Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
156/11.7TAVVC.E1
Relator: GILBERTO CUNHA
Descritores: REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
NULIDADES
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/07/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. Tendo sido rejeitado liminarmente, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução, a omissão de pronúncia sobre nulidade praticada em sede de inquérito, invocada em tal requerimento, não conduz à nulidade de falta de instrução.

2. A omissão de pronúncia no despacho recorrido sobre um dos crimes referidos no RAI constitui mera irregularidade, dependente de arguição nos 3 dias subsequentes a contar da notificação desse despacho (art.123.º, nº1, do CPP), o que não tendo acontecido, conduz à sanação do vício.

3. O requerimento de abertura da instrução não pode ser dirigido contra desconhecidos, pois a acusação contra incertos é indubitavelmente nula, nos termos estatuídos nos art.283º nº3 al. a) e 308º nº2, do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.

RELATÓRIO.

Decisão recorrida.

C.. –...Ldª, com sede ..., em Redondo, participou criminalmente contra P, C, J e outros (desconhecidos), atribuindo-lhes a prática dos crimes de introdução em lugar vedado ao público, furto e dano simples, pp., respectivamente, pelos arts.191º, 203º e 212º, todos do Código Penal.

Teve lugar o inquérito, findo o qual o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, nos termos do nº1 do art.277º do CPP, por entender que a factualidade denunciada nas duas participações apresentadas, independentemente da respectiva prova, é insusceptível de integrar a prática de qualquer daqueles crimes.

Notificada desse despacho, a ofendida/queixosa veio simultaneamente requerer a sua constituição como assistente e a abertura da instrução, imputando aos denunciados a prática dos mencionados crimes de introdução em lugar vedado ao público, furto e dano simples, pp., respectivamente, pelos arts.191º, 203º e 212º, todos do Código Penal.

Admitida a intervir como assistente, por despacho da Exmª Juiz de Instrução, proferido em 11/6/2012, foi liminarmente rejeitado o requerimento de abertura da instrução, por inadmissibilidade legal.

Recurso.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu a assistente, pugnando pela sua revogação e substituição por outro que ordene a abertura da instrução, rematando a respectiva motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:

A) A assistente, no requerimento de abertura de instrução, suscitou, a nulidade, prevista na al. a), do nº.1, do art.120º do CPP – Vd. arts.12º a 26º do requerimento de abertura de instrução, não apreciada pela Meritíssima Juiz “a quo”;

B) A assistente veio ainda a imputar aos denunciados, a prática de um crime de furto, p. e p. no art. 203º do C.P, não tendo sido apreciada a factualidade vertida sobre tal ilícito, como era seu dever – Vd. art.17º do CPP;

C) Verifica-se uma nulidade insanável de falta de instrução, de acordo com o prescrito na al. d), do art.119º do CPP, com as consequências previstas no art.122º do CPP, i.e., a invalidade do douto despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução, apresentado pela assistente;

D) O requerimento de abertura de instrução, apresentado pela assistente, ora recorrente, reúne os requisitos exigidos pelo art.287º, nº.2 do CPP, com referência ao art.283º, nº.3, alíneas a) e b) do CPP;

E) Mas mesmo que não reunisse, seria sempre passível de convite de aperfeiçoamento, em virtude do douto Acórdão de Uniformização de jurisprudência ser manifestamente inaplicável, in casu;

F) Salvo o devido respeito, a Meritíssima Juiz “a quo” violou o correcto entendimento, nomeadamente, do disposto nos artigos 20º e 32º da CRP e ainda dos artigos 287º, nº.2 e 283º, nº.3, als. a) e b), do CPP.

Face ao sobredito, deverá ser revogada a decisão recorrida.

Contra-motivou o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do despacho impugnado.

Nesta Relação o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer também no sentido de ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.

Cumprido o disposto no nº2 do art.417º do CPP não foi apresentada resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO.

Objecto do recurso. Questão a examinar.

Estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (art.412º nº1, do CPP), as questões que importa examinar e que reclamam solução consistem em saber:

1.º Se o despacho recorrido enferma de omissão de pronúncia e se as patologias que o recorrente lhe aponta configuram as nulidades por si invocadas e quais as suas consequências;

2º. Se o requerimento para abertura da instrução satisfaz ou não os requisitos legalmente exigidos e qual a consequência da sua eventual não observância.

O despacho recorrido no segmento que aqui importa considerar é do seguinte teor:

«A assistente veio requerer a abertura de instrução, assim reagindo contra o despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público, constante de folhas 209 a 220.

No entanto, o requerimento de abertura de instrução de folhas não obedece aos requisitos exigidos pelo artigo 287.º do Código de Processo Penal, pelo que não poderia conduzir a um despacho de pronúncia válido.

De facto, em caso de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público o requerimento de abertura de instrução tem que, além do mais, satisfazer as exigências legalmente previstas para a acusação.

E a esse respeito preceitua o n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do artigo 283.º, n.º 3”.

Nos termos do referido artigo 283.º, n.º 3, als. a), b) e c), a acusação contém obrigatoriamente as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.

E a acusação tem que incluir esses elementos sob pena de nulidade, conforme estatui o mesmo preceito, pelo que também estes têm que constar obrigatoriamente do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.

Analisando o requerimento de abertura de instrução de fls. 225 e ss., entende-se que o mesmo não satisfaz os requisitos apontados para a acusação, porquanto não são desde logo identificados o agentes dos crimes por cuja pronúncia se pugna, sendo certo que não há arguidos constituídos nos autos.

Nem sequer por referência às queixas encontramos tal identificação. Na descrição dos factos a assistente vai aludindo a algumas pessoas, que refere serem arguidos, mas dos quais não resulta dos autos que tenham tal qualidade e quais os respectivos elementos de identificação. No que concerne à Sociedade...., Lda.ª, não se alcança se se pretende, em concreto, a incriminação dos legais representantes da pessoa colectiva, que não vêm identificados.

Por outro lado, não é feita uma descrição circunstanciada de factos que integrem o crime de dano e de introdução em lugar vedado ao público, quer ao nível da imputação objectiva (não há alusão à que se trate de propriedade vedada e ao modo de introdução na mesma ou a actos de destruição/danificação de árvores ou frutos) quer ao nível do elemento subjectivo dos crimes (onde apenas se refere que os arguidos recusaram abandonar o local e restituir a azeitona, o que fizeram tendo consciência que a mesma era propriedade da assistente).

E o Juiz de Instrução encontra-se vinculado aos factos alegados na acusação ou no requerimento de abertura de instrução, sob pena de nulidade da decisão instrutória – cfr. art. 309.º, do Cód. Proc. Penal.

Não se mostra admissível a prolação de despacho de aperfeiçoamento nestas situações – cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 7/2005.

Assim, por inadmissibilidade da abertura desta fase processual, indefere-se o requerimento de abertura de instrução.

Custas pela assistente, fixando-se a taxa em 2 Uc’s.
Notifique.»

Analisemos a 1ª questão enunciada.

Alega a recorrente que no requerimento de abertura da instrução suscitou a nulidade prevista na al. a), do nº1, do art.120º do CPP, que o JI não apreciou no despacho recorrido pelo que, na sua óptica, tal omissão de pronúncia constitui a nulidade insanável de falta da instrução, de acordo com o prescrito na al. a), do art.119º do CPP.

Vejamos.

É inquestionável que ora recorrente no requerimento de abertura da instrução pretextou que verificar-se-ia a nulidade prevista na al. a), do nº1, do art.120º do CPP, invocando para tal, que o MºPº no decurso de inquérito omitiu diligências, que diz essenciais para a descoberta da verdade, sem que tenha concretizado quais seriam essas diligências.

