Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
869/05.2TBSTC.3.E1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PRESTAÇÃO EM ESPÉCIE
VEÍCULO AUTOMÓVEL
REABILITAÇÃO FUNCIONAL
Data do Acordão: 03/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Em caso do sinistrado sofrer lesões em consequência de acidente de trabalho, de que resulte incapacidade permanente que obriga, além do mais, a readaptar o seu veículo automóvel com determinadas caraterísticas, necessárias para o poder utilizar nas suas deslocações, mas em que não é possível readaptá-lo, a responsável pela reparação do acidente tem a obrigação de atribuir um veículo automóvel ao sinistrado, à escolha da responsável, com as caraterísticas apuradas nos autos, para que este se possa deslocar, dentro das limitações decorrentes da incapacidade permanente de que é portador.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 869/05.2Tbstc.3.E1
Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO

Apelante: C… (responsável)
Apelado: B…(sinistrado).
Tribunal da comarca de Faro, Faro, Instância Central, 1.ª Secção de Trabalho, J1.

1. O sinistrado veio requerer a realização de exame médico com vista a aferir-se a necessidade de lhe ser atribuído um carro com as devidas adaptações como meio de mais fácil locomoção, conferindo-lhe, dessa forma, uma maior mobilidade.
Para o efeito alega, em síntese, que sofreu um acidente de trabalho em 14 de outubro de 2004, e, em consequência do mesmo ficou com um quadro de tetraplégia incompleta ASIA C.
Encontra-se a nível de cadeira de rodas e está dependente da ajuda de terceiras pessoas para transferências, vestuário, calçado e higiene, ficando afetado de IPP de 85%, com IPATH.
É detentor de carta de condução que o habilita a conduzir veículos da categoria B e B1.
De acordo com o atestado médico para condutor de veículos, emitido em 25 de setembro de 2012, “tem aptidão física e mental para a condução de veículos Categorias B (…) com as seguintes restrições: Transmissão automática (10.02; Travão de Estacionamento em forquilha (20.09); Acelerador e travão tipo push up and pull com ortótese acoplada à direita (30.04); Punho no volante com ortótese à esquerda (35.03); e central de comandos operáveis sem influências negativas na direção e manejo (35.01), (…)”.
O sinistrado encontra-se apto para a condução de veículos da Categoria B, grupo 1, desde que devidamente adaptados.
O veículo automóvel que melhor se adapta às necessidades do sinistrado é o KIA SOUL EMOTION KIWI.
Não sendo possível colocar o sinistrado novamente a caminhar, há que disponibilizar os meios em espécie que mais se possam substituir aos seus membros inferiores, de forma a permitir-lhe a maior mobilidade possível.
Regularmente notificada veio a C…, entidade responsável, dizer que aceita, que o veículo automóvel do sinistrado careça de ser adaptado a fim de lhe ser possível conduzir o mesmo e que, nessa conformidade, já comunicou ao sinistrado que aceita suportar o custo das adaptações enunciadas no Atestado Médico emitido em 25 de setembro de 2012 pela Presidente da Junta Médica da Região de Saúde de Faro.
Não aceita que o veículo automóvel do sinistrado não seja suscetível de ser adaptado, nem tão pouco que as adaptações a realizar nesse, ou noutro veículo automóvel idêntico, tenham um custo de € 52.120,00, pois a proposta de fornecimento de adaptação para condução em cadeira de rodas inclui itens que não estão contemplados nem no Atestado Médico emitido pela Junta Médica da Região de Saúde de Faro nem no Relatório do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.
O que a seguradora aceita pagar é o custo das adaptações/restrições estabelecidas no Atestado Médico emitido pela Junta Médica da Região de Saúde de Faro em 25 de setembro de 2012, mais concretamente transmissão automática (10.02); travão de estacionamento em forquilha (20.09); acelerador e travão tipo push up and pull com ortótese acoplada à direita (30.04); punho no volante com ortótese à esquerda (35.03); e central de comandos operáveis sem influências negativas na direção e no manejo (35.01).

Procedeu-se a realização de tentativa de conciliação não tendo sido obtido acordo.
Dadas as divergências entre o entendimento do sinistrado e os relatórios médicos juntos pelo mesmo, procedeu-se a realização de perícia médica colegial com vista a aferir das suas concretas capacidades e limitações ao nível dos membros inferiores, superiores, tronco e pescoço; do grau de afetação dos respetivos reflexos, designadamente se as lesões evidenciadas limitam, e em que grau, a sua capacidade de reação a situações inopinadas; das repercussões das limitações físicas que vierem a ser apuradas ao nível da aptidão do mesmo para o exercício da condução.
