Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1236/08-3
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Data do Acordão: 09/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário:
I – A privação de uso e fruição afecta o dono da coisa no seu direito de propriedade, o que representa uma menos valia susceptível de ser, só por si, ressarcida.

II – A indemnização do dano dessa privação pode, razoavelmente, ser estabelecida a partir do custo do aluguer de um veículo sem condutor de características semelhantes ao sinistrado durante o período de privação.

III – É único culpado no acidente o condutor que muda, repentinamente, de direcção para a esquerda no momento em que estava a ser ultrapassado.
Decisão Texto Integral:
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PROCESSO Nº 1236/08 - 3
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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RELATÓRIO
No Tribunal de correu termos uma acção de processo sumário movida por “A” contra a Companhia de Seguros “B” para ser indemnizado pelos danos sofridos no acidente de viação ocorrido em 06-06-2003, em …, e no qual foram intervenientes o seu veículo automóvel UU, por si conduzido, e o veículo DQ, conduzido por “C”, cuja responsabilidade civil automóvel estava transferida para a Ré, com fundamento em culpa exclusiva deste por haver repentinamente e sem qualquer sinalização mudado de direcção para a esquerda no momento em que era ultrapassado pelo Autor.
A acção foi contestada e, seguindo os seus trâmites, após audiência de julgamento, foi sentenciada com base em repartição de culpas dos intervenientes - 70% para o Autor (por efectuar a ultrapassagem em entroncamento - local proibido) e 30% para o outro interveniente (por irregularidade na execução da mudança de direcção).
Consequentemente, foi a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de € 1068,32 euros, correspondente à responsabilidade do seu segurado no valor da reparação dos danos na viatura, com os juros legais, sendo absolvida da parte indemnizatória correspondente à privação de uso do veículo por falta de prova de tais danos.
Inconformado, apelou o Autor para esta Relação, pugnando pela ressarcibilidade do dano da privação de uso e pela imputação da culpa exclusiva ao outro condutor interveniente.
A Ré contra-alegou em defesa da sentença recorrida.
Remetido o processo a Tribunal, após o exame preliminar, foram corridos os vistos legais.
Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.
FUNDAMENTAÇÃO
Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. No dia 06/06/2003, cerca das 19H50, ao quilómetro … da Estrada Nacional nº …, sito na localidade de …, concelho de …, ocorreu um embate entre o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula UU (doravante "veículo UU"), conduzido por “A” e o veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula DQ (doravante "veículo DQ"), conduzido por “C” e de sua propriedade - alíneas A) e B) dos factos assentes;
2. No local do embate, a estrada tem duas faixas de rodagem, destinadas a sentidos de trânsito opostos, configura uma recta com "boa visibilidade", com um entroncamento - alínea C) dos factos assentes e resposta ao quesito 25.°;
3. O veículo UU circulava encostado à direita da faixa destinada à circulação no sentido Sul/Norte, a uma velocidade de 40/50 Km/hora, circulando o veículo DQ na mesma faixa e sentido de trânsito - alíneas O) e E) dos factos assentes;
4. A partir de certa altura, o condutor do veículo UU pretendeu ultrapassar o veículo DQ, sendo que, antes de iniciar essa manobra, verificou que à sua frente dispunha de espaço livre para ultrapassar - resposta aos quesitos 2.° e 19.°;
5. Após tal verificação, o veículo UU iniciou a manobra de ultrapassagem, ocupando a faixa contrária, tendo assinalado a manobra com o sinal luminoso de mudança de direcção à esquerda, e aumentou a sua velocidade para o efeito ­respostas aos quesitos 3.°, 4.º, 20º. e 21º;
6. Então, o condutor do veículo UU efectuou a manobra de ultrapassagem de um veículo ligeiro de passageiros, que precedia imediatamente o veículo DQ, circulando estes dois veículos a uma velocidade na ordem dos 40 Km/hora e no mesmo sentido de trânsito do veículo UU - respostas aos quesitos 1.º e 27.º;