Por outro lado, é também irrefutável que o JI no despacho recorrido não conheceu dessa questão.

Liminarmente há que sublinhar que naquele requerimento a requerente não concretiza, como se lhe impunha, qual ou quais as diligências que foram omitidas, que a seu ver seriam essenciais para a descoberta da verdade, limitando-se a uma alegação genérica e abstracta.

Por outro lado, é completamente errado o enquadramento normativo do vício invocado feito pela requerente, pois o nº1 do art.120º do CPP, nem sequer tem qualquer alínea.

Supomos que o recorrente pretenderia invocar a nulidade prevenida na al. c), no nº2, do art.120º do CPP.

Mas se era essa a sua intenção, sempre se dirá que de qualquer forma, a sua pretensão seria votada ao insucesso.

Resulta do disposto no art°120° do CPP, com a epígrafe

"Nulidades dependentes de arguição" que

"l - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.

2 - Constituem nulidades pendentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:

d) A insuficiência do inquérito ou da instrução e a omissão posterior de diligências que pudessem reputarem essenciais para a descoberta da verdade."

Dispõe-se o citado art.120º, nº2, al. d) do CPP que constitui nulidade dependente de arguição "a insuficiência do inquérito ou da instrução e a omissão posterior de diligências que pudessem reportar-se essenciais para a descoberta da verdade".

Esta norma tem dois segmentos. No primeiro, refere-se a «insuficiência do inquérito ou da instrução»; no segundo, a «omissão posterior de diligências que pudessem reportar-se essenciais para a descoberta da verdade». Isto é, a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade (seja qual for o alcance que isso tenha), só constitui nulidade se for posterior ao inquérito ou à instrução. Durante estas duas fases processuais esta norma apenas comina com o vício da nulidade a «insuficiência do inquérito ou da instrução».

Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, a insuficiência do inquérito ou da instrução "é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreve.

Assim, só se verifica esta nulidade quando se omita um acto que a lei prescreve como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa" - Curso de Processo Penal, II, 3ª edição, págs.84/85. Aliás, este autor interroga-se sobre a utilidade desta nulidade num processo em que a lei não impõe, em geral, a prática de quaisquer actos típicos de investigação.

A omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito ou da instrução por insuficiência.

Aliás, como atrás dissemos, a requerente nem sequer concretizou qual ou quais as diligências que foram omitidas e muito menos indica o fundamento legal que a(s) prescreveria como obrigatória(s), pelo que essa questão sempre seria improcedente.

De qualquer modo, a não apreciação pelo JI da apontada questão, em caso algum acarreta a nulidade prevista na al. d) do art.119º do CPP.

Na verdade, no caso vertente a omissão de pronúncia sobre aquela questão, não acarreta a nulidade de falta de instrução prevista em tal norma.

Com efeito o requerimento de abertura de instrução onde a questão foi suscitada, foi rejeitado liminarmente por inadmissibilidade legal, pelo que não tendo sido aberta a fase de instrução, ficou prejudicado a apreciação daquela.

Como bem assevera o MºPº na contra-motivação apresentada na 1ª Instância, citando o Acórdão da Relação do Porto de 11 de Maio de 2011, disponível em www.dgsi.pt, não pode o JIC, nem deve, saltar etapas. Isto é, não pode analisar a questão da nulidade, qualquer que ela seja, sem que o requerimento para a abertura de instrução preencha os requisitos formais exigidos: “E (o RAI) foi indeferido por inadmissibilidade, o que se verifica, sendo esta a questão a decidir seguidamente. A circunstância de hipoteticamente a assistente ter razão, não tendo apresentado um RAI viável, conduz a que não seja possível a este tribunal conhecer as questões que o TIC não conheceu. O recurso é do despacho do JIC de indeferimento do RAI e não uma sindicância do inquérito.

É também evidente que o despacho impugnado, lamentavelmente não se debruçou sobre o crime de furto, omitindo sobre ele qualquer apreciação.

