Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1107/08-2
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: HOMOLOGAÇÃO DE TRANSACÇÃO APÓS SENTENÇA
PRINCÍPIO DO ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
Data do Acordão: 06/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário:
I - Enquanto não houver sentença com trânsito em julgado que ponha termo à instancia, é possível às partes transigir sobre a causa.
II – O acto de homologação não colide com o principio do esgotamento do poder jurisdicional do juiz, pelo que este pode e deve apreciar a transacção, mesmo que celebrada depois de proferida a sentença, mas antes do seu trânsito em julgado.
Decisão Texto Integral:
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Proc. N.º 1107/08-2
Apelação
2ª Secção
Tribunal Judicial da Comarca de Abrantes

Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
Recorrente:
Joaquina ............e marido
Recorridos:
Mário ............... e mulher.
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Joaquina ............ e marido, intentaram contra Mário .............. e mulher, a presente acção de condenação sob forma sumária, onde pediram além do mais, que estes fossem condenado a reconhecer que os AA. eram proprietários de um prédio que identificavam na P.I.
Os RR. foram citados e não contestaram. Foi proferida sentença julgando a acção procedente e condenando os RR. no pedido. Entretanto antes de transitar em julgado a sentença, AA. e RR. vieram lavrar termo de transacção. Submetida à apreciação do Sr. Juiz, este lavrou despacho onde diz que «o Tribunal está impedido de se pronunciar porque a mesma foi outorgada após ter sido proferida a sentença, pelo que, nos termos do disposto no art.º 666º n.º 1 do CPC, ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa».
Inconformados com o decidido, vieram os AA. interpor recurso de apelação, tendo formulado as seguintes
conclusões:
«1- A Douta Sentença proferida não tinha transitado em julgado no dia em que as partes se apresentaram na Secretaria a por termo ao Processo por transacção, logo a instância não estava extinta.
2- O Processo civil, está na disponibilidade das partes - artigo 3 do Código de Processo Civil.
3- Nos termos do artigo 293 n° 2 do Código de Processo Civil é licito às partes em qualquer estado da instância, transigir sobre o objecto da causa - foi o que aconteceu.
4- O facto do Juiz" a quo" já ter proferido decisão, tal facto, não impede de homologar a transacção nos termos acordados.
5- Neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa, o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal da Relação de Évora, pelos acórdãos referidos no artigo 9 destas Alegações que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
6- Logo o poder do juiz" a quo" não se esgota no processo com a proclamação da sentença pois este continua com a jurisdição do Processo e pode e deve apreciar todas as questões que lhe são apresentadas pelas partes, pois se assim não fosse também não podia admitir o requerimento de interposição do Recurso.
7- Do atrás exposto, resulta que o Meritíssimo Juiz" a quo " ao decidir como decidiu violou o disposto no artigo 666 n.º1, 293 n.º 2 e 294 do Código de Processo Civil, pois não teve em atenção, tais normativos legais, pois de acordo com o artigo 666 n.º1 ,do Código de Processo Civil, o Juiz não pode proferir outra sentença condenatória, mas pode proferir a sentença homologatória da transacção que lhe foi apresentada pelas partes.
Também nos termos dos artigos 293 n° 2 e 294 do Código de Processo Civil as partes podem através de transacção fazer cessar a causa nos precisos termos do acordo que apresentaram na Secretaria.
Ora, se o Processo está na disponibilidade das partes, o Juiz" a quo" não pode alegar esgotamento da sua capacidade jurisdicional , para homologar a transacção.
8-Motivo, pelo qual, o Tribunal ao decidir como decidiu violou também o disposto no artigo 668 n.º 1 alínea d) do C. P. Civil.
9- Devendo, ser revogado o douto despacho-sentença de que se recorre, por um outro que homologue a transacção efectuada pelas partes».
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Não houve contra-alegações.
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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente [1] , os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil) [2] , salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).
Das conclusões decorre que o objecto do recurso consiste em saber se após a prolação da sentença e antes do seu trânsito em julgado, o juiz está impedido de apreciar e homologar uma transacção judicial.
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Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
O artigo 666 .° do C6digo de Processo Civil preceitua :
«1 . Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto a matéria da causa .
2 . É licito, porém, ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer duvidas existentes na sentença e reforma-la quanto a custas e multa»
Celebrada uma transacção judicial, nos termos do disposto no art.º 300º n.º 3 do Código de Processo Civil, compete ao juiz examinar se pela qualidade das pessoas e pelo seu objecto a transacção é ou não válida «condenando-se ou absolvendo-se nos seus precisos termos». Do confronto destes preceitos, pode parecer, primo conspectu, que, proferido a sentença julgando a causa, já o tribunal não poderá exercer o seu poder de exame e homologação de posterior transacção.
Para compreensão do problema convém reflectir sobre o conteúdo e alcance do princípio consagrado no citado art.º 666º n.º 1 do CPC e nada melhor do que recorrer à fonte e a fonte próxima é Prof. José Alberto dos Reis que no volume V do seu Código de Processo Civil Anotado, pag. 126, escreve o seguinte:
