Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
536/04.4TBLLE
Relator: SILVA RATO
Descritores: ABUSO DE DIREITO
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS EM SEDE DE RECURSO
Data do Acordão: 06/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: TRIBUNAL JUDICIAL DE LOULÉ (1º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
1 - Para que se verifique o abuso de direito é necessária a verificação cumulativa de três pressupostos:
a - uma situação objectiva de confiança digna de tutela jurídica e tipicamente consubstanciada numa conduta anterior que, objectivamente considerada, seja de molde a despertar noutrem a convicção de que o agente no futuro se comportará coerentemente de determinada maneira;
b) que, face à situação de confiança criada, a outra parte aja ou deixe de agir, advindo-lhe danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada;
c) que seja, frustrada a boa-fé da parte que confiou.
2 – Constitui abuso de direito a invocação pelo senhorio da nulidade do contrato de arrendamento, por violação da forma legal, quando ele e os seus antecessores, nessa mesma qualidade, ao longo de mais de 30 anos, pelo seu comportamento, criaram na Ré a expectativa de que não invocariam a nulidade do contrato.
3 – Para efeitos do art. 706º do C.P.C., documentos supervenientes, são os documentos que só se formaram após a realização da audiência de discussão e julgamento (e respeitantes a factos instrumentais dos factos essenciais debatidos na acção, uma vez que os factos novos só são admitidos até ao encerramento da discussão em 1ª Instância e o recurso visa a apreciação da decisão impugnada e não julgar questões novas), ou aos factos em debate na acção ou de que a parte só teve conhecimento após a realização da mesma, ou ainda os que, apesar da parte ter conhecimento da sua existência não pôde deles dispor até a esse momento, e que têm interesse para sustentar a tese da acção ou da defesa. 4 – Só se enquadram na categoria de “documentos que se tornem necessários em virtude do julgamento proferido em 1ª instância” os documentos necessários a contraditar prova que foi introduzida de surpresa no processo, ou seja, aquela prova que o juiz mandou realizar oficiosamente.
Decisão Texto Integral:
I. I… intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra M…, Lda. peticionando:
a)Que seja declarada a invalidade do contrato de arrendamento por nulo e de nenhum efeito;
b))Que a Ré seja condenada a entregar, inteiramente devoluto, o rés-do-chão à Autora;
b))Que a Ré seja condenada a proceder à demolição da dependência edifi­cada clandestinamente.
Alegou para o efeito, em síntese, que é dona de prédio urbano, cujo rés-do-chão, destinado a comércio, foi em 1971 dado de arrendamento à Ré por mero contrato verbal. Que a Ré passou de sua iniciativa, e sem qualquer autorização, a fazer uso de uma área não incluída no contrato, onde edificou uma dependência clandesti­na.
A Ré deduziu contestação, em que impugnou, parcialmente, o alegado pela Autora, alegando que ocupa todo o espaço desde Janeiro de 1967, por lhe ter sido cedido pelos tios da Autora e deduziu reconvenção no caso da acção ser declarada procedente.
A A deduziu réplica, respondendo à reconvenção e ampliando o pedido peticionando o despejo imediato da Ré.
A Ré deduziu tréplica, na qual manteve o alegado na contestação, acrescentando que as obras não alteram a estrutura do prédio.

Proferido despacho saneador, foi declarada improcedente a excepção peremptória de nulidade do contrato verbal de arrendamento celebrado entre as partes.

Inconformada, veio a A. interpor recurso de apelação desta decisão, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
I) A exigência de escritura pública nos arrendamentos comerciais é uma condição de validade substancial, prevenindo o n.° 2 do art.° 12.° do CC que a validade de um contrato bem como os efeitos dessa invalidade, têm de aferir-se pela lei vigente ao tempo em que o negócio foi celebrado.
