Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ MARTINS SIMÃO | ||
Descritores: | CORRUPÇÃO PASSIVA | ||
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Data do Acordão: | 02/16/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário: | I - Os actos dos funcionários, para serem relevantes para o preenchimento dos tipos de corrupção, hão-de caber dentro das suas específicas competências legais ou dos poderes de facto decorrentes do cargo que desempenham II – O fim visado com a vantagem indevida tem de estar ligado com o âmbito das funções do funcionário ou pelo menos diretamente relacionado com tais funções. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – Relatório O arguido A., id. a fls. 1209 foi acusado pela prática de quatro crimes de corrupção passiva, p. e p. no art. 373º, nº 1 do C.Penal, por referência ao art. 386º, nº 1 al. c) do C.Penal. Por decisão da Mma Juiz de Instrução da 1ª Secção de Instrução Criminal de Faro, foi proferida decisão de não pronúncia do arguido em relação a três dos crimes de corrupção e pronunciado em relação a um dos crimes. Inconformado o Ministério Público recorreu, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões: “1.O arguido A. é militar da Guarda Nacional Republicana (GNR), tendo o posto de Cabo, com o nº ---, exercendo as funções de operador de transmissões em ---, até ao dia de Junho de 13.06.2011; 2.concorreu ao 34º Curso de Formação de Sargentos (CFS) da Guarda nacional Republicana – 2011-2013 – que é composto por provas escritas, provas físicas e provas médicas; 3. em data não inteiramente determinada, no período compreendido entre os dias 29 de Abril e 17 de Maio de 2011, o arguido recebeu no seu e-mail xxxx@gmail.com – um lote de 20 perguntas que faziam parte da prova específica da área de exploração de transmissões; 4. tais questões foram-lhe remetidas pelo 1º sargento C, formador e responsável pela elaboração das perguntas de exploração das transmissões na Direcção de Instrução da Escola da Guarda Nacional Republicana, cometendo este o crime de violação de segredo por funcionário; 5. O arguido, A., em função da qualidade que detinha e do cargo que exercia, teve acesso à lista das outras pessoas que tinham concorrido ao referido Curso de Formação de Sargentos e aos respectivos endereços electrónicos; 6. mediante correio electrónico, decidiu contactar os endereços institucionais dos concorrentes ao referido curso, propondo a venda a esse militares das perguntas/respostas que constavam no teste de acesso ao curso e que tinha na sua posse, solicitando em contrapartida o pagamento do valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros). 7.nesse sentido, nos dias 17, 19 e 20 de Maio de 2011, o arguido contactou os militares da GNR, FR, JB e CA, fazendo-lhes a aludida proposta, a qual chegou ao conhecimento dos destinatários; 8. Os militares JB e CA acederam na proposta do arguido A., pagando-lhe o valor de € 250,00 cada um por intermédio de transferência bancária. 9. face á factualidade descrita, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de três crimes de corrupção passiva p.p. pelo art. 373º, nº 1, por referência ao disposto no art. 386º, nº 1, al. c) do C.Penal; 10. por sua vez, foi determinada a suspensão provisória do inquérito contra o primeiro Sargento, C, por se indiciar a prática pelo mesmo do crime de violação de segredo por funcionário p.p. pelo art. 383º, nº 1 do C.Penal; 11. foi também determinada a suspensão provisória do inquérito quanto aos arguidos JB e CA, pela prática de um crime de recebimento indevido de vantagem, p.p. pelo art. 372º, nº 1 do C.Penal; 12. o arguido não se conformou com a acusação contra ele deduzida requerendo a abertura de instrução; 13. muito embora, em sede de instrução, a Mma JIC tenha dado como indiciados os factos constantes da acusação, bem como o preenchimento parcial dos elementos objectivos do tipo, decidiu não pronunciar o arguido pela prática dos crimes que lhe eram imputados, por entender que o acto praticado pelo arguido não era contrário aos deveres do cargo, ou seja, por o acto não se situar dentro da esfera dos poderes do cargo que ele ocupava. 14. Preceitua o art. 373º que:« O funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial, ou a sua promessa, para a prática de um qualquer acto ou omissão. Contrário aos deveres do cargo…»; 15. no caso, a Mma JIC, entendeu – assim o entendendo também o Ministério Público – que o arguido tinha a qualidade de funcionário, não se também suscitando dúvidas que solicitou vantagem patrimonial que não lhe era devida, para a prática do acto (entrega das questões da prova de acesso ao 34º curso de sargentos), coexistindo, assim, tais elementos objectivos constitutivos da infracção em referência; 16.a razão de divergência do MP com a decisão proferida pela Mma JIC prende-se com o facto da mesma entender que o acto prometido/realizado pelo arguido em troca da vantagem não ser contrário aos deveres do respectivo cargo, ou seja, por não corresponder às específicas competências ou atribuições legais, nem decorrer da posição funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo de operador de transmissões, ou seja, das possibilidades fácticas que apesar de exorbitarem o seu cargo, são propiciadas pelo cumprimento normal das suas atribuições, sendo este o fundamento para a não pronúncia do arguido; 17.Também, o MP, a par da Mma JIC, entende que o acto praticado pelo arguido não está directamente compreendido na esfera de acção das suas funções; 18.porém, entende-se que a referida interpretação de tal elemento do tipo legal de crime de corrupção é redutora e restritiva, não sendo a acolhida pelos arts. 372º e seguintes do CP, já que o legislador o que pretendeu foi assegurar primordialmente foi a legalidade da actuação dos funcionários públicos, a proibição de mercadejar com o cargo, a legalidade, objectividade, independência e transparência da função pública, de molde a que os agentes não transaccionem o seu cargo, ainda que apenas haja uma relação fáctica entre as funções do agente e o ato/omissão a praticar/praticado; 19.tal foi o que ocorreu no ato. Na verdade, foi a qualidade de funcionário do arguido e só ela que permitiu ao arguido, por um lado, ter acesso às questões que fariam parte do 34º CFS – dado que lhe foram transmitidas pelo facto de ser funcionário – e pelo funcionário que estava investido do poder de as elaborar e que lhe deu conhecimento das mesmas, para que com elas beneficiasse e que, por isso, praticou o crime de violação de segredo por funcionário, p.p. pelo art. 383º do CP; 20.ao ser-lhe ilicitamente dado conhecimento das questões, o arguido A. acedeu às mesmas e ficou facticamente com o poder de as transaccionar com terceiros, que foi o que veio a fazer; 21.Por outro lado, também foi só devido ao cargo de funcionário público que tinha que o arguido teve conhecimento dos restantes militares que concorreram a tal curso e dos respectivos endereços electrónicos, o que lhe permitiu oferecer-lhes para venda as questões que sairiam no teste; 22.assim, foi só pelo e por causa das sua funções de funcionário que o arguido recebeu ilicitamente de terceiro, também funcionário, as aludidas questões, dispondo a partir daí de um poder de facto que lhe permitiu praticar o acto de venda e transacção das mesmas, pelo que pode concluir-se que a gratificação pedida/recebida representa um ato realizado no âmbito do exercício do cargo, ou seja, não é da esfera privada da vida do arguido; 23.