. Sabido que o objecto do recurso é extremado pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação, conforme o n.º 1 do art. 412.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo para a apreciação das questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer [v. Ac do STJ de 3.2.99, BMJ 484, pág 271;Ac do STJ de 25.6.98, BMJ 478, pág 242; Ac do STJ de 13.5.98, BMJ 477, pág 263; Simas Santos/Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, pág 48; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág 320 e 321] e considerando que foi efectuada a documentação da prova produzida em audiência, que se mostra transcrita, esta Relação conhece de facto e de direito (cf.art.428 n.º1 do CPP).

Ainda que de forma algo incipiente, o recorrente não deixou de dar cumprimento, no âmbito da motivação do recurso, ao disposto no art.412 n.º3 alíneas a) e b) do CPP relativamente aos factos que entende provados e que, em seu entender, devem ser aditados aos que assim se consideraram, referindo as razões que fundamentam a sua pretensão.

13. Assim, importa examinar e decidir, por ordem preclusiva:

a) Se está extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional em relação à contra-ordenação imputada ao recorrente;

b) Se a sentença é parcialmente nula, nos termos do art. 379°, n.º1, al. c) do C.P.P., por exceder os limites da Acusação proferida contra o arguido, no âmbito da contra-ordenação;

c) Se a sentença recorrida enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou de erro notório na apreciação da prova;

d) Se o tribunal recorrido deveria ter dado também como provado que:

1. - A viatura do arguido embateu numa pedra que se encontrava no local do acidente; e

2 - E que esse embate se deu no tejadilho da mesma viatura no lugar onde seguia a falecida N.

e) Se o arguido deve ser absolvido do crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137 n.º1 do Código Penal;

f) Se assim não se entender, se a pena aplicada ao arguido deve ser reduzida para uma pena próxima do limite mínimo e suspensa por período nunca superior a um ano.

g) Não precedendo a questão enunciada em a), se deve ser reduzida a coima e suspensa na sua execução a sanção acessória de inibição de conduzir.
II
14. Na primeira instância foram dados como provados e não provados os seguintes factos:

14.1 – Factos provados:

1 - No dia 15 de Novembro de 2003, pelas 22h30, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula…, na EM…, no sentido …;

2 - No interior do mencionado veículo seguia N. F.C., no banco dianteiro do passageiro, ao lado do arguido, sem fazer uso de cinto de segurança;

3 - Sensivelmente ao Km 2,27, o arguido pisou a berma, em terra, do lado direito, atento o sentido em que seguia, com a roda dianteira do lado direito;

4 - Acto contínuo guinou o veículo para o lado esquerdo, no sentido de o colocar na faixa de rodagem;

5 - Nesse momento, o arguido perdeu o controlo do veículo, que atravessou a faixa de rodagem e passou a circular na berma do lado esquerdo da via (sita no outro lado da faixa de rodagem), atento o sentido em que seguia;

6 - Percorreu cerca de 17,40 metros nessa berma, tantos quanto a travagem efectuada e deixada no local;

7 - Atravessou o caminho vicinal do …, partiu uma vedação aí existente, capotou e foi imobilizar-se a cerca de 19,30 metros da vedação, no interior de um campo aí existente;

8 - O veículo veio a imobilizar-se a cerca de 40 (metros) do início da travagem efectuada na berma do lado esquerdo da via, atento o sentido em que seguia;

9 - Em consequência directa e necessária do acidente, N. C. veio a sofrer graves lesões crâneo-encefálicas, nomeadamente fractura comunicativa do crâneo, fractura dos temporais, parietais, occipital e frontal, hematoma sub-dural, extensa ferida abrasiva da hemiface esquerda, fractura do maxilar inferior;

10 - Nos limites da faixa de rodagem, existem duas bermas, uma de cada lado da estrada, com um ligeiro desnível;

11 - Cada uma das bermas é composta por terra e apresenta vegetação rasteira;

12 - Ao lado de cada uma das bermas existe uma vala para escoamento das águas pluviais;

13 - No local onde ocorreu o despiste, a EM … tem dois sentidos opostos de trânsito, sendo que as hemifaixas de rodagem não se encontram delimitadas por qualquer traço no eixo da via, assim como as margens laterais da via;

14 - Nesse dia tinha chovido, mas à hora do despiste não chovia;

15 - O piso e as bermas estavam húmidos;

16 - O local onde ocorreu o despiste é uma recta;

17 - A estrada não apresenta buracos nem tem desnível;

18 - Não havia trânsito na estrada;

19 - Os pneus do veículo estavam em bom estado de conservação (fls. 123);

20 - Uma das jantes encontra-se empenada (fls. 123);

21 - Foi efectuada recolha de sangue ao arguido, tendo o mesmo apresentado uma Taxa de álcool no sangue de 0,54 g/l;

22 - Na altura do despiste o arguido vinha a conversar com N. C., sendo que por vezes olhava na sua direcção;

23 - O arguido conduziu desatento, desviando o seu olhar da estrada, conversando com a passageira que trazia, o que o fez perder a sua concentração, pisar a berma do lado direito e perder o controlo do veículo;

24 - O arguido bem sabia que deveria conduzir com atenção, sem desviar o seu olhar da estrada e sem perder a concentração. Todavia, assim não procedeu, conduzindo com imperícia e falta de cuidado na condução, o que o levou a roda dianteira direita do veículo a pisar a berma do seu lado, atento o seu sentido de marcha, confiando que o despiste não ocorreria;