Mais foi determinada a realização de perícia na área da engenharia mecânica por forma a aferir-se as caraterísticas mecânicas que tem de possuir um veículo que venha a ser conduzido pelo sinistrado.
Após, foi proferida sentença com a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julgo procedente o incidente deduzido pelo sinistrado B… e, em consequência, deve a entidade responsável C… atribuir ao mesmo um veículo automóvel KIA SOUL EMOTION KIWI com as caraterísticas de fábrica suprarelatadas (estar equipado (de origem) com caixa de velocidades automática (código 10.02), estar equipado (de origem) com direção assistida, ter altura mínima do habitáculo igual ou superior a 1,5 m) e proceder a todas as adaptações complementares como travão de estacionamento em forquilha (código 20.09), travão de serviço do tipo “push up and pull down”, acelerador manual, punho no volante da direção (código 35.03), todos os comandos (piscas, luzes, limpa vidros, etc) manuais, o banco do condutor e dos passageiros imediatamente atrás do lugar do condutor serão eliminados e a rampa de acesso terá de obedecer a especificidade própria. Por forma a ser salvaguardada a possibilidade do veículo ser conduzido por outra pessoa, para circunstâncias extraordinárias como revisão ou paragem oficial, submissão a inspeção periódica, cansaço ou impedimento do condutor diminuído, o lugar do condutor deve ficar apto a receber o banco original. A rampa de acesso e saída deve ser elétrica (destinada à cadeira de rodas, também elétrica, com o condutor, que seja acionável em todos os movimentos por simples comando eletrónico. As portas do veículo, especialmente a que ficar destinada à rampa de acesso, deve ser de abertura e fecho por meio de comando eletrónico. O cinto de segurança deve ser de encaixe e desencaixe automático e os aparelhos de rádio elétricos (telefonia, telefone) preferencialmente por comando de voz. A chave de ignição deve ser substituída por botão de start”.

2. Inconformada, veio a ré seguradora interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações e conclusões, nos seguintes termos:
1. A seguradora não se conforma com a douta decisão que a condena a atribuir ao sinistrado um veículo automóvel de marca Kia Soul Emotion Kiwi equipado de fábrica (de origem) com determinadas caraterísticas e ainda a proceder no mesmo a todas as adaptações complementares elencadas na douta decisão recorrida.
2. A questão trazida a recurso é a de saber se cabe à seguradora suportar o preço de aquisição de um bem novo, escolhido pelo sinistrado, que vai integrar o património do mesmo, ou se apenas lhe cabe suportar o preço das adaptações a realizar nesse bem.
3. A seguradora não questionou nos autos que a adaptação de um veículo automóvel à condição de deficiência do sinistrado possa constituir uma prestação adequada à recuperação do mesmo para a vida ativa e, como tal, englobada na previsão do artigo 10.º a) da Lei n.º 100/97, de 13/09, e bem assim no artigo 23.º n.º 1 h) do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04.
4. O que a seguradora questiona é que tenha de pagar a aquisição de um veículo automóvel novo, com as caraterísticas do veículo de marca Kia Soul Emotion Kiwi, para posteriormente ser adaptado;
5. Aquisição essa que não é uma prestação necessária e adequada para a recuperação do sinistrado para a vida ativa.
6. O artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04, que veio regulamentar o disposto no artigo 10.º da Lei n.º 100/97, de 13/09, aplicável ao caso dos autos atenta a data do acidente, dispunha que as prestações em espécie têm por modalidades, no que ao caso importa, a reabilitação funcional.
7. Este preceito não esclarecia, contudo, quais as prestações necessárias e adequadas à reabilitação funcional.
8. A Lei n.º 98/2009, de 04/09, que veio revogar e substituir a legislação anterior, trouxe, contudo, a este respeito uma segura clarificação, ao definir no seu artigo 25.º n.º 1 o que se mostra compreendido nas prestações em espécie.
