Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
141/16.2 T9FAL.E1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 02/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - O recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Não serve para suprir ou substituir o juízo que aquele tribunal formulou, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas.

II – Não comete o crime de ofensa à integridade física qualificada o pai que, preocupado com a saúde do seu filho menor, leva este a um laboratório de análises clínicas para fazer análises ao sangue e aquando da realização da colheita, perante o nervosismo e receio demonstrado pelo menor, apesar da tentativa da técnica para o convencer, e com vista a ultrapassar essa recusa persistente, num contexto em que o arguido já se mostrava emocionalmente perturbado, desesperado, agarra e pressiona o braço do filho, ao mesmo tempo que lhe diz tens que fazer, tens que fazer, tu não comes, só comes porcaria!” e nessa sequência, mantendo-se a recusa, dá, pelo menos, três estalos na face daquele, de que resultaram para o ofendido dores na zona atingida e face avermelhada.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora

I- Relatório
LG foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº1 e 145º, nºs 1, al. a) e 2, por referência ao art. 132º, nº2, a) do Código Penal, na pena de 12 meses de prisão, substituída por 350 dias de multa à taxa diária de € 7,00, perfazendo € 2.450,00.

Inconformado recorre o mesmo suscitando, em síntese, as seguintes questões:

- impugnação da matéria de facto;
- qualificação jurídica;
- medida da pena.

O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência.

Nesta Relação, a Exª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no mesmo sentido.

Colhidos os vistos cumpre decidir.
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II- Fundamentação
A) Factos provados

“1- O arguido LG é pai de RG, nascido no dia 26 de Março de 2004.

2- No dia 10 de Fevereiro de 2016, em hora não concretamente apurada, mas pela manhã, o arguido deslocou-se, juntamente a sua companheira SN e com os filhos do casal, RG, GG e VG, ao laboratório de análises clínicas, sito na Rua …, em Ferreira do Alentejo;

3- Ali chegados, com o objectivo de procederem à recolha de sangue para realização de análises a RG, o arguido e este menor, à data com 11 anos de idade, entraram no gabinete onde se iria proceder à referida colheita, e onde se encontrava a técnica ML;

4- Quando a técnica se preparava para iniciar a recolha de sangue, RG demonstrou ter medo e receio da agulha, tendo aquela tentado convencer o menor, explicando-lhe o respectivo procedimento;

5- Ao ver a reacção do filho, o arguido agarrou e pressionou o braço do filho, ao mesmo tempo que lhe dizia “tens que fazer, tens que fazer, tu não comes, só comes porcaria!”;

6- Nesse momento, SN, que se encontrava a aguardar no exterior do gabinete, entrou no mesmo;

7- Também, nesse momento, o arguido desferiu, pelo menos, três estalos na face de RG;

8- Em consequência dos referidos estalos, RG ficou com a face avermelhada e com dores na zona atingida.

9- Em acto contínuo, a técnica ML ordenou que saíssem do Laboratório e fossem efectuar a recolha de sangue a outro Laboratório;

10- Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu com o propósito de atingir e molestar fisicamente RG, e de lhe provocar dores, objectivos que logrou alcançar, bem sabendo que o mesmo era seu filho e que estava obrigado para com ele com os deveres de respeito, auxílio e assistência;

11- O arguido agiu sempre consciente e voluntariamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação;

Mais se apurou que:

12- O arguido é mineiro, sub-chefe, auferindo cerca de 1100€, líquidos, mensais;

13- Reside com a sua companheira e os três filhos do casal, em casa própria, pagando 450 € mensais de reembolso de empréstimo bancário;

14- A companheira do arguido é doméstica desde há um ano; o GG e o RG são estudantes;

15- Como habilitações literárias, possui o 7.º ano de escolaridade;

16- O arguido não possui antecedentes criminais registados”.
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B) Motivação da matéria de facto

“… Concretamente o Tribunal sopesou:
- as declarações do arguido LG, quanto à matéria das suas condições pessoais, a única a que prestou declarações ;

- o depoimento da testemunha ML, técnica de colheitas, que assistiu aos factos, os quais se desenrolaram na sua presença e com a sua intervenção;

- o depoimento das testemunhas MC, RP e MGP, utentes do laboratório de análises clínicas, presentes na data dos factos em zona próxima à dos mesmos;

- Documentalmente, o Tribunal louvou-se no teor dos documentos de fls. 11 e 12 (Assentos de nascimento); e no teor do CRC do arguido de fls. 89;

Do cotejo da prova testemunhal produzida, perpassa para o Tribunal que as testemunhas ML, MC, RP e MGP prestaram depoimentos sérios e credíveis, com evidente memória dos factos a que cada uma assistiu, sendo decisivas para a formação da convicção do Tribunal quanto aos factos provados, tanto mais que nenhuma outra prova foi produzida que infirme ou faça diminuir a valoração daqueles depoimentos.

