Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
408/13.1TABJA.E1
Relator: PROENÇA DA COSTA
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
CONTRATO DE TRABALHO
ABUSO DE CONFIANÇA
Data do Acordão: 02/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: i. Verificam-se indícios suficientes para pronunciar o arguido quando haja uma lata probabilidade de futura condenação do mesmo, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição;
ii. O tipo objectivo do crime de abuso de confiança, p. e p. no artigo 205.º do CP, consiste na apropriação de coisa móvel que tenha sido entregue ao agente por título não translativo de propriedade: essa apropriação traduz-se sempre na inversão do título de posse ou de detenção;
iii. Vigorando entre o arguido e a sociedade ofendida um contrato de trabalho – desempenhando aquele, como trabalhador, ao serviço desta, sua entidade empregadora, as funções de gerente de uma filial –, é de pronunciar o arguido pela prática de um crime de abuso de confiança no circunstancialismo em que se apura que tendo no âmbito das referidas funções recebido várias quantias monetárias destinadas à sociedade ofendida as não entregou a esta.
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 408/13.1 TABJA.

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos autos de Inquérito que correram termos pelos serviços do Ministério Público junto da Comarca de Beja - Instância Local de Beja -, o Ministério Público, deduziu acusação contra o arguido B…, a quem veio imputar a prática, em concurso efectivo, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea b), do Cód. Pen., e um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, alínea a), do Cód. Pen.

Reagindo a tal despacho acusatório veio o arguido B…requerer a abertura de Instrução, nos termos constantes de fls. 184 a 188 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, impugnando a versão factual acusatória, por discordar da aptidão dos meios de prova utilizados pelo Ministério Público para sustentar a sua convicção quanto à acusação do arguido pelo crime de abuso de confiança.
Não foram requeridos actos de instrução.

Teve lugar a realização de debate instrutório, com observância de todas as formalidades legais.
Finda a Instrução veio a M.ma Juiz de Instrução, a não pronunciar o arguido B…pela prática de um crime de Abuso de Confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 1, do Cód. Pen.
Por ter entendido que não resulta contudo indiciado que o arguido tenha integrado tais quantias no seu património e feito das mesmas coisas sua, ou que, se tenha recusado a restitui-las quando interpelado para o efeito. Na verdade, embora a ofendida na sua participação refira que o arguido estava obrigado a depositar na agência de Évora da Caixa Geral de Depósitos os pagamentos efectuados relativos a negócios realizados na filial de Évora, certo é que, não apresentou prova de tais factos, nem a mesma foi produzida em sede de inquérito. De igual modo, não alegou a ofendida e como tal também não apresentou prova, no sentido de que o arguido foi interpelado para entregar tais quantias e que se recusou ilegitimamente a fazê-lo. Acresce que, não consta dos autos qualquer indício de que o arguido tenha usado as referidas quantias como se fossem suas, nomeadamente, praticando qualquer acto de disposição patrimonial destas sem o consentimento da ofendida.
Não se podendo concluir que o arguido se apropriou do que recebera para determinado fim, falta um dos elementos típicos do crime do artigo 205°, n° 1, do Código Penal, pelo que, não poderá o arguido ser pronunciado pela prática deste ilícito.