7. O condutor do veículo DQ projectava virar à esquerda, atento o seu sentido de marcha, circulando a uma velocidade não superior a 50 Km/hora, tendo iniciado essa mesma manobra depois de ter accionado o sinal luminoso de mudança de direcção respostas aos quesitos 14.°, 15.º e 17.º;
8. Quando o veículo UU já se encontrava em ultrapassagem, com a sua frente posicionada já depois da frente do veículo ligeiro de passageiros, referido no parágrafo 6, e sensivelmente a meio do comprimento do veículo DO, o condutor deste veículo guinou repentinamente à esquerda - resposta ao quesito 5.º;
9. O veículo DQ veio a ocupar toda a faixa esquerda, cortando totalmente a linha de trânsito ao veículo UU, impossibilitando o seu condutor de prosseguir em marcha final de ultrapassagem - resposta aos quesitos 6.º e 7.º;
10. Perante tal, não foi possível ao condutor do veículo UU evitar o embate no veículo DO - resposta ao quesito 8.º;
11. O veículo UU foi embater com a frente lateral direita (guarda-lamas) no pneu /rodado traseiro esquerdo do veículo DO, após o que este último rodopiou - resposta aos quesitos 22.º e 23.º;
12. Em consequência do embate, o veículo UU sofreu os danos descritos na factura inserta a fls. 29 dos autos, os quais importam num total de € 3.561,06 - alínea G) dos factos assentes;
13. O autor, por diversas vezes, dirigiu à ré reclamações escritas, requerendo o pagamento da importância de € 3.561,06, o que a segunda sempre recusou - alínea H) dos factos assentes;
14. O autor apenas após a recusa da ré é que mandou reparar o veículo UU à “D”, concessionário da …, à qual pagou a quantia de € 3.561,06 no dia 20/07/2003 - alínea f) dos factos assentes;
15. Após o dia 07/06/2003, o veículo UU esteve imobilizado, pelo menos, 4 dias - resposta ao quesito 10.º;
16. O UU era o único veículo de que o autor dispunha e usava para as suas deslocações profissionais - resposta aos quesitos 11.º e 12.º;
17. À data do embate, a ré havia assumido as obrigações derivadas de responsabilidade civil para com terceiros, emergente de danos resultantes da circulação do veículo DQ, através de acordo titulado pela apólice n.º … - alínea F) dos factos assentes.

A matéria de facto não foi impugnada nem se descortinam nela vícios justificativos da intervenção da Relação.
FUNDAMENTOS DE DIREITO
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões da alegação do recorrente, importa recordar as conclusões por ele propostas e nas quais sintetiza as razões da sua discordância com o decidido:
A - Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou a acção parcialmente improcedente, tendo em consequência, absolvido a Ré do pagamento ao Autor de indemnização devida por efeito da privação do uso do veículo e bem assim do pagamento, em 70%, da indemnização peticionada pelos restantes danos restantes danos sofridos pelo autor em resultado do acidente.
B - A privação de uso de veículo é um dano autónomo, sendo a possibilidade de utilização de um veículo automóvel, em si mesma, um valor material, susceptível de quantificação com recurso à realidade da vida quotidiana, designadamente, ao custo que corresponderia ao seu uso no mercado de aluguer sem condutor.
C - O dono de um veículo automóvel a quem se impõe a simples privação da possibilidade do respectivo uso não carece de demonstrar a concreta utilização que daria ao veículo durante o período em que não o pode utilizar, a não ser que pretenda o ressarcimento de outros prejuízos para além do ressarcimento do dano resultante dessa privação.
D - O artigo 562.° do C. Civil consagra o princípio da reconstituição in natura, sendo esta, no caso de privação de uso de veículo, assegurada pela entrega, por parte do obrigado a indemnizar, de um veículo com as características do veículo paralisado.
E - Se tal entrega não se efectuar, em aplicação da regra da teoria da diferença consagrada no artigo 566.° do Código Civil, o dano constituído pela privação de uso, deverá ser reparado através da fixação de indemnização em dinheiro.
