Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2175/03-1
Relator: MANUEL NABAIS
Descritores: CONTRADIÇÃO INSANÁVEL ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO
IN DUBIO PRO REO
DEPOIMENTO INDIRECTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CONVERSAS INFORMAIS
GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO
GARANTIAS DO PROCESSO CRIMINAL
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
ARGUIDO
SUSPEITO
CONFISSÃO
Data do Acordão: 01/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I. Não existe contradição entre a fundamentação da sentença em que o tribunal considera provável que o arguido tenha cometido o crime que lhe é imputado na acusação e a decisão de o absolver desse crime.

II. As denominadas “conversas informais” dos órgãos de polícia criminal com o arguido, antes ou depois de assumir essa qualidade, sobre factos em investigação, são desprovidas de valor probatório.

III. Tendo-se o arguido remetido ao silêncio na audiência de julgamento, não pode ser valorada a sua (eventual) confissão do crime, feita perante um órgão de polícia criminal, com base na qual foi levantado o auto de notícia que o deu como agente daquele crime.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I- Submetido a julgamento em processo abreviado, no Tribunal Judicial da Comarca de …, mediante acusação deduzida pelo MP, foi o arguido A absolvido de um crime de condução sem a legal habilitação, p. e p. pelo artº 3º, n.ºs 1 e 2 do DL nº 2/98, de 3JAN, com referência aos artºs 122º, n.º1 e 123º, ambos do Cód. da Estrada.
Inconformado, interpôs recurso o MP, sintetizando o seu inconformismo nas seguintes conclusões, que extrai da respectiva motivação:
1- O Ministério Público imputou ao arguido um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo art. 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro por, em súmula, no dia … de … de …, pelas … horas, na Estrada Nacional n.º…, ao quilómetro …, concelho de …, circular ao volante de um veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula …- …-…, sem que para tal estivesse legalmente habilitado.
2- A testemunha B, soldado da Guarda Nacional Republicana, afirmou que no exercício das suas funções procedeu a diligências para apurar quem era o condutor do veículo …- …-… que se tinha despistado, no dia … de …de…, pelas … horas, na Estrada Nacional n.o …, ao quilómetro…, concelho de ….
3- Segundo a testemunha, tais diligências conduziram ao arguido, o qual, espontaneamente e no local onde foi encontrado, de viva voz, disse-lhe ter sido ele quem guiava a viatura.
4- Em julgamento o arguido remeteu-se ao silêncio.
5- O Tribunal “a quo” textualmente considerou que face à prova produzida provavelmente tinha sido o arguido quem conduzia o automóvel nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, mas absolveu-o porque entendeu que não podia valorar o depoimento do soldado da GNR na parte relativa à confissão do daquele, uma vez que tal violaria o disposto no artigo 356°, n.° 7, do Código de Processo Penal.
6- Há contradição insanável entre a. fundamentação e a decisão da sentença, já que o Tribunal “a quo” não pode, de um lado, considerar provável que o arguido tenha cometido o crime e, de outro lado, absolvê-lo.
7- Assim, o Tribunal “a quo” violou o disposto no art. 410º, n° 2, al. b) do Código de Processo Penal.
8- O que o artigo 356°, n.º 7, do Código de Processo Penal proíbe é a inquirição na qualidade de testemunha do órgão de polícia criminal que recebeu e exarou em auto as declarações prestadas pelo arguido - o que não aconteceu no caso vertente.
9- O soldado da GNR não se limitou a reproduzir o depoimento de outrem. Pelo contrário, relatou ao tribunal as diligências que directamente realizou em ordem a fazer concluir que o arguido era a pessoa que tinha cometido o crime.
10- O tribunal pode valorar livremente o depoimento indirecto da testemunha que relate uma conversa tida com o arguido, em que este admite a prática dos factos que lhe eram imputados, sendo que este, uma vez chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio.
11- Aliás, qualquer pessoa que participou no julgamento ou que a ele assistiu não tem dúvidas de que era o arguido quem conduzia o veículo.