Inconformada com o assim decidido, traz a Magistrada do Ministério Público o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1.°
Vem o recurso interposto da decisão instrutória proferida pela Mm." Juiz da Instância Local de Beja - Secção Criminal no âmbito do Processo n." 408/13.1 TABJA, que não pronunciou o arguido B… pela prática de 1 (um) crime de Abuso de Confiança, P: e P: pelo art. 205°, n.os 1 e 4, al. b) do Código Penal, decisão com a qual não se concorda.
2.º
Versa sobre a incorrecta valoração que a Mm." Juiz de Instrução fez dos indícios recolhidos, quer na fase de inquérito, quer na instrução.
3.º
O Ministério Público determinou o encerramento da fase de inquérito, deduzindo acusação contra o arguido B… pela prática, em autoria material e concurso efectivo real, de 1 (um) crime de Abuso de Confiança, previsto e punível pelo artigo 205°, n.os 1 e 4, aI. a), do Código Penal, e 1 (um) crime de Falsificação de Documento, previsto e punível pelo artigo 256°, n." 1, aI. a), do mesmo diploma.
4.º
O arguido requereu a abertura de instrução, alegando que não existem nos autos indícios suficientes de, pelo menos, se ter verificado o crime de Abuso de Confiança, razão pela qual não deve ser pronunciado pela sua prática.
5.º
Foi admitida a requerida Abertura de Instrução. Como não foram requeridas diligências de prova, a Mm." Juiz designou desde logo data para a realização do debate instrutório, que culminou com a prolação de despacho de não pronúncia quanto ao crime de Abuso de Confiança, por ter considerado que dos autos não resultavam indícios suficientes da verificação dos factos necessários ao seu preenchimento, e, simultaneamente, de pronúncia quanto ao crime de Falsificação de Documento.
6.º
A decisão instrutória constitui uma peça unitária, ainda que comporte dois segmentos decisórios, contendo despachos de pronúncia e de não pronúncia, como no caso sucede, em termos "substanciais".
7.º
A valoração da prova fundante desses dois tipos de despacho não pode deixar de ser também unitária ou uniforme, dado que a condição humana impede o julgador de possuir uma consciência crítica de um mesmo fenómeno criminal fraccionado em dois mundos distintos.
8.º
Convenceu-se a Mm." Juiz de Instrução da suficiente existência de indícios de que o arguido não entregou (e fez sua) determinada quantia pecuniária, que recebera no dia 19 de Outubro de 2011, a título não translativo de propriedade. Mais, no segmento relativo ao despacho de não pronúncia, deu por assente que o arguido, enquanto gerente de uma filial da sociedade denunciante! ofendida, recebeu de três outros clientes a quantia total de € 23.737,79 (vinte e três mil setecentos e trinta e sete euros e setenta e nove cêntimos), emitindo as correspondentes facturas e recibos. É incontroverso que essa quantia não foi entregue à Sociedade comercial, como devia.
9.º
No entanto, a Mm." Juiz de Instrução considera não existirem suficientes indícios de prática do crime de Abuso de Confiança, com os argumentos de que não está assente que existisse a obrigação de restituição dos valores recebidos, nomeadamente, por falta de interpelação! Nem sequer de que "tenha usado as referidas quantias como se suas fossem'.
10.°
Não se descortina como se pode formar essa convicção de falta de indiciação suficiente à luz da experiência comum, da normalidade do acontecer ("aquilo que normalmente acontece), da lógica das coisas e da vida.
Afigura-se-nos que a M.ma Juiz de Instrução não interpretou nem aplicou correctamente a norma constante do art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, al, a), do Cód. Penal ao caso. Por outro lado, os meios de prova testemunhal e documental carreados para os autos impunham decisão diversa da recorrida, pois, que contrariamente ao alegado pela decisão instrutória, não corroboram a versão do arguido, pelo contrário, expõem a fragilidade desta versão, pelo que a decisão instrutória de não pronúncia errou na apreciação que fez da matéria de facto indiciada.
Por conseguinte, a decisão instrutória no segmento da não pronúncia violou o disposto nos arts. 127.º, 283.º, n.º 3 e 308.º, do Cód. Proc. Penal, bem como no art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, aI. a), do Cod. Penal, razão pela qual deve ser revogada e substituída por outra que pronuncie o arguido B… pela prática, em autoria material e concurso efectivo real, de 1 (um) crime de Abuso de Confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.ºs 1 e 4, aI. a), e 1 (um) crime de Falsificação de Documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, al, a), todos do Cód. Penal [pelo qual o arguido foi pronunciado).
Assim decidindo, farão V. Exas a costumada Justiça!