F - Com fundamento nas citadas normas legais e estando demonstrado que o Autor esteve privado do seu veículo pelo menos durante quatro dias, não poderia e tribunal a quo deixar de lhe arbitrar uma indemnização que haveria de ter quantificado com recurso à equidade, afigurando-se adequada a quantia mínima de € 50/diários ou outra a apurar em execução de sentença.
G - Não se revela conforme com os fundamentos de facto constantes da douta sentença, a repartição da responsabilidade pelo mesmo entre o autor e o condutor do veículo DQ fixada em 70% e 30%, respectivamente, padecendo a mesma de erro na interpretação e aplicação do direito aos factos provados.
H- Em face dos factos dados por provados deverá concluir-se que o autor não desrespeitou as normas constantes nos citados artigos 35° e 38° do C.E ..
I - Demonstram, com particular ênfase os factos 2 e 4, que o autor tomou todas as cautelas enunciadas nas normas constantes dos artigos 35° e 38° do C.E., não havendo nenhum comando que não tenha cumprido.
J - O condutor do veículo DQ, por sua vez, é quem descuida sucessivamente o dever de cuidado que se lhe impõe, violando todos os comandos dirigidos ao condutor que pretende mudar de direcção para a esquerda, designadamente:
- iv. não diminui a velocidade antes de efectuar a manobra de viragem à esquerda;
- v. não se aproxima com a necessária antecedência do eixo da via;
- vi. não assinala com a necessária antecedência a manobra de viragem de direcção à esquerda.
K - Após ter sido iniciada a respectiva ultrapassagem, passa a constituir obrigação do condutor do DQ «facultar a ultrapassagem, desviando-se o mais possível para a direita» 1a parte, do n° 1, do artigo 39°, do C.E., o que este também não fez.
L - O facto da ultrapassagem ao veículo DQ ter sido precedida da ultrapassagem a um outro veículo ligeiro, que antecedia aquele, em nada contribuiu para a ocorrência do embate - factos provados 8 e 9.
M - O facto da ultrapassagem ao veículo DQ ter sido precedida da ultrapassagem a um outro veículo ligeiro que o antecedia agrava o estado de desatenção daquele uma vez que, naquela particular circunstância, mais tempo e mais uma razão adicional teve para melhor ter visto o veículo UU.
N - o condutor do DQ actuou de forma grosseiramente negligente e em violação do disposto nos artigos 20°, 35° n° 1, 39°, nº 1 e 44°, nº 1, do CE, regras elementares da condução automóvel.
O - Decorre dos autos que o recorrente trabalha e é residente em …, …, sendo que o acidente teve lugar na EN …, Km …, em …, assim, em local que não lhe era familiar.
P - O entroncamento formado pela Rua da … aparece imediatamente após uma casa de habitação, não sendo perceptível a quem circula na EN … - cito Participação de acidente da GNR, a fls ...
Q - Demonstrando os factos provados ser o recorrente um condutor atento, cuidadoso e cumpridor, caso o entroncamento fosse perceptível ou se encontrasse sinalizado não teria o recorrente iniciado a ultrapassagem antes do mesmo.
R - A presunção baseada na experiência diz que quem usa de atenção, cuidado e prevenção numa determinada situação em vista à protecção do interesse de terceiros, usá-las-á em todas as situações e de todas as perspectivas em vista à mesma protecção de interesses, não deixando esta de constituir uma presunção judicial (artigo 351° do CC).
S - Entendendo-se, não obstante, ser a conduta do autor/recorrente violadora da regra estradal consignada no artigo 41°, nº 1, al. D) do CE., sempre esta infracção não foi determinante do embate, nem contribuiu para a ocorrência do mesmo em termos de causalidade adequada porquanto à conduta do autor se interpôs a conduta do condutor do DQ, inesperada, imprevisível, inaudita e temerária.
T - Sendo que "há nexo de causalidade entre as infracções e os danos causados pelo embate, se não se interpuser outra causa que, interrompendo o nexo causal, seja só por si causa bastante do acidente" - Acórdão da Relação de Lisboa, de 6 de Janeiro de 1987, in CJXII, 1,92, 1a cal., 16° e 17° §§ ..