« Qual o alcance e justificação do principio?
O alcance é o seguinte : o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível .
Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro .
Para ele a decisão fica sendo intangível .
Convém atentar nas palavras «quanto a matéria da causa» . Estas palavras marcam o sentido do principio referido . Relativamente a questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou despacho, o poder jurisdicional do seu signatário extinguiu-se . Mas isso não obsta, 6 claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida.
A justificação do principio a que nos referimos e fácil de descobrir . O principio justifica-se cabalmente por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática .
Razão doutrinal: o juiz quando decide, cumpre um dever - o dever jurisdicional - que e a contrapartida do direito de acção e de defesa .
Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante a do devedor que satisfaz a obrigação…. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se .
A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão Jurisdicional .
O poder jurisdicional extingue-se logo que a decisão foi exarada no processo e portanto mesmo antes de as partes serem notificadas».
Resulta de quanto ficou transcrito que, segundo o Prof . José Alberto dos Reis, proferido a sentença, antes mesmo da notificação, não é licito ao tribunal, por sua iniciativa, voltar a ocupar-se da matéria ou vir a tomar decisão que contrarie o decidido ou a respectiva fundamentação.
Porém o mesmo ilustre mestre aceita que possa haver homologação de transacção posterior à sentença sem que isso colida com o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, contanto que esta ainda não tenha transitado em julgado. É isso que decorre da sua Lição, in Comentário ao Código de Processo Civil, volume 3º, pag, 496, onde afirma que «o artigo 298 .°- actual 293º - admite a transacção em qualquer estado da instância. Pode, por isso, transigir-se logo em seguida a citação do réu e antes de oferecida a contestação, assim como já depois de julgada a causa na 1ª e na 2ª instancia contanto que a decisão não haja transitado em julgado».
De facto o artigo 293.° do Código de Processo Civil dispõe :
«1- ………………………
2- É lícito também as partes, em qualquer estado da instância, transigir
sobre o objecto da causa .»
Nos termos do disposto no art.º 287º do CPC, o julgamento é uma das causas de extinção da instância, tal como a desistência a confissão e a transacção, mas como ensina o Prof. Castro Mendes -Manual de Processo Civil, pag. 145 , quando se fala em julgamento como causa de extinção da instância seria mais correcto dizer-se «o transito em julgado da decisão que pelo julgamento se atinge. Com efeito, só a decisão com trânsito em julgado, nos termos do artigo 677º n.º 3 - actual artº 677 .° - extingue a instancia».
A expressão «em qualquer estado da instância» significa em qualquer estado da causa, enquanto não houver sentença com trânsito que ponha termo a instancia [3] . Pelo que nada obsta a que as partes possam por termo à instância por outra forma designadamente por transacção enquanto ela não se mostre extinta.
E nem se diga que com a homologação de uma transacção pelo mesmo juiz, após prolação da sentença o tribunal estará a dar o dito por não dito, ou a possibilitar que com a homologação da transacção se contrarie a decisão antes proferida. Esse risco não existe, porquanto a natureza da transacção é a de os contraentes «concederem mutuamente e não a de fixarem rigidamente os termos reais da situação controvertida» [4] . Na transacção não existe o ânimo de fixar ou determinar a situação jurídica anterior das partes [5] , mas apenas a atribuição de recíprocas concessões que «podem envolver podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido» -art.º 1248º do CC- como aliás até sucede na transacção a que se reportam os presentes autos, onde os AA. reconhecem também direitos aos RR. apesar de estes nada terem pedido.
Concluindo
Enquanto não houver sentença com trânsito em julgado que ponha termo à instancia, é possível às partes transigir sobre a causa.
O acto de homologação não colide com o principio do esgotamento do poder jurisdicional do juiz, pelo que este pode e deve apreciar a transacção, mesmo depois de proferida a sentença, mas sempre antes do seu trânsito em julgado [6] .
Pelo exposto, acorda-se na procedência da apelação e revoga-se o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro que aprecie a validade e regularidade da transacção constante dos autos.
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Sem custas (art.ºs 2º n.º 1 al. g) do CCJ).
Registe e notifique.
Évora, em 26 de Junho de 2008.

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(Bernardo Domingos – Relator)

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( Silva Rato – 1º Adjunto)

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(Sérgio Abrantes Mendes– 2º Adjunto)




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[1] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa –1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[3] Cons. Rodrigues Bastos - Notas ao Código de Processo Civil, volume II, pag . 80
[4] Profs . Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, pag . 609
[5] Profs . Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, pag . 609.
[6] Neste sentido cfr. Ac. do STJ de 17 de Junho de 1987, in BMJ, 368/508; Ac. do STJ de 14/3/90, in AJ 2º/90, pag. 14; Ac. da RL de 31/05/74, in BMJ 237/301 e Ac. da RE de 26/06/90, in BMJ 398/611.