Respondeu ao recurso o arguido B…, Dizendo:
I.O presente recurso foi interposto pela Digníssima Magistrada do MP junto da Instância Local - Secção Criminal de Beja da decisão instrutória proferida pela M.ma Juiz da Instância Local - Secção Criminal de Beja, no âmbito do processo n.o 408/13.1TABJA, que não pronunciou o arguido pela prática de um crime de Abuso de Confiança p.p. pelo art. 205.º, n.ºs 1 e 4 do Código Penal (adiante CP).
II. Para tanto, alega o MP - recorrente - que a M.ma Juiz a quo não valorou de modo correcto os indícios que reputa suficientes para levar a julgamento o arguido.
III. Sucede que, como muito bem conclui a decisão em crise, não se encontram nos autos indícios suficientes de se ter verificado o crime de abuso de confiança e de quem foi o seu agente.
IV. Na verdade, o aqui arguido vinha acusado pela prática, em concurso efectivo e real, de um crime de falsificação e de um crime de abuso de confiança, este à luz do art, 205.º, n.º 1 e n.º 4, aI. b) do C.P.
V. Mas não constam dos autos quaisquer elementos que possam fazer concluir pela prática do crime de abuso de confiança.
VI. Não se diz que o arguido se apoderou de quaisquer quantias.
Sendo até que, quanto à falsificação (onde o MP sustenta o seu recurso para chegar ao abuso de confiança) apenas se diz que o arguido substituiu uma nota de venda por outra (pontos 6 e 7 dos factos assentes), sem se referir o destino dado seja aos 400 euros em causa nessa nota de venda, seja a quaisquer outros valores.
VII. Resta então a fundamental questão: - De onde retira o recorrente a conclusão de que o dinheiro entregue ao Arguido não entrou na empresa? - Nada nos autos nos diz isso... , nem as testemunhas, nem os documentos.
VIII. Sucede que dos autos não se retira que o arguido tenha incorporado qualquer quantia na sua esfera patrimonial ou ter passado a agir como se dele fosse dono.
IX. Da prova carreada para os autos e da consequente factualidade, não resulta qualquer facto do qual se possa concluir, que o arguido agiu com «uti dominus», ou seja, não está demonstrada a "inversão do título de posse ou detenção" e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.
X. Neste sentido, não se verifica o elemento objectivo do tipo de ilícito abuso de confiança, ou seja, a apropriação, consubstanciada na inversão do título de posse ou detenção.
XI. Assim sendo, impôs-se a não pronúncia do arguido, pelo menos quanto ao crime de abuso de confiança.
XII. Contudo, o recorrente apoderou-se da crença para querer que a decisão instrutória fosse diversa. Mas não pode ser assim: Em primeiro, não diz e não demonstra em concreto quais os meios de prova que indicam que o dinheiro não "entrou" na sociedade queixosa e depois agarra-se à crença para concluir algo que não consta dos autos.
XIII. Diz concretamente o recorrente que existe uma presunção natural de que o arguido foi o autor do denunciado crime de abuso de confiança. Ora, essa presunção funciona a favor do arguido, pois que sendo gerente de uma filial da queixosa há sim a presunção de que o mesmo cumpre as suas tarefas e funções de modo eficiente e conforme o acordado com a sua entidade empregadora, sob pena de se estar a inverter toda a lógica do ónus da prova no processo penal.
XIV. A presunção natural não é um critério legal de apreciação da prova, pelo que tem que ser descartado.
XV. Ainda assim, dir-se-á que a ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável. Pelo que é impossível extrair de um caso isolado uma regra geral e definitiva.
XVI. Como é que se extrai do recebimento pelo arguido do valor de um sinal por um único cliente a não entrega de todos os valores recebidos pelo arguido a título de sinal e pagamento à empresa para que trabalhava?
XVII. O espaço vazio é enorme e a conclusão do MP recorrente é amplamente desapoiada em qualquer lógica silogística, dita, normal, pelo que, a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
XVIII. Veja-se que o recorrente chega ao ponto de questionar sobre o destino dado pelo arguido às quantias que se dizem lhe ter sido entregues. Ora, o arguido não tem que provar nada no processo penal. No entanto, a resposta a essa questão deveria ter sido alvo de investigação a fim de se esclarecer isso mesmo, na fase processual a isso destinada, sob pena de não poder proceder a acusação pública.
XIX. Andou bem a M.ma Juiz de Instrução ao não pronunciar o arguido porque a investigação foi manca e não se pode concluir pela existência de factos que levam a dizer que o arguido agiu com «uti dominus», ou seja, não está demonstrada a "inversão do título de posse ou detenção" e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.
XX. Não resulta indiciado que o arguido, aqui respondente, tenha integrado quaisquer quantias no seu património ou se tenha recusado a restituí-las à queixosa.
XXI. Finalmente, quanto à falsificação, a M.ma Juiz de Instrução, na decisão em crise, refere tão só que o arguido emitiu uma nota de venda onde informava que havia recebido 400 euros de sinal, mas nada se diz, por absoluta falta de prova, quanto ao destino desse dinheiro.
XXII. Não merece censura a decisão recorrida. De outra forma estar-se-ia a violar o princípio constitucional do in dubio pro reu. Não é curial retirar-se de um facto outros que nada têm em comum com ele.
XXIII. A inferência realizada através da presunção natural deve apoiar-se numa lei geral e constante e permite passar do estado de ignorância sobre a existência de um facto para a certeza, ultrapassando estados de dúvida (vide André Marieta, La prueba em Processo Penal, p. 59)
XXIV. Todas as relações comerciais relatadas na acusação são distintas. Não há qualquer concomitância nos factos, qualquer relação entre eles e a sua ligação não é precisa, nem próxima, pelo que não pode colher a tese do MP, pelo que só se pode concluir pela bondade da decisão instrutória não merecendo acolhimento o recurso do MP.
XXV. Nestes termos e nos mais de direito, deve a decisão recorrida manter-se tal como está pois que não se recolheram indícios suficientes de que o arguido cometeu o crime de abuso de confiança, não havendo qualquer erro na decisão da matéria de facto e da apreciação da mesma e, em consequência, não pronunciar-se o arguido pelo crime de abuso de confiança.
Termos em que deve ser confirmada a decisão objecto de recurso, negando-se provimento ao recurso interposto.