O nº1 do art.205º, da Lei Fundamental, exige que as decisões que não sejam de mero expediente tem de ser fundamentadas na forma prevista na lei.

Como é sabido, os arts.374º, nº2 e 379º, nº1 do CPP regem para a sentença, não sendo aplicáveis no caso da decisão sob recurso.

Este dever de fundamentação das decisões judiciais, acentuado na 4ª revisão constitucional (Lei nº1/97, de 20/9), consta reafirmado no invocado art.97º nº4, do CPP, nos termos do qual os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

Com isto se pretendeu, fundamentalmente, por um lado, conferir força pública inequívoca (autoridade e convencimento) aos referidos actos e, por outro, permitir a sua fundada impugnação.

Porém, a omissão de apreciação da factualidade vertida no requerimento de abertura da instrução sobre o crime de furto, constitui uma mera irregularidade.

É sabido que (ressalvado o caso da sentença em que regem, como atrás dissemos, os arts.374º, nº2 e 379º do CPP), os demais actos decisórios não fundamentados padecem processualmente de mera irregularidade – arts.118º, nº2 e 123º do CPP.

Assim, apesar do mencionado despacho enfermar desse vício, essa irregularidade só determinaria a invalidade do acto a que se refere (e dos termos subsequentes pelo mesmo inquinados) se tivesse sido arguida pelo recorrente nos 3 dias subsequentes a contar da notificação desse despacho (art.123º nº1, do CPP), o que não tendo acontecido, sempre se terá por sanado o vício.

Prosseguindo.

Cumpre agora examinar se procedem os fundamentos invocados no despacho recorrido, que suportam essa decisão, sobre a inobservância dos requisitos legais do requerimento de abertura da instrução.

Como é sobejamente sabido, a instrução que é uma das fases preliminares do processo penal, visa, como dispõe o art.286º nº1, do CPP, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Deduzida acusação, ou arquivado o inquérito pelo Ministério Público, os sujeitos processuais afectados por tais actos com os quais, conforme os casos, se encerra uma outra das fases preliminares do processo - o inquérito - , podem fazer comprovar judicialmente a decisão de acusar ou de arquivar o inquérito; a instrução tem, assim, carácter facultativo - artigo 286°, n°2, do Código de Processo Penal.

A instrução constitui uma fase judicial (a direcção da instrução compete a um juiz de instrução criminal - artigo 288°, n°1, do Código de Processo Penal), formada pelo conjunto de actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo, e obrigatoriamente por um debate instrutório, oral e contraditório - artigo 289°, n°1, do mesmo diploma.

A instrução pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente, conforme a natureza do acto que os afecte e que lhes confira o interesse em fazer comprovar judicialmente o acto de encerramento do inquérito: o arguido pode requerer a instrução no caso de ter sido deduzida acusação, e o assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, no caso de arquivamento, isto é, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação - artigo 287°, n°1, alíneas a) e b) do referido diploma.

A estrutura acusatória do processo exige, porém, que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzidas acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento.

Por isso, e não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura da instrução: "tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura da instrução", como refere o n°4 do artigo 288° do Código de Processo Penal.

O requerimento de abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.

Este requerimento, embora não sujeito a formalidades especiais, deve conter, mesmo em súmula, os elementos que são enunciados no artigo 287°, n°2, do mencionado diploma: a indicação "das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende levar a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar, sendo-lhe aplicável ainda o disposto no art.283º nº3 als. b) e c).

O requerimento, sendo livre de fórmulas, não o é de conteúdo material vinculante.

Deste modo, constituem elementos essenciais ao requerimento para abertura da instrução a enunciação das razões de facto e de direito da discordância em relação à decisão de acusação ou de arquivamento.

Porém, não tanto pelas fórmulas, mas pelo conteúdo, o requerimento para abertura da instrução terá de ser necessariamente diverso conforme o arguido pretenda fazer comprovar judicialmente a decisão de acusar, ou o assistente pretenda fazer intervir o juiz de instrução para confrontar a decisão de arquivamento.