Com efeito, a testemunha ML, técnica de colheitas, relatou na primeira pessoa os factos que presenciou no gabinete. Evidenciando o desconforto e o nervosismo que os factos lhe provocaram na data da sua verificação relatou que o menor RG se deslocou na companhia dos pais e dos irmãos ao laboratório, que o menor e o seu pai entraram no gabinete de colheitas, que o menor se recusou a permitir a recolha de sangue, que o arguido o repreendeu, que o menor manteve a recusa e que, perante aquela recusa, o arguido lhe desferiu, mais de duas chapadas na face (donde, a indicação de “pelo menos três chapadas” constantes dos factos provados); deu nota de que o menor estava muito nervoso e chorava, assim como o arguido estava nervoso, falando alto; que no momento em que o arguido deferiu as bofetadas na face do menor, a sua mãe entrou no gabinete para tentar acalmar os ânimos; que na sequência dos factos, a testemunha se recusou a efectuar a colheita, tendo a família abandonado o local.

Em sede de audiência de julgamento suscitaram-se na inquirição questões de pormenor, como se a criança entrou já receosa ou nervosa ou se a porta do gabinete estava aberta ou fechada, tendo a testemunha tido alguma dificuldade em dar resposta assertiva. Tal hesitação da testemunha não é, para o Tribunal, reveladora de falta de credibilidade do seu depoimento, mas sim uma decorrência normal do processo de memória, não é crível que uma pessoa em condições normais de vida ou em situações de stress – como a que a testemunha vivenciou – estejam atentos a todos os ínfimos pormenores do que as rodeiam, tanto mais quanto, como nos autos, a testemunha se encontrava a desempenhar as suas funções tendo, certamente e como decorre das regras de experiência comum, procedimentos padronizados de preparação de equipamentos que distrairiam a sua atenção sobre o estado das pessoas à entrada no seu gabinete e, certamente, a esta distância temporal e face à situação de stress que dominou a sua memória, não permitem que guarde recordação de pormenores de ambiente, que não tinham a ver com a própria situação.

Foi assim com base, essencialmente, no relato desta testemunha que o Tribunal formou a sua convicção quanto á matéria dos pontos 2. a 9. dos factos provados.

Na consolidação da sua convicção quanto aos factos que resultaram do relato desta testemunha, o Tribunal ponderou os depoimentos das testemunhas MC, RP e MGP, utentes do laboratório de análises clínicas, presentes na data dos factos em zona próxima à dos mesmos as quais, não tendo assistido ao desferimento das bofetadas, nem tendo visibilidade para o interior do gabinete, são unanimes em referir ter ouvido o pai do menor falar alto, ouviram gritos e a criança a chorar, tendo a família saído do laboratório em seguida.

A testemunha MC acrescentou que, à saída da criança do laboratório de análises viu, no lado da cara da criança voltada para o local onde se encontrava, a face vermelha.

A testemunha RP, recorda-se de, na ocasião ter ouvido ruídos secos, que identificou como sendo socos e ter vista uma marca vermelha por baixo do olho da criança [apontando em audiência para o lado esquerdo da face], a ficar negra; mais se recordando que, em determinada altura, ambos os pais da criança estiveram dentro do gabinete.

A testemunha MGP recorda-se ainda de, quando o pai ralhava com o menor, a mãe ter entrado no gabinete e ralhado igualmente com o menor e que quando a criança saiu do gabinete estava a chorar e vermelha, que a testemunha associou ao facto de estar a chorar.

Tudo considerado e tendo em conta o contributo destas três testemunhas conclui-se que o mesmo, analisado critica e conjuntamente, através da ligação que cada um faz ao relato da testemunha ML, valida o relato por esta efectuado.

A prova da relação de parentesco entre o arguido e RG, tal como constante do facto 1. dos factos provados, resulta da análise dos Assentos de Nascimento de fls. 11 e 12, que tanto atestam.