25 - O arguido podia e devia ter evitado o resultado, o qual podia e devia ter igualmente previsto, tal como a generalidade das pessoas o teria feito;

26 - O arguido sabia ter ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que lhe podia determinar uma TAS igual ou superior a 0,5 g/l, mesmo assim conduziu o veículo, conformando-se com tal resultado;

27 - Agiu sempre de forma livre e conscientemente;

Mais se provou que:

28 - O arguido não tem antecedentes criminais;

29 - Do seu registo individual de condutor nada consta;

30 - Está profissional e socialmente inserido;

31 - É um condutor cuidadoso, diligente e cumpridor das regras de trânsito;

32 - É atencioso com os seus familiares;

33 - Lamenta muito as consequências do acidente;

34-Necessitou do apoio dos familiares e amigos para superar psicologicamente a morte da sua amiga N. C.;

35 - Ainda hoje sofre com o falecimento da amiga;

36 - É motorista, actividade onde aufere cerca de €600 mensais;

37 - Paga de prestação de casa cerca de €50,00 mensais;

38 - Paga de prestação de carro cerca de €250 mensais;

39 - Vive com os pais;

40 - Como habilitações literárias tem o 9º ano.

14.2 -O Tribunal recorrido a propósito dos factos não provados exarou que

Não se provou qualquer outro facto com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que:

1. A largura das bermas existente no local do acidente era de 50 cm, de cada lado;

2. O piso estivesse seco;

3 O arguido sabia que não estava em condições de conduzir em segurança, pois tinha anteriormente ingerido bebidas alcoólicas, o que lhe diminuía os reflexos na condução, no entanto, conduziu de forma livre, deliberada e conscientemente naquelas condições, bem sabendo que desse modo punha em risco a integridade física e a vida de Nilza Canita, ocasionando com tal comportamento a morte desta;

4. O veículo DS capotou por ter embatido numa pedra;

14.3 - Consta da fundamentação da sentença, quanto à matéria de facto a seguinte motivação:

Quanto aos factos provados:

“O Tribunal fundou a sua convicção a partir da análise crítica das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas ouvidas e dos documentos juntos aos autos, em conjugação com as regras da experiência comum e da lógica.

No que se refere às características do local e às circunstâncias e ao modo como se deu o acidente, o Tribunal fundou a sua convicção nos depoimentos dos militares da GNR C.P. e de A.G. que se deslocaram ao local e procederam à elaboração do croqui, junto a fls. 8 e 9 dos autos, tendo, de forma coerente credível e desinteressada, relatado pormenorizadamente a forma como o veículo se encontrava após o despiste bem como todos os vestígios que encontraram no local (rastos de travagem).

Com efeito, elucidaram que na berma do lado esquerdo, atento o sentido seguido pelo veículo, havia um rasto de travagem.

O veículo foi parar a um terreno vedado, a cerca de 40 metros do início da travagem. Durante o despiste o veículo embateu numa vedação e partiu a mesma.

O piso e bermas estavam húmidos.

A estrada no local do despiste é uma recta com boa visibilidade.

Não havia obstáculos na via, o pavimento apresentava um desnível mínimo, mas sem a mínima importância.

A convicção do tribunal baseou-se ainda na inspecção ao local onde ocorreu o despiste. Da realização de tal diligência verificaram-se as características da via e o tipo de piso as bermas.

Considerou-se ainda as declarações do arguido, que em parte nos pareceram sinceras, pois assumiu uma atitude de humildade, de interiorização da gravidade do acidente e nalgumas questões respondeu sem receios e rodeios.

De relevante referiu que no dia 15 de Novembro de 2003, cerca das 22h30, conduziu o veículo…, na Estrada Municipal … para a estrada que segue para …. . N.C. vinha a seu lado, no banco dianteiro do passageiro, iam a falar, sentiu a roda da frente pisar a berma do lado direito. Nesse momento, tentou puxar o carro para a faixa de rodagem. Acto continuo o carro deu um “abanão” na traseira e não conseguiu controlar o carro, apesar de ter reduzido com a caixa de velocidades. Atravessou a faixa de rodagem, saiu da mesma e foi para a berma em terra do lado contrário àquele em que seguia. Aí passou a circular pela berma e uma vala até que bateu numa pedra e o veículo capotou.

Mais referiu que, na altura, talvez caíssem algumas gotas de chuva, mas nada de especial. O piso estava molhado, mas não muito. No momento em que circulava não havia trânsito nem lhe surgiu qualquer obstáculo pela frente. Esclareceu ainda que no momento do despiste vinha a conversar com a N., tendo olhado algumas vezes para ela enquanto falava.

Adiantou ainda que a N. não trazia cinto de segurança.

Apesar de ter ingerido alcoólicas, a quantidade ingerida não lhe afectou as suas capacidades.

Por último, esclareceu que ainda hoje sofre com a morte da N. e compreende o sofrimento dos assistentes.

Relativamente à situação pessoal, familiar, profissional e económica do arguido, mereceram crédito as suas declarações, corroboradas pelas últimas testemunhas de defesa inquiridas.

Quanto aos antecedentes criminais e contra-ordenacionais, o Tribunal fundou a sua convicção, respectivamente, no C.R.C. e registo individual de condutor.

No que tange à honorabilidade, respeito pelas regras de trânsito, inserção profissional e social do arguido, importaram as declarações das testemunhas abonatórias indicadas e inquiridas em julgamento.

Todas prestaram um depoimento isento, objectivo e esclarecedor.