II)A entender-se que com a entrada em vigência do Dec.-lei 67/95 de 19 de Fevereiro, tal diploma abrange alem dos contratos verbais anteriores a 1 de Junho, os que lhe são posteriores a essa data, viola-se o princípio da igualdade consagrado no art.° 13.° da Constituição, inconstitucionalidade, que, desde já, se suscita.
III) Dispondo o Dec. Lei 67/75, no art.° 2º/2, que e facultado ao locador com contratos ainda que verbais e anteriores a1 de Junho de 1967, notificar o locatário para reduzir o contrato a escritura pública e em caso de recusa a disposição do art.° 1029.°/3 do CC não lhe aproveita, não havendo idêntica disposição nos contratos celebrados pós 1 de Junho de 1967, pelo que a recusa por parte do locatário não tem por efeito a manutenção da invalidade do contrato,
IV) Não sendo legítimo, por violador do princípio de igualdade, não concedendo a lei essa faculdade ao locador que haja contratado pós 1 de Junho de 1967, a aplicação retroactiva do Dec- Lei 67/75 de 19 de Fevereiro.
E ainda que o Dec.- Lei vise também os contratos pós 1 de Junho de 1967, essa norma deve ter-se por inconstitucional, por permitir uma desigualdade material entre as partes, em que o locador, dado a manutenção duradoira desse contrato, passa a ser a parte mais desprotegida e menos favorecida, assistindo-se ao florescimento do locatário e ao empobrecimento do locador, cujos parcos rendimentos usufruídos do arrendado e restringido que está o seu direito de propriedade, a muito custo sobrevive, inconstitucionalidade da norma que se suscita.
VI) Sendo questão controvertida a data de celebração do acordo verbal, a provar-se que mesmo teve lugar após 1 de Junho de 1967, e defendendo-se que a essa data não lhe era aplicável o disposto no art.° 1029º/3 do CC, o conhecimento da nulidade deve ter lugar em decisão final, sendo intempestivo o seu conhecimento no despacho saneador.
Nestes termos e com o douto suprimento, deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se procedente a excepção peremptória de nulidade do contrato celebrado após 1 de Junho de 1967, … .”

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, em que se decidiu:
Tudo visto, julgando nos termos expostos inteiramente improcedente e não provada a acção, o Tribunal decide o seguinte:
a) Absolver da instância a Ré M…, Lda, por falta de legitimidade da Autora
b)Condenar a Autora I… no pagamento das custas.

Inconformada, veio a A. interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
“I) A douta sentença é nula ao decidir da falta de legitimidade da Recorrente, por encerrar uma decisão surpresa, vedada pela art.º 3.º/3 do CPC, violando-se o princípio do contraditório, que tem consagração constitucional no art.º 20.º da CRP;
II) É também nula por ter conhecido de questão que não podia tomar conhecimento, violando o disposto no artº art.º 668.º/1 d), do CPC;
III) Houve por parte da douta sentença em crise, violação e errada aplicação da lei substantiva e da lei processual;
IV) O conhecimento oficioso da ilegitimidade reporta-se à ilegitimidade processual;
V) Reportando-se a presente acção a relações locatícias, são sujeitos da relação jurídica de arrendamento aqueles a quem se exige a sua intervenção - senhorio e arrendatário ;
VI) A Ré ora Recorrida, não impugnou a qualidade de proprietária e senhoria da A., muito pelo contrário reconhece tais qualidades e foi na base das quais produziu a sua defesa;
VII) A Recorrente alegou e provou que a área do rés-do-chão descoberta exterior era pertença do prédio constituindo logradouro do mesmo;
VIII) Não constando do prédio uma área descoberta porquanto com a provada dependência edificada no logradouro o prédio actualmente não possui a referida área descoberta;
IX) Foi imposição da Câmara Municipal de Loulé, à data em que o antigo proprietário, pretendeu construir o prédio que este possuísse um logradouro com 6,00 metros na profundidade do lote;