Nesta Instância, a Sra. Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

É do seguinte teor o despacho recorrido- na parte que ora importa:
B. Matéria de Facto.

B.1. Factos suficientemente indiciados.
Com relevância para a decisão da causa, e tendo por base a factualidade e qualificação jurídica descritas na acusação - que define o thema decidendum da presente instrução - consideram-se suficientemente indiciados os seguintes factos:
1. Durante os anos de 2011 a 2013, o arguido trabalhou para a sociedade C…, Lda., com sede em …, exercendo as funções de gerente da filial desta sociedade localizada na cidade de Évora.
2. No dia 20 de Outubro de 2011, a C…, Lda. forneceu a D…, com estabelecimento na Rua de…, em Évora, o equipamento constante da factura E n° 341, no valor de 18 513,47€.
3. Deste valor foi pago sinal no montante de 5 000€, tendo sido emitido o recibo correspondente.
4. No dia 9 de Novembro de 2011, D… entregou ao arguido 12 587,79€, em numerário, para pagamento do remanescente.
5. No dia 19 de Outubro de 2011, a C…, Lda. forneceu a E…, com estabelecimento na …, o equipamento constante da factura E n.º 338, no valor de 2 174,66 €.
6. A título de sinal foi entregue, em numerário, ao arguido, o montante de € 400,00 o qual emitiu a nota de venda n° 19351, de 24 de Março de 2011, assinada pelo arguido e pelo cliente, onde consta ter sido feito o pagamento de sinal no montante de € 400,00.
7. No entanto, o arguido não entregou à C…, Lda. tal nota de venda, tendo-a substituído pela nota de venda n° 19353, com a mesma data, apenas assinada por si, mas onde não consta o pagamento do sinal.
8. Durante o ano de 2012, a C…, Lda. vendeu à sociedade F…, Lda., com sede na Rua…, em Évora, móveis e aparelhos de restauração, no valor de 6 147,76€.
9. Em Junho de 2012, G…entregou ao arguido a quantia de 2 000,00 €, em numerário. Depois, passou a entregar ao arguido, também em numerário, a quantia de 50,00 €, por semana, perfazendo 3.350,00 €.
10. A 24 de Janeiro de 2013, a C…, Lda. vendeu a H…, Lda., com sede na Estrada Nacional…, um grelhador usado, pelo preço de 1 340 €, conforme factura n° E/29.
11. Para pagamento parcial, I…entregou ao arguido a quantia de 800 €, em numerário.
12. Ao emitir e assinar a nota de venda n° 19353, dela omitindo o pagamento do sinal efectuado pelo cliente, sabendo que o não podia fazer, o arguido pretendeu lesar economicamente a C…, Lda. e obter vantagem patrimonial, para além de por em causa a fé pública própria do documento.
13. Actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo o carácter reprovável da sua conduta.