No que se refere à TAS apresentada no resultado do exame ao sangue efectuado e junto a fls. 148.

No que respeita ao estado do veículo na peritagem efectuada pela DGV (vide relatório de fls. 123).

Por fim, as consequências do acidente na pessoa de N., o tribunal considerou, em exclusivo, o relatório da autópsia junto aos autos a fls. 15 e segs.

Quanto aos factos não provados.

Os restantes factos não resultaram provados, porque quanto a eles não foi produzida qualquer prova directa, ou a prova produzida a tal respeito se ter revelado insuficiente por ter sido contrariada pela restante prova produzida.

Em particular não se acreditou que o veículo tenha embatido numa pedra e que por isso tenha capotado, pois tal versão foi contraditada pelo depoimento da testemunha P.P., primeira pessoa a chegar ao local do acidente e reparou a vedação destruída pelo acidente.

De relevante, referiu que o veículo não embateu na pedra, pois não apresentava qualquer vestígio que o levasse a concluir nesse sentido (não havia qualquer deslocamento da mesma). Presentemente a pedra tem sinais de ter sido embatida, pois tempos depois do acidente um veículo pesado embateu na mesma.

Depôs de forma isenta e objectiva.

Ademais a dimensão da pedra vista no local pelo tribunal, quanto a nós, só por si não levava a que o carro capotasse.

Não se considerou que a condução do veículo com uma TAS de 0,54 g/l tivesse contribuído para o acidente, pois nenhuma prova foi efectuada a este respeito, designadamente do nexo causal entre a condução sob influência do álcool e a dinâmica do acidente.

Na verdade, a taxa apresentada é muito próxima do limite mínimo da contra-ordenação para que possamos com segurança presumir ou concluir no sentido que o facto do arguido apresentar uma TAS de 0,54 g/l contribuiu para o despiste. Não se verificou qualquer comportamento que, em concreto, nos leve a afirmar que a referida TAS tivesse influenciado a condução do arguido”.

15. Impõe-se, agora, conhecer da questão da prescrição do procedimento contra-ordenacional.

Como resulta do acima transcrito, o arguido foi condenado pela prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pelo art. 81 n.º 1 e 5, alin. a) do Código da Estrada, com referência aos art.139 n.º1 e 2 e 146, alin. m) do mesmo diploma legal, na coima de € 400 e na sanção acessória de inibição de conduzir todo e qualquer veículo motorizado, pelo período de 5 (cinco) meses.

Os factos integrantes da contra-ordenação em causa (condução com taxa de álcool no sangue de 0,54 g/l) ocorreram no dia 15 de Novembro de 2003.

A contra-ordenação em causa era, ao tempo dos factos, punível, em abstracto com coima de € 240 a € 1.200.

Assim, de harmonia com o disposto no art. 27, alin. c) do RGCO o prazo de prescrição do procedimento por contra-ordenação era de 1 ano, contado desde a prática da contra-ordenação.

Tal prazo iniciou-se em 15 de Novembro de 2003, interrompeu-se com a notificação ao arguido da acusação, que se tem por efectuada em 27 de Outubro de 2004 (v.fls.164, 166 – cf. art.113 n.º3 do CPP e 28 n.º1, alin. a) do RGCO).

Não se aplica aqui o disposto no art. 28 n.º2 do RGCO, que apenas contempla os casos de concurso legal, aparente ou impuro, previstos no art. 20, isto é, quando o mesmo facto se mostra previsto e punível como crime e como contra-ordenação, não abrangendo, por conseguinte, os casos de concurso real.

Não se verificando qualquer causa típica de suspensão da prescrição do procedimento contra-ordenacional (cf. art. 27-A do RGCO - entende-se não ser legalmente admissível o recurso às normas de processo penal no que diz respeito à matéria atinente às causas de suspensão da prescrição, visto que dispondo o RGCO de um preceito que regula de forma expressa as causas de suspensão, não existe lacuna no que tange a tal matéria), o procedimento por contra-ordenação esgotou-se logo que decorridos 18 meses sobre a data dos factos, ou seja, em 15 de Maio de 2005, ainda antes da realização do julgamento (cf. art. 28 n.º3 do RGCO).

Sendo assim, tem de ser revogada a condenação do arguido no que respeita à coima e na sanção acessória de inibição de conduzir, ficando, por isso, prejudicadas as questões suscitadas pelo arguido e relacionadas com a contra-ordenação em causa, que se enunciaram sobre as alíneas b) e g).

16. Enfermará a sentença recorrida do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou de erro notório na apreciação da prova?

O arguido diz em sede de conclusões que a sentença violou o disposto no art. 410 n.º2, alin. a) e c) do CPP.

Algumas imprecisões conceptuais constantes da motivação do arguido podem conduzir a uma incorrecta ou incompleta percepção do objecto do recurso.

Erro notório na apreciação da prova e erro na apreciação dos factos, realidades que são substancialmente diversas.

Resultará da exposição dos seus argumentos, se bem os entendemos, que a devida interpretação dos factos dados como provados permitirá que se conclua que o arguido não contribuiu de forma exclusiva para a produção do acidente nem para o resultado morte que lhe sobreveio.

De todo o modo, e sendo oficioso o conhecimento de vícios da sentença, o tribunal de recurso não deixará de analisar a matéria de facto apurada nessa perspectiva de indagação prévia dos vícios referidos no art. 410 n.º 2, do C.P.P., tentando dar resposta às objecções colocadas pelo recorrente.