È certo que tal acto não estava abrangido nas específicas competências legais das funções do arguido. Não obstante, ainda assim, decorreram da actuação de poderes de facto relacionados com a sua posição funcional; 24. Nestes termos e considerando o espírito que norteou o legislador ao punir os comportamentos previstos no art. 372º e seguintes do CPP, ou seja, a necessidade de provocar uma nova acção social, baseada nos valores da transparência, não pode deixar de concluir-se que os factos indiciados integram a prática pelo arguido dos crimes de corrupção p.p. pelo art. 373º, que lhe são imputados na acusação, já que o mesmo apesar de não estar investido na qualidade de fazedor/guardador das questões não o impediu de lhe ter acesso, em função do cargo que exercia, verificando-se um efectivo poder fáctico de as utilizar e vender como ocorreu; 25.Pelo que se entende que o ato praticado pelo arguido muito embora não directamente conectado com o seu cargo, decorreu da sua qualidade de funcionário, pelo que o elemento em causa se verifica e o arguido incorreu na prática do crime, p.p. pelo art. 373º do CP; 26.Porém, ainda que assim não se entendesse, sempre a conduta do arguido seria pelo menos subsumível ao crime de recebimento indevido de vantagem, p.p. art. 372º, nº 1 do C.Penal. 27. com efeito, este preceito legal prevê e pune a «corrupção em razão das funções». Trata-se da punição de situações em que não se mostra necessária a prática de um qualquer acto/omissão, bastando que o agente solicite/aceite vantagem indevida, no exercício das suas funções, ou por causa delas; 28.O preenchimento deste ilícito não depende da conexão entre um qualquer acto ou omissão/vantagem. Necessário é apenas que a razão da transacção seja o cargo de funcionário. 29. Assim, caso se entenda como a Mma JIC que não se verifica o crime de corrupção, por o acto praticado pelo arguido em troca de vantagem indevida, não ter sido exercido no âmbito das suas funções, sempre a conduta do mesmo seria subsumível no art. 372º, nº 1 do C.Penal, uma vez que o arguido no exercício das suas funções, solicitou/aceitou vantagem patrimonial ilícita; 30. Pelo exposto, deverá ser revogado o despacho proferido pela Mma JIC, na parte em que não pronunciou o arguido A. pela prática de três crimes de corrupção, por violar o disposto no art. 373º, nº 1, do CP e ser substituído por outro de conteúdo oposto (ou, pelo menos, que o pronuncie pelo art. 372º, nº 1 do CP (vantagem indevida)”. O arguido não respondeu ao recurso. Nesta Relação, o Exmo. Procurador – Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido do recurso merecer provimento. Observou-se o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, o arguido não respondeu. Procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II- Fundamentação O teor da decisão é o seguinte: Em sede de instrução foram juntos aos autos documentos e procedeu-se à inquirição de uma testemunha pelo arguido. *** Realizou-se, de acordo com as formalidades legais, o debate instrutório. *** O tribunal é competente. A instância mantém-se válida, inexistindo exceções, nulidades ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer. *** Cumpre apreciar e decidir. De acordo com o disposto no art. 286º/l, do Cód. Proc. Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão final proferida em sede de inquérito (acusação ou arquivamento do inquérito), em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Tem-se em vista, nesta fase processual, a formulação de um juízo seguro sobre a suficiência dos indícios recolhidos relativos à verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 308º/1 do Cód. de Proc. Penal). Concluindo-se pela suficiência dos indícios recolhidos haverá que proferir despacho de pronúncia, caso contrário, o despacho será de não pronúncia. Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de ato processual. Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como vimos, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação. Não se pretende alcançar a demonstração da realidade dos factos mas apenas uma razoável probabilidade da existência de um crime praticado por determinado arguido. Mas, porque a decisão de submeter determinado arguido a julgamento se reveste de alguma gravidade para este, a nossa doutrina bem como os nossos mais altos Tribunais têm entendido que a possibilidade razoável de condenação, em sede de julgamento, deverá ser mais positiva que negativa, querendo isto significar que o arguido deverá apenas ser pronunciado quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos se forme a convicção de que é mais provável que tenha cometido o crime do que o inverso. Esta forte probabilidade de responsabilização do arguido pelos factos que lhe são imputados na acusação, deverá, ainda, brotar da matéria fáctica recolhida durante a investigação e não de meros considerandos de direito. Fixadas as diretrizes, que de acordo com a lei, nos devem orientar na prolação da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, interessa agora, apurar, por um lado, se em face da prova recolhida até ao momento se indicia suficientemente a prática pelo arguido dos factos que lhe são imputados na acusação e, por outro lado, concluindo-se afirmativamente, se tais factos sustentam a imputação jurídico-criminal efetuada no mesmo douto despacho ou antes a indicada pelo arguido no requerimento para abertura de instrução. Da análise do enquadramento jurídico e da prova recolhida no âmbito do inquérito e da instrução: Comecemos então por verificar se a acusação contém as imprecisões factuais indicadas pelo arguido e, após, se os factos praticados pelo arguido merecem o enquadramento jurídico efetuado pelo Mº Pº na acusação ou antes o efetuado pelo arguido no seu requerimento para abertura de instrução. * Quanto às referidas imprecisões, resulta de fls. 291 que efetivamente em Maio de 2011, o mesmo desempenhava funções no Destacamento de Ação Fiscal de Évora e não em Faro, onde passou a desempenhá-las como operador de transmissões tão só a partir de 14/06/2011, assistindo, assim, e nesse ponto factual razão ao arguido. Já no que concerne aos demais factos postos em causa pelo arguido não lhe assiste razão. Com efeito, a fls. 1048 a 1052 constam as vinte perguntas da área de Exploração de Transmissões, que foram elaboradas por C e que foram posteriormente entregues ao Major B, das quais este escolheu as dez que integrariam o teste (cfr. auto de inquirição desde último, a fls. 88 a 91, cópia das provas de admissão contendo as referidas 10 perguntas, a fls. 130 a 137, cópia das 10 perguntas a fls. 1035 a 1037). Por seu lado, da conjugação de fls. 415, 456, 804, 823 a 825 e 952 a 957 (exame direto ao disco rígido de computador do arguido), resulta que o arguido teve acesso às 20 perguntas (as mesmas encontravam-se no disco rígido do seu computador), sendo que algumas dessas perguntas foram efetivamente transmitidas a militares da GNR (cfr. mails de fls. 23 a 27 e auto de inquirição de fls. 497 a 498 e auto de inquirição de fls. 489 a 490). Os autos indiciam, assim, claramente, que o arguido recebeu o lote das 20 perguntas elaboradas por C. e que haviam de integrar o teste do 34º curso. Por seu lado, resulta da conjugação de fls. 149 a 153, 254 a 256 e 259, 329, 358, 365, 403 e 628 a 629, 633 a 634, 635 a 638 que não assiste razão ao arguido quando refere que não conhecia a HI e que a entidade 10241 era um mero site de apostas, em que o mesmo efetuava por vezes apostas desportivas. Com efeito, das informações que constam das fls. supra, resulta que através dessa empresa (HI) foi criada, na titularidade do arguido, a entidade (10241) que o arguido indicava nos mails enviados aos candidatos à prova para que, através da mesma, fosse efetuado o pagamento da quantia monetária que o mesmo solicitava em troca do fornecimento de informação sobre as perguntas que sairiam no teste, tendo efetivamente através dessa entidade sido efetuados ao arguido dois pagamentos no montante de € 250 cada pelos militares da GNR indicados na acusação. Assim sendo, também nesta parte não assiste razão ao arguido. * Vejamos agora se assiste razão ao arguido no que concerne à qualificação jurídica dos factos. Já vimos que o arguido se encontra acusado da prática de 4 crimes de corrupção passiva, cada um p. e p. pelo art. 373º, nº 1, por referência ao art. 386º, nº 1, al. c) do Código Penal. Dispõe o