Destinando-se o inquérito a investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262º, n°1, do Código de Processo Penal), esta decisão há-de ser tomada quando o Ministério Público considerar encerrado o inquérito e avaliar a existência (ou inexistência) de indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.

A acusação fixa então doravante no processo os termos da questão submetida a decisão (a vinculação temática), tanto que, mesmo quando requerida instrução pelo arguido, e comprovada judicialmente a decisão de acusar, o despacho de pronúncia não pode pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação.

Mas, sendo assim no que respeita à decisão de acusação, de modo simétrico tem de ser no que respeita ao requerimento do assistente no caso de arquivamento: o pressuposto da vinculação temática do processo só pode ser constituído pelos termos desse requerimento, que há-de definir as bases de facto e de direito da questão a submeter ao juiz.

Na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há, assim, uma similitude processual de função, e por isso, uma assimilação funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura de instrução no caso de não ter sido deduzida acusação.

Deste modo, o requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório: o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, que é a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público (cf. GERMANO MARQUES DA SILVA, "Curso de Processo Penal", vol. III, pág, 141).

O requerimento do assistente, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve, pois, constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo (da instrução), e por isso, os termos e os limites dos poderes de conhecimento e de decisão do juiz de instrução - artigos 308° e 309° do Código de Processo Penal (cf, vg. o ac. do STJ de 23 de Maio de 2001, proc. 151/01, e de 20 de Junho de 2002, in proc.4250/01, acessíveis em www.dgsi.pt).

A instrução não constitui uma base para o exercício da acção penal, nem um suplemento autónomo de investigação.

Assim, o requerimento do assistente com que pretenda, de modo processualmente necessário, útil e eficaz, fazer abrir a fase de instrução, e definir o seu objecto, tem de conter, ainda que de forma sintética, a narração dos factos que fundamentem a aplicação de uma pena, incluindo o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, e quaisquer outras circunstâncias relevantes – art.283°, n°3, do Código de Processo Penal, tendo em vista o que dispõem os art.303º n°3, 308° e 309° n°1 do mesmo diploma.

O requerimento formulado pela recorrente, com que pretendeu fazer declarar aberta a fase da instrução, não participa a nosso ver das características de uma acusação em sentido material, como aliás, não respeitando, por isso, as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo artigo 287°, n°2, com referência ao art.283º nº3 als. b) do Código de Processo Penal.

Com efeito, a ora recorrente requereu a abertura da instrução contra “todos os denunciados/arguidos” (sic).

Trata-se de uma fórmula remissiva.

No caso ninguém foi constituído arguido, pelo que nos remete para as denúncias apresentadas, por forma a saber contra quem é requerida a instrução e quem pretende ver pronunciado.

A primeira participação que consta dos autos foi apresentada contra P e esposa C, residentes na Rua..., em Setúbal, J, residente em Redondo,...e outros (desconhecidos).

Existe uma segunda formulada contra Legais representantes da sociedade “Sociedade..., Ldª, cuja identidade desconhece, assim como a sede e o seu NIF, JJ e D, casados entre si, residentes em Redondo, ...e F, residente em Redondo, ....
Obviamente que a alusão a outros (desconhecidos), bem como a referência vaga aos legais representantes daquela sociedade cujo NIF e sede não foram indicados, não constituem indicações bastantes para identificação contra quem é deduzida a instrução e de quem se pretende obter pronúncia pelos crimes em questão.

Na verdade, a acusação contra incertos é indubitavelmente nula, nos termos estatuídos no art.283º nº3 al. a) e 308º nº2, do CPP, pelo que não oferece qualquer dúvida a impossibilidade de serem pronunciados incertos.

Assim, relativamente a estes o requerimento de abertura da instrução enferma da deficiência apontada no despacho recorrido, que contudo, já não acompanhamos quanto aos demais sujeitos referidos, sendo aqueles elementos suficientes por forma a permitir a sua identificação.