Em comum aos referidos vícios - "insuficiência para a decisão da matéria de facto provada" e "erro notório na apreciação da prova" - temos que apenas se poderá afirmar que o vício inquina a sentença em crise se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum".


Quer isto significar, e de acordo com a melhor, se não unânime, jurisprudência (v. g., e entre muitos, Ac. do STJ, de 29.11.1989; de 19.12.1990) que não é possível o apelo a elementos estranhos ao julgamento em si mesmo, só sendo de ter em conta as contradições intrínsecas da própria decisão, considerada como peça autónoma (salvo se os factos forem contraditados ou constarem de documento que faça prova plena).
As regras ou normas da experiência, como refere Cavaleiro de Ferreira, são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto "sub judice", assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação de alicerçam, mas para além dos quais têm validade.

Quanto à "insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando o tribunal de primeira instância tenha deixado de se pronunciar sobre facto que, revelando interesse para a decisão da causa, tenha sido alegado pela acusação ou pela defesa, ou tenha resultado da discussão da causa. E tal omissão de pronúncia verificar-se-á quando o tribunal não insira facto com a apontada natureza nem no rol dos factos provados nem naqueles que considerou como não provados (cf. acórdão do S.T.J., de 13.01.99, Proc. n.º 1126, 3.ª - Sec.).

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, «É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.»[1]

Daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127), que é insindicável em reexame da matéria de direito.

Assim, um tal vício só pode ter-se como evidente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida [2] .

Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

«Há insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto provada quando os factos dados como provados não permitem a conclusão de que o arguido praticou ou não um crime, ou não contém, nomeadamente, os elementos necessários ou à graduação da pena ou à elucidação de causa exclusiva da ilicitude ou da culpa ou da imputabilidade do arguido» [Ac. da Rel. de Lisboa de 19/7/2002, proferido no Proc. nº 128169, cujo sumário pode ser consultado no site htpp//www.dgsi.pt)].

É patente, como salienta o Senhor Procurador-Geral Adjunto, que a sentença enferma do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, mas por razões diversas daquelas que parecem resultar da motivação do arguido.

Na verdade, o arguido veio a ser condenado pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137 n.º1 do Código Penal. Porém, não consta da matéria de facto provada que a vítima do acidente, que sofreu as lesões descritas no ponto 9 dos “Factos Provados”, faleceu por virtude desses ferimentos, sendo certo que da acusação pública constava que tais lesões determinaram a morte daquela.

É certo também que tal matéria não consta igualmente dos factos não provados, o que seria susceptível de constituir nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

Aliás, neste contexto de apreciação, tal omissão seria igualmente susceptível de integrar o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada uma vez que não resulta da decisão de facto que a Nilza tenha falecido por virtude dos ferimentos sofridos em consequência do acidente.

No entanto, mostrando-se transcrita a prova e perante a factualidade apurada na decisão, o tribunal da relação pode suprir a insuficiência, modificando a decisão da matéria de facto.

E, no caso concreto, tal omissão, é de suprir, uma vez que tem o seu suporte no relatório pericial de fls.15 a 17, (que foi valorizado, em exclusivo, pelo tribunal recorrido quanto às consequências do acidente na pessoa de N., como resulta da fundamentação da matéria de facto supra transcrita), do qual consta que a morte de N.F.C. foi devido às graves lesões craneo encefálicas atrás descritas.

Assim, suprindo tal omissão, determina-se seja aditado ao ponto 9 dos factos provados a seguinte expressão: “resultando a morte daquela das graves lesões crâneo encefálicas que sofreu”.

Quanto ao vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude a alin. c) do n.º2 do art. 410 do CPP, não se vislumbra que a sentença padeça desse vício.

Quanto ao "erro notório", vem sendo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que ele apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias.

Erro notório na apreciação da prova é aquele que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta (Simas Santos e Leal Henriques, C.P.P.Anotado, I, 554) e traduz uma desconformidade do facto apurado com a prova.

Ora, não se pode confundir este alegado vício com a discordância acerca da forma como o tribunal fixou a matéria de facto pois, no campo da apreciação das provas, é livre a forma como o tribunal atinge a sua convicção.

Trata-se de emanação do princípio que vigora no nosso sistema processual penal, o princípio da livre apreciação da prova ou da livre convicção, consagrado no art. 127 do C.P.P., de acordo com o qual e, ressalvados os casos em que a lei dispuser diferentemente, "a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".

O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório" (Prof. Cavaleiro Ferreira, em Curso de Processo Penal, 1986, 1.º vol., fls. 211).

No entanto, a livre apreciação da prova não é um princípio absoluto, já que a própria lei lhe estabelece excepções, designadamente as respeitantes ao valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art. 169), à confissão integral e sem reservas no julgamento (art. 344 n.º2) e à prova pericial (art. 163).

Tais excepções enquadram-se no princípio da prova legal ou tarifada, que se acha radicado na certeza e segurança e certeza das decisões, consagração da experiência comum e facilidade e celeridade das decisões.

E tem grande importância a distinção a nível processual, pois que o desrespeito pelas regras próprias da valoração legal ou tarifada implica a violação de normas de direito, com as consequências e implicações, "maxime" em matéria de recursos (cf. Maia Gonçalves in Código de Processo Penal – 7.ª edição a páginas 262.

Da análise da matéria de facto fixada e da respectiva fundamentação, por si só, ou mesmo conjugada com regras da experiência comum, não resulta que a sentença contenha algum erro notório na apreciação da prova e mostra-se apoiada nos meios de prova produzidos e indicados na decisão que avaliou e ponderou, não se detectando qualquer erro que o cidadão comum, de mediana formação, se possa aperceber.