X) A Recorrente registou o prédio e viu aprovada pela Câmara Municipal a alteração ao prédio, cuja área inclui a edificada dependência, não tendo sido levantada qualquer questão de titularidade sobre o prédio;
XI) As simples confrontações não servir de base para definir o direito de propriedade sobre determinado imóvel;
XII) Nas declarações de prédio devoluto ou de prédio arrendado, que antigamente era necessário apresentar no Serviço de Finanças apenas eram mencionados, de acordo com o disposto no art.º 144.º/2.ª do revogado CCPIIA, os espaços que produziam rendimento, sendo que os meros logradouros dos prédios urbanos só eram indicados e com rendimento em separado quando lhes era dado um destino diferente, ou seja ,no caso se fosse objecto de arrendamento destinado a comércio;
XIII) A resposta à matéria do quesito 5.º deve ser alterada, dando-se por provado que a Ré
edificou uma dependência na área exterior, por tal facto resultar da própria fundamentação da decisão da matéria de facto e da própria sentença;
XIV) A Recorrida não provou que o locado arrendado incluía o anterior logradouro do prédio, não provou que as obras que lhe levou a efeito tivessem sido autorizadas;
XV) Ficou provado que tais obras não são amovíveis, que consistem numa obra nova com alteração do destino dado ao espaço em questão;
XVI) Dos documentos que ora junta e de que se requer a sua admissão, justificada a necessidade de junção em face da decisão inesperada cuja relevância a Recorrente não podia razoavelmente contar, não pode deixar de dar-se por provado que a parcela de terreno ocupada pela dependência constituía logradouro do prédio;
XVII) E, consequentemente impõe-se concluir pela alteração do sentido da douta sentença apelada, julgando-se não verificada a excepção dilatória de ilegitimidade processual decidindo-se pela procedência da acção.
Nestes termos e com o douto suprimento, deve ser dado provimento ao presente recurso.

A Apelada deduziu contra-alegações em que pugna pela manutenção do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
A)Mediante escritura pública lavrada no dia 29 de Abril de 2003 no Cartório Notarial de Faro, a folhas 116 do livro n° 311-A de notas para escrituras, foi adjudicado à Autora, por partilha na herança aberta por óbito de M… e de M…, a propriedade do prédio urbano de dois pavimentos, destinado a comércio e habitação, sito na Rua.., freguesia de São Clemente, inscrito na matriz predial sob o artigo… e não descrito na Conservatória do Registo Pre­dial.
B)Mostra-se inscrita a favor da Autora a aquisição, por partilha de herança de M… e M…, do prédio urbano sito na Rua…, composto por rés-do-chão com duas divisões, destinado a comércio, 1º andar direito com oito divisões e 1 ° andar esquerdo com oito divisões, destinado a habita­ção, inscrito na matriz predial sob o artigo…, descrito na Conservatória do Registo Pre­dial de Loulé sob o nº….
C)Por acordo verbal, M… cedeu à Ré o gozo temporá­rio do rés-do-chão do prédio provado em A) para o exercício da actividade de comércio de reparação de aparelhagem eléctrica e mediante o pagamento de uma contrapartida mensal.
D)Em Fevereiro de 2004 a contrapartida mensal paga pelo gozo do prédio era de 66,17 euros.
E)º) O acordo provado em C) foi celebrado no início da década de 1970.
F)) A passou a utilizar a área exterior ao rés-do-chão provado em C) da especificação.
G)) A certa altura, passou a haver uma dependência no espaço da área exterior
H) Na provada dependência, a Ré substituiu a cobertura existente por placas
I) A Ré procedeu à colocação de tecto falso e iluminação no locado.
J) E procedeu ao polimento do chão.
L) E à pintura do locado.
M) Os trabalhos provados em 7°, 8°, 9º e 10° proporcionam funcionalidade ao local.
N) A Autora pretende submeter à aprovação camarária um projecto de construção de alteração do existente, incluindo o rés-do-chão, e de ampliação do prédio.