9. Dispõe o artigo 25.º n.º 1 da Lei n.º 98/2009 que as prestações em espécie compreendem “(…) g) O fornecimento de ajudas técnicas e outros dispositivos técnicos de compensação das limitações funcionais, bem como a sua renovação e reparação; h) os serviços de reabilitação e reintegração profissional e social, incluindo a adaptação do posto de trabalho; i) Os serviços de reabilitação médica ou funcional para a vida ativa;”
10. Ou seja, enquanto que, no domínio da legislação anterior, se poderia especular sobre quais as prestações necessárias e adequadas à reabilitação funcional, a Lei nova esclarece, claramente, que essas prestações são ajudas técnicas e outros dispositivos técnicos de compensação das limitações funcionais.
11. E é manifesto que, relativamente a um veículo automóvel, o que está em causa são as adaptações a instalar nesse veículo – as ajudas técnicas – e não o próprio veículo!
12. Idêntico foi, aliás, o espírito do legislador, inovatório na Lei n.º 100/97, quanto às despesas suportadas com a readaptação da habitação dos sinistrados afetados de incapacidade permanente absoluta para o trabalho, ao conferir-lhes o direito ao recebimento dessas despesas, até um determinado limite máximo, que a própria lei estabeleceu.
13. Ora se quanto à habitação o legislador foi claro ao estabelecer que os sinistrados têm direito a um subsídio para readaptação da mesma e quais os limites desse subsídio, não se vislumbra como possa defender-se que quando esse mesmo legislador estabeleceu, nos artigos 10.º da Lei 100/97 e 23.º do Decreto-Lei 143/99, o direito a prestações necessárias e adequadas para a reabilitação funcional dos sinistrados, quis prever, nomeadamente, a atribuição de um veículo automóvel, e não apenas as adaptações técnicas necessárias a instalar num veículo automóvel.
14. Aliás, nem mesmo a legislação mais avançada nesta matéria, a Lista de Produtos de Apoio aprovada pelo Despacho n.º 14278/2014 do Instituto Nacional da Reabilitação, I.P., publicada na 2.ª Série do Diário da República de 26/11/2014 – criada em obediência ao disposto no Decreto-Lei nº 93/2009, de 16/04, que criou o Sistema de Atribuição de Produtos Apoio – SAPA – destinado a compensar e atenuar as limitações de atividade e restrições de participação das pessoas com deficiência, ainda que não diretamente aplicável ao caso sub judicio, vai tão longe como o foi a meritíssima juíza a quo.
15. A Lista de Produtos de Apoio que constitui o Anexo I do Despacho n.º 14278/2014 apenas prevê a atribuição de carros de baixa velocidade, enquanto que, como se vê da folha de aprovação do veículo constante de fls. 475 dos autos e do certificado de conformidade CE constante de fls. 477, o veículo em causa, que a douta decisão recorrida condena a seguradora a “atribuir ao sinistrado” tem uma cilindrada de 1582 cm3 e atinge a velocidade máxima de 177 klm/hora (quando o sinistrado não está, sequer, apto a conduzir veículos automóveis a esta velocidade, como se vê das restrições impostas na sua carta de condução).
16. Um veículo automóvel é um bem com um determinado valor, que constitui um incremento no património do seu proprietário.
17. O sinistrado é atualmente proprietário de um veículo automóvel com 22 anos de uso e cujo valor venal é de cerca de € 1.000,00 (mil euros), como consta do Relatório Técnico realizado por perito do IMT, junto aos autos em 08 de julho de 2014 – referência citius 969574 – e a douta decisão recorrida condena a seguradora a pagar o custo de aquisição de um veículo novo o qual, tanto quanto resulta do Orçamento/Fatura Proforma que o sinistrado juntou aos autos com o seu requerimento de 22 de abril de 2013 – refª. citius 142378 – tem caraterísticas extraordinariamente melhores do que as caraterísticas do veículo propriedade do sinistrado e cujo preço de compra era, à data de 10/07/2013, de € 21.181,80 (vinte e um mil cento e oitenta e um euros e oitenta cêntimos), sem impostos, isto para lá de esse veículo necessitar ainda de inúmeras transformações as quais, tal como consta do outro Orçamento/Fatura Proforma junto com esse mesmo requerimento, podem ascender a € 52.120,00 (cinquenta e dois mil cento e vinte euros).
18. A douta decisão recorrida viola pois, claramente, o princípio da proporcionalidade e da justa medida das coisas.
19. Ademais, um veículo automóvel é um bem sujeito a registo, sendo o seu proprietário o titular como tal inscrito nesse registo; e é o proprietário que tem a direção efetiva do veículo e o utiliza como muito bem entende.