Assim, neste conspecto, improcede o invocado vício.

17. Da impugnação da matéria de facto.

Diz o recorrente, a este respeito, em sede de conclusões, que:

“ Não foi considerado como provado o facto alegado pelo arguido de que a viatura em que seguia embateu numa pedra e capotou. …Do depoimento das demais testemunhas não resulta que se possa concluir em sentido diverso… Dos documentos (fotografias) juntos aos autos resulta existirem no local do acidente e na berma do lado esquerdo (onde o arguido circulou com a sua viatura) diversas pedras de grandes dimensões e que a viatura sinistrada está bastante amolgada na parte do tejadilho acima do assento ao lado do condutor: factos estes que indiciam ser verdade a versão apresentada pelo arguido.

Conclui, assim, que podendo o Tribunal da Relação conhecer da matéria de facto, cf. art. 431°, al. b) do C.P.P. deverá proceder-se à alteração da matéria de facto apurada na Primeira Instância e aditar aos factos considerados como provados os seguintes:

- a viatura do arguido embateu numa pedra que se encontrava no local do acidente;

- e que esse embate se deu no tejadilho da mesma viatura no lugar onde seguia a falecida Nilza.

Vejamos:

Consabido é que o recurso da matéria de facto, como seja a da valoração da prova, não visa a reapreciação de toda a prova produzida nos autos, como se de um segundo julgamento se tratasse, mas apenas a detecção e correcção de erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente deverá apontar claramente e fundamentar na sua motivação.

O tribunal é, por excelência, uma instância de reconstituição de factos, construindo a “realidade” que sustenta a fundamentação da sua decisão, vinculativa, sobre a verificação ou inverificação do crime, e, por vezes, também dos pressupostos da responsabilidade civil.

A construção da realidade, delimitada pela verdade material e pela vinculação do juiz à lei no que toca à sua valoração jurídica, está, em grande medida, dependente da valoração da prova entregue, por via de regra, à livre convicção do juiz, o qual dispõe nesse domínio duma espécie de poder absoluto ou discricionariedade real na fixação da verdade dos factos.

O juiz defronta-se permanentemente com construções alternativas da realidade, a verdade da acusação e a verdade da defesa, com base nas quais irá construir a verdade processual.


A reconstituição processual da realidade histórica de certo facto humano não é ou dificilmente poderá ser a expressão precisa e acabada de um qualquer meio de prova e particularmente da prova testemunhal, dadas as naturais dificuldades em se reproduzir fiel e pormenorizadamente o que foi percepcionado ou vivenciado, geralmente de forma passageira e ocasional, muito antes da audiência de discussão e julgamento, local privilegiado para a produção e discussão das provas.

Muito menos podem os vários depoimentos ser entendidos isoladamente, retirando-os do respectivo contexto, apenas com base em frases transcritas num mero suporte documental e em certas imprecisões de algum dos testemunhos – por vezes justificáveis desde logo pelas circunstâncias dialécticas em que são produzidos, durante o interrogatório cruzado, formal, surgindo sempre um novo elemento em cada questão suscitada por cada um dos sujeitos processuais.

Questões já de si formuladas dentro da perspectiva antagónica e por vezes conflituante de acordo com a posição de cada sujeito processual.

Na verdade, a prova gravada ou transcrita nunca poderá suprir a abundância de pormenores (a cor e o cheiro) que a imediação proporciona ao juiz quando aprecia a matéria de facto.

A formação da convicção pelo tribunal resulta de múltiplos dados.

Num depoimento o tribunal analisa conjugadamente as razões de ciência da testemunha com o seu tom de voz, as hesitações, a seriedade, a exaltação ou não com que viveu o facto, a postura corporal e outros "elementos racionalmente não explicáveis". Daí resulta a credibilidade ou não de um testemunho.

O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355 do Código de Processo Penal. É aí que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova. O modo como a testemunha depõe, as suas reacções, as suas reticências e a sua mímica, são factores decisivos na formação de uma convicção final e não podem ser captados pela frieza de meios mecânicos.

O registo da prova, contra o que pode pensar quem nunca foi solicitado a apreciar com critério, isenção e seriedade a prova, está ainda algo longe de dar uma ideia segura da valia dos depoimentos. Pois que (como diz um conhecido provérbio) se “quem vê caras não vê corações”, muito menos corações vê quem não chega a ver caras….

Assim o juiz que, em 1.ª instância, julga de facto goza de ampla liberdade de movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova.

As provas são livremente valoradas pelo juiz sem obediência a regras pré-fixadas – art.127 do CPP.

Essa liberdade de apreciação com base no conjunto do material probatório recolhido pela percepção global é insindicável por esta Relação.

Como assim, o tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova poderá alterar o decidido em 1.ª instância – será, por exemplo e caricatura, o caso de o depoimento de uma testemunha ter um sentido diametralmente oposto ao que foi considerado na sentença.


Vale dizer que, por força do referido princípio da livre apreciação da prova (não estando em causa, como in casu não está, pelo menos em parte, prova dita tarifada ou legal), o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova é insindicável pelo tribunal de recurso, havendo apenas que indagar se é contrariado pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica.

No caso, ponderando que, consabidamente, a credenciação e consistência probatória dos depoimentos das testemunhas não vale pelo número, só poderá alterar-se o deciso pela primeira instância, caso se venha a entender que é arbitrário, infundado ou manifestamente erróneo.