U - A ultrapassagem iniciada pelo ora recorrente, tendo em conta as condições de modo e lugar, teria decorrido sem qualquer acidente, não fora a conduta evidenciada pelo condutor do veículo DQ, que tendo guinado "repentinamente" (facto provado 8) à esquerda e ocupado toda a faixa esquerda, cortou totalmente a linha de linha de trânsito ao veículo do recorrente, impossibilitando-o de prosseguir em marcha final de ultrapassagem, não lhe possibilitando, perante tal, evitar o embate - cit. Factos provados, sob os números 8,9 e 10.
V - Face à matéria de facto apurada resulta que a culpa pela produção do acidente se deveu exclusivamente ao condutor do DQ, que efectuou uma manobra de mudança de direcção sem tomar as precauções exigíveis a qualquer condutor normalmente prudente, não se tendo certificado antes de iniciar tal manobra do tráfego que se processava, designadamente, que estava a ser ultrapassado pelo autor, o que devia e podia ter percepcionado tanto mais que o acidente decorreu numa recta, a uma velocidade moderada e antes de si o autor havia já ultrapassado outra viatura.
X - Caso se entenda ter o recorrente contribuído para a ocorrência do acidente a repartição da responsabilidade será de efectuar-se por forma a agravar a responsabilidade do condutor do veículo DQ na produção do acidente, fixando-a em proporção superior à do recorrente.
Z - Ao decidir como decidiu violou a douta sentença as normas constantes dos artigos artigos 351°, 562°, 566°, 570° do Código Civil e artigos 20°,35° nº 1, 39°, nº 1 e 44°, nº 1, do CE.
Conclui, pedindo a procedência do recurso.

São, portanto, questões a apreciar:
Se a privação de uso é um dano autónomo automaticamente ressarcível; A responsabilidade civil e a sua eventual repartição.

Quanto à 1ª: Dano da privação de uso
A 1ª instância entendeu que a mera privação de uso do veículo não comporta, só por si, um prejuízo patrimonial ressarcível, sem ser demonstrada uma efectiva perda de receitas ou acréscimo de despesas; o mero impedimento de fruição do bem não dispensa a alegação e prova do dano; no caso em apreço, apurou-se que a imobilização subsequente ao acidente durou apenas 4 dias e não foi demonstrado qualquer dano efectivo.
O recorrente discorda deste entendimento; segundo ele, o dono de um veículo automóvel não carece de demonstrar a concreta utilização que daria ao veículo durante o período da privação, a não ser que pretenda o ressarcimento de outros danos para além do dano da privação.
O uso meramente potencial representa um valor material ou materializar, susceptível de quantificação na vida quotidiana, v. g., pelo custo do aluguer de um veículo sem condutor.
O ressarcimento da privação de uso funda-se, assim, no princípio geral da reconstituição in natura da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562° n01 CC).
Concordamos, por inteiro, com o recorrente.
O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (art. 1305° CC).
O uso e a fruição analisam-se num aproveitamento das utilidades e vantagens proporcionadas pelo bem objecto do direito de propriedades.; logo, privado o dono do direito de uso de fruição fica afectado no seu direito de propriedade, ou seja, sofre uma desvantagem injusta e ilícita que, por representar uma menos valia, deve ser neutralizada, independentemente do uso e fruição efectivos que venham a ter lugar.
A privação do uso, desacompanhada da sua substituição por um outro ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflecte o corte definitivo e irrecuperável de uma "fatia" dos poderes inerentes ao proprietário. Deste modo, a simples privação do uso é causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que pode servir de base à determinação da indemnização. Aliás, o simples uso do veículo constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano (Cfr. Abrantes Geraldes (Indemnização do Dano da Privação do Uso, p. 39).