III. Nos termos do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 660º do mesmo Código.
As questões a decidir resumem-se, pois, a saber:
I)Recurso do despacho saneador:
a)Se o contrato celebrado entre as partes é nulo por falta de forma.
II) Recurso da sentença:
a)Se a sentença em apreço constitui uma decisão surpresa;
b)Se a A é parte legítima;
c)Se a resposta ao quesito 5º deve ser alterada;
d) Qual a solução a dar ao pleito.
Recurso do despacho saneador.
Na sua p.i. inicial veio a A invocar a nulidade do contrato de arrendamento em apreço, por preterição de formalidade legal (escritura pública), obrigatória por força do art.º 37º, n.º2 da Lei 2030, de 22.06.1948.
O Sr. Juiz “a quo” veio a declarar tal excepção improcedente, tendo em conta o disposto no art.º 1029, n.º 3 do Cód. Civ., na redacção introduzida pelo art.º 1º do Decreto-Lei n.º 65/75, de 19/02, aplicável aos autos por força do n.º1 do art.º 2º do mesmo Decreto-Lei.
Cumpre decidir.
Quanto à aplicação das normas de natureza substantiva, diz-nos o n.º1 do art.º 12º do Cód. Civ. que a lei só dispõe para o futuro, acrescentando o n.º2 que “quando a lei dispõe sobre a validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se em caso de dúvida que só visa os factos novos; …”.
O que quer dizer que o contrato em apreço deveria ter sido celebrado por escritura pública, dado que à data da sua celebração (início da década de 70), tal era obrigatório por força do na alínea b) do n.º1, do art.º 1029º do Cód. Civ..
No entanto, por via da introdução do n.º3 no art.º 1029º do Cód. Civ., por força do Decreto-Lei 67/75, de 19/02, a respectiva nulidade, por falta de forma, passou a ser invocável apenas pelo locatário, a todo o tempo, o que art.º 6º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10 manteve.
Perdurou assim no tempo, uma disposição que teve como fundamento “a defesa das classes mais desfavorecidas e das partes contratuais menos favorecidas” (preâmbulo do Decreto-Lei 67/75).
O que aparentemente teve o apoio dos consecutivos legisladores.
E se é verdade que esta desigualdade de armas entre as partes pode “violar o princípio da igualdade jurídica das partes, que está na base da justiça comutativa contratual” (Pires de Lima e Antunes Varela Cód. Civ. Anotado, em nota ao art.º 1029º), o que poderia levar-nos a equacionar a inconstitucionalidade do preceito, o que a ser declarado conduziria a que o mesmo não fosse aplicado por violação do disposto no art.º 13º da Constituição, permitindo assim à A a invocação da nulidade do contrato, por violação da forma legal, também não é menos verdade, que a A. e os seus antecessores, na qualidade de senhorios, ao longo de mais de 30 anos, pelo seu comportamento, criaram na Ré a expectativa de que não invocariam a nulidade do contrato em apreço, pelo que o seu pedido, nesta parte, constitui abuso de direito.
Na verdade, tal como se considerou, v.g, nos Acs deste Supremo Tribunal de 7-6-01, in Proc 1334/01 e de 7-3-02, in Proc 284/02, ambos da 2ª Sec, «o abuso do direito pressupõe um excesso ou desrespeito dos respectivos limites axiológico-materiais, traduzido na violação qualificada do princípio da confiança, sendo que, para que tal aconteça, não se torna necessário que o agente tenha consciência do carácter abusivo do seu procedimento, bastando que este o seja na realidade».
Situação que logo se configura quando o titular do direito se deixa cair numa longa inércia sem a respectiva exercitação, susceptível de criar na contraparte a convicção ou expectativa fundada de que esse direito não mais será exercido, e que a sua posição jurídico-substantiva se encontra já consolidada, nela investindo, em conformidade, as suas expectativas e até o seu capital; violação drástica do princípio da confiança, que a doutrina sintetiza na máxima _ venire contra factum proprium.