Como enfatiza Damião da Cunha [A estrutura dos recursos na proposta de revisão do Código Processo Penal, RPCC, 8º, 2º pág. 259] os princípios do processo penal, a imediação e a oralidade, implicam que deve ser dada prevalência às decisões da primeira instância.

Nós apenas podemos controlar e sindicar a razoabilidade da sua opção, o bom uso ou o abuso do princípio da livre convicção, com base na motivação da sua escolha [cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, pág. 140 e segts. 158-9].

O verdadeiro, primeiro, julgamento fez-se na 1.ª Instância, onde aqueles princípios assumem peculiar relevo.

Na instância de recurso o que é relevante é a apreciação da regularidade do julgamento e não já um verdadeiro segundo julgamento.

Aliás, a lei – art. 430 do CPP – só permite a renovação da prova quando se verificarem os vícios do art. 410 n.º2, isto é, quando do texto da sentença algo decorra (insuficiência, contradição, ou erro), que torne patente haver falhas graves no raciocínio lógico do primeiro julgamento. Se a decisão se impõe, pelo que acima se referiu, não pode deixar de também se impor ao Tribunal de recurso, na medida em que o exige o contacto directo com a prova, com percepções que só este pode dar.
A sentença recorrida encontra-se genericamente bem fundamentada e demonstra preocupação em exibir de forma transparente e alicerçada na exposição dos processos valorativos e críticos de que resultou a formação da sua convicção – o que é de louvar por ser, fundamentalmente, nessa transparência e limpidez da utilização das regras do julgamento que assenta um dos pilares da credibilização dos Tribunais – tendo justificado a forma como fixou a factualidade apurada com o recurso a todos os meios de prova indicados que permitiram formar o raciocínio lógico que serviu de suporte à sua convicção, não o tendo de estabelecer, separadamente, para cada um dos meios de prova mas relativamente à apreciação global de todos os meios de prova.
Tal como se mostra feita, a fundamentação permite, pois, conhecer as provas que serviram para formar a sua convicção e as razões porque deu mais relevância a umas do que a outras e, por seu turno, a análise da prova, o que inclui a análise da prova produzida oralmente a partir da transcrição da mesma, permite concluir que a fundamentação, ao indicar os depoimentos orais prestados e em que faz assentar esse exame crítico e a formação da convicção do tribunal, fê-lo de forma coincidente com o respectivo conteúdo.

Na verdade, lidas as declarações que se encontram transcritas e que foram produzidas pelo arguido resulta que ele declarou que depois de ter perdido o controlo do carro entrou numa vala do outro lado da faixa, depois embateu numa pedra que se encontrava na vala e começou a capotar.


O senhor juiz explica na sentença suficientemente o porquê da sua opção, ou seja, porque não lhe mereceu credibilidade o que o arguido afirmou a respeito do embate numa pedra.

Recorda-se aqui o que, a esse propósito, foi afirmado na motivação da decisão de facto:

Em particular não se acreditou que o veículo tenha embatido numa pedra e que por isso tenha capotado, pois tal versão foi contraditada pelo depoimento da testemunha Pedro António Prates, primeira pessoa a chegar ao local do acidente e reparou a vedação destruída pelo acidente.

De relevante, referiu que o veículo não embateu na pedra, pois não apresentava qualquer vestígio que o levasse a concluir nesse sentido (não havia qualquer deslocamento da mesma). Presentemente a pedra tem sinais de ter sido embatida, pois tempos depois do acidente um veículo pesado embateu na mesma. (…) Ademais a dimensão da pedra vista no local pelo tribunal, quanto a nós, só por si não levava a que o carro capotasse.”

No caso vertente a decisão recorrida, no que respeita ao segmento da matéria de facto posta em crise, mostra-se convincente, sendo feita análise das várias provas produzidas, retratando exemplarmente a consagração no direito processual penal dos princípios da oralidade e da imediação no que diz respeito ao processo de formação da convicção do julgador.

Não existe, por conseguinte, prova suficiente para que se considere provado que a viatura do arguido embateu numa pedra que se encontrava no local do acidente e que esse embate se deu no tejadilho da mesma viatura no lugar onde seguia a falecida N.

Na verdade, não obstante as fotografias juntas aos autos confirmarem a existência de pedras na zona onde se verificou o acidente, não existe prova suficiente que permita sustentar a versão do arguido de que embateu numa dessas pedras e que tal tenha sido a causa do capotamento, nem que esse embate se tenha dado no tejadilho e no lado direito, onde seguia a vítima como passageira.

Como salienta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, há ilogismo e contradição quando o arguido pretende que se dê como provado, a partir das suas próprias declarações, que o veículo embateu com o tejadilho na pedra, sendo certo que o conteúdo das suas declarações é “bateu numa pedra que se encontrava na vala e o veículo começou a capotar”.

O tejadilho só fica ao nível do chão, possibilitando o embate na pedra, após o capotamento.

Donde que o contexto fáctico que o tribunal deu como verificado haja de acatar-se na sua plenitude e, incensurável sendo o que vem narrado, como insindicável, por assente, terá de ter-se o acervo factológico que se apurou.

Improcede, assim, esta faceta do recurso.

18. Deverá o arguido deve ser absolvido do crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137 n.º1 do Código Penal, como peticionado?