Todavia, a assistente praticamente limita-se a manifestar a sua discordância com a posição tomada pelo Ministério Público no despacho de encerramento do inquérito, alheando-se completamente do ónus que sobre si impendia de descrever os factos concretos subsumíveis, aos elementos objectivos e subjectivos dos crimes de dano e de introdução em lugar vedado ao público, pp., respectivamente, pelos arts.212º e 191º do C. Penal.

Na verdade, perscrutando esse requerimento, não se vislumbra a narração, ainda que sintética, de factos com aptidão para fundamentarem a aplicação de uma pena aos denunciados, que estão devidamente identificados, pelo cometimento desses crimes.

Ao contrário do que preconiza a recorrente, salvo o devido respeito, a densa e prolixa exposição que consta do requerimento de abertura da instrução, está longe de satisfazer a exigência decorrente na citada norma relativamente à narração sintética dos factos.

Num processo com estrutura acusatória, como é o nosso, a determinação do objecto do processo assume a maior relevância.

Neste caso o objecto do processo é fixado pelos os factos descritos no requerimento da abertura da instrução, que como já dissemos, deve constituir uma acusação alternativa.

São esses os factos a que alude a al. b) do nº3 do art.283º do CPP, que devem constar da acusação, sob pena desta ser nula e do requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente no caso do Mº Pº no final do inquérito ter determinado o arquivamento dos autos.

Todavia, a exigência ditada por este preceito não se contenta com qualquer descrição de factos, mas com a narração de factos objectivos, concretos e determinados que fundamentem a imputação de um crime certo e determinado a alguém devidamente individualizado.

Vejamos.

Preceitua o artigo 212.º do Código Penal, que comete o crime de dano “quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia”.

São, assim, elementos do tipo:

- a destruição, danificação, desfiguração ou inutilização;
- de coisa materialmente apreensível, corpórea e autónoma;
- e alheia - atingindo o domínio exclusivo do proprietário sobre a coisa.

O bem jurídico protegido com esta incriminação surge individualizado, quer como um direito à integridade da coisa na sua própria substância – a proibição de destruir, danificar ou desfigurar –, quer como um direito à utilização respectiva – proibição de tornar a coisa inutilizável. Consequentemente, o dano tipicamente relevante – ‘lato sensu’ – poderá referir-se, tanto à própria integridade da coisa, como à sua específica funcionalidade.

Para que determinada conduta possa ser subsumida à materialidade objectiva do tipo incriminador é necessário que, pelo agente, seja praticada determinada actividade, consistente na destruição, danificação, desfiguração ou inutilização de coisa alheia, sendo irrelevante o meio pelo qual o crime é cometido.

Lido e relido o requerimento de abertura da instrução, não se vislumbra a alegação de factos consubstanciadores de alguma dessas actividades.

Nos termos do art.191º do C. Penal comete o crime de introdução em lugar vedado ao público “Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, em barcos ou outros meios de transporte, em lugar vedado e destinado a serviço ou a empresa públicos, a serviço de transporte ou ao exercício de profissões ou actividades, ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias.”

Relativamente a este crime como é referido no despacho sob censura e como também reconhece a recorrente, no requerimento de abertura da instrução, dele não consta desde logo qualquer alusão à que se trate de propriedade vedada e ao modo de introdução na mesma – elemento objectivo do tipo.
Em ambos os casos trata-se de crimes de natureza dolosa.

No que concerne ao elemento subjectivo – dolo - importa salientar que se trata de crimes dolosos, uma vez que se exige que o agente tenha actuado com conhecimento dos elementos da factualidade típica e determinado pela vontade, directa, necessária ou eventual de realização do tipo legal de crime.

Também não descortinamos que no requerimento de abertura da instrução tivesse sido alegado este elemento subjectivo.