B.2. Factos não suficientemente indiciados.
Compulsada a matéria factual aduzida no teor do despacho de acusação e do requerimento de abertura de instrução, e com interesse para a boa decisão da causa, inexistem outros factos suficientemente indiciados.
Designadamente, não se indiciaram os seguintes factos:
1. O arguido era o responsável pelas vendas na área da filial de Évora da C…, Ldª", cabendo-lhe coordenar as vendas efectuadas pela filial, sendo a documentação (notas de venda e facturas) emitida na filial e os recibos emitidos na sede, em …, aquando do pagamento.
2. Diariamente, deveria o arguido entregar na sede, em …, as notas de venda, requisições ou outra documentação da filial de Évora. O valor correspondente aos pagamentos efectuados e relativos a negócios realizados na zona da filial de Évora era depositado na agência de Évora da Caixa Geral de Depósitos, pela funcionária do escritório da filial de Évora. Os cheques pré datados eram entregues na sede, em …, para serem depositados nas respectivas datas.
3. O arguido apoderou-se da quantia indicada em 4., dos factos indiciados e não deu conhecimento de tal facto à entidade empregadora.
4. O arguido apropriou-se da quantia de 400,00 € referida em 6., dos factos indiciados e não deu conhecimento de tal facto à entidade empregadora.
5. O arguido apoderou-se das quantias referidas em 8., dos factos e não deu conhecimento de tal facto à entidade empregadora.
6. O arguido não entregou a quantia referida em 11., dos factos provados à C…, Ldª", que havia recebido em razão da sua profissão, apoderando-se da mesma.
7. No total, o arguido apoderou-se de 24 838,13 €, que não entregou à ofendida, tendo utilizado tais quantias em seu proveito, apesar de saber que tais quantias pertenciam à C…, Lda.
8. O arguido agiu com intenção de se apropriar de quantias, que sabia estar obrigado a entregar à sua entidade patronal, actuando contra a vontade desta.

B.3. Motivação do tribunal no tocante à indiciação da matéria de facto.
Analisando os elementos probatórios carreados pela acusação, e reunidos em sede de inquérito, entendem-se especialmente relevantes os seguintes:
(…)
Não estão indiciados os factos referidos em 1 e 2 dos factos não indiciados já que nenhuma testemunha depôs quanto às concretas funções do arguido enquanto gerente da filial da ofendida em Évora.
De igual modo, não estão indiciados os factos referidos em 3 a 8 dos factos não indiciados já que não resultou da prova testemunhal e documental produzida que o arguido tinha a obrigação de entregar em determinada data ou até determinada data as quantias que recebeu na qualidade de gerente da filial da ofendida ou que não as entregou à ofendida quando interpelado para o efeito, nem se mostra indiciado que as tenha utilizado em seu proveito.