A este respeito diz o arguido que foi considerado, na Sentença, como provado, que a vítima Nilza circulava sem ter colocado o cinto de segurança, pelo que, se deverá concluir que o arguido não contribuiu de forma exclusiva para a produção do acidente nem para o resultado morte que lhe sobreveio. A obrigatoriedade de usar cinto de segurança (p. e p. no art. 82°, n° l do C.E.) na circulação automóvel tem como objectivo evitar a ocorrência de danos que, em último caso, podem ocasionar a morte: como foi o caso. Assim, se a vítima levasse o cinto de segurança ter-se-ia mantido no seu lugar e não teria a cabeça junto ao tejadilho, quando a viatura capotou e embateu na pedra (ou no solo).

Neste caso, a conduta da vítima contribuiu para as lesões que provocaram a sua morte.

Não é possível determinar com segurança um nexo de causalidade entre a conduta do arguido e a morte de Nilza, pelo que deverá ser absolvido do cometimento de um crime de homicídio negligente.

Vejamos:

É um facto estatístico que o uso do cinto de segurança pode, em caso de acidente de viação, reduzir as lesões sofridas.

O não uso do cinto de segurança pelo passageiro do veículo (em violação do dever imposto pelo artigo 82 n.º1 do Código da Estrada) não pode ser considerado concausal para as lesões sofridas pela infeliz N.F.C., de que veio a resultar a morte desta, por em termos de previsibilidade normal e típica se encontrar à margem do processo causador/desencadeador das lesões sofridas.

No caso vertente, não se torna mesmo possível concluir que o não uso do cinto de segurança, haja sido causal ou não causal das lesões sofridas.

E o arguido não pode deixar de ser responsável em primeiro grau pelo evento danoso, desde logo porque foi ele que provocou o despiste e era ele que tinha o “domínio sobre o facto” enquanto condutor do veículo. Se não fosse a conduta do próprio arguido, a da falecida, só por si, nunca poderia ter causado a morte, dado que era aquele que conduzia o veículo. Pelo que nem se pode falar aqui de indeterminação ou de interrupção do nexo causal.

No caso em análise não pode duvidar-se, como se afirma na sentença recorrida, de que o arguido agiu de forma negligente, pois violou o dever de cuidado que objectivamente lhe era exigido face às circunstâncias do caso.

Com efeito, sem qualquer razão que o justificasse - as condições quer da via, quer meteorológicas eram boas, quer de trânsito (não circulava ninguém nem surgiu qualquer obstáculo) - o arguido perdeu o controlo do veículo por si conduzido permitindo que o mesmo saísse da faixa de rodagem, pisasse a berma do seu lado, posteriormente fosse para a berma do outro lado da sua faixa de rodagem e por aí seguisse até o veículo capotar. Se o arguido circulasse com a atenção e o cuidado que a generalidade dos condutores ali teriam adoptado - porque podia tê-lo feito -, o arguido teria evitado o despiste e as suas funestas consequências.

Da matéria de facto dada por assente, é inequívoco e seguro poder afirmar-se não só que o arguido circulou com desrespeito pelas regras estradais - ao não prestar atenção à sua condução por forma a manter o seu veículo na faixa de rodagem correspondente -, mas também que esse mesmo desrespeito acabou por determinar o subsequente despiste. Ademais revelou imperícia ao não controlar o veículo no espaço livre à sua frente.

É, por isso, de lhe atribuir a culpa do acidente porque o despiste lhe é imputável pois o condutor de um veículo deve conduzi-lo de forma a poder controlá-lo e ele, naquelas circunstâncias, não o dominou.

Foi a sua conduta incorrecta que fez aumentar a probabilidade de produção do resultado, em comparação com o risco permitido.

O resultado é assim imputável ao arguido, a título de culpa negligente – negligência inconsciente. Tudo para concluir que se mostram verificados os pressupostos quer do tipo objectivo quer do tipo subjectivo do crime que vem imputado ao arguido, pelo que ele não podia deixar de ser condenado, como foi.

19. Passemos à última questão: Deve a pena de prisão que foi aplicada arguido ser reduzida para uma pena próxima do limite mínimo e suspensa na sua execução por período nunca superior a um ano?

Alega o recorrente para justificar a sua pretensão que “atendendo ao facto de ter sido dado como provado que o arguido "lamenta muito as consequências do acidente", "necessitou do apoio dos familiares e amigos para superar psicologicamente a morte da sua amiga N.C." e "ainda hoje sofre com o falecimento da amiga", que o arguido está socialmente inserido, é um condutor prudente e respeitador da regras, é trabalhador e - ainda - que a vítima seguia sem cinto de segurança e que, por isso, terá contribuído para o resultado morte, deverão todas estas circunstâncias ser consideradas como atenuantes da pena a aplicar ao arguido e ser a Sentença ora recorrida ser substituída por outra na qual seja o arguido condenado em pena de prisão aplicada em limite substancialmente inferior e próximo de mínimo legal, sendo a sua aplicação suspensa por período nunca superior a um ano.

O crime referenciado é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

Dispõe o art. 40º do C. Penal, no seu nº1 que “a aplicação da pena ... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E acrescenta o nº2: “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Como refere FIGUEIREDO DIAS, in Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227 - tendo já por referência o projecto que veio a ser plasmado no art. 40º da redacção actual do Código Penal - as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas. “... só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal a conferir fundamentos e sentido às reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas de prevenção positiva ou de integração, isto é de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida” – cf. F. Dias, As consequências, p. 72.

Neste contexto sustenta ROBALO CORDEIRO, após a revisão de 1995 do C. Penal, in Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal – CEJ - p. 48, que “as exigências geral positiva e de prevenção especial de socialização dominam agora a operação de escolha da pena, a culpa esgotou as suas virtualidades na determinação da pena principal”.