Que a intenção do arguido era atingir fisicamente a criança, que o arguido sabia ser seu filho estava obrigado para com ele a deveres de respeito auxílio e obediência, tal como vertido em 10. dos factos provados, as circunstâncias, a dinâmica dos factos e as regras da experiência comum relativamente ao sentir da parentalidade, não deixam margem para dúvidas quanto a essa intenção e conhecimento.

O Tribunal formou ainda a sua convicção de que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, agindo deliberada livre e conscientemente, (cfr. ponto 11. dos factos provados) porquanto não se só não se apurou qualquer afectação do livre arbítrio, como qualquer cidadão normal tem o conhecimento de que a agressão a outrém é proibida e punida por lei.

No que concerne às condições económicas do arguido, o Tribunal valorou o teor das suas declarações.

No que concerne à ausência de antecedentes criminais registados do arguido, o Tribunal valorou o teor do CRC junto aos autos a fls. 89, analisado em sede de audiência de julgamento ...”.
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Apreciando

1- Impugnação da matéria de facto
Invoca o recorrente que terá sido mal julgada a matéria de facto, pretendendo que o tribunal de recurso sindique a forma como o tribunal de primeira instância apreciou a prova produzida em audiência mas, para tanto, haveria de ter dado adequado cumprimento ao disposto no art. 412º., nºs. 3 e 4 CPP, o que não se mostra correctamente efectuado.

É que ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.

Como várias vezes salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal:

- “… o recurso é um remédio para os erros, não um novo julgamento(conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol. II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);

- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);

- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001).

Da mesma forma, na jurisprudência pode ler-se, por exemplo, no Ac. do STJ de 24/10/2002, proferido no pr. 2124/02: “… o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412º, nº 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (nº 4 do art.º 412º do C.P.P.)”.

Ou no acórdão do STJ de 15-12-2005 (pr. 2.951/05, relatado pelo conselheiro Simas Santos), “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.

Ou, finalmente, no recente Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012:

“… Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo…

O Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros…

Como se refere no acórdão de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª «O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar» …”.

Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º., nº.1 do CPP).

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria, dispondo o art. 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:

«Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»

Acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo que:
“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Impunha-se ao recorrente, em vista disso, para que do recurso pudesse retirar alguma utilidade que impugnasse devidamente a matéria de facto, cumprindo adequadamente o constante dos nºs 3 e 4 do art. 412º. CPP.

E é sabido que ao cumprimento de tal desiderato não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação mais ou menos genérica do que possam ter dito, repousando em considerações da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas (tal qual ocorre no presente caso), atacar a motivação do tribunal a quo ou a respectiva convicção (tal qual ocorre igualmente no presente caso), devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise (dizendo o recorrente, por exemplo, que pretende impugnar os pontos 7 e 8 dos factos provados ou as als. a) e c) dos não provados), indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4. Assim, por exemplo, o recorrente poderá indicar que o afirmado se reporta à passagem do depoimento da testemunha A que vai do minuto 3º. ao 6º. da gravação efectuada em CD pelo Tribunal.

Revertendo ao recurso em apreciação resulta manifesto que o recorrente assim não procedeu, já que, começa por indicar a generalidade da matéria fáctica de índole criminal como mal julgada e jamais impugna especificadamente a mesma, ponto por ponto, de forma concreta e detalhada, como se lhe impunha, indicando relativamente a cada um deles as passagens concretas e determinadas dos depoimentos que impõem manifestamente distinta decisão - e não que meramente a possibilitariam - o que forçosamente nada tem que ver com a sua mera interpretação pessoal, não isenta e interessada do que possa ter ocorrido, nunca colocando sequer em crise, ao fim e ao cabo, a motivação de facto do Tribunal a quo acima indicada e da qual era suposto dissentir e antes se limitando a propor a este Tribunal de recurso que efectue um novo julgamento.

Ou seja, o recorrente limita-se a fazer a sua própria análise crítica da prova para concluir que o essencial dos factos deveria ter sido considerado não provado. Sucede que - como já múltiplas vezes se repetiu em diversos acórdãos - o momento processualmente previsto para o efeito são as alegações finais orais a que alude o artigo 360º. CPP.