20. Ao decidir que “…deve a entidade responsável C… atribuir ao mesmo (leia-se sinistrado) um veículo automóvel KIA SOUL EMOTION KIWI com as caraterísticas de fábrica supra relatadas (…) e proceder a todas as adaptações complementares (…)” não se entende se a meritíssima juiz a quo determina que a seguradora deve pagar o preço do veículo automóvel e registá-lo a favor do sinistrado como seu proprietário, situação em que a douta decisão recorrida extravasa, claramente, do âmbito das prestações consagradas na Lei n.º 100/97, de 13/09 e Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04;
21. Ou se determina que o veículo automóvel será propriedade da seguradora, sendo o sinistrado o seu mero utilizador, situação claramente impossível de concretizar na prática, pois que não pode a seguradora ser proprietária de um veículo automóvel do qual não terá a direção efetiva!
22. Mas, acima de tudo, a verdade é que das disposições conjugadas dos artigos 10.º a) da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, e 23.º n.º 1 h) do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril, não resulta, de modo algum, que impenda sobre a seguradora a obrigação de fornecer ao sinistrado o veículo automóvel que o mesmo peticiona, um normal veículo automóvel ligeiro de passageiros à venda no mercado;
23. Mas tão só as ajudas técnicas, ou seja as adaptações adequadas à sua incapacidade, a instalar nesse, ou noutro, veículo automóvel que seja propriedade do sinistrado.
24. Ao dispor de forma diferente, a douta decisão recorrida violou o disposto no artigo 10.º a) da Lei n.º 100/97, de 13/09, bem como o disposto no artigo 23.º n.º 1 h) do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04;
25. Pelo que deve ser inteiramente revogada e substituída por outra que absolva a seguradora da condenação de atribuição ao sinistrado de um veículo automóvel marca Kia modelo Soul Emotion Kiwi, condenando-se a mesma apenas e tão só a pagar o custo das adaptações indicadas à condição de deficiência do sinistrado, a realizar em veículo automóvel que seja propriedade do mesmo, já indicadas pelo Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão – Centro de Mobilidade, a saber: travão de estacionamento em forquilha (código 20.09), travão de serviço do tipo “push up and pull down” (código 30.04), acelerador manual, punho no volante da direção (código 35.03), todos os comandos (piscas, luzes, limpa vidros, etc) manuais, o banco do condutor e dos passageiros imediatamente atrás do lugar do condutor serão eliminados e a rampa de acesso terá de obedecer a especificidade própria. A rampa de acesso e saída deve ser elétrica (destinada à cadeira de rodas, também elétrica, com o condutor, que seja acionável em todos os movimentos por simples comando eletrónico. As portas do veículo, especialmente a que ficar destinada à rampa de acesso, deve ser de abertura e fecho por meio de comando eletrónico. O cinto de segurança deve ser de encaixe e desencaixe automático. A chave de ignição deve ser substituída por botão de start.

3. O sinistrado apresentou resposta e concluiu do seguinte modo:
1 - Dispõe o artigo 562.º do Código Civil, que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
2 - Assim, não sendo possível readaptar o veículo automóvel de que o sinistrado é proprietário, compete à seguradora suportar os custos com a aquisição de um veículo já adaptado, que deverá fornecer ao sinistrado, visando-se, dessa forma, a maior aproximação possível à reparação natural, imposta pela supracitada norma legal.
3 - Reparação essa que, de acordo com o artigo 10.º, al. a) da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, que corresponde à atual al. a) do artigo 23.º da Lei n.º 98/2009, de 04/09, (neste sentido, vide Costa, Mário Júlio de Almeida, Direito das Obrigações, Almedina, 3.ª ed. refundida, 1979, Coimbra, p. 740) abrange “quaisquer outras prestações, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas (…) à recuperação do sinistrado para a vida ativa”. Pelo que,
4 – Competirá à recorrente fornecer ao sinistrado os meios em espécie que permitam, da melhor forma possível, substituir os seus membros inferiores, inutilizados devido ao sinistro que o vitimou, conferindo-lhe a maior mobilidade possível, desiderato que só é alcançado mediante atribuição àquele do veículo automóvel identificado nos autos, possibilitando-lhe, dessa forma, a recuperação de parte da sua vida ativa, deslocando-se a locais onde atualmente está impossibilidade de ir, devido à sua condição.