A pena há-de ser eficaz de forma a proteger o bem jurídico violado servindo como elemento dissuasor da prática de novos crimes, constituindo a retribuição justa do mal praticado, dando satisfação ao sentimento de justiça e segurança da comunidade.
Para além de dever contribuir, na medida do possível, para a reinserção social do delinquente. Sendo a culpa já não "o critério e medida da pena", mas apenas o seu "limite".

O art. 70 do C. Penal postula: “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dará preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da pena”.

No caso o crime, como se referiu é punido com prisão ou multa.

Ora, tendo em atenção designadamente a necessidade de protecção do bem jurídico violado, atenta a sinistralidade das estradas portuguesas, a gravidade dos factos, que o arguido não assumiu os mesmos no essencial, o grau da negligência, nada temos a censurar quanto à opção pela pena não privativa da liberdade, opção essa que o arguido também não questionou.


Por sua vez o art. 71º, nº1 do CP estabelece depois um critério geral segundo o qual “a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigência de prevenção” - denotando assim (ao colocar a culpa em primeiro lugar) não ter sido adaptado à nova redacção do art. 40º. Critério que é precisado depois no nº2, que estabelece: na determinação da pena há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.

Os factores concretos a ter em conta são depois definidos nas várias alíneas do citado nº2, reconduzindo-se a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c)}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f)}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}.

No caso a morte de uma amiga constituirá sem dúvida a maior pena que ao arguido poderá ser aplicada. Mas os factores a ter em conta são os referidos, sendo que a circunstância da falecida não levar o cinto de segurança não retira a culpa do próprio arguido que era quem detinha o “domínio do facto”, enquanto condutor do veículo.

Tendo presente todo o circunstancialismo que resulta dos factos provados e que o tribunal recorrido considerou, não se justifica maior compressão da pena, que se peca é por benevolência, sob pena de se por em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

Afigura-se-nos também que o período de suspensão da execução da pena estabelecido na sentença recorrida (2 anos) - tendo presente o limite mínimo de 1 ano e máximo de 5 anos e a não subordinação da suspensão ao cumprimento pelo condenado de qualquer dever adicional ou regra de conduta - se mostra adequado e necessário à eficácia da suspensão, pois um prazo inferior não garante que a pena aplicada ao recorrente seja sentida como tal.

Com efeito, ensina o Prof. Figueiredo Dias, in ob. citada, §519, que a finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou - ainda menos - «metanoia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como exprime Zipf, uma questão de «legalidade» e não de «moralidade» que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção de reincidência».

Se assim é, e se por outro lado a quantificação da pena aplicada já está condicionada pela necessária consideração da medida da culpa, tal como é imposto pelo artigo 71 n.º 1, do Código Penal, então, a preocupação de eficácia preventiva da medida impõe-se agora à invocação dessa culpa ou, mesmo da ilicitude como condicionantes do período temporal da suspensão, o qual devendo ser fixado nos limites do artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, apenas obedecerá no seu quantum ao objectivo de «prevenir a reincidência», o que, naturalmente inserido no complexo juízo prognóstico quanto ao futuro comportamento do arguido - juízo aquele que sempre preside à aplicação da pena de substituição - não prescinde da consideração das concretas circunstâncias do caso, e reclama a veemente intervenção do bom senso do julgador. Bom senso que, pela leitura dos factos provados, pode afirmar-se ter estado presente na sentença recorrida, designadamente na concretização do tempo de suspensão da pena, atendendo ao concreto enquadramento dos factos disponíveis e à personalidade do arguido.

Pois, não obstante as atenuantes provadas, convém não esquecer que, apesar de tudo, o arguido não confessou a culpa e até no âmbito deste recurso veio pugnar pela absolvição. Enfim, nada demonstra que o objectivo legal referido de «prevenir a reincidência» seria seguramente atingido com encurtamento do tempo de suspensão da pena, nomeadamente com a duração proposta pelo recorrente. Pelo contrário, este quadro de facto leva a ter como de duvidosa eficácia, essa medida, se amputada na duração decidida.

Assim, sem embargo do decidido quanto à prescrição do procedimento contra-ordenacional não procede o recurso do arguido.


20. Por ter decaído, incumbe ao arguido recorrente o pagamento de taxa de justiça e custas (cf. art. 513 n.º1 e 3 e 514 do CPP e 82 n.º1, 87 n.º1, alin. b) e 89 do CCJ).
III

21. Por tudo o exposto decide-se:

a) Julgar extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional contra o arguido pela contra-ordenação, prevista e punida pelo art. 81 n.º1 e 5, alin. a) do Código da Estrada, com referência aos art. 139 n.º1 e 2 e 146, alin. m) do mesmo diploma legal, e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que condenou o arguido pela prática de tal infracção;

b) Alterar a matéria de facto dada como assente e aditar ao ponto 9 dos factos provados a expressão” resultando a morte daquela das graves lesões crâneo encefálicas que sofreu”.

c) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e manter, no mais, a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 6 UC’s a taxa de justiça.


(Processado por computador e revisto pelo relator).


Évora, 2004.04.06

F. Ribeiro Cardoso/ Gilberto Cunha/ Martinho Cardoso




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[1] «Curso de Processo Penal», III, 2.ª edição, pp. 339/340.
[2] Cf. por todos, o acórdão, do STJ, de 9-4-97 (BMJ 466-392).