C. Direito.
C.l. Do crime de abuso de confiança.
O arguido vem acusada da prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punível pelo artigo 205°, n° 1 do Código Penal.
(…)
Analisando o caso concreto, vejamos então:
Resulta indiciado que o arguido no âmbito das suas funções de gerente da filial de Évora da sociedade C…, Lda. recebeu no dia 9 de Novembro de 2011, do cliente D… a quantia de 12 587,79€, em numerário, para pagamento do remanescente da factura E n° 341, no dia 19 de Outubro de 2011, recebeu de E…, o pagamento de sinal no montante de € 400,00, para início de pagamento do equipamento constante da factura E n° 338, em Junho de 2012, G… entregou ao arguido a quantia de 2 000,00 €, em numerário e passou a entregar ao arguido, também em numerário, a quantia de 50,00 €, por semana, perfazendo 3.350,00 € para pagamento de móveis e aparelhos de restauração, no valor total de 6 147,76€, para pagamento parcial da factura n° E/29 de 24 de Janeiro de 2013, I… entregou ao arguido a quantia de 800 €, em numerário.
Não resulta contudo indiciado que o arguido tenha integrado tais quantias no seu património e feito das mesmas coisas sua, ou que, se tenha recusado a restitui-las quando interpelado para o efeito. Na verdade, embora a ofendida na sua participação refira que o arguido estava obrigado a depositar na agência de Évora da Caixa Geral de Depósitos os pagamentos efectuados relativos a negócios realizados na filial de Évora, certo é que, não apresentou prova de tais factos, nem a mesma foi produzida em sede de inquérito. De igual modo, não alegou a ofendida e como tal também não apresentou prova, no sentido de que o arguido foi interpelado para entregar tais quantias e que se recusou ilegitimamente a fazê-lo. Acresce que, não consta dos autos qualquer indício de que o arguido tenha usado as referidas quantias como se fossem suas, nomeadamente, praticando qualquer acto de disposição patrimonial destas sem o consentimento da ofendida.
Não se podendo concluir que o arguido se apropriou do que recebera para determinado fim, falta um dos elementos típicos do crime do artigo 205°, n° 1, do Código Penal, pelo que, não poderá o arguido ser pronunciado pela prática deste ilícito.