A impugnação da decisão da matéria de facto não se destina à repetição, agora por escrito, do que então terá sido dito. Fica-se a saber qual teria sido a decisão se o arguido/recorrente tivesse sido o juiz do seu próprio caso, mas isso nenhumas consequências pode ter, pois é ao juiz e não a outros sujeitos processuais, naturalmente condicionados pelas específicas posições que ocupam, que compete o ofício de julgar.
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Cumpre, no entanto, adiantar mais alguns tópicos sobre o tema em face da forma como o recurso surge estruturado nesta sede.

Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com o benefício da imediação e da oralidade - apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.

Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Daí que o recurso da decisão da primeira instância em matéria de facto não sirva para suprir ou substituir o juízo que aquele tribunal formulou, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.

Ora, o recorrente não alega qualquer destes erros (nem estes se detectam da análise dos autos). Limita-se a contestar basicamente o juízo do tribunal da primeira instância sobre a credibilidade dos depoimentos prestados.

Como está bom de ver, na decorrência do supra-exposto, esta é uma questão que, de forma exemplar, escapa ao juízo do tribunal da segunda instância, por estar estreitamente dependente da imediação.

Não está aqui em causa qualquer erro de julgamento (no sentido acima indicado), mas tão só a contestação da decisão do tribunal da primeira instância sobre a credibilidade e fiabilidade dos depoimentos em causa.

E no presente caso o Tribunal a quo objectivou adequadamente a sua convicção, ao esclarecer com detalhe de forma racional, lógica e correctamente articulada a respectiva ponderação efectuada, sendo certo que nada do que vem invocado no recurso permite colocar em crise tal julgamento.
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2- Qualificação jurídica
Nesta sede alega o recorrente que a matéria provada é uma actuação do arguido, em circunstâncias muito especiais, muito preocupado com a saúde do filho, com o facto de o mesmo poder estar doente (ante alguns problemas de saúde evidenciados pelo mesmo, no seu entender decorrentes de uma alimentação incorrecta e deficitária), procurou que este se tratasse (aos olhos do arguido o tratamento começava por ali, pela realização das análises sanguíneas) e, ante a recusa do filho em permitir a colheita do sangue, procurou persuadi-lo a fazê-lo e ante a recusa persistente deste, num contexto em que o arguido já se mostrava emocionalmente perturbado, alterado, desesperado ante essa recusa do filho em fazer as análises, acabou por lhe dar “três ou quatro estalos”.

Assim, o que se verifica é uma actuação do arguido gerado por um comportamento do filho que impunha o exercício do poder- dever das responsabilidades parentais.

Analisando os factos pelo prisma oposto, se os pais ou o arguido ignorassem a situação e negligenciassem, por isso, a saúde do filho não estaria a cumprir devidamente o dever de assegurar o seu saudável desenvolvimento físico e poderiam, por isso, também ser alvo – caso as circunstâncias de saúde do filho se agravassem por não ser diagnosticado, por via da realização das análises clínicas, algum problema de saúde – de procedimento no âmbito do Direito tutelar de menores.

Neste circunstancialismo afigura-se-nos difícil entender-se ou considerar-se que o arguido e pai do menor excedeu o âmbito do poder-dever compreendido no exercício das responsabilidades ou poderes parentais.

Sempre se dirá que ainda que tal comportamento do arguido fosse de reprovar, “não merece, porém aquele acrescido e especial juízo de reprovação indispensável para o considerar como ofensa à integridade física qualificada”.

“Noutros termos, a actuação do arguido “não reveste aquela especial censurabilidade ou perversidade geradora de uma culpa agravada, de que a circunstância prevista no artigo 132.º, nº 2, al. a) do CP constitui mero exemplo/padrão”.

Deveria o tribunal a quo ter desqualificado o crime de que vinha acusado o arguido considerando que, no limite, estaria em causa o crime de ofensa à integridade física simples.

Por seu turno, na peça recorrida escreveu-se o seguinte sobre a matéria:

“A aferição da existência de uma especial censurabilidade ou especial perversidade não é automática …

A especial censurabilidade encontra-se naquela conduta que revela uma profunda distância em relação ao quadro valorativo, afastando-se de um padrão normal, decorrendo da revelação de um desrespeito acrescido ou de um desprezo extremo do autor do crime pelo bem jurídico protegido, traduzindo um modo próprio do agente estar em sociedade que revela um grau de perigosidade que pode merecer particular atenção. Neste sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.11.2011, Proc. N.º 508/10.0JAFUN.S1, relatado pelo Conselheiro Souto de Moura, disponível em www.dgsi.pt.