art. 373º, nº 1 do Código Penal: “1- O funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para a prática de um qualquer acto ou omissão, contrários aos deveres do cargo, ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação, é punido com pena de prisão de um a oito anos”. O bem jurídico protegido no crime de corrupção é a legalidade da actuação dos agentes públicos, a quem está interdito mercadejar com o cargo - Cláudia Cruz Santos, A Corrupção de Agentes Públicos em Portugal: Reflexões a Partir da Lei, da Doutrina e da Jurisprudência, in A Corrupção, Coimbra Editora, 2009, pag.124 - ou, conforme o entendimento de Almeida Costa - Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 661 - a autonomia intencional do Estado, sendo que num Estado de Direito o desempenho de funções públicas tem de se pautar por exigências de legalidade, objectividade e independência, que o funcionário infringe ao colocar os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados quando transaccionar com o cargo. É inegável (…) a muito específica danosidade social da corrupção”, a qual “fragiliza sobremaneira a própria autoridade estadual, põe em causa a administração da justiça porque questiona o seu exercício relativamente àqueles cujo comportamento deveria ser o mais impoluto, mina as estruturas das instituições e das democracias” (Cláudia Santos, Liber Discipulorum, Coimbra Editora, p. p. 964). “Pode reconduzir-se o fenómeno da corrupção às actuações em que um funcionário (na acepção do art. 386º) solicita ou aceita uma vantagem patrimonial ou não patrimonial (ou a sua promessa) como contrapartida de um acto (lícito ou ilícito, passado ou futuro) que traduz o exercício efectivo do cargo em que se encontra investido” (Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, 2001, p. 655). “Ao transacionar com o cargo, o empregado público corrupto coloca os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados, o que equivale a dizer que, abusando da posição que ocupa, se “sub-roga” ou “substitui” ao Estado, invadindo a respectiva esfera de actividade. A corrupção (própria ou imprópria) traduz-se, por isso, numa manipulação do aparelho de Estado pelo funcionário que, assim, viola a autonomia intencional do último, ou seja, em sentido material, infringe as exigências de legalidade, objectividade e independência que, num Estado de direito, sempre têm de presidir ao desempenho de funções públicas”. Daí que a corrupção se reconduza a um crime de dano, já que “importa uma efectiva violação da esfera de actividade do “Estado”, traduzida numa ofensa à sua “autonomia intencional” (Almeida Costa, ob cit. pág. 661). Postas estas considerações iniciais sobre a incriminação, vejamos quais e se se mostram preenchidos todos os elementos do tipo do crime de corrupção passiva, começando pela análise dos três crimes de corrupção imputados ao arguido relativamente à solicitação de quantia monetária como contrapartida pelo fornecimento de perguntas do 34º curso de formação de sargentos da guarda nacional republicana. Antes de mais, impõe-se que o agente do crime tenha a qualidade de funcionário, nos termos do art. 386º do Código Penal. Pese embora na acusação se indique a al. c) do nº 1, por certo a mesma se deve a lapso, uma vez que tal alínea se refere a árbitros, jurados e peritos, querendo, provavelmente, a Digna Magistrada do Mº Pº querer referir-se à al. d), a qual correspondia à anterior al. c) do nº 1. No que respeita à inclusão dos elementos da GNR no art. 386º do Código Penal, cumpre referir que, não obstante se trate de uma força de segurança de natureza militar (cfr. art. 1º da Lei Orgânica da GNR), as suas atribuições são maioritariamente de cariz civil (art. 3º da referida lei orgânica), pelo que muitos têm sido os arestos que vão no sentido de tal inclusão, com o que se concorda. Como se refere no Acórdão do TRE, de 01/07/2003, publicado no site de jurisprudência daquele Tribunal, versando sobre a conduta de militar da GNR condenado pela prática de um crime de corrupção passiva, “não se vislumbra qualquer relevante conexão da descrita conduta do arguido com os específicos interesses tutelados pelo CJM, sendo idêntico ao de qualquer funcionário o regime a que o Arguido, pese embora a sua qualidade de militar, se encontra sujeito. Aliás, como se decidiu no Ac. do STJ, de 18ABR91, “o conceito de funcionário público, para efeitos penais, previsto no artº 437º do CP de 1982 [correspondente ao artº 386º, após a revisão operada pelo DL n.º 48/95, de 15MAR], abrange o funcionário militar, ponto de vista que resulta até reforçado do conteúdo do n.º 2 daquele artº”. Igualmente pronunciando-se de forma expressa quanto a tal ou pressupondo tal inclusão, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 06-05-98, de 30/03/2006 (versando sobre o conhecido processo da Brigada de Trânsito de Albufeira), o Acórdão do TRL, de 30/01/2001, os Acórdãos do TRG, de 15/12/2009 e de 14/04/2008, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23/05/2012, o Acórdão do TRL, de 22/05/2012 (embora estes quatro últimos reportando-se a crimes de corrupção activa sobre militares da GNR, mas para cuja prática igualmente se exige a atuação sobre um funcionário), o Acórdão do TRP, de 03/12/2012, Acórdão do Tribunal de Círculo de Aveiro, de 05/09/2014, proferido no processo denominado “Face Oculta”, com a condenação de um militar da GNR pela prática de um crime de corrupção passiva. Assim sendo, o arguido possui, pois a qualidade de funcionário. Igualmente não restam dúvidas de que o arguido solicitou para si vantagem patrimonial. Com efeito, o arguido, através de e-mails enviados para endereço eletrónico de outros militares da GNR, também candidatos ao 34º curso de sargentos, solicitou aos mesmos o pagamento de € 250 em troca do fornecimento das perguntas que sairiam no teste. É certo que o arguido não tinha em seu poder todas as perguntas que sairiam no teste, mas apenas as vinte que foram formuladas para a área de transmissões, sendo que dessas vinte, dez integraram o teste. É, obviamente, quanto basta para que se mostre preenchido tal elemento do tipo, sendo irrelevante que após o teste tenha vindo a ser trocado por outro que não continham as perguntas em causa. É também irrelevante saber, para efeitos de preenchimento do tipo, se as perguntas chegaram ou não a ser fornecidas ou se o funcionário chegou ou não a receber a vantagem solicitada (sendo certo que in casu recebeu de dois militares), uma vez que para preenchimento do tipo basta que a solicitação do funcionário chegue ao conhecimento do visado/aliciado, o que sucedeu in casu, relativamente aos três crimes de corrupção imputados ao arguido. Como refere Cláudia Antunes, “Liber Discipulorium”, p. 980, a corrupção “consuma-se com a adopção de uma conduta (a solicitação/aceitação da vantagem ou a promessa/oferta da mesma) a que acresce a produção de evento (a chegada ao destinatário da manifestação de vantagem) que importa um dano para a autonomia intencional do Estado”. Também não há quaisquer dúvidas que a vantagem patrimonial que o arguido visou obter com a sua conduta não lhe era devida. Igualmente não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento do elemento do tipo consistente em a vantagem ser destinada à prática pelo agente de um qualquer acto, uma vez que o arguido se propôs fornecer perguntas que integravam a prova de acesso ao 34º curso de sargentos, estando, assim, portanto, em causa a prática de um acto concreto. Resta, por fim, apurar se se mostra preenchido o elemento do tipo consistente em o acto (ou omissão) ser contrário aos deveres do cargo. Como refere Almeida Costa, (ob cit., p. 663) “a corrupção passiva, ao revestir a natureza de delito específico, apenas incide sobre “funcionários”. Porém, “nem todos os actos praticados pelos últimos se mostram, contudo, susceptíveis de preencher o correspondente ilícito”. Com efeito, “nem todos os actos praticados pelos funcionários