12- Ao interpretar o artigo 356°, n.º 7, do Cód. Processo Penal no sentido de que, não poder ser valorado o relato da conversa mantida entre o arguido e o soldado da GNR, o Tribunal “a quo” violou os artigos 127°,129° e 356°, n.º 7, todos do Código de Processo Penal.
13- Face ao depoimento do soldado da GNR e ao silêncio do arguido existem elementos suficientes para se proceder à condenação deste.

O arguido não respondeu.
Nesta Relação, o Exº Procurador-Geral-Adjunto emitiu Douto Parecer em que, subscrevendo, na íntegra, a posição sustentada pelo MP junto da 1ª instância, conclui no sentido do provimento do recurso.
Cumprido o disposto no artº 417º, n.º 2 do CPP, o arguido, uma vez mais, remeteu-se ao silêncio.
Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.
*
II- a) É a seguinte a decisão de facto e respectiva justificação:
“Discutida a causa, não se provaram quaisquer dos factos da acusação. Concretamente, não se provou que:
    1. No dia …/…/…, pelas … horas, na Estrada Nacional nº …, quilómetro …, concelho de …, o arguido circulava ao volante de um veículo automóvel de matrícula …-…-…, sem que para tal estivesse legalmente habilitado.
    2. O arguido sabia que não possuía habilitação legal para conduzir na via pública. Actuou livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
O decidido resultou da prova produzida em julgamento, em sede da qual o arguido usou do seu direito ao silêncio, não tendo prestado declarações. Quanto à testemunha ouvida B – soldado da GNR de Tavira - não revelou conhecimento directo dos factos, na medida em que, apesar de se ter deslocado ao local onde ocorreu um acidente no dia …/…/…, na EN …, apenas encontrou alguns vestígios, encontrando a cerca de 100 metros o veículo de matrícula …-…-… . Segundo as diligências efectuadas, apurou então que o veículo em questão havia sido entregue pelo proprietário inscrito no registo a um stand, cujo legal representante disse à testemunha que o carro se encontrava na posse do arguido.
A conjugação de tais elementos aponta para a probabilidade de o arguido ter cometido o crime de que está acusado. Contudo, os referidos elementos não se revestem da segurança necessária para permitir a sua condenação, sendo certo que a eventual confissão do arguido ao soldado da GNR, que acabou por ser transcrita para auto, não pode ser valorada nos termos do art. 356º/7 do Cód. Processo Penal.”

Exposta a matéria de facto provada e a considerada não provada bem como a respectiva justificação, vejamos qual a resposta a dar às questões pelo recorrente suscitadas nas conclusões que extrai da motivação do recurso pois que, de harmonia com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, são elas que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum.
II-b) Nas conclusões que extrai da motivação do recurso - e, de harmonia com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, são elas que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum - começa o MP por assacar à sentença recorrida o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, referido no artº 410º, n.º2, al. c) do CPP (diploma a que pertencem todas as disposições legais que vierem a ser citadas sem indicação de origem).
Para concluir pela existência de tal vício sustenta o Douto Recorrente que o “Tribunal a quo não pode, de um lado, considerar provável que o arguido tenha cometido o crime e, de outro lado, absolvê-lo.”
Existe contradição entre a fundamentação e a decisão quando se constata a incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre a fundamentação probatória e a decisão; quando, por outras palavras, a fundamentação aponta para determinada decisão e esta é completamente estranha à fundamentação que dela consta [1] ., o que, manifestamente, não é o caso.
Com efeito, são quatro os estados do espírito perante a verdade: ignorância, dúvida, probabilidade e certeza.
Ora, como é sabido - se para a pronúncia como para a acusação não exige a lei a certeza da existência do crime, contentando-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência de um crime, fazendo nascer a convicção de que, com a ampla discussão do caso em julgamento, existe uma probabilidade ou possibilidade razoável de condenação do arguido, por esse crime - já para a condenação exige a certeza da prática do crime pelo arguido. O mero juízo de probabilidade da prática do crime pelo arguido (que, repete-se, a acusação e a pronúncia implicam) não basta, pois, para a sua condenação: é essencial um juízo de certeza, sob pena de violação do princípio in dubio pro reo, que surge associado ao da presunção de inocência do arguido - constituindo ambos “a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena” [2] - a que a Lei Fundamental (artº 32º, n.º 2) confere dignidade constitucional.