5 – De facto, a própria recorrente reconhece que um carro também é uma ajuda técnica, que poderá ser atribuída ao sinistrado, por forma a minimizar os danos resultantes do sinistro, permitindo a sua reabilitação funciona.
6 – O próprio Decreto-Lei n.º 93/2009, de 16 de abril, que estabelece o Sistema de Atribuição de Produtos de Apoio às pessoas com deficiência, através do Despacho n.º 2027/2010, de 29 de janeiro, em vigor à data da instauração do presente incidente, que fixa a lista de produtos de apoio/ajudas técnicas financiadas pelo Estado, considera como ajuda técnica, não só os carros de baixa velocidade, mas também os carros especiais e os carros com pavimento de nível variável.
7 – Contudo, não devemos deixar de ter em conta que, as ajudas técnicas mencionadas no referido Despacho são apenas aquelas que são financiadas pelo Estado, não significando, porém, que não possa haver outras, além dessas, que permitam a reabilitação das pessoas com deficiência e a integração das mesmas na sociedade, cujo fornecimento ao sinistrado seja assegurado pelas respetivas entidades responsáveis (seguradoras ou entidades patronais, conforme o caso), ao abrigo do disposto no atual artigo 23.º, al. a), da Lei n.º 98/2009, de 04/09.
8 - Assim, resultando inclusive de normativo legal, que um veículo automóvel devidamente adaptado, se encontra abrangido pela noção de ajuda técnica, utilizada pela al. g) do n.º 1 do artigo 25.º da Lei n.º 98/2009, de 04/09, e não apenas as adaptações que possam vir a ser feitas num carro, dúvidas parecem não subsistir quanto à correção e justiça da sentença ora em análise.
9 – Quanto à falsa questão da recorrente quando questiona o que pretende o tribunal a quo significar quando a condena a atribuir ao sinistrado o veículo automóvel identificado nos autos, tal dúvida é esclarecida pelo artigo 42.º n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 04/09, a contrario, que estabelece que o fornecimento das ajudas técnicas indicadas pelo tribunal será feito pela entidade responsável.
10 - A recorrente foi condenada numa obrigação de facto, que consiste no fornecimento do veículo automóvel KIA SOUL EMOTION KIWI, devidamente adaptado, não especificando a sentença a forma como essa prestação deverá ser cumprida, na medida em que cabe à entidade responsável determinar como a vai cumprir, dado que estamos perante uma prestação de resultado. Não interessa a forma como a recorrente irá obter o referido veículo, importa, sim, que ao sinistrado seja disponibilizada a viatura, para conduzir quando e onde quiser, podendo, dessa forma, recuperar parte da mobilidade que perdeu com o sinistro.
11 – Não merecendo, por isso, também a decisão revidenda, quanto a este aspeto, qualquer censura.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. suprirão, deve ser negado provimento ao presente recurso e confirmada a douta decisão proferida.

4. O Ministério Público, neste tribunal da relação, apresentou parecer no sentido de que a apelação não merece provimento, pelas razões já invocadas na resposta.
As partes foram notificadas e não se pronunciaram.

5. Colhidos os vistos, em conferência, cumpre decidir.

6. Objeto do recurso
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
A questão a decidir consiste em apurar se a seguradora, está obrigada a entregar ao sinistrado um veículo novo readaptado para garantir a mobilidade deste.

A) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Resultam assentes, da sentença recorrida e dos autos, os seguintes factos:
O sinistrado, em virtude do acidente de trabalho, ficou com um quadro de tetraplégia incompleta ASIA C e que se encontra a nível de cadeira de rodas e está dependente da ajuda de terceiras pessoas para transferências, vestuário, calçado e higiene.
Resultou da junta médica realizada, que o sinistrado revela motivação para a reabilitação, mas apresenta dificuldade nas transições de forma autónoma, isto é, sair da cadeira para outra ou para o automóvel e vice-versa.
Apresenta capacidade de pinça na mão esquerda e a mão direita sem função residual, força muscular dos tricipetes 3/5 bilateral, o que diminui a capacidade de extensão dos cotovelos, capacidade de levar ambas as mãos à face, com maior destreza à esquerda.
Conclui tal perícia médica que o sinistrado apresenta capacidades residuais para conduzir um carro adaptado.