se mostram, susceptíveis de preencher os requisitos da corrupção passiva. Para que tal aconteça, é necessário que os actos a praticar, ou que se pretende sejam praticados, pelo funcionário estejam dentro da esfera dos poderes do cargo que ocupa” (Acórdão da Relação de Lisboa, de 22/04/2010, proferido no processo nº 263/06.8JFLSB.L1-9). Neste sentido também o Ac. do STJ, de 19/09/1990, citado por Maia Gonçalves, Código Penal Português, 14ª ed., em anotação ao art. 372º, segundo o qual, “no actual Código Penal basta que o acto praticado pelo funcionário implique violação dos deveres do seu cargo, bastando que se trate de acto relacionado com o cargo exercido, apenas se afastando aqueles a que o serviço do funcionário, em relação ao acto concreto praticado, é completamente alheio”. Também o Conselheiro Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, advogado, in Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, pág. 909, escrevem “Será correcto afirmar-se que a corrupção passiva abrange, para além de certa actuação da competência do agente, os próprios poderes de facto que dela decorrem? As opiniões dividem-se, a propósito, e não falta quem exclua tais poderes do âmbito em causa. Parece, contido, não exigir a lei uma pertinência exclusiva da conduta do corrupto “à esfera das suas específicas atribuições ou competências”, bastando “a simples circunstância de a actividade em causa se encontrar numa relação funcional imediata com o desempenho do respetivo cargo. Assim acontecerá sempre que a realização do acto subornado caiba no âmbito “fáctico” das suas possibilidades de intervenção, i. é., dos “poderes de facto” inerentes ao exercício das correspondentes funções (…). Para além do qual ou fora do qual, tratando-se de simples possibilidade fáctica ao alcance do agente, se estará fora do “propiciado pelo cumprimento “normal” das suas atribuições legais”, em plano distinto do da tipicidade de que aqui e agora se trata”. Pode igualmente ler-se no Acórdão do STJ, de 18/04/2013, proferido no processo 180/05.9 JACBR.C1.S1, “no que toca ao âmbito das funções do agente as condutas subsumíveis ao ilícito não são apenas aquelas que correspondem às específicas competências ou atribuições legais do funcionário, mas sim todas aquelas que decorrem da posição “funcional do agente”, ainda que com meros poderes de facto; sendo assim suficiente para preencher a tipicidade do crime a simples circunstância de a actividade em causa se encontrar numa relação funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo”. Assim acontecerá sempre que a realização do acto subornado caiba no âmbito “fáctico” das suas possibilidades de intervenção, i. e., dos “poderes de facto” inerentes ao exercício das correspondentes funções, ou seja das possibilidades fácticas que apesar de o exorbitarem, são propiciadas pelo cumprimento normal das suas atribuições legais”. Daí que, refere Almeida Costa, ob cit., p. 665, se excluam “da corrupção passiva as hipóteses em que o agente, não obstante revista a qualidade de funcionário e, em virtude dela, goze da capacidade fáctica para efetuar a conduta a que se destina a peita, não pertença ao serviço ou departamento a que está adstrito aquele sector de actividade social, nem com ele mantenha conexões institucionais directas. Na medida em que não participa da aludida “relação funcional imediata”, aquele empregado público apresenta-se como “estranho ao serviço e, portanto, numa posição equiparável à de um particular, não se enquadrando na óptica do ilícito acima referenciado. Ao invés, integra uma situação de corrupção passiva, por exemplo, o pagamento de um suborno ao contínuo de certo departamento administrativo, como contrapartida de ele haver subtraído determinado processo que estava para ser decidido pelo seu director. A circunstância de a análise ou a custódia daquele processo não estarem abrangidas nas suas atribuições, não afecta a “relação funcional imediata” do agente com o acto, circunstância que o coloca na órbita do tipo legal de corrupção passiva. (…) Na verdade, a “autonomia intencional do Estado” resulta ofendida com igual intensidade, quer o acto subornado tenha sido realizado pelo próprio funcionário “competente”, quer provenha de outro que, possuindo uma relação funcional directa com o serviço, apenas o levou a cabo na actuação de meros “poderes de facto”. Na medida em que estes decorrem de uma relação funcional do agente, i.e., do posto que ocupa, o recebimento da “peita” pelo (ou para o) seu exercício constitui, ainda, uma transacção com o seu cargo e, por isso, uma situação de corrupção passiva”. Postas estas considerações acerca do que deve entender-se por “acto contrário aos deveres do cargo”, não pode deixar de se concluir que não se verifica in casu este elemento objetivo do tipo. Com efeito, o acto que o arguido se propôs praticar (fornecer a candidatos ao 34º curso de formação de sargentos da GNR perguntas que integrariam o teste de admissão a esse curso) não é um acto correspondente às específicas competências ou atribuições legais do mesmo enquanto operador de transmissões da GNR e também ele candidato ao referido 34º curso, mas nem sequer decorre da posição funcional do mesmo, isto é, não se encontra numa relação funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo de operador de transmissões, ou seja, das possibilidades fácticas que apesar de exorbitarem o seu cargo, são propiciadas pelo cumprimento normal das suas atribuições legais. Na verdade, a informação a que o mesmo acedeu (as 2º perguntas elaboradas para a área de transmissões, das quais dez integraram o teste), nem estava dentro das suas atribuições nem tão pouco poderia aceder a ela no cumprimento normal das suas atribuições legais, não estando, assim, dentro dos poderes de facto inerentes ao cargo que desempenha. Assim sendo, terá que se concluir pelo não preenchimento deste elemento objetivo do tipo de crime de corrupção (acto contrário aos deveres do cargo), pelo que terá o arguido que ser não pronunciado pela prática dos três crimes de corrupção passiva, p. e p. pelo art. 373º, nº 1 do Código Penal, referentes ao envio de mails solicitando uma quantia monetária em troca de informação sobre perguntas que integrariam o 34º curso de formação de sargentos da GNR. Sempre se diga que igualmente não integra a conduta do arguido a prática do crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382º do Código Penal. Dispõe o art. 382º do Código Penal: “O funcionário que, fora dos casos previstos nos arts. anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Segundo Paula Ribeiro Faria, Comentário Conimbricense, III, 174, o bem jurídico tutelado neste tipo de crime é a “autoridade e credibilidade da administração do Estado, na medida em que o abuso de poder afecta a imparcialidade e eficácia dos seus serviços”. Também no que respeita ao que deva entender-se por poderes ou deveres inerentes às funções, defende esta autora que devem ter-se por excluídas as situações em que estejamos perante uma incompetência absoluta por parte do funcionário relativamente aos poderes. A este respeito, referem o Conselheiro Victor de Sá Pereira e o Advogado Alexandre Lafayette, in Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, pág. 931, “o funcionário, efectivamente abusa dos poderes que o seu estatuto lhe confere ou viola deveres pelo mesmo impostos, enquanto uns e outros são “inerentes às suas funções”. E, continuam, citando agora Paula Ribeiro de Faria, ob cit., p. 174, “desde logo abusa quando “excede os limites da sua competência, quanto à natureza dos assuntos que lhe são confiados, em razão do grau hierárquico, em razão do lugar e em razão do tempo (incompetência relativa) ”. Como abusa ainda ao produzir violação de lei ou desvio dos fins próprios do exercício atinente, pela sobreposição de intuitos egoístas e perversos que contradizem a essência mesma daqueles”. Daí que no entender dos mesmos autores, a incompetência