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso.
Como decorre das conclusões formuladas pela Magistrada recorrente, visa-se com o presente recurso apreciar e decidir se deve, ou não, subsistir o despacho recorrido na parte em que não pronunciou o arguido B… pela prática de um crime de Abuso de Confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.º 1, do Cód. Pen.
Como consabido, a instrução é formada pelo conjunto de actos de instrução (art.º 289.º,n.º 1, do Cód. Proc. Pen.) tendentes á comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou arquivar o inquérito, conforme decorre do disposto no art.º 286.º, do mesmo diploma adjectivo.
Só sendo de proferir despacho de pronúncia caso se tenham recolhido indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, cfr. art.º 308.º, n.º 1, do Cód. Proc. Pen.
A lei define o que se deve considerar por indícios suficientes, considerando-se, como tal, aqueles de que resulte “uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança”, ver art.º 283.º, n.º 2, do Cód. Proc. Pen.
No ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, a respeito, refere-se que nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos e antes e tão só indícios, sinais de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido.
Na pronúncia o Juiz não julga a causa; verifica se se justifica, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, que o arguido seja submetido a julgamento (…).
A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulta uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força delas, uma pena ou uma medida de segurança (art.º 283.º, n.º2), não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgador a final[1].
No mesmo sentido, vemos o Ac. Relação do Porto[2], de 20.01.1993, onde se escreveu que para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige que a prova, no sentido de certeza moral, da existência do crime, bastando-se com a exigência de indícios, de sinais, dessa ocorrência.
Isto, porém, não significa que a lei confira aos mencionados despachos um estatuto de ligeireza.
E prossegue o dito aresto, a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências, morais, quer jurídicas; submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo se não mesmo um vexame.
É por isso que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de “condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa”: o Juiz só deve pronunciar quando, por elementos de prova recolhidos nos autos, forma a convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido ou “os indícios são suficientes quando haja uma lata probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Como refere a Prof. Fernanda Palma, a relação entre os indícios e a possibilidade de condenação é que caracteriza os indícios.
Com efeito, os indícios de que resulta a possibilidade de condenação são indícios suficientes para a condenação, o que significa que revelam uma espécie de causalidade para aquele resultado, mas tal qualificação não se refere directamente á natureza dos indícios, nomeadamente a sua caracterização como fortes, fracos ou de média intensidade. Na lógica do Código de Processo Penal, os indícios que justificam a acusação (ou a pronúncia) são, segundo me parece, necessariamente graves ou fortes, no sentido de serem factos que permitem uma inferência do tipo probabilístico da prática do crime (enquanto facto) de elevada intensidade, permitindo estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável.
E é, assim, porque só os indícios de elevada intensidade são suficientes, isto é, justificam um juízo normativo de “possibilidade razoável” da condenação[3].
No ensinamento de Jorge Noronha e Silveira, para a suficiência dos indícios não deve bastar uma maior possibilidade de condenação do que de absolvição. Só uma forte ou alta possibilidade pode justificar a dedução da acusação ou a prolação de um despacho de pronúncia. Não apenas por ser esta a solução que melhor se adapta á particular estrutura do processo penal, como também por ser a única que consegue a imprescindível harmonização entre o critério normativo presente no juízo de afirmação da suficiência dos indícios e as exigências do principio da presunção de inocência do arguido.
E prossegue, por todas estas razões, afirmar a suficiência dos indícios de pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção o M.P. deve arquivar o inquérito e o Juiz de Instrução deve lavrar despacho de não pronúncia[4].
No fundo, a indicação suficiente é, no dizer do Supremo Tribunal, a verificação suficiente de um conjunto de fatos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos do crime/da infracção porque os agentes virão a responder.[5]
Ou como referia Luís Osório, por indícios suficientes se devem ter aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado.[6]
Com base nos ensinamentos expostos vejamos, pois, se é, ou não, de manter o despacho de pronúncia prolatado e aqui posto em crise com o presente recurso.
Entendeu o despacho recorrido que apesar de o arguido ter recebido, no âmbito das suas funções de gerente da filial de Évora da sociedade C… Ldª, várias quantias monetárias à sociedade destinadas e não as ter entregado, tal não é bastante para que se conclua pelo cometimento do crime de Abuso de Confiança, p. e p., pelo art.º 205.º, n.º 1, do Cód. Pen.
Porquanto, não resulta indiciado que o arguido tenha integrado tais quantias no seu património e feito das mesmas coisas sua, ou que se tenha recusado a restitui-las quando interpelado para o efeito.
Para lá de que, embora a ofendida na sua participação refira que o arguido estava obrigado a depositar na agência de Évora da Caixa Geral de Depósitos os pagamentos efectuados relativos a negócios realizados na filial de Évora, certo é que, não apresentou prova de tais factos, nem a mesma foi produzida em sede de inquérito. De igual modo, não alegou a ofendida e como tal também não apresentou prova, no sentido de que o arguido foi interpelado para entregar tais quantias e que se recusou ilegitimamente a fazê-lo. Acresce que, não consta dos autos qualquer indício de que o arguido tenha usado as referidas quantias como se fossem suas, nomeadamente, praticando qualquer acto de disposição patrimonial destas sem o consentimento da ofendida.
O crime de Abuso de Confiança mostra-se prevenido no art.º 205.º, do Cód. Pen., onde se diz, no seu n.º 1, que quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Dizendo-se no n.º 4, al.ª b) que se a coisa referida no n.º 1 for de valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
E no seu n.º 5 que se o agente tiver recebido a coisa em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Como se vem entendendo, o bem jurídico protegido pelo crime de abuso de confiança, até pela sua inserção sistemática, é a propriedade, esta entendida como o poder de facto que se exerce sobre a coisa, com a fruição das suas utilidades.
Consistindo o tipo objectivo na apropriação de coisa móvel que tenha sido entregue ao agente por título não translativo de propriedade.
Sendo que a entrega da coisa ao agente por título não translativo de propriedade inclui todo e qualquer acto ou negócio jurídico pelo qual o agente é investido no poder de disposição da coisa e fica obrigado à devolução da coisa ao transmitente ou a um terceiro.[7]
A apropriação traduz-se sempre na inversão do título de posse ou de detenção: «o agente que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela - naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a "inversão do título de posse ou detenção" e é nela que se traduz e consuma a apropriação.»
Devendo tal inversão do título de posse revelar-se por actos concludentes de que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa "como proprietário", em suma que se tenha verificado uma deslocação da propriedade.[8]
Desde logo, importa caracterizar qual o vínculo existente entre o arguido e a sociedade. Vem dado como matéria suficientemente indiciada que o arguido, durante os anos de 2011 a 2013, trabalhou para a sociedade C…, Lda., com sede em …, exercendo as funções de gerente da filial desta sociedade localizada na cidade de Évora.
O que quer significar que entre a sociedade C…, Lda., e o arguido existia um vinculo laboral, assente num contrato de trabalho, sendo este trabalhador da dita sociedade e esta sua entidade patronal.
Definindo-se este contrato, como decorre do art.º 10.º, do Cód. Trabalho - aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 23 de Agosto -, bem como do art.º 1152.º, do Cód. Civ., como aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.
E dentro dos poderes da entidade patronal não deixará de estar o de exigir que um seu trabalhador lhe preste contas da actividade que exerce no seu local de trabalho, e sem que haja necessidade de interpelação para o efeito, como o faz crer a M.ma Juiz recorrida.
Se assim fora, não se entenderia a relação de subordinação jurídica existente entre a entidade patronal e o trabalhador.
Para além do mais, não se entende a que título o arguido retém as quantias que recebeu dos clientes da Sociedade, sua entidade patronal; é que não o invoca. Será a título de direito de retenção, nos termos do art.º 754.º, do Cód. Civ., será a título de compensação, art.º 847.º, do mesmo diploma legal ou por qualquer outro título? Não se descortina, nem o arguido o refere, ou mesmo a Decisão revidenda o explicita.
E passado todo este tempo, e sem que tenha entregado as quantias recebidas e pertencentes à sociedade, é das mais elementares regras da experiência comum concluir que o arguido fez suas as quantias em falta, ao invés do que se afirma na decisão sob censura. Nem se descortinando, por parte do arguido, qualquer propósito de pagar o devido.
E que interesse apropriativo existiu por parte do arguido é o próprio despacho de Pronúncia – no tocante à prática pelo arguido/recorrente do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, alínea a), do Cód. Pen., - de tal a dar clara nota no ponto 5., quando refere que Ao emitir e assinar a nota de venda n° 19353, dela omitindo o pagamento do sinal efectuado pelo cliente, sabendo que o não podia fazer, o arguido pretendeu lesar economicamente a C…, Lda. e obter vantagem patrimonial, para além de por em causa a fé pública própria do documento.
Razão bastante para que se tenha de falar da existência do elemento objectivo do tipo legal de crime em apreço – apropriação ilegítima de coisa móvel -, dada a existência de actos concludentes de que o arguido inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa, dinheiro, com se sua fosse, como se seu dono fosse.
E, em consequência, se tenha de incluir nos Factos suficientemente indiciados todos os incluídos nos Factos não suficientemente indiciados.