Assim, "Se a privação do uso do veículo durante um determinado período originou a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa forma não for reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente. Fazer depender invariavelmente a indemnização da prova da ocorrência de danos imputáveis directamente a essa privação é solução que pode justificar-se quando o lesado pretenda a atribuição de uma quantia suplementar correspondente aos benefícios que deixou de obter, ou seja, aos lucros cessantes, nos termos do artigo 564°, nº 1 do Código Civil, ou às despesas acrescidas que o evento determinou, já não quando o seu interesse se reduza à compensação devida pela privação que, nos termos da mesma norma, corresponde ao prejuízo causado, isto é, aos danos emergentes" (Cfr. A. Abrantes Geraldes Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, 2001, pg.34 e segs).
O dano imediatamente ressarcível é neste caso a indisponibilidade do bem, independentemente da actividade (lucrativa, benemérita ou de simples lazer) a que o veículo estava afecto. Nesta linha de orientação, já foi entendido que o uso de um veículo automóvel constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação consubstancia um dano patrimonial que deve, por si só, ser indemnizado com recurso critérios de equidade. Por conseguinte, mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos tendo em conta a mera indisponibilidade do bem (dr. Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 26-11-2002, CJ, V, p.19).
Representado a privação de uso, independentemente da prova concreta dos danos decorrentes de tal privação, uma diminuição patrimonial autónoma, e como tal, ressarcível, o critério e a medida desta ressarcibilidade não pode deixar de ser o estabelecido no art. 5660 nº 1 e 2 CC.
Assim, inexistindo recurso à disponibilização de viatura de substituição - com o que indemnizaria a privação temporária de uso por via equivalente à reconstituição natural - a medida da indemnização terá que ser fixada em dinheiro cujo quantitativo, de harmonia com a teoria da diferença, é o correspondente à situação patrimonial após o facto lesivo e a que provavelmente teria na mesma altura se não existissem danos.
Se considerarmos que situação patrimonial num dado momento se define pelo conjunto das relações jurídicas com valor económico e que esta característica tanto existe quando o direito tem um valor de troca como quando oferece ao seu titular um valor de uso (poderes de utilização e fruição), então podemos compatibilizar a autonomização deste dano com o critério de quantificação da indemnização em dinheiro em sede de responsabilidade civil definido pela denominada teoria da diferença.
Ora, se não tivesse ocorrido o facto lesivo, o veículo teria o seu valor de uso e fruição intacto; por via daquele, deixou de o ter, pelo menos, durante o tempo da imobilização.
A indemnização do dano dessa privação pode razoavelmente ser estabelecida a partir do custo do aluguer de um veículo sem condutor de características semelhantes ao sinistrado durante esse período, não nos repugnando o valor de € 50 euros diários preconizado, no caso em apreço, pelo recorrente, num total de € 200 euros, considerando que a viatura esteve imobilizada durante quatro dias.

Quanto à responsabilidade civil:
A sentença recorrida entendeu ter existido concorrência de culpa do lesado na eclosão do acidente e graduou as responsabilidades em 70% e 30%, respectivamente para o lesado e lesante.
Segundo ela, o Autor, lesado, teria violado o disposto no art. 38° nº 2- b) e 41° nº 1 -c) do Código da Estrada (realização de ultrapassagem em local proibido - entroncamento, não tendo sido demonstrado que a via por onde circulava estivesse assinalada como prioritária - e sem se certificar de que podia retomar a direita sem perigo para os veículos ultrapassados.
Por sua vez, o lesante teria violado os art.s 35° nº 1 e 44° nº 1 do mesmo diploma, na medida em que mudou de direcção para a esquerda por forma que criou perigo para o trânsito, não se aproximando com a necessária antecedência do eixo da via, pois que guinou abruptamente para a esquerda quando estava a ser ultrapassado.
E, graduando as culpas e inerentes responsabilidades, escreve-se na douta sentença recorrida:
"Ora, afigura-se-nos que o maior responsável pelos danos foi o próprio autor, porquanto realizou a manobra de ultrapassagem num local proibido e até de forma algo temerária, face aos factos que ficaram provados, procurando ultrapassar dois veículos sem ter que retomar a hemifaixa da direita, contribuindo de forma decisiva para a ocorrência do embate naquelas circunstâncias. A culpa do condutor do veículo DQ, ainda existente, é menor, pois este realizou uma manobra admissível naquele local, apenas não tendo a cautela necessária na sua realização, ao guinar repentinamente, ao mesmo tempo que preteriu a observação do trânsito, mas do que se apresentava à sua retaguarda e não à sua frente, o que reveste menor importância na manobra de mudança de direcção à esquerda, numa via com aquele traçado"
Com todo o respeito, não concordamos.