absoluta e a usurpação de poderes sejam incompatíveis com o tipo de que aqui se trata. Elas, de todo o ponto, constituem expressão acabada de ausência de poderes (em sentido oposto, defendendo a verificação de abuso de poder mesmo no caso de incompetência absoluta, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 905). Seguindo de perto aquelas posições, terá de se concluir igualmente que a conduta do arguido não integra o tipo de crime de abuso de poder, desde logo porque o mesmo não tinha qualquer competência para a prática do acto em causa, nem o mesmo tinha qualquer conexão com os deveres que estava incumbido cumprir como operador de transmissões. Quanto aos crimes de burla e burla informática referidos pelo arguido no seu requerimento para abertura de instrução, desde logo não tendo sido apresentada qualquer queixa e revestindo tais crimes natureza semi-pública (arts. 217º, nº 3 e 221º, nº 4, ambos do C. P. P.), não há que apreciar se se verificariam os seus requisitos. Impõe-se, pois, a não pronúncia do arguido pela prática dos três crime de corrupção ou qualquer outro. * Vejamos agora quanto ao crime de corrupção de que o arguido se encontra acusado, tendo por objeto a solicitação de quantia monetária em troca de informação sobre a realização de ação de fiscalização por parte da Asae (NUIPC 5469/12.8TDLSB). Já vimos supra que o arguido possui a qualidade de funcionário. Igualmente não há dúvidas de que o mesmo solicitou pessoalmente, através do envio de um e-mail, uma vantagem patrimonial (€ 250) a um terceiro (estabelecimento comercial ---Gourmet) e que esta não lhe era devida (tal mostra-se reconhecido pelo arguido – cfr. fls. 4 do NUIPC 5496/12.8TDLSB). Por outro lado, a vantagem patrimonial consistia a contrapartida da prática de um ato ou vários atos, consistentes na informação sobre dias de fiscalização do estabelecimento pela Asae. E também é manifesto que a vantagem patrimonial não era devida ao arguido, já que “a vantagem é indevida quando não corresponda a uma prestação devida ao funcionário, nos termos da lei” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código penal, p. 881), o que é claramente o caso. Vejamos agora se o ato a praticar seria contrário aos deveres do cargo. Sobre o que deva entender-se acto contrário aos deveres do cargo, remete-se para o que explanado supra. Pese embora à partida possa pensar-se que não sendo o arguido funcionário da Asae, não poderia estar em causa a prática de ato atinente ao exercício das suas funções nem dentro dos poderes de facto inerentes às mesmas, a verdade é que, tal como é do conhecimento geral e de resto resultou do depoimento da testemunha JM, sargente ajudante da GNR, superior hierárquico do arguido, inquirido em sede de instrução, a GNR desenvolve por vezes ações conjuntas com a Asae (de resto ao abrigo do art. 6º da Lei Orgânica da GNR). Mais esclareceu a testemunha que a comunicação dessas ações, quando são da iniciativa da Asae, poderá ser efetuada através de fax, sendo que neste caso o mesmo passaria pelas mãos do arguido, encarregue de receber, dar entrada e encaminhar o fax para a secção de operações. Igualmente poderia a informação ser remetida para esta diretamente através de-mail, sendo que o arguido tinha acesso, no cumprimento das suas funções, às instalações da secção de operações (nomeadamente para aí encaminhar correspondência), podendo aí ter contacto com comunicações da Asae que tivessem sido remetidas por e-mail. No que concerne à realização de ações conjuntas com a Asae a nível nacional, ou seja, ações abrangendo área geográfica correspondente a zonas sitas em todo o território nacional, referindo a testemunha a raridade de ocorrência das mesmas, não deixou de notar a possibilidade de a mesma se verificar. Ou seja, não sendo habitual e sendo até de rara verificação, pode ocorrer, sendo que nesse caso o arguido poderia ter conhecimento, no âmbito das suas funções, da realização de ações que ocorressem em Lisboa (já não se a ação de fiscalização da Asae decorresse tão só em Lisboa). Isto mesmo resultou também do depoimento da testemunha FR, funcionário da Asae, identificado a fls. 44 do NUIPC 5469/12.8 TDLSB, que relatou como se processa a colaboração da Asae com os OPC’s, mormente a GNR, referindo igualmente a realização de ações conjuntas de âmbito nacional. Daqui resulta que, pelo exercício das suas funções de operador de transmissões de militar da GNR, o arguido poderia vir a ter acesso a alguma informação que tivesse por objeto a realização de ações de fiscalização a estabelecimentos de restauração, incluindo sitos em Lisboa (desde que se tratasse de uma ação com cobertura a nível nacional). A circunstância de não se saber quando e até se a ação de fiscalização viria a ocorrer, podendo nunca vir a ocorrer, não é obstáculo ao preenchimento do tipo, uma vez que, como supra referido, para preenchimento do tipo basta que a solicitação do funcionário com a proposta como contrapartida para a prática do ato chegue ao conhecimento do visado/aliciado, o que sucedeu in casu. Como refere Cláudia Antunes, ob cit., pág. 968, “o que se pretende evitar é o mercadejar com o cargo e a negociação de um acto praticado ou a praticar, ainda que hipotético”. Daí que afirme, ob cit. p. 971, “pode haver crime de corrupção passivo sem que o acto acordado ou almejado venha a ter lugar e sem que fique demonstrado que a solicitação, aceitação ou oferta da peita têm por objectivo a prática de um acto concreto e determinado” (embora neste último caso estejam em causa as condutas do nº 2 do art. 373º) “e mesmo que o agente público não chegue efectivamente a receber a vantagem prometida ou solicitada”. (…). Quando solicita ou aceita o recebimento de um suborno, o funcionário ou titular do cargo político fica de imediato com a sua imparcialidade prejudicada. Independentemente da prática de qualquer acto, a sua autonomia funcional está já condicionada. O resultado desvalioso para o bem jurídico ocorreu já, quer o acto que se pretendia praticar não venha a ocorrer por uma qualquer razão, quer não se consiga sequer demonstrar a intenção de praticar um acto concreto e determinado” (pág. 970). Terá, assim, que se concluir que se verifica igualmente este elemento objetivo do tipo (ato contrário aos deveres do cargo). Quanto aos elementos subjetivos do tipo, refira-se que para verificação dos elementos do tipo subjectivo, há que ter em consideração que o dolo se desdobra nos chamados elementos intelectual (representação, previsão ou consciência dos elementos do tipo de crime) e volitivo (vontade dirigida à realização daqueles elementos do tipo - intenção de realizar o facto típico, aceitação como consequência necessária da conduta, conformação ou indiferença pela realização do resultado previsto como possível, nas 3 modalidades previstas no art. 14º do C. Penal - directo, necessário e eventual). A que acresce um elemento emocional que é dado, em princípio, pela consciência da ilicitude – cfr. Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Criminal, Fase I, ed. do Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 71-72 e Rev. Port. de Ciência Criminal, ANO 2, 1º, p. 18-19. “Elemento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo; uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas (…) quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal” – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 333. Não constando in casu do tipo objectivo a descrição de qualquer elemento subjectivo adicional (do género do impropriamente chamado dolo específico ou uma especial direcção da vontade) para o preenchimento dos elementos do tipo subjectivo basta a previsão e vontade de realização dos elementos do tipo objectivo em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal. Também não há dúvidas, face aos factos objetivos do tipo, conjugados com as regras da experiência comum, que o arguido, ciente da sua qualidade de funcionário e arrogando-se a qualidade de funcionário do Estado (embora arrogando-se a qualidade de funcionário diverso da que tinha, tal torna-se irrelevante face aos poderes que tinha devido à sua própria qualidade de funcionário), estava ciente e quis solicitar vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, solicitação que fez para praticar acto que que também sabia contrário aos seus deveres, ciente ainda da proibição da sua conduta. Igualmente não afasta o preenchimento do tipo a circunstância de o agente não ter intenção de cumprir a promessa, bastando que ele tenha ou possa vir a ter a possibilidade de a cumprir, independentemente da existência de qualquer reserva mental da sua parte quanto ao cumprimento ou não da proposta. Como refere Almeida Costa, ob. Cit., pág. 672, “o dolo esgota-se no conhecimento e vontade de obtenção de uma vantagem ilegítima (patrimonial ou não patrimonial) como contrapartida de um comportamento violador dos deveres do cargo. Em conformidade, desde que o agente solicite ou aceite um tal suborno (ou a respectiva promessa), verifica-se o preenchimento do tipo subjectivo, mesmo que não esteja nas suas intenções praticar o “acto de serviço” que a peita visa remunerar”. A conduta do arguido integra, pois, todos os elementos do tipo de crime de corrupção passiva, relativamente aos factos relativos ao estabelecimento --- Gourmet, pelo que haverá que pronunciar o arguido quanto aos mesmos. * Em processo comum, perante Tribunal Coletivo, pronuncio A., nascido a 15/07/1979, solteiro, militar da GNR….com residência para efeitos processuais na Rua ---, em Olhão e a residir efetivamente em Bairro 25 de Abril, ----Silveiras e domicílio profissional no Posto da GNR de ---, pela prática dos seguintes factos: 1 – O arguido é miliar da Guarda Nacional Republicana (GNR), tem o posto de Cabo nº--- de Transmissões/Exploração e a partir de 14/06/2011 passou a exercer funções de operador de transmissões no Comando Territorial da GNR ---. 2- O arguido, enquanto militar da GNR, no exercício das suas funções, é agente da força pública, órgão de polícia, nos termos da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, integrando-se na administração directa do Estado, através do Ministério da Administração Interna. 3- O arguido no dia 3 de Abril de 2012, pela 01h37m, utilizando o email “Alex---” ---negocios12@gmail.com por si criado, remeteu à sociedade --Gourmet, Lda., para o email “---Gourmet, Lda.” geral@---gourmet.pt, que se dedica ao negócio da restauração, com entregas ao domicílio ou escritório, fazendo-se passar por funcionário da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) e valendo-se da informação privilegiada a que poderia vir a ter acesso no âmbito das suas funções como militar da GNR e em serviço no centro de transmissões do Comando Territorial de ---, uma mensagem propondo ao seu destinatário o pagamento de € 250 (duzentos e cinquenta euros) a fazer para a entidade 11473 e referência de multibanco 809----, em troca do fornecimento de informações sobre as datas das inspeções/fiscalizações que a Asae poderia fazer ao referido estabelecimento comercial. 4- A mensagem que o arguido remeteu aos responsáveis do referido estabelecimento tem o seguinte teor: “Bom dia Todos sabemos as dificuldades que o nosso país atravessa e as dificuldades que todos os negócios e a própria população atravessam, entre os quais em me incluo, por esse motivo, e porque as contas são cada vez mais para pagar e o ordenado cada vez menor, sendo eu funcionário da Asae e tendo acesso a informações privilegiadas, decidi ao mesmo tempo que me ajudo a mim ajudar também os outros, evitando surpresas desagradáveis, e assim sendo, e mesmo sabendo que é ilegal o que estou a fazer decidi dirigir-me a s, no sentido de lhe oferecer informações sobre quando é que irão existir inspecções Da asae na sua área de modo a que possa estar prevenido e assim evitar ter de pagar as indesejáveis multas, que todos sabemos que são muito inconvenientes nesta altura. Caso esteja interessado, e de modo a protege-lo a si e a mim, ficam dados de pagamento por referência multibanco que irá estar funcional apenas ate quinta feira a meia noite como se fosse um qualquer serviço. Pense seriamente na proposta, acredito que poderá ficar a ganhar, pois irá evitar muitos inconvenientes de visitas inesperadas. ENTIDADE – 11473 REFERENCIA – 8095--- VALOR – 250.00 5- Para a entidade 11473 e referência 8095--- não foram encontrados quaisquer pagamentos desde o dia 1.1.2012 a 2.6.2012 e a empresa responsável pela criação da entidade é a A…, Lda. 6- O arguido no dia 28 de Fevereiro de 2012 celebrou um contrato de prestação de serviços on line com a empresa A…, Lda., com sede na rua ---, em Santa Maria de Lamas e ficou com a identificação -----. 7- O arguido não é nem nunca foi trabalhador da Asae. 8- A Asae colabora frequentemente com os OPC’s, onde se inclui a Guarda nacional Republicana, a seu pedido ou a pedido dos OPC’s e os alvos das operações são previamente definidos de modo a evitar duplicação de sacões inspetivas. Se as ações forem solicitadas à ASAE por outras entidades, são os OPC’s que definem os alvos a fiscalizar, se a fiscalização for pedida pela ASAE a outras entidades (PSP, GNR, SEF,…) os alvos a fiscalizar são definidos pela ASAE. 9- O arguido é militar da GNR e é titular da credenciação de segurança estabelecida pelo Governo de Portugal, de acordo com as normas Nacionais em vigor, e por isso autorizado a ter conhecimento e/ou a manusear informação classificada até ao grau de classificação (inclusive) secreto Scripto, cuja validade e até 21.06.2015 e, no âmbito do exercício de funções, atenta a sua especialidade, podia vir a ter acesso a informação relativa a algumas ações de fiscalização levadas a efeito pela Asae, em colaboração com a GNR. 10- O arguido ao agir da forma descrita pretendeu obter um enriquecimento e vantagem patrimonial ilegítimos ao propor ao responsável legal do estabelecimento ---Gourmet, o pagamento da quantia de € 250 como contrapartida pela cedência de informação sobre os dias de realização de ação de inspeção e de fiscalização ao estabelecimento pela Asae e de que tivesse conhecimento no âmbito do exercício das suas funções enquanto militar da GNR da especialidade de exploração e transmissões. Para o efeito, o arguido fez-se passar por funcionário da Asae e cedeu aos mesmos a entidade e a referência multibanco para onde deveria ser feita a transferência da quantia de € 250,00. 11- O arguido é Cabo da GNR e, por ser funcionário militar, bem sabia que não lhe era devido qualquer valor apenas tendo direito a auferir o respetivo vencimento e outros eventuais privilégios remuneratórios pagos pela sua entidade patronal – o Estado -, com exclusão de quaisquer outros pagamentos processados por terceiros particulares, sabendo que desta forma prosseguia interesses próprios e privados, na esfera da atividade da Administração Pública, assim pervertendo a autonomia intencional desta mesma administração na prossecução dos fins que lhe estão adstritos. 12- Sabia, igualmente que a conduta atentava contra a dignidade da administração pública. 13- O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo a sua conduta proibida e punida por lei. Incorreu, pelo exposto, na prática, como autor material, na prática de um crime de corrupção passiva, p. e p. pelo art. 373º, nº 1 do Código Penal, por referência ao art. 386º, nº 1 do Código Penal. Prova: Pericial: - A indicada na acusação do Mº Pº, a fls. 1216. Documental: - A indicada na acusação do Mº Pº, a fls. 1217 a 1218, sob os pontos 12,18, 19, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 30, 31, 32, 33 e 34 e ainda, - Fls. 1060, 1267 e do apenso 5469/12.8TDLSB, além das supra referidas, fls. 13 e fls. 40. - Folha de matrícula do arguido de fls. 1281 a 1284, - Informações de fls. 1291 e 1328 a 1329. Testemunhal: - JB, Sargento-Chefe da GNR, identificado a fls. 1111; - FR, funcionário da Asae, identificado a fls. 44 (NUIPC 5469/12.8 TDLSB); - JM, Sargento-ajudante da GNR, identificado a fls. 1321; - LN, gerente da ---Gourmet, referido a fls. 41 e com contacto telefónico a fls. 4 (NUIPC 5469/12.8 TDLSB); - N, legal representante da sociedade ---, melhor identificado a fls. 27 a 29 do NUIPC 5469/12.8 TDLSB III- Apreciação do recurso O objecto dos recursos é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação, arts. 