Resultou da perícia efetuada a fls. 435 a 444 que o veículo a atribuir ao sinistrado tem de apresentar caraterísticas originais imprescindíveis como estar equipado (de origem) com caixa de velocidades automática (código 10.02), estar equipado (de origem) com direção assistida, ter altura mínima do habitáculo igual ou superior a 1,5 m.
Após, necessita o veículo de adaptações complementares, como travão de estacionamento em forquilha (código 20.09), travão de serviço do tipo “push up and pull down”, acelerador manual, punho no volante da direção (código 35.03), todos os comandos (piscas, luzes, limpa vidros, etc) serão manuais, o banco do condutor e dos passageiros imediatamente atrás do lugar do condutor serão eliminados e a rampa de acesso terá de obedecer a especificidade própria. Por outro lado, por forma a ser salvaguardada a possibilidade do veículo ser conduzido por outra pessoa, para circunstâncias extraordinárias como revisão ou paragem oficial, submissão a inspeção periódica, cansaço ou impedimento do condutor diminuído, o lugar do condutor deve ficar apto a receber o banco original.
A rampa de acesso e saída deve ser elétrica (destinada à cadeira de rodas, também elétrica, com o condutor, que seja acionável em todos os movimentos por simples comando eletrónico.
As portas do veículo, especialmente a que ficar destinada à rampa de acesso, deve ser de abertura e fecho por meio de comando eletrónico.
O cinto de segurança deve ser de encaixe e desencaixe automático e os aparelhos de rádio elétricos (telefonia, telefone) preferencialmente por comando de voz.
A chave de ignição deve ser substituída por botão de start.
Na sequência destas características originárias imprescindíveis verificou-se que o veículo do sinistrado, de matrícula 95-77-OF está equipado com caixa de velocidades automática e direção assistida, mas não tem a altura igual ou superior a 1,5 m, desaconselhando a idade do veículo as transformações descritas.
Procedeu-se à análise do veículo sugerido pelo sinistrado, através de perícia, tendo-se concluído que este reúne todas as condições para receber, além das características de fábrica, todas as adaptações suplementares suprarelatadas.
O sinistrado é atualmente proprietário de um veículo automóvel com 22 anos de uso e cujo valor venal é de cerca de € 1.000,00 (mil euros), como consta do Relatório Técnico realizado por perito do IMT, junto aos autos em 08 de julho de 2014.
O custo de aquisição de um veículo novo o qual, tanto quanto resulta do Orçamento/Fatura Proforma que o sinistrado juntou aos autos com o seu requerimento de 22 de abril de 2013, tem caraterísticas melhores do que as caraterísticas do veículo propriedade do sinistrado e cujo preço de compra era, à data de 10/07/2013, de € 21.181,80 (vinte e um mil cento e oitenta e um euros e oitenta cêntimos), sem impostos, isto para lá de esse veículo necessitar ainda de inúmeras transformações as quais, tal como consta do outro Orçamento/Fatura Proforma junto com esse mesmo requerimento, podem ascender a € 52.120,00 (cinquenta e dois mil cento e vinte euros).
O trabalhador foi vítima de acidente de trabalho ocorrido em 14.10.2004.

B) APRECIAÇÃO
A questão a decidir consiste em apurar se a seguradora/apelante está obrigada a entregar ao sinistrado um veículo novo readaptado para garantir a mobilidade deste.
O artigo 10.º alínea a) da Lei n.º 100/97, de 13/09, prescreve que o direito à reparação compreende, nos termos que vierem a ser regulamentados, as seguintes prestações, em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida ativa.
Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04, que veio regulamentar a lei já referida, prescreve no artigo 23.º n.º 1, alínea h), que as prestações em espécie previstas na alínea a) do artigo 10.º da lei têm por modalidade, além de outras que ao caso não interessam, a reabilitação funcional.
Conjugando a parte final do art.º 10.º, alínea a) da LAT, com a regulamentação que acabamos de mencionar, parece resultar que o legislador teve em mente a reabilitação funcional do sinistrado para a vida ativa e não apenas a recuperação do seu estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho.
Em primeiro lugar, o legislador pretende que o trabalhador vítima de acidente de trabalho restabeleça a sua saúde, até onde for possível, de modo a garantir a sua capacidade de poder oferecer no mercado o único bem que tem: a força de trabalho. Esta recuperação tem em vista permitir que o sinistrado possa continuar a trabalhar e a auferir os rendimentos necessários para o seu sustento e, eventualmente, também da sua família.
