Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
444/09.2TTPTM-A.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: DESPESAS DE DESLOCAÇÃO
UTILIZAÇÃO DE CARRO PRÓPRIO
PAGAMENTO
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: TRIBUNAL DO TRABALHO DE PORTIMÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Área Temática: ACIDENTES DE TRABALHO
Sumário:
I- O art.º 15.º da Lei n.º 100/97 prevê que a entidade responsável pelas consequências do acidente pagará as despesas que o sinistrado tenha em virtude da sua deslocação para tratamentos.
II- A Lei não estabelece quaisquer critérios quanto à utilização de carro próprio nestas deslocações.
III- Porque não há lacuna a respeito dos pagamentos destas despesas, não há que aplicar as regras da função pública sobre ajudas de custo ou a legislação de custas sobre a deslocação de testemunhas ao tribunal.
IV- O conhecimento das questões que não foram colocadas na fase contenciosas do processo emergente de acidente de trabalho fica precludido pelo encerramento da fase conciliatória.
V- É válida, após a fase contenciosa, a condenação de uma seguradora no pagamento de despesas de deslocação para tratamentos quando ela própria oferece tal pagamento e pela quantia que ela oferece.

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
C… pediu o pagamento de despesas feitas com deslocações à data do sinistro e durante o período de incapacidades, invocando o total de 490 km feitos em viatura própria e outras deslocações em transportes públicos, tudo no montante de €289,33, sendo que a seguradora apenas efectuou um pagamento de €49.
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A Companhia de Seguros… informou que, habitualmente, não paga despesas com deslocações em viatura própria mas que abriu uma excepção e liquidou ao sinistrado o montante de €49 que este recusou. No entanto, propôs pagar ao sinistrado aquele montante acrescido de um outro de €51, o que totaliza €100.
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Foi decidido condenar a seguradora no pagamento de este último valor.
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Deste despacho foi interposto o presente recurso pelo sinistrado, representado pelo Digno Magistrado do M.º P.º.
Conclui da seguinte forma:
Não existe diploma que regulamente a tabela a aplicar para o pagamento das despesas de transporte, em veículo próprio, nos acidentes de trabalho, pelo que se deve aplicar a Portaria n.º 1553-D/2008, por analogia, uma vez que tal diploma regula o pagamento das despesas relativamente ao regime dos acidentes de trabalho na função pública.
A seguradora ordenou e consentiu a deslocação do sinistrado em veículo próprio e nunca pôs em causa que tenham sido efectuadas.
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A seguradora contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
As suas conclusões são, basicamente, as seguintes:
O valor de €0,40 por km fixado para os trabalhadores em funções públicas pela Portaria n.º 1553-D/2008, só é aplicado quando os trabalhadores (e não os sinistrados) estão para tal autorizados e desde que se encontrem ao serviço do organismo público.
A lei fornece um outro critério, destinado a pagar a deslocação de testemunhas a Tribunal, o qual decorre do art.º 17.º, n.º 5, do RCP que fixa o preço do km percorrido em €0,204.
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Os factos a ter em conta são apenas os que constam do relatório antecedente.
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Sob dois pontos de vista deve o problema ser encarado.
O substantivo, isto é, o material, o que rege a situação jurídica aqui em causa.
Para tal, teríamos, na óptica das partes, de encontrar um regime legal que estabelecesse um valor por cada km percorrido em viatura própria nos casos de deslocações de sinistrados para tratamentos.
Mas a verdade é que não se encontra — o que não significa que exista já uma lacuna.
O recorrente afirma que se deve aplicar, por analogia, o regime da função pública; por seu turno, defende a recorrida que se deve aplicar, também por analogia, o regime previsto no Regulamento das Custas Processuais para a deslocação das testemunhas.
Contudo, nenhuma das partes explica qual seja a lacuna e menos ainda que as razões procedentes nos regimes legais citados procedam também neste caso (cfr. art.º 10.º, Cód. Civil).
Um dos critério para descobrir uma lacuna numa regulamentação legal é a necessidade de resolver juridicamente um caso que não está previsto em nenhuma lei. Sendo assente (1.º) que o caso deve ser regulado e (2.º) que não existe regra que se lhe aplique, nem por interpretação extensiva, então podemos estar certos de ter perante nós uma lacuna.