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP. As conclusões dos recursos destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância da recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98). Perante as conclusões do recurso a questão a decidir consiste em saber, se os factos nºs 1 a 12 da acusação imputados ao arguido, A., relativos à solicitação por este de quantia monetária como contrapartida pelo fornecimento de perguntas do 34º concurso de formação de Sargentos da Guarda Nacional Republica integram a prática de três crimes de corrupção passiva, previstos e puníveis no art. 373º nº 1 do C. Penal. A Mma Juiz de Instrução entendeu, em síntese, que os factos em causa não integram os crimes em causa, e por isso, não pronunciou o arguido porque não se verifica o elemento objectivo do crime, “acto contrário aos deveres do cargo”, ou seja, o “acto que o arguido se propôs praticar (fornecer a candidatos ao 34º curso de formação de sargentos da GNR perguntas que integrariam o teste de admissão a esse curso) não é um acto correspondente às específicas competências ou atribuições legais do mesmo, enquanto operador de transmissões da GNR e também ele candidato ao referido 34º curso, nem sequer decorre da posição funcional do mesmo, isto é, não se encontra numa relação funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo de operador de transmissões, ou seja, das possibilidades fácticas que apesar de exorbitarem o seu cargo são propiciadas pelo cumprimento normal das suas atribuições legais”. O Ministério Público discorda desta posição por entender que, a interpretação dada pela Mma Juiz é restritiva e redutora, e que não é acolhida pelos arts.372º e segs, já que o legislador pretendeu assegurar a legalidade da actuação dos funcionários públicos de modo a que não transacionem o seu cargo. Mais refere que, foi a qualidade de funcionário do arguido que lhe permitiu, por um lado, ter acesso às questões que fariam parte do 34º Curso de Formação de Sargentos, dado que lhe foram transmitidas pelo facto de ser funcionário e pelo funcionário que estava investido do poder de as elaborar e que lhe deu conhecimento das mesmas, para que com elas beneficiasse; acedeu às mesmas e ficou com o poder de as transaccionar com terceiros, que foi o que veio a fazer e que foi só devido ao cargo de funcionário público que teve conhecimento dos restantes militares que concorreram a tal curso e dos respectivos endereços electrónicos, o que lhe permitiu oferecer-lhes para venda as questões que sairiam no teste. Cumpre apreciar e decidir. Dispõe o art. 373º nº 1 do Código Penal: “O funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para a prática de um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo é punido de um a oito anos de prisão”. Deste preceito resulta que os elementos objectivos do crime de corrupção passiva são: a) é necessário que o agente tenha a qualidade de funcionário; b) a solicitação por si ou interposta pessoa de vantagem patrimonial para a prática de um qualquer acto ou omissão; c) o acto ou omissão ser contrário aos deveres do cargo. Os elementos constitutivos do crime referidos em a) e b) estão preenchidos, por isso, quanto aos mesmos não foi suscitada qualquer questão no recurso. A Mma Juiz e o Ministério Público divergem quanto ao elemento referido em c), por isso, importa debruçarmo-nos sobre este elemento a fim de, apurar quais os actos praticados pelos funcionários, que se mostram susceptíveis preencher tal elemento do crime de corrupção passiva. Como é óbvio, nem todos os actos praticados pelos funcionários se mostram susceptíveis de preencher tal elemento, mas só os actos a praticar, ou que se pretende que sejam praticados pelo funcionário, que estejam dentro da esfera dos poderes do cargo que ocupa. Como refere Almeida Costa, em anotação ao crime de corrupção passiva em “Comentário Conimbricense do Código Penal”, pág. 660: “A demarcação precisa das situações relevantes analisa-se, no presente domínio, por duas vertentes: uma que amplia e outra que restringe o âmbito da responsabilidade do funcionário: a) A primeira não levanta grandes dificuldades, uma vez que, por definição, a corrupção se limita aos casos em que a gratificação representa a contrapartida de um acto realizado no exercício do cargo, i. e., do múnus estadual em que o seu titular se encontra investido. Na correspondente fattispecie não cabem, assim, as hipóteses em que a dádiva respeita a uma actividade ou prestação não efectuada no desempenho das suas competências públicas.(….) O recebimento de tais gratificações pode integrar um qualquer ilícito, mas não o que subjaz à corrupção passiva. O seu objecto não é constituído por “actos de serviço” e portanto, não ocorre nenhuma transacção com a autoridade do Estado – circunstância indispensável para a verificação de um delito daquela espécie. b) Mais complexa se revela a segunda vertente em que se delimitam as condutas que podem integrar crime de corrupção passiva. Sem dúvida que elas têm de consubstanciar o exercício do cargo. Mas deverão corresponder às específicas competências legais ou, pelo contrário, poderão importar a simples actuação de “meros poderes de facto” decorrentes da posição “funcional” do agente? (…) “ Em resposta a esta questão surgem duas orientações opostas: por um lado, uns exigem que, “para se falar se corrupção passiva, que a actividade visada pelo suborno se encontre abrangida nas atribuições ou competências do concreto funcionário. Fora do campo da infracção estaria, pois, além do particular, que se fizesse passar por empregado público e assim beneficiasse do suborno, o próprio funcionário que se arrogasse a competência para praticar um acto que não cabe nas suas específicas atribuições, e, em troca, aceitasse uma gratificação (…); outros autores, prescindem do facto de a conduta prometida ou efectuada pelo empregado público pertencer à esfera das suas específicas atribuições ou competência, bastando-se com a simples circunstância de a actividade em causa se encontrar numa relação funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo. Assim acontecerá sempre que a realização do acto subornado caiba no âmbito “fáctico” das suas possibilidades de intervenção, i, e., dos “poderes de facto” inerentes ao exercício das correspondentes funções. Quer dizer, não de quaisquer possibilidades fácticas – que qualquer um particular pode possuir -, mas apenas das que, apesar de o exorbitarem, são propiciadas pelo cumprimento “normal” das suas atribuições legais. Posto isto, (…) integra uma situação de corrupção passiva, por exemplo, o pagamento de um suborno ao contínuo de certo departamento administrativo, como contrapartida de ele haver subtraído processo que estava para ser decidido pelo seu director. A circunstância de a análise ou custódia daquele processo não estarem abrangidas nas suas atribuições não afecta a “relação funcional imediata” do agente com o acto, circunstância que o coloca na órbita do tipo legal da corrupção passiva. De resto, a favor da tese da “relação funcional imediata” e dos “poderes de facto”, assinale-se que, ao menos na corrupção própria, só com base naquele critério se pode punir o funcionário dito “competente” para a prática pretendida com o suborno. Na verdade a lei nunca confere competência para a realização de actos injustos ou ilícitos, pelo que, também aí a sua efectivação se fica a dever, única e exclusivamente aos “poderes fácticos” decorrentes da “relação funcional imediata” do agente do cargo. Esta