Todavia, o legislador não limita a reparação do sinistrado à recuperação da sua capacidade de ganho. Vai mais além, ao plasmar expressamente que deve ser recuperado para a vida ativa, através da reabilitação funcional.
A vida ativa inclui todas as atividades que o sinistrado era capaz de fazer se não tivesse ocorrido o acidente. Atividades de lazer, de realizar as tarefas normais para a sua higiene, alimentação e conforto pessoal, deslocar-se, independentemente da finalidade.
No caso dos autos, o sinistrado está fortemente limitado na parte referente à sua vida profissional, como resulta da incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual de marinheiro e de incapacidade permanente parcial para todo e qualquer trabalho de 85%, de que é portador (fls. 128 a 135). As incapacidades permanentes referidas repercutem-se na sua vida ativa.
Resulta ainda dos factos provados, com base na junta médica a que foi sujeito para efeitos de apreciação deste seu pedido de readaptação de veículo automóvel para se deslocar, que o sinistrado, em virtude do acidente de trabalho, ficou com um quadro de tetraplégia incompleta ASIA C e que se encontra a nível de cadeira de rodas e está dependente da ajuda de terceiras pessoas para transferências, vestuário, calçado e higiene.
Resultou da junta médica realizada, que o sinistrado revela motivação para a reabilitação, mas apresenta dificuldade nas transições de forma autónoma, isto é, sair da cadeira para outra ou para o automóvel e vice-versa.
Apresenta capacidade de pinça na mão esquerda e a mão direita sem função residual, força muscular dos tricipetes 3/5 bilateral, o que diminui a capacidade de extensão dos cotovelos, capacidade de levar ambas as mãos à face, com maior destreza à esquerda.
Conclui tal perícia médica que o sinistrado apresenta capacidades residuais para conduzir um carro adaptado.
A seguradora concorda em readaptar o veículo do sinistrado de acordo com o resultado da perícia efetuada para o efeito, mas não aceita que tenha de ser ela a comprar um veículo novo ao sinistrado, para depois o readaptar.
Está disposta a readaptar o veículo do sinistrado, mas não a adquirir um novo, pois entende que tal implicaria um enriquecimento do património do sinistrado, não justificado.
Está assente que o veículo do sinistrado tem o valor comercial de cerca de € 1 000 e que não é possível readaptá-lo de modo a conduzi-lo e assim se deslocar nele.
Os danos sofridos pelo autor em consequência do acidente de trabalho incluem o dano decorrente de não se poder deslocar sem ser em automóvel devidamente adaptado, conforme decorre dos factos assentes.
Antes do acidente de trabalho, o trabalhador deslocava-se no veículo automóvel de que é proprietário. Em consequência do acidente de trabalho o sinistrado deixou de poder deslocar-se normalmente no seu veículo, em virtude das lesões sofridas em consequência daquele acidente. Este dano decorre do acidente e deve ser indemnizado. Não pode o sinistrado ser obrigado a comprar um veículo novo ou usado que possa ser readaptado, uma vez que antes do acidente não precisava de o fazer. Ou seja, não tinha que despender um montante em outro veículo para se deslocar.
A seguradora não está diretamente obrigada a comprar um veículo novo ao sinistrado para readaptação. A obrigação da seguradora consiste em entregar um veículo automóvel ao sinistrado, com as caraterísticas apuradas nos autos, para que este se possa deslocar, dentro das limitações decorrentes da incapacidade permanente de que é portador em consequência do acidente de trabalho.
A seguradora tem o direito de escolher o modo de cumprir essa obrigação. O tribunal não pode nem deve condenar a seguradora a comprar um veículo determinado (novo ou usado). Cabe a esta, uma vez que o veículo automóvel do sinistrado não é suscetível de ser readaptado, escolher o veículo, novo ou usado, que cumpra a função de permitir que o sinistrado se desloque em segurança, de acordo com as caraterísticas e funcionalidades que resultam dos factos assentes.
O veículo pode ser de qualquer marca, pode ser novo ou usado, à escolha da seguradora, desde que reúna os requisitos previstos nos factos assentes, para que o sinistrado possa deslocar-se de forma segura, tendo em conta as suas limitações decorrentes das lesões permanentes provocadas pelo acidente de trabalho de que foi vítima.