Mas isto não chega uma vez que a lacuna tem ainda que ser integrada, isto é, o caso tem que ser resolvido com recurso a outra norma — a tal que não teria aplicação directa ao caso não fosse a circunstância de não existir outra tão próxima.
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De duas maneiras se pode, embora não se deva, resolver um problema de lacunas na lei para regular um caso: ou se parte, básica e fundadamente, da constatação da existência de uma falta de regra e da necessidade de arranjar uma regra (já existente) que se lhe aplique; ou se parte, por aproximação, de uma regra conhecida que tenha por seu um objecto semelhante (pelo menos) àquele que temos entre mão (isto é, vai-se logo para a integração da lacuna sem antes se averiguar se realmente ela existe).
O caminho mais seguro é o primeiro. Contudo, por facilidade intelectual e dado o conhecimento das regras legais, temos a tendência para ir pela segunda alternativa. Este último, talvez por ser mais rápido, traz consigo erros de percurso — e é conhecido o ditado: quem se mete por atalhos mete-se em trabalhos.
Por isso, a escolha de um dos caminhos não é inocente nem livre.
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Temos, pois, e seguindo o raciocínio das partes que logo indicam uma norma aplicável, de saber se existe uma norma (ou normas) cujas razões justificativas são as mesmas que deverão proceder no caso omisso (art.º 10.º, n.º 2, Cód. Civil).
A norma em questão, segundo a indicação das partes, são, afinal, duas, as já identificadas.
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O problema agora, e que não foi minimamente considerado nas alegações e contra-alegações, é se as razões de tais normas justificam a sua aplicação a um caso que elas não contemplam. Apenas se diz que se «aplicam por analogia» como se esta expressão fosse a panaceia de todos os males ou solução de todos os problemas jurídicos.
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Que razão jurídica pode levar a que se aplique entre privados uma regra tão própria da função pública? A quem se destina, em primeiro lugar, o conjunto (porque as indicadas são umas entre várias) das regras que as partes citam? Que razões ditam estas leis? Justificarão elas a sua aplicação a outras pessoas que não as visadas?
O problema, para quem segue o segundo caminho, é este: como aplicar regras legais, estaduais, cujo objecto subjectivo (pessoas) é definido estritamente (os funcionários públicos e demais trabalhadores de organismos públicos); e como aplicar outras regras que têm como exclusivo objecto a actividade jurisdicional do Estado?
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As regras do Estado sobre os seus próprios recursos humanos, digamos assim, são absolutamente imperativas e não se compadecem com outras alternativas válidas em outras áreas do sistema jurídico. Toda a legislação da função pública, por razões de índole política e financeira, é extremamente restritiva (veja-se, por exemplo, o art.º 43.º do Decreto-Lei n.º 427/89, além do art.º 7.º da Lei n.º 23/2004) e completa, só vale aquilo que a lei expressamente prevê.
É certo que o regime da função pública já não está tão subordinado ao interesse público, entendido como orientação política do governo, como estava na altura em que era publicado o Manual de Direito Administrativo de Marcello Caetano (a última edição sobre esta matéria é de 1972); tal como a sua distância em relação ao Direito privado é bem menor. Hoje, a aproximação do regime da função pública ao regime do contrato individual de trabalho (e falamos deste como produto típico de relações de fazer e cumprir, sem esquecer o assunto das ajudas de custo que nos traz aqui) é patente pondo em crise o anterior modelo (ou paradigma, como agora se diz a propósito de tudo e de nada) político e autoritário. A atribuição «aos agentes da Administração da liberdade sindical (…), do direito à greve (…), do direito de constituir comissões de trabalhadores, do direito de contratação colectiva (…) e do direito de participação da elaboração da legislação de trabalho» (F. Liberal Fernandes, Autonomia dos Trabalhadores da Administração. Crise do Modelo Clássico de Emprego Público, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, pp.110-111) aproximou bastantes estes dois ramos de direito na medida em que transforma os agentes da Administração Pública de funcionários ou servidores em trabalhadores. O mesmo tem acontecido, aliás, na Pátria do Droit Administratif onde, desde sempre, se considerou haver incompatibilidade entre o regime jurídico da função pública e o Direito do Trabalho mas em que, na realidade, tem vindo a acontecer uma aproximação lenta mas significativa entre os dois mundos distintos da administração e da empresa (Alain Plantey, La Foction Publique Traité General, 2.ª ed., Litec, Paris, 2001, pp.14-15).