a doutrina aceita pela jurisprudência no âmbito do CP de 1886 (cf. a título de exemplo os Acs. do STJ de 14 de Março de 1953, BMJ 36º., 89 e ss., e de 15 de Julho de 1970, BMJ 199º 139 e Maia Gonçalves, 1982, 515) e que parece de seguir no direito vigente. No plano material, a “autonomia funcional do Estado” resulta ofendida com igual intensidade, quer o acto subornado tenha sido realizado pelo próprio funcionário “competente”, quer provenha de outro que, possuindo uma relação funcional directa com o serviço, apenas o levou a cabo na actuação de “meros poderes de facto”. Na medida em que estes decorrem de uma relação funcional do agente, i. e., do posto que ocupa, o recebimento da peita pelo (ou para o) seu exercício constitui, ainda, uma transacção com o seu cargo e, por isso, uma situação de corrupção passiva”. Em síntese, os actos dos funcionários, para serem relevantes para o preenchimento dos tipos de corrupção, hão-de caber dentro das suas específicas competências legais ou dos poderes de facto decorrentes do cargo que desempenham. No mesmo sentido, na vigência do actual Código Penal, vide o Acórdão do STJ de 19 de Setembro de 1990, proferido no processo nº 40.980/3ª do qual consta: “No actual Código Penal basta que o acto praticado pelo funcionário público implique violação dos deveres do seu cargo, bastando que se trate de acto relacionado com o cargo exercido, apenas se afastando aqueles a que o serviço do funcionário, em relação ao acto concreto praticado é completamente alheio”. E ainda o Acórdão da Relação de Lisboa de 22-4-2010 proferido no processo nº 263/06.8JFLSB.L1-9em www.dgsi.pt, de cujo sumário consta o seguinte: “III- Os actos dos funcionários, para serem relevantes para o preenchimento dos crimes de corrupção, hão-de caber dentro das suas específicas competências legais ou dos poderes de facto decorrentes do cargo que desempenham”. O arguido é militar da GNR e à data dos factos exercia as funções de operador de transmissões. O arguido recebeu no seu e-mail um lote de 20 perguntas, dez das quais faziam parte da prova específica da área de exploração de transmissões da prova de acesso ao 34º Curso de Formação de Sargentos, que lhe foram transmitidas pelo militar, que estava encarregado de as elaborar. Perante este facto, o arguido enviou e-mails a três concorrentes ao Curso, solicitando uma quantia monetária em troca de informações sobre perguntas que sairiam no teste. No exercício das suas funções de operador de transmissões, não fazia parte da sua competência, ou melhor, das suas atribuições legais a informação sobre as questões que iriam sair na prova de acesso ao 34º Curso de Sargentos, nem podia aceder às mesmas no âmbito do cargo que desempenhava. Do facto do lote de 20 perguntas que faziam parte da prova específica da área de exploração de transmissões lhe terem sido transmitidas pelo militar, que estava encarregado de as elaborar, não altera em nada a sua competência, nem teve acesso a elas devido aos poderes de facto decorrentes do cargo que desempenhava, operador de transmissões. Nas circunstâncias em que ocorreu o acesso às questões, qualquer pessoa sendo ou não militar podia ter tido acesso a elas. Os actos dos funcionários para serem relevantes para o preenchimento dos crimes de corrupção têm de caber dentro das suas competências, ou dos poderes que facto decorrentes do cargo que desempenham. É certo que, os actos praticados pelo arguido ao solicitar uma determinada quantia em dinheiro, a três militares da GNR que eram concorrentes ao 34º concurso, em troca da venda a esse militares de perguntas que constavam da prova de acesso são censuráveis e provavelmente susceptíveis de punição a nível disciplinar, mas isso, por si só, não faz que a informação que possuía passe a caber nas suas especificas competências legais ou dos poderes de facto resultantes do cargo que desempenhava. Não está, pois, preenchido o elemento constitutivo do crime de corrupção passiva p. e p. no art. 373º nº 1 do C.Penal, “ a prática de acto contrário aos deveres do cargo”, pelo que nesta parte se impõe manter o despacho recorrido. Alega ainda o Ministério Público que, mesmo que se entenda que os factos não integram o crime de corrupção passiva, que a conduta do arguido é subsumível ao crime de recebimento indevido de vantagem p. e p. no art. 372º, nº 1 do C.Penal, uma vez que o arguido no exercício das suas funções solicitou/aceitou vantagem patrimonial ilícita. Dispõe este preceito:“ 1- O funcionário que, no exercício das suas funções ou por causa delas, por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial, que não lhe seja devida, é punido até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”. Com este preceito pune-se a corrupção sem demonstração do acto pretendido com que o agente público pretende mercadejar com o cargo. Portanto, pune-se nesta norma, o que se designa por mercadejar com o cargo, isto é, o acto de solicitação/aceitação de promessa de vantagens que se mostrem susceptíveis de criar um “clima de permeabilidade” ou “simpatia” favoráveis às pretensões do agente. Portanto, quando o funcionário solicita ou aceita vantagem, quando manifesta a intenção de receber vantagem que não lhe seja devida e que esteja interrelacionada com o exercício das suas funções, o crime consuma-se. Na verdade, o funcionário ao solicitar vantagens que não lhe são devidas pelo exercício de funções de natureza pública, a sua acção e consciência ficam condicionados, pelo que deixa de possuir a objectividade necessária para decidir de uma forma imparcial, isenta e tranquila. Como refere o Doutor André Ferreira de Oliveira no seu estudo “Da corrupção: Recebimento e Oferta Indevidos de Vantagem” pág. 503”, com o que concordamos: “Essencial para que possamos afirmar (pelo menos) formalmente possível a punição de um comportamento ex vi do art. 372º do CP é que esteja em causa a pretensão de introduzir uma indevida influência no processo decisional do “funcionário” ou um aproveitamento por este do estatuto de suas funções para a obtenção de uma vantagem que, à luz de critérios de normalidade (que não apenas jurídica), não seria devida. A norma do art. 372º, nos nºs 1 e 2, prevê o “exercício das suas funções ou por causa delas”: em causa pode não estar o fulcro da função em esferas de actuação pública, mas aspectos reflexos “ou por causa delas”, pode o fim visado não ser directamente a função primacial daquele “concreto funcionário” mas o acesso à vantagem (indevida) pretendida ser com esta conexo – não pode bastar uma ligação acidental ou indirecta, o nexo de ligação exigível tem que ser passível de ser considerado como adequado por um bónus pater famílias. Estes aspectos reflexos têm de estar directamente correlacionados com as funções, sob pena de se abrir um espaço de sobre-punição e de o bem jurídico materialmente protegido ser de tal forma lato que caímos numa situação de punição pela sobre-punição, logo passível de declaração de inconstitucionalidade”. O fim visado com a vantagem indevida tem de estar ligado com o âmbito das funções do funcionário ou pelo menos directamente relacionado com tais funções. No caso em apreço, o arguido exercia as funções de operador de transmissões e não cabia no âmbito das suas funções a competência para elaborar as questões que sairiam no teste, nem a informação a que o mesmo acedeu estava relacionada com o exercício das suas funções, pelo que não se verifica o elemento constitutivo do crime em causa. IV Decisão Nestes termos, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão de não pronúncia do arguido quanto aos três crimes de corrupção passiva p. e p. no arts. 373º nº 1 do C.Penal. Os autos prosseguirão para julgamento quanto ao crime de corrupção passiva, previsto no art. 373º, nº 1 do C.Penal, pelo qual o arguido foi pronunciado. Notifique Évora, 16 de Fevereiro de 2016 (texto elaborado e revisto pelo relator) JOSÉ MARIA MARTINS SIMÃO MARIA ONÉLIA VICENTE NEVES MADALENO |