Quer a doutrina, quer a jurisprudência, são concordantes em que, para se concluir por tal ilegitimidade se torna necessária a verificação cumulativa de três pressupostos: uma situação objectiva de confiança digna de tutela jurídica e tipicamente consubstanciada numa conduta anterior que, objectivamente considerada, seja de molde a despertar noutrem a convicção de que o agente no futuro se comportará coerentemente de determinada maneira; que, face à situação de confiança criada, a outra parte aja ou deixe de agir, advindo-lhe danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada; ou seja, frustrada a boa-fé da parte que confiou. (Conf. Baptista Machado, in -Tutela de Confiança" - RLJ, Anos 117º e 118º, páginas 322 e 323 e 171 e 172, respectivamente).- conf., ainda, o Ac do STJ de 22-11-01, in Proc 3293/01 - 2ª SEC)” (Ac. do STJ 02B2967, Relator Cons. Ferreira de Almeida).
O que acontece no caso vertido nos presentes autos.
Pelo que a sua pretensão não é de atender, por constituir abuso de direito.
Improcede assim o recurso interposto do despacho saneador.

Recurso da sentença
Com questão prévia, importa decidir sobre a admissibilidade dos documentos apresentadas pela Apelante com as suas alegações de recurso.
Nos termos do art.º 706º do CPC (na versão aplicável aos autos) "1-As partes podem juntar documentos às alegações, nos casos excepcionais a que se refere o art.º 524º ou no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento da 1ª instância.”
Da leitura do disposto no art.º 706º podemos concluir que as partes, apenas podem juntar em recurso de apelação:
1) Os documentos supervenientes;
2) Os documentos que se tornem necessários em virtude do julgamento proferido em 1ª instância.
Quanto aos primeiros, os supervenientes, são os documentos que só se formaram após a realização da audiência de discussão e julgamento ou de que a parte só teve conhecimento após a realização da mesma, ou ainda os que, apesar da parte ter conhecimento da sua existência não pôde deles dispor até a esse momento, e que têm interesse para sustentar a tese da acção ou da defesa.
E quanto aos documentos que se formaram após a realização da audiência de julgamento, que respeitem a factos ocorridos em momento posterior àquele momento processual, têm que respeitar a factos instrumentais dos factos essenciais debatidos na acção, uma vez que os factos novos só são admitidos até ao encerramento da discussão em 1ª Instância (art.º 506º n.º 1 e 663 n.º 1, ambos do CPC) e o recurso visa a apreciação da decisão impugnada e não julgar questões novas, ou aos factos em debate na acção.
Quanto aos segundos tem-se entendido que só se enquadram nessa categoria, os documentos necessários a contraditar prova que foi introduzida de surpresa no processo, ou seja, aquela prova a que o juiz mandou realizar oficiosamente (vide neste sentido João Espírito Santo in o Documento Superveniente ..., págs. 50 e 51).
Como fundamento da sua junção, invocam os Apelantes a sua pretensão de infirmar a decisão surpresa da 1ª Instância, quanto à sua legitimidade.
Nesse sentido e porque a junção é pertinente, admitem-se os documentos juntos com as alegações, que serão tidos em conta na apreciação do recurso.
Comecemos por analisar a primeira questão que atém a saber se a decisão sob recurso é uma decisão surpresa.
Resulta à evidência dos autos que Ré nunca alegou a excepção de ilegitimidade da A. para deduzir a presente acção, antes pelo contrário, sempre a reconheceu como parte legítima, atenta a relação material controvertida tal como foi configurada pela A..
Daí que a sentença em apreço seja uma decisão surpresa, por violar o disposto no n.º 3 do art.º 3º do CPC, e consequentemente nula.
Por força do disposto no n.º1 do art.º 715º do CPC, este Tribunal deverá conhecer do objecto da apelação, sendo certo que as partes já se pronunciaram sobre a questão da nulidade da sentença.