É verdade que o lesado efectuava uma ultrapassagem em local - entroncamento - onde tal não era permitido.
Mas a proibição de tal manobra era relativa: no caso em apreço, seria permitida se a via por onde transitasse fosse prioritária, relativamente à que nela entronca e tal prioridade estivesse devidamente assinalada (art. 41° nº 4-a) CE) - o que nos autos não está demonstrado.
Do que se infere que a proibição de realizar ultrapassagens em entroncamentos o fim ou propósito da norma - visa prevenir o risco de acidentes com veículos que, apresentando-se no entroncamento, pretendam circular pela via por onde rodam os veículos ultrapassante e ultrapassado e não com os veículos que pretendem mudar de direcção para a esquerda; a protecção da norma dirige-se, para além do condutor que ultrapassa, aqueles e não estes ...
O que significa que, ainda que a via por onde circulavam fosse prioritária e estivesse, como tal, assinalada, o acidente sempre ocorreria.
A violação pelo lesado do art. 41° nº 1-c) CE - que, no mais, observou todo o preceituado na legislação rodoviária para a realização da ultrapassagem (art. 20° n01 e 38° n01 e 2 CE) - não foi, pois, concausal do acidente.
Ao invés, ao condutor que muda de direcção para a esquerda são impostos os cuidados enunciados no n0 1 do art. 44° do CE - aproximação com a necessária antecedência do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afecta a um ou a ambos os sentidos de trânsito e efectuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação - observando também, se for caso disso, o nº 2 - efectuar a manobra de modo a dar a esquerda ao centro de intersecção das duas vias, se tanto na via que vai abandonar como naquela em que vai entrar, o trânsito se efectuar nos dois sentidos.
Tudo isto, obviamente depois de assinalar, com a necessária antecedência a sua intenção (art. 20° n0 1 CE), utilizando a luz de mudança de direcção prevista na al. d) do n0 1 do art. 60º do CE, do lado correspondente ao da deslocação lateral do veículo (art.105º nº 1 e 4 do Regulamento de Sinalização de Trânsito Dec. Regulamentar n° 22-A/98 de 1 de Outubro) e de se certificar que pode realizar a manobra por forma que da mesma não resulte perigo ou embaraço para o trânsito (art. 35° n0 1 CE).
“As cautelas que o condutor que vai mudar de direcção deve tomar dirigem-se tanto ao tráfego em sentido oposto como aos condutores que vêm na sua esteira" e, em caso de mudança de direcção para a esquerda de condutor de veículo que está a ser ultrapassado, a responsabilidade pela eclosão do acidente deve incidir totalmente sobre este se não fez sinal de mudança de direcção ou se o fez tardiamente (Cfr. Oliveira Matos, Código da Estrada Anotado, 1991, p. 88).
Não é pacífica a definição de responsabilidades no caso de acidentes de viação ocorridos no decurso de manobras simultâneas de mudança de direcção e de ultrapassagem efectuadas pelos condutores intervenientes: será a culpa do condutor que começou a manobra depois de ter sido encetada a manobra do outro; do que começa a ultrapassar o veículo que já se aproximara do eixo da faixa de rodagem e ligara os "pisca-pisca" esquerdo ou do que virou para a esquerda quando o outro condutor já acendera os pisca-pisca esquerdos e/ ou já rodava pela metade esquerda da faixa de rodagem, próximo do veículo que mudou de direcção.