Mas esta aproximação não significa que as regras que o próprio Estado faz para si tenham cabimento noutra situação que não a aquela em que ele não estivesse envolvido. Existem constrangimentos de ordem política e financeira que impõem o respeito escrupuloso pelas regras editadas, desde logo, pelo seu âmbito de aplicação.
Por isso, querer aplicar directamente, ou por analogia, institutos de Direito Administrativo a uma relação de Direito Privado é esquecer a ainda existente diferença estrutural entre as duas áreas e as razões desta diferença (o Estado, o poder público, de um lado e os particulares de outro). As razões de interesse público que estão subjacentes à especificidade do estatuto da função pública levam a que só este regime seja tido em conta na apreciação destes casos.
Os outros casos, entre particulares, são apreciados de maneira diferente, sendo que a primeira diferença é que as regras que o Estado faz para os seus trabalhadores não se destinam a mais ninguém.
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O mesmo se diga em relação às regras sobre custas devidas em juízo.
Também aqui falha qualquer ligação entre os dois casos. Tratam-se de regras sobre despesas que os processos judiciais acarretam e que devem ser pagas pelas partes.
A previsão do n.º 1 do RCP é clara: as «entidades que intervenham nos processos ou que coadjuvem em quaisquer diligências (...) têm direito às remunerações previstas no presente Regulamento», indicando-se, entre aquelas, as testemunhas.
São deslocações determinadas por um acto do Estado, por uma ordem de comparência.
Nada disto existe no caso dos autos.
Assim, falha o segundo caminho para integrar uma lacuna.
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O primeiro caminho dos apontados que nos obriga, em primeiro lugar, a constatar a existência de uma lacuna e, depois, a saber se ela realmente existe, obriga-nos a pensar em termos de direito privado dado o objecto em causa.
Não basta a não previsão de uma regra legal que decida o caso concreto para afirmar que existe uma lacuna; esta existirá quando o caso deva ser juridicamente regulado, quando ela exija uma resposta do Direito, quando estamos «em face de um caso merecedor de tutela jurídica» (Baptista Machado Lições de DIP, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 1982, p. 99). Este autor responde a esta questão da seguinte forma: «o problema apresentado pelo caso omisso merece solução jurídica porque um problema análogo ou paralelo também a mereceu num outro ponto do sistema. Ou então: o conflito de interesses (ou ainda: a questão jurídica) que se apresenta no caso omisso é semelhante ao regulado pela lei em determinada disposição, logo merece um tratamento correspondente» (p. 99). Se o caso deve ser juridicamente regulado, tem de haver uma solução qualquer no sistema jurídico. Mas este «dever ser juridicamente regulado» é uma conclusão que se há-de extrair do próprio sistema, por intermédio de pistas (chamemos assim) que o próprio legislador vai deixando.
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Como acima se disse, não existe regime legal que estabeleça um valor por cada km percorrido em viatura própria nos casos de deslocações de sinistrados para tratamentos mas isto não significa que estejamos perante uma lacuna, em sentido próprio.
O art.º 15.º, n.º 1, Lei n.º 100/97, determina que o «fornecimento ou o pagamento dos transportes abrange as deslocações e permanência necessárias à observação e tratamento»; o art.º 35.º do Decreto-Lei n.º 143/99 regulamenta aquele preceito legal mas em termos que nada têm que ver com o assunto.
Mas o certo é que os sinistrados têm direito ao pagamento das despesas das deslocações necessárias para tratamentos. Ou seja, o sinistrado gasta x num determinado transporte e tem direito a reaver a quantia por parte da entidade responsável. É a despesa que é paga ou, dito de outra forma, é o dinheiro que o sinistrado gastou na deslocação que lhe deve ser restituído.
Onde está, afinal, a lacuna?
Dirão as partes que, no caso de utilização de viatura própria, não existem critérios legais quanto ao custo por km percorrido. Pois não existem nem têm que existir.
O que a lei determina é que a despesa seja paga, isto é, que o dinheiro que o sinistrado gastou seja pago — nada mais é necessário.