A condenação do arguido, com base na mera probabilidade de ter cometido o crime, constituiria grave violação do princípio fundamental do direito processual penal in dubio pro reo, que impõe ao juiz que, na decisão de factos incertos, relevantes para a solução da causa, se pronuncie em sentido favorável ao arguido, bem como proíbe, em processo penal, a inversão do ónus da prova em detrimento do arguido.
Vale isto por dizer que a probabilidade (que não a certeza) de o arguido ter cometido o crime, na óptica do tribunal recorrido, só poderia conduzir, como conduziu, à decisão de o absolver, havendo, assim, perfeita sintonia entre a fundamentação e a decisão.
Inexiste, pois, o vício da contradição entre a fundamentação e a decisão, pelo MP apontado à sentença recorrida.

II-c) Sustenta o Douto Recorrente que “o soldado da GNR não se limitou a reproduzir o depoimento de outrem. Pelo contrário, relatou ao tribunal as diligências que directamente realizou em ordem a fazer concluir que o arguido era a pessoa que tinha cometido o crime.”
Por outro lado, “o tribunal pode valorar livremente o depoimento indirecto” do referido soldado da GNR B, que relatou “uma conversa tida com o arguido, em que este admite a prática dos factos que lhe eram imputados, sendo que este, uma vez chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio.”
Vejamos qual a solução a dar a estas questões.
Para dar como não provados os factos na acusação imputados ao arguido considerou o tribunal recorrido que a testemunha B, soldado da GNR - única prova produzida em julgamento, tendo o arguido usado do seu direito ao silêncio - “não revelou conhecimento directo dos factos, na medida em que, apesar de se ter deslocado ao local onde ocorreu um acidente no dia …/…/… na EN …, apenas encontrou alguns vestígios, encontrando a cerca de 100 metros o veículo de matrícula …-…-… . Segundo as diligências efectuadas, apurou então que o veículo em questão havia sido entregue pelo proprietário inscrito no registo a um stand, cujo legal representante disse à testemunha que o carro se encontrava na posse do arguido.”
Por outro lado, “a eventual confissão do arguido ao soldado da GNR, que acabou por ser transcrita para auto, não pode ser valorada nos termos do art. 356º/7 do Cód. Processo Penal.”

Tendo como pano de fundo as questões pelo MP suscitadas, há que distinguir, no depoimento da testemunha B, três situações: a referente aos factos de que tomou conhecimento através das diligências por ela levadas a cabo, na sequência do acidente em causa (deslocação ao local onde ocorreu o acidente, ali encontrando alguns vestígios e, a cerca de 100 metros, o veículo de matrícula …-…-…, vindo a apurar que havia sido entregue pelo proprietário inscrito no registo a um stand); a respeitante ao que o legal representante do stand lhe disse (ou seja, que o carro se encontrava na posse do arguido); e, finalmente, a relativa à conversa informal que manteve com o arguido, no decurso da qual este terá admitido a prática dos factos que lhe são imputados na acusação.
Antes de prosseguirmos, importa esclarecer que, contrariamente ao que a motivação da decisão da matéria de facto inculca, a eventual confissão do arguido ao soldado da GNR, não foi reduzida a auto” [3] , mas apenas referida no auto de notícia levantado em … … … , antes de adquirir a qualidade de arguido, o qual, submetido a interrogatório, no âmbito do inquérito, em … … … e após a sua constituição como tal, respondeu que “de momento não presta declarações”.
Prestado este esclarecimento, debrucemo-nos sobre as questões que reclamam solução.
No primeiro caso (factos de que o soldado da GNR B tomou conhecimento através das diligências por ele levadas a cabo), estamos perante um depoimento directo, que será apreciado segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (artº 127º).