A seguradora tem direito a abater ao montante que despender com o veículo automóvel que entregar ao sinistrado, o valor do veículo de que este é proprietário, a fim de que o património deste não tenha um incremento não justificado pela ocorrência do acidente, uma vez que com a entrega do veículo automóvel pela seguradora, o sinistrado fica ressarcido do dano em discussão nestes autos.
Nesta conformidade, julgamos a apelação parcialmente procedente e, em consequência, decidimos alterar a sentença recorrida e condenar a entidade responsável C… atribuir ao sinistrado um veículo automóvel com as caraterísticas de fábrica suprarelatadas: estar equipado (de origem) com caixa de velocidades automática (código 10.02), estar equipado (de origem) com direção assistida, ter altura mínima do habitáculo igual ou superior a 1,5 m) e proceder a todas as adaptações complementares como travão de estacionamento em forquilha (código 20.09), travão de serviço do tipo “push up and pull down”, acelerador manual, punho no volante da direção (código 35.03), todos os comandos (como piscas, luzes, limpa vidros) manuais, o banco do condutor e dos passageiros imediatamente atrás do lugar do condutor serão eliminados e a rampa de acesso terá de obedecer a especificidade própria. Por forma a ser salvaguardada a possibilidade do veículo ser conduzido por outra pessoa, para circunstâncias extraordinárias como revisão ou paragem oficial, submissão a inspeção periódica, cansaço ou impedimento do condutor diminuído, o lugar do condutor deve ficar apto a receber o banco original. A rampa de acesso e saída deve ser elétrica (destinada à cadeira de rodas, também elétrica, com o condutor, que seja acionável em todos os movimentos por simples comando eletrónico. As portas do veículo, especialmente a que ficar destinada à rampa de acesso, deve ser de abertura e fecho por meio de comando eletrónico. O cinto de segurança deve ser de encaixe e desencaixe automático e os aparelhos de rádio elétricos (telefonia, telefone) preferencialmente por comando de voz. A chave de ignição deve ser substituída por botão de start.
Tendo em conta que o veículo do sinistrado tem o valor de € 1 000 e que a seguradora lhe vai atribui uma viatura automóvel para se deslocar, a seguradora tem o direito de compensar esta quantia a seu favor, através do desconto nas prestações pecuniárias que tem de pagar ao sinistrado, a fim de que o património deste não seja injustificadamente aumentado em montante igual ao valor do veículo que continua a integrar o seu acervo patrimonial.

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção social do Tribunal da Relação de Évora em julgar a apelação procedente parcialmente e, em consequência, decidem alterar a sentença recorrida e condenar a entidade responsável C…a atribuir ao sinistrado um veículo automóvel com as caraterísticas de fábrica suprarelatadas: estar equipado (de origem) com caixa de velocidades automática (código 10.02), estar equipado (de origem) com direção assistida, ter altura mínima do habitáculo igual ou superior a 1,5 m) e proceder a todas as adaptações complementares como travão de estacionamento em forquilha (código 20.09), travão de serviço do tipo “push up and pull down”, acelerador manual, punho no volante da direção (código 35.03), todos os comandos (como piscas, luzes, limpa vidros) manuais, o banco do condutor e dos passageiros imediatamente atrás do lugar do condutor serão eliminados e a rampa de acesso terá de obedecer a especificidade própria. Por forma a ser salvaguardada a possibilidade do veículo ser conduzido por outra pessoa, para circunstâncias extraordinárias como revisão ou paragem oficial, submissão a inspeção periódica, cansaço ou impedimento do condutor diminuído, o lugar do condutor deve ficar apto a receber o banco original. A rampa de acesso e saída deve ser elétrica (destinada à cadeira de rodas, também elétrica, com o condutor, que seja acionável em todos os movimentos por simples comando eletrónico. As portas do veículo, especialmente a que ficar destinada à rampa de acesso, deve ser de abertura e fecho por meio de comando eletrónico. O cinto de segurança deve ser de encaixe e desencaixe automático e os aparelhos de rádio elétricos (telefonia, telefone) preferencialmente por comando de voz. A chave de ignição deve ser substituída por botão de start.
A seguradora fica com o direito de compensar a quantia de € 1 000 (mil euros) com as prestações pecuniárias que tiver de pagar ao sinistrado.
Custas em igual proporção por apelante e apelado.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Évora, 30 de março de 2016.
Moisés Silva (relator)
João Luís Nunes (adjunto)
Alexandre Ferreira Baptista Coelho (adjunto)