Numa análise, ainda que perfunctória da base factual ora estabelecida nos autos, dúvidas não existem em se concluir pela verificação de todos os elementos – objectivos e subjectivo -integradores do crime de Abuso de Confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.ºs 1 e 5 (e não 4, al.ª b), como refere a acusação) do Cód. Pen.
Pelo que nenhum outro caminhe reste do que concluir pelo cometimento pelo arguido B…, de um crime de Abuso de Confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.ºs 1 e 5, do Cód. Pen.
Devendo, em consequência, ser lavrado despacho de pronúncia contra o aqui arguido, em conformidade, seguindo-se os ulteriores termos do processo.

Termos são em que Acordam em conceder provimento ao recurso e, em consequência, se revoga o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que ordene a Pronúncia do arguido B…, de um crime de Abuso de Confiança, p. e p. pelo art.º 205.º, n.ºs 1 e 5, do Cód. Pen.
Sem custas, por não devidas.
(texto elaborado e revisto pelo relator).

Évora, 16 de Fevereiro de 2016
José Proença da Costa (relator)
António Clemente Lima (adjunto)

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[1] Ver, Curso de Processo Penal, Vol. II, págs. 182 e segs..
[2] Na C.J., ano XXIII, tomo IV, págs. 261.
[3] Cfr. Da Acusação e Pronúncia num Direito Processual Penal de conflito entre presunção de inocência e a realização da Justiça punitiva, págs. 121-123, in I Congresso de Processo Penal.
[4] Ver, o Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, págs.171.
[5] Ver, Ac. de 10.12.92, no Processo n.º 427747.
[6] Ver, Comentário ao Código de Processo Penal Português, Vol. IV, págs. 411.
[7] Ver, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, págs. 566-567.
[8] Ver, Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, págs. 103 e 104.