Passemos a apreciar da legitimidade da Ré para intentar a presente acção
A legitimidade das partes, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 26º do CPC, não havendo disposição legal em contrário, como é o caso em apreço, afere-se pela relação material controvertida tal como configurada pela A..
Relação essa locatícia, entre senhorio e arrendatário que, sublinhe-se, foi pacificamente aceite pelas partes nos seus articulados.
Daí que a A. e Ré sejam partes legítimas nestes autos.

Apuremos agora da bondade da pretensão da Apelante de ver a matéria do quesito 5º totalmente dada por provada.
Diz-nos o A. que “A resposta à matéria do quesito 5.º deve ser alterada, dando-se por provado que a Ré edificou uma dependência na área exterior, por tal facto resultar da própria fundamentação da decisão da matéria de facto e da própria sentença”.
Pergunta-se no quesito 5º se “A Ré edificou uma dependência na área exterior?”, que mereceu a resposta “A certa altura, passou a haver uma dependência no espaço da área exterior”.
O que resulta claro da decisão da matéria de facto, foi que a dada altura passou a haver uma dependência exterior, não se provando quem construiu essa dependência, não havendo pois qualquer contradição entre a resposta a fundamentação da mesma.
Quanto à sentença, o que aí se diz, quanto a esta matéria, é exactamente a mesma coisa, ou seja, que passou haver uma dependência na “área exterior”, nada se dizendo sobre quem a construiu.
Daí que se mantenha a resposta ao quesito 5º.
Em face da matéria dada como provada, qual a solução a dar ao pleito?
Façamos, em primeiro lugar uma súmula do peticionado pela A.
Invocando que a celebração do contrato de arrendamento do rés-do-chão que identifica, para comércio, foi efectuada verbalmente, vem arguir a nulidade do mesmo, por não ter sido celebrado por escritura pública, e, consequentemente que a Ré seja condenada a entregar-lhe tal rés-do-chão.
Por outro lado, invocando que a Ré ocupou abusivamente o logradouro desse rés-do-chão e que aí construiu uma dependência, pede que a Ré seja condenada a demolir tal dependência.
Por ampliação do pedido, veio a A, na réplica, pedir que, a julgar-se válido o contrato de arrendamento verbal, seja decretada a resolução do contrato por a Ré ter realizado as obras que a A diz ter efectuado na dependência, sita no logradouro, sem autorização da A..
Do que atrás dissemos, retiramos que o pedido formulado na p.i., quanto à dependência _ demolição da mesma _, assenta no pressuposto de que foi a Ré que construiu a dependência.
Quanto ao pedido formulado, por ampliação, na réplica, está em contradição com o fundamento da presente acção.
Na verdade, invocando a A. que o logradouro e dependência aí existente ou construída, não foram dados de arrendando à Ré, não pode pedir o despejo por realização de obras não autorizadas nesse logradouro/dependência.
O que poderia pedir, relativamente a um prédio ou parte de prédio não dado de arrendamento, era a restituição da posse do mesmo!
Em face deste quadro o que dizer?
Quanto ao pedido de demolição da dependência, uma vez que não se provou que foi a Ré que construiu tal dependência, tem o mesmo que improceder.
Quanto ao pedido ampliado, de resolução do contrato por realização de obras numa parte do prédio da A. que diz não ter sido arrendado à Ré, dado que está em contradição com os fundamentos da acção - não arrendamento dessa parte do prédio à Ré -, improcede o mesmo também.
Naufragam assim, na totalidade, os pedidos formulados pela A.
IV. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se:
a)Recurso do despacho saneador: pela sua improcedência;
b)Recurso da sentença:
1)Declarar nula a sentença por violação do princípio do contraditório;
2)Declarar improcedentes os pedidos formulados pela A.
Custas pela Apelante.
Registe e notifique.
Évora, 16 de Junho de 2010
(Silva Rato - Relator)
(Abrantes Mendes - 1º Adjunto)
(Mata Ribeiro - 2º Adjunto)