É inquestionável que do requerimento de abertura da instrução não consta a alegação deste elemento, sendo que a alegação do dolo não é uma simples fórmula jurídica sem conteúdo útil, mas matéria de facto e, como se referiu, elemento constitutivo daqueles crimes.

Enquanto elemento constitutivo daqueles crimes, o dolo não se presume, devendo, isso sim, de constar expressamente daquele requerimento.

Tão pouco, a circunstância do dolo, pela sua própria natureza subjectiva, ser um fenómeno da vida interior do indivíduo, e por isso insusceptível de demonstração directa, não dispensa a sua concreta alegação.

É que uma coisa é a prova do dolo, outra bem diferente é a sua alegação em concreto.

Aliás, nos termos do disposto na al. b), do nº3, do art. 283º, do CPP, não há lugar à existência de factos implícitos.

Assim, também não se pode ter como implícita ou subentendida no requerimento de abertura da instrução aquele elemento – dolo.

Na verdade, é hoje indefensável no direito penal a ideia de «dolus in re ipsa», que sempre resultaria da simples materialidade da infracção.

Como salienta o prof. Figueiredo Dias, in RLJ, 105, pag. 142, como a autoridade que lhe é sobejamente reconhecida, a moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo.

Estas patologias, em qualquer caso, sempre comprometeriam a pronúncia pela prática de tais crimes.

Como atrás dissemos, o requerimento de abertura da instrução porque definidor e limitador do próprio processo, deve utilizar a veste de uma verdadeira acusação, enformando-a, perfilando-se e apresentando-se substancialmente como uma acusação alternativa, natural e consequentemente descrevendo e exarando factos concretos e objectivos, que sustentam e justificam uma eventual aplicação das sanções prevenidas nas normas que se imputam como violadas.

Efectivamente, o requerimento que a assistente apresentou para abertura da instrução não contem todos os elementos essenciais à função processual que lhe é assinalada; não tem aptidão processual para tal finalidade, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado.

Na verdade, as deficiências intrínsecas apontada ao dito requerimento, dado que não respeita o disposto no art.287º nº2, com referência ao art.283º nº3 b), do CPP, não materializando todos os factos susceptíveis de integrarem os elementos objectivos e subjectivo dos mencionados crimes, sem dúvida alguma que tal requerimento não se projecta como uma acusação alternativa.

Assim, a exposição que consta do mencionado requerimento, pelos motivos já referidos, não contem essa descrição, equivalendo aquela à falta de narração, uma vez que não tem aptidão para definir nos moldes atrás mencionados o objecto do processo.

Efectivamente, o requerimento que a assistente apresentou para abertura da instrução não contém os elementos essenciais à função processual que lhe é assinalada; não tem aptidão processual para tal finalidade, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado.

Na verdade, no contexto formal e de termos concretos em que foi formulado, dado que não respeita o disposto no art.287º nº2, com referência ao art.283º nº3 b), do CPP, não se materializando objectiva e individualizadamente as condutas ilícitas que se imputam, indexando-as aos seus elementos objectivos e subjectivos, sem dúvida alguma que tal requerimento teria de ser rejeitado, pois não se projecta como uma acusação alternativa.

Em termos processuais tudo se passa como se não tivesse havido requerimento, o que determina a impossibilidade de abertura da fase de instrução.

Aliás, e quanto à estrutura e valência em si do requerimento para a abertura de instrução não são poucos os arestos que se lhe têm referido, citando-se, a título de exemplo, o Ac. da Rel. de Lisboa de 20.5.97 (C.J. XXII - Tomo 3 - pág. 143), onde se exara: "O requerimento do assistente para abertura da instrução, no caso de arquivamento do processo pelo MP, é que define e limita o respectivo objecto, de processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, e além do mais, deverá dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições penais incriminatórias". O que, convenhamos, de todo em todo não acontece no caso em apreço, pelo que, e realmente, e na linha de toda uma alargada corrente jurisprudencial, se pode falar em falta de objecto (vide Ac. Rel. Évora de 14.4.95 - C.J. XX, II, pág. 280; Ac. Rel. Lx. de 9.2.2000 - C.J. XXV, Tomo I, pág. 153; Ac. Rel. Porto de 5.5.93 - C.J. XVIII - Tomo III, pág. 243 e Ac. STJ de 27.2.02 - proc. 3153/01-3ª).