Não faltando quem reparta a culpa, mais ou menos irmãmente, pelos dois condutores, observa-se, no entanto, que o condutor que vira para a esquerda é normalmente o único que poderá evitar o acidente - se olhar para trás (ou para o retrovisor) imediatamente antes de virar (Cfr. Eurico Heitor Consciência, Sobre Acidentes de Viação e Seguro Automóvel, 2a ed., 2002, p. 132-133).
Por outro lado, também não falta quem preconize, como princípio normativo orientador da delimitação subjectiva da responsabilidade, o critério temporal e o princípio de confiança que deve presidir à circulação rodoviária.
Nesta ordem de ideias, segundo aquele critério, o conflito entre a ultrapassagem e a manobra de mudança de direcção deverá ser resolvido a favor do primeiro a iniciou. A este propósito escreveu-no Acórdão da Relação de Coimbra de 13-11-2007 (texto acessível na Internet, através de http://www.dgsLpt):
"0 "critério temporal", como princípio geral de orientação, é o que se extrai da conjugação de diversas normas do Código da Estrada (na versão do DL n" 265-A/2001, de 28/9 e da Lei nº 2º/2002, de 21/8, vigentes à data do acidente) e o que melhor se adequa com o princípio da confiança, inerente ao tráfego rodoviário.
Desde logo, pressupondo ambas as manobras a prévia sinalização, ela deve ser feita com a "necessária antecedência", antes mesmo do início da execução, de modo a revelar a pertinente" intenção" (art.20 nº 1). do CE). Por outro lado, também ambas exigem a prévia certificação do perigo ou embaraço para o trânsito (art.35 nº 1 do CE), sendo que este dever geral de cuidado é concretizado em face da especificidade de cada uma delas (arts. 38 nº 1 e 2, art. 44 nº 1). do CE).
Mudar de direcção é tomar uma via confluente daquela em que se segue e o condutor deve fazer o sinal regulamentar com a necessária antecipação, bem visível e significativo, de modo a não deixar dúvidas sobre a sua intenção aos restantes utentes da estrada, aproximar-se do eixo da via e realizar a manobra em sentido perpendicular aquele em que seguia.
Em caso algum deve iniciar tal manobra sem previamente se assegurar que da sua realização não resulta perigo ou embaraço para o trânsito (artº 20º; 35 e 44 do CE)".
No caso em apreço, está provado que o lesado iniciou a manobra de ultrapassagem ocupando a faixa contrária, tendo assinalado a manobra com o sinal luminoso e aumentou a velocidade do seu veículo - o UU - para o efeito, ultrapassando o veículo que imediatamente o precedia e foi, quando se encontrava sensivelmente a meio do comprimento do veículo DQ, que o condutor deste fez sinal luminoso de mudança de direcção e guinou repentinamente para a esquerda, cortando totalmente a linha de trânsito do UU e impossibilitando o condutor deste de concluir a manobra de ultrapassagem.
Logo, mudou de direcção para a esquerda no momento em que estava a ser ultrapassado, violando, desde logo, o dever geral de cuidado que lhe impunha certificar-se previamente da segurança de tal manobra e abster-se de a efectuar se da mesma resultasse o perigo de acidente.
O referido critério temporal permite, pois, imputar-lhe a responsabilidade pela eclosão do acidente.
É, por isso, que discordando da repartição de culpas operada na douta sentença recorrida, entendemos, por um lado, que a infracção rodoviária cometida pelo lesado ao ultrapassar em local proibido foi meramente ocasional mas não causal do acidente; de outro modo dita, não foi sua causa adequada.
ACÓRDÃO
Nesta conformidade, procedendo a apelação, acorda-se nesta Relação em revogar a douta sentença recorrida e, julgando procedente a apelação, condenar da Ré e recorrida “B” a pagar ao Autor e recorrente, “A”, a quantia de € 3.761,06 euros - sendo € 3.561,06 euros correspondente ao valor da reparação dos estragos causados no seu veículo e € 200 euros ao valor da privação do uso e fruição do veículo nos 4 dias em que esteve imobilizado em resultado do acidente - acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação em 05-07-2004, até efectivo e integral pagamento.
Custas pela Ré, apelada.
Évora e Tribunal da Relação, 18.09.2008