A especial perversidade por seu turno, representa um comportamento que traduz uma acentuada rejeição, por força dos sentimentos manifestados pelo agente que revela um egoísmo abominável. A decisão de actuar assenta em pressupostos absolutamente abomináveis, motivada por factores desproporcionais e absolutamente rejeitados pela sociedade. Neste sentido, Fernando Silva, in Direito Penal Especial, pág. 50-51.

Sendo o dever de correcção aquele que impenderá sobre os progenitores no exercício das suas responsabilidades parentais perante os filhos, de “velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”, tal como previstas no art. 1878.º, n.º 1, do Código Civil.

O dever de correcção pode assumir diferentes formas, consoante a situação em presença, sendo que uma conduta como o desferimento de bofetadas será, em abstracto, cogitável numa situação de comportamento censurável do filho, desde que, naturalmente, adequada à cessação do comportamento e proporcional à gravidade do mesmo.

Ora na situação vertente, estamos em crer que não se poderá falar em “comportamento censurável”, isto é, merecedor de repúdio, por parte da criança.

Simplesmente, o RG estaria nervoso e com receio da colheita de sangue e, portanto, receoso da dor que o procedimento acarreta ou dos instrumentos com que é feito, recusando-se a permitir a sua realização, sendo essencial atentar na motivação desta recusa.

Não podendo falar-se em comportamento censurável por parte da criança, importa procurar perspectivar a conduta do arguido no cumprimento do dever de o pai zelar pela saúde do filho.

Efectivamente, o que o arguido pretendia quando levou o filho ao gabinete de análises era velar pela sua saúde, quando ralhou com o mesmo, a fim de que permitisse a recolha de sangue (e pese embora as expressões utilizadas se nos afigurem mais desestabilizadoras do que aptas a acalmar a criança e a torná-la receptiva ao procedimento), ainda se pode entender que exercia esse dever de zelo.

Contudo, quando o arguido desfere três bofetadas na face do filho não mais está a zelar pela sua saúde, está, ao invés a ofender a sua saúde, tanto assim que, como se apurou, tal conduta não foi de molde a que a criança aceitasse fazer a colheita de sangue.

Responder com bofetadas a uma criança numa situação em que a mesma está acometida de medo e nervosismo não se integra no conceito de dever de correcção ou sequer de exercício das responsabilidades parentais nem em abstracto nem na situação a que se reportam os autos.

Mais, a conduta do arguido inusitada e desproporcionada face ao comportamento da criança e á motivação desse comportamento, é tanto mais censurável quando se tenha em atenção que infligiu ofensa significativa na saúde da criança que, estando já nervosa, passou a ficar não só (certamente mais) nervosa, como dorida e magoada.

Com tal comportamento, o arguido nada mais logrou do que molestar fisicamente o seu filho menor, que em momento algum terá reagido ou logrado de fugir da agressão, tal como a dinâmica dos autos evidencia.

Verificando a dinâmica da sua actuação, mister é concluir que era isso que pretendia, exercer a sua força física sobre a criança.

Face ao exposto, a conduta do arguido afigura-se como especialmente censurável, a merecer a qualificação do art. 145.º e 132.º, n.º 2, al. a) do Código Penal”

Ora compulsada a matéria fáctica apurada, temos em traços gerais que o arguido, mineiro de profissão, percorreu cerca de 17 kms (de Canhestros onde a família reside até Ferreira do Alentejo), para levar o filho RG a fazer análises clínicas, preocupado com a saúde deste último.

O filho com medo recusava-se a fazer as análises, o pai terá ralhado com o mesmo e mantendo-se a recusa procurou primeiro segurar o braço do menor, acabando enervado por lhe dar 3 estalos, não tendo as análises chegado a ser feitas naquele dia e local.

O menor ficou com a face avermelhada e com dores na zona atingida.

Perante esta situação passada no interior profundo do país (e não no Campo Pequeno ou no Rossio, em Lisboa), onde não existem laboratórios de análises clínicas em cada quarteirão, nem muito menos transportes de 5 em 5 minutos que facilitem a vida às pessoas, afigura-se-nos que se é certo que o arguido excedeu o respectivo poder-dever de correcção quando se descontrolou e deu 3 estalos no filho, com o que tão pouco conseguiu que a recolha de sangue ali se efectuasse, sendo neste enquadramento tal parte final do comportamento do arguido de reprovar, não se detecta, contudo, qualquer desprezo extremo pelo bem jurídico em causa ou egoísmo abominável, merecedores de um especial juízo de reprovação, necessariamente indispensável à subsunção dos factos no tipo de ofensa qualificada.