Relativamente à consequência processual derivada de um requerimento deficiente nos termos supra expostos, a jurisprudência encontrava-se dividida até há algum tempo atrás.

Assim, enquanto uma corrente jurisprudencial advogava que nessas circunstâncias o requerimento deveria ser liminarmente rejeitado, outra preconizava que previamente deveria o assistente ser convidado a suprir as deficiências e se não o fizesse é que poderia ser rejeitado.

É abundante a jurisprudência produzida num e noutro sentido, sendo por demais conhecidos os argumentos expendidos em defesa de uma e de outra das opiniões em confronto, que nos dispensamos de citar, por actualmente ser desnecessário, uma vez que o STJ, através do acórdão de 12/5/2005, proferido no proc.nº430/2004 – 3ª Secção, publicado no DR, Série I-A, nº212, de 4/11/2005, que merece a nossa adesão e que por isso secundamos, veio uniformizar a jurisprudência no sentido de que «não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.287º, nº2 do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Relativamente à força vinculativa desta espécie de acórdãos, dispõe o nº3 do art.445º do CPP que a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão, competindo ao Ministério Público recorrer, obrigatoriamente, de quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo STJ, sendo o recurso sempre admissível (art.446º nº1, do CPP).

A razão de ser desta disposição radica na conveniência de uniformização da jurisprudência, em nome da unidade do direito e da segurança jurídica, fazendo intervir o STJ sempre que as decisões dos tribunais inferiores não acatem a jurisprudência fixada por aquele tribunal (Cfr. Maia Gonçalves, in CPP Anotado e Comentado, 12ª Edição, pag.839).

Por isso, a discordância da decisão do pleno das secções do STJ impõe que – como escreve António Abrantes Geraldes, in Valor da Jurisprudência Cível, Col. Jur. Ac. STJ, Ano VII, tomo dois, pag.5 e ss – se abandone “uma postura de arrogância intelectual e que se fundamentem as divergências com argumentos porventura não utilizados ou rebatidos pelo STJ e que, por si só, tenham a virtualidade de motivar os tribunais superiores, em caso de recurso, a reponderar a doutrina assumida anteriormente”.

Aliás, nem sequer é de considerar fundamento novo para afastar a normal autoridade e força persuasiva da jurisprudência fixada para uniformização, o entendimento do juiz que divergindo da doutrina fixada, se apoia exclusivamente nos argumentos das decisões que motivaram o acórdão uniformizador e na declaração de voto de vencido (cfr. Ac.RP, de 10/10/2001, proc.739/93, acessível em www.dgsi.pt).

Ora, salvo devido respeito, no caso em apreciação, a recorrente não invoca um único argumento susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução preconizada pelo mencionado acórdão do STJ.

Por outro lado, à semelhança de situações passadas idênticas à que aqui nos ocupa, continuamos a seguir a referida jurisprudência uniformizadora fixada no mencionado acórdão do STJ, não vislumbrando qualquer motivo para não continuarmos a seguir essa orientação.

Por todo o exposto, e sem mais desenvolvidas considerações que se justifiquem, o recurso tem inevitavelmente de improceder, mantendo-se o despacho impugnado.

DECISÃO.

Nestes termos e com tais fundamentos, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido.

Pagará a assistente/recorrente 4 UC’s de taxa de justiça (arts.515 nº1 al. b) do CPP).

Évora, 7 de Dezembro de 2012.

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Gilberto Cunha

João Martinho de Sousa Cardoso