Por força do princípio da livre apreciação da prova, ao qual estão, de todo em todo, submetidas as declarações das testemunhas, do assistente, das partes civis e do arguido [4] - não estando em causa, como, in casu, não está, prova tarifada ou legal - o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova é insindicável pelo tribunal de recurso, havendo apenas que indagar se é contrariado pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica. Não se mostrando que, de harmonia com tais critérios, seja arbitrária, infundada ou manifestamente errónea, prevalece, nos termos do cit. artº 127º, sendo irrelevante a visão pessoal com que os intervenientes processuais tenham ficado.
Nesta parte, o depoimento da testemunha B é manifestamente insuficiente para considerar provado que era o arguido quem conduzia o veículo em questão, no dia, hora e local referidos na acusação.

Na parte em que refere que o legal representante do stand lhe disse que “o carro se encontrava na posse do arguido” o depoimento da testemunha B é indirecto, não podendo, pois, nessa parte, servir como meio de prova já que o legal representante não foi chamado a depor, não constando que a sua inquirição fosse impossível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada (artº 129º, n.º 1). E pouco ou nada adiantaria chamá-lo a depor uma vez que o que está em causa é saber se era o arguido quem conduzia o veículo, e não quem era o seu possuidor, sendo certo que poderia ser conduzido por outrem que não o seu possuidor

No que concerne à “conversa tida com o arguido, em que este admite a prática dos factos que lhe eram imputados”, o depoimento da referida testemunha B coloca-nos perante a questão largamente debatida na doutrina e na jurisprudência do valor da prova resultante de “conversas informais” dos órgãos de polícia criminal com o suspeito ou alguém em vias de assumir a qualidade de arguido, ou mesmo já depois de como tal constituído, à margem, pois, da tramitação dos autos de inquérito, em conexão ou não com o denominado testemunho de ouvir dizer.
Em abono da tese da admissibilidade da prova resultante de conversas informais, à qual adere o MP, argumenta-se que, precisamente porque se trata de “conversas informais”, não há que falar em “declarações cuja leitura não é permitida”, nos termos do artº 356º, n.º 7, podendo, pois, os agentes ser inquiridos, a menos que se logre prova convincente de que os agentes deliberadamente optaram por aquele meio de prova para fugir à proibição da leitura de declarações do arguido em julgamento.
Aliás, diz-se também, “falta demonstrar que o artº 129º do CPP proíbe o depoimento por ouvir dizer quando quem diz é o arguido”.
Por outro lado, estando os arguidos presentes na audiência, “puderam, por isso, tomar posição perante os depoimentos prestados pelos [...] agentes e contribuir desse modo para minar a credibilidade desses depoimentos, já de si de relevo probatório muito reduzido” [5] . E a circunstância de o arguido ter optado pelo direito ao silêncio não altera os dados do problema.
Divergindo deste entendimento, decidiu o STJ [6] , na linha, aliás, de anterior jurisprudência, que devem ser pura e simplesmente expurgadas de consideração conversas informais do arguido com agentes da PJ. Tais conversas informais, a propósito de factos em averiguação, estão sujeitas ao princípio da legalidade, proclamado no artº 2º do CPP, a que o artº 29º da Lei Fundamental confere dignidade constitucional (nulla poena sine judicio), apenas podendo ser aplicada em processo penal uma pena ou medida de segurança. “O processo, organizado na dependência do MP, tem de obedecer aos ditames dos artigos 262º e 267º. Por isso as ditas «conversas informais» só podem ter valor probatório se “transpostas para o processo em forma de auto e com respeito pelas regras legais de recolha de prova. [...] não há conversas informais, com validade probatória, à margem do processo, sejam quais forem as formas que assumam desde que não tenham assumido os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela sancionados [...]”
O uso de conversas informais não documentadas e fora de qualquer controlo traduzir-se-ia em fraude à lei.
Perfilhamos este último entendimento.
Com efeito, por imperativo constitucional, o processo penal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (artº 32º, n.º 1 da CRP).
«Todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente - não apenas as explicitadas nos artigos seguintes (presunção de inocência do arguido, direito a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, direito à escolha e à assistência de defensor, judicialização da instrução, estrutura acusatória do processo, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório, nulidade das provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações e, finalmente, o princípio do juiz natural ou legal) - «todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente, dizíamos, “todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação” [7] .
Emanação daquele comando constitucional, o estatuto do arguido, definido no artº 61º, além de reafirmar alguns dos referidos direitos com dignidade constitucional, consagra, entre outros, o direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados.
E das garantias de defesa associadas ao estatuto processual do arguido decorre a obrigatoriedade de constituição oficiosa de arguido sempre que durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometida, suspendendo imediatamente o acto, para aquele efeito, a entidade que a ele procede (n.º 1 do artº 59º), bem como (decorre) o direito de a pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime ser constituída, a seu pedido, como arguido sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem (n.º 2 do mesmo artº).
A inobservância do disposto no cit. artº 59º implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela (n.º 4 do artº 58º, aplicável ex vi do n.º 3 do artº 59º).
E as garantias estatutárias de defesa exigem a suspensão imediata do acto e consequente obrigatoriedade de constituição oficiosa de arguido sempre que durante qualquer inquirição feita a pessoa que ainda não assumiu aquela qualidade, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, quer se trate de inquirição no processo quer se trate de “inquirição informal” (leia-se conversa informal) susceptível de valoração processual.
Efectivamente, se a inquirição, no processo, de uma pessoa suspeita da prática de um crime, com violação ou omissão das formalidades previstas nos n.ºs 1 a 3 do artº 58º, implica, por exigência das garantias de defesa, que as declarações prestadas pela pessoa visada não possam ser utilizadas como prova contra ela, não se divisa qualquer razão plausível para que uma conversa informal com uma pessoa que ainda não tem o estatuto de arguido nem tem, por isso e nomeadamente, o direito de ser assistida por defensor, ou tendo tal estatuto não foi assistida por defensor (conversa essa, aliás, tida, sabe-se lá, em que circunstâncias, não sendo até de excluir uma errada interpretação das palavras da pessoa visada), não tenha o mesmo tratamento.
Não se olvide que o arguido não é um objecto do processo, mas um sujeito do processo, o que, aliás, justifica o seu direito à escolha (e não apenas à assistência) de defensor.
Sustenta o Douto Recorrente que “o soldado da GNR não se limitou a reproduzir o depoimento de outrem. Pelo contrário, relatou ao tribunal as diligências que directamente realizou em ordem a fazer concluir que o arguido era a pessoa que tinha cometido o crime”.
Só que, diremos nós, o “relato” das diligências realizadas, no aspecto ora em causa, incide sobre a confissão do arguido.
E porque, em julgamento, o arguido se remeteu ao silêncio, inviabilizada ficou a prova resultante da sua (eventual) confissão. Extrair ilações do silêncio do arguido, equivaleria a negar-lhe o direito ao silêncio. E em Direito, não vale a máxima quem cala consente, mas estoutra: quem cala nada diz, pura e simplesmente. Por outras palavras: ao silêncio não pode atribuir-se o significado de sim, talvez ou não.
Por outro lado, todos os interrogatórios de arguido - inclusive os que podem ser feitos por órgão de polícia criminal - estão sujeitos a um apertado formalismo (artºs 141º, 143º e 144º), nele se incluindo, como regra, a redução a auto (que pode ser redigido por súmula), salvo se o MP o entender desnecessário (artº 275º).
O cit. Ac. do STJ, de 11JUL01 extrai do dispositivo do artº 250º um argumento de peso a favor da não admissão das ditas “conversas informais” entre órgãos de polícia criminal e suspeitos ou arguidos e, para além delas, “mesmo a respeito de autos (de ocorrência) que venham a ser lavrados ou relatórios elaborados nos termos do artº 253º, onde porventura se incluam referências à confissão do arguido”.
Dispõe o n.º 8 daquele art.º 250º: “Os órgãos de polícia criminal podem pedir ao suspeito, bem como a quaisquer