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Aliás, e em passagem, nem se compreende como a seguradora pode afirmar que não paga despesas com deslocações em viatura própria! Porquê? Qual é o fundamento jurídico desta afirmação? Se existem despesas e se elas respeitarem as condições (repare-se que não falamos em limites) estabelecidas em ambos os preceitos legais citados, a entidade responsável só tem que as pagar.
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Com isto queremos dizer que temos regra aplicável, queremos dizer que não há lacuna.
E a regra que temos de aplicar directamente é a do art.º 15.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97 que manda pagar as despesas que o sinistrado tenha nas suas deslocações para tratamentos.
Quanto pagou o sinistrado? É o valor da despesa, em concreto, que a responsável deve, por sua vez, pagar ao sinistrado. Que interessa se a R. não paga habitualmente despesas de deslocação em carro próprio se a lei as manda pagar apenas porque são despesas? Só é preciso saber quanto o sinistrado pagou.
Para quê argumentar com tabelas inaplicáveis?
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Entramos agora no segundo posto de vista, o processual.
Definido que o recorrente tem direito aos montantes que gastou para pagamento das suas deslocações para tratamentos, resta saber por que meio ele há-de reaver essas despesas.
Se houver acordo na tentativa de conciliação, tudo ficará assente nesta diligência.
Caso não haja acordo, as despesas serão apuradas na fase contenciosa onde se discutem outras coisas além da incapacidade. Como é sabido, se não houver acordo entre sinistrado e entidade responsável na fase conciliatória do processo, dá-se início à fase contenciosa. Esta, quando se pretenda discutir outro tema que não apenas a incapacidade resultante do acidente, tem início com uma petição inicial — art.º 117.º, n.º 1, al. b), Cód. Proc. Trabalho. Nesta fase discutem-se todas as questões sobre que não houve acordo na tentativa de conciliação e que estão em litígio. Geralmente trata-se de questões relacionadas com o desenrolar do acidente, a retribuição auferida, etc.. Mas uma delas também pode ser o pagamento de despesas tidas com deslocações para tratamentos.
Para tanto, basta não haver acordo entre as partes sobre o tema.
É este o caso dos autos, sem dúvida. O recorrente alega que teve uma determinada despesa e a seguradora alega que não tem que a pagar. O que o sinistrado tem de fazer é alegar e provar a despesa que teve; caso faça isto, a seguradora deverá ser condenada a pagar a quantia em questão. Quantos km percorreu, quanto custa um litro de combustível, quanto gasta o seu carro, etc., tudo são factos que levam a determinar um montante que foi gasto.
As dificuldades da prova, aludidas na alegação, não se distinguem das dificuldades da prova em qualquer acção judicial, mesmo a respeito de acidentes de trabalho.
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Resulta dos autos que a fase contenciosa teve por objectivo apenas a incapacidade do sinistrado o que significa que esta questão das despesas de deslocação apenas foi colocada depois da alta (em rigor, foi colocada depois da sentença a que se refere o art.º 140, n.º 1, Cód. Proc. Trabalho). Ou seja, já nada, além da incapacidade, havia para discutir. Caso o sinistrado pretendesse a reposição das quantias realmente despendidas no decurso e por causa dos tratamentos deveria ter colocado tal questão na tentativa de conciliação. Caso não se obtivesse acordo, a fase contenciosa discutiria este assunto também.
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Não obstante o que resulta do princípio da preclusão, a seguradora fez uma proposta de pagamento ao A. (que a compromete), proposta esta que o tribunal, e à falta de melhor expressão, ratificou por intermédio do despacho recorrido.
Significa isto que apenas a título gracioso se poderia agora condenar a seguradora no pagamento das despesas.
Por isso, porque o despacho recorrido, ao aceitar a declaração da seguradora, não violou os preceitos legais respeitantes ao pagamentos de ajudas de custo na função pública nem os respeitantes ao pagamento das deslocações das testemunhas a tribunal, nem o art.º 15.º, n.º 1, Lei n.º 100/97, deve ser mantido.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Sem custas por o recorrente gozar de isenção de custas, nos termos previstos no artigo 4.º, n.º 1, alínea h) do Regulamento das Custas Processuais.
Évora, 13 de Dezembro de 2011
Paulo Amaral
João Luís Nunes
Joaquim Correia Pinto