Daí que a factologia apurada integre, tão somente, a prática do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do Código Penal.

Importa não esquecer, como bem se escreveu no Ac. TRP de 2-4-2014, pr. 261/12.2 GDVFR.P1, in www.dgsi.pt, que muito justa e adequadamente a defesa trouxe à lide (que se reporta até a caso com foros de maior gravidade que o presente e no qual da mesma forma se entendeu desqualificar o tipo de crime em causa) que:

“Estamos numa área em que é imprescindível delimitar a fronteira entre o que constitui a esfera interior da família, bem como o exercício do dever de correcção e educação, e as condutas que requerem a intervenção do Direito Penal (cujo princípio da subsidiariedade reveste aqui especial acuidade, tendo em conta a gravidade das consequências no relacionamento futuro dos membros dessa família).

Perante a importância e “sensibilidade” dos valores em causa, impõe-se às entidades judiciárias uma actuação especialmente distanciada e equilibrada, que evite o “empolamento” das situações ou uma distorção na apreciação e avaliação dos casos (em parte gerada pela desmesurada difusão mediática de que alguns são objecto) ”.
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Esclarece-se, também, que não se evidencia neste caso qualquer falta de consciência da ilicitude, tal qual propugnava o recorrente em exclusivo com base na alteração da matéria de facto.

Confrontados com um crime de ofensa simples, entende o recorrente que não se evidencia nos autos a legitimidade do MP para o respectivo procedimento, aduzindo o seguinte:

“- em relação ao crime de ofensas à integridade física simples, o procedimento criminal depende de queixa, revestindo, pois, natureza semi-pública - artigo 143.º, nº 2 do CP.

- Daí deriva que a legitimidade do MP para promover o processo (e consequentemente deduzir a acusação) depende dessa queixa - cfr. art. 49º do CPP.

- Tratando-se de menor, se o direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas ao agente do crime, o MP pode dar início ao procedimento sempre que o interesse do menor o aconselhar - art. 113º, nº5, alínea a) do CP.

- Compulsados os autos, verifica-se que “nunca foi manifestada expressamente pelo MP a decisão de iniciar e seguir com o procedimento.”

-Não se verificando isso nos autos, tem-se por inexistente esse pressuposto processual constituído por uma queixa validamente formulada (ou suprida por decisão expressa do MP nesse sentido) do que deriva a ilegitimidade do M.P. para prosseguir o processo e deduzir acusação”.

E tem razão, já que resulta das folhas iniciais do processo que os factos foram participados ao MP pela CPCJ de Ferreira do Alentejo que recebera uma denúncia anónima e que o MP deu seguimento ao processo na perspectiva exclusiva da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada (vd. despacho de fls. 18), nunca tendo sido manifestada expressamente pelo MP qualquer decisão de iniciar e prosseguir o procedimento, ainda que fosse entendido estar-se apenas perante um crime semi-público, por o interesse do ofendido, no caso menor, o aconselhar, ao abrigo do disposto no art. 113º, nº5, al. a) do Código Penal.

Atente-se em que no presente caso a situação jamais seria acomodável ao art. 113º, nº5, al. b) CP uma vez que o direito de queixa sempre poderia ser exercido pela mãe do menor que não era agente do crime e manifestamente não o quis fazer.

E tal manifestação expressa do MP - embora não sindicável pelo Juiz - tem de se registar no processo, como bem se concluiu no já referido Ac. TRP de 2-4-2014.

Não se verificando a mesma, tem-se por inexistente esse pressuposto processual, constituído por uma queixa validamente formulada (ou suprida por decisão expressa do MP, nesse sentido), de que derivaria a legitimidade do mesmo MP para prosseguir o processo e deduzir acusação.

E sem esse juízo inicial, inexiste legitimidade posterior do MP para deduzir acusação por tais factos.
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III- Decisão
Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, julgando o recorrente LG incurso na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º do Código Penal e declarando extinto o procedimento criminal, por falta de legitimidade do MP.
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Évora, 6/2/2018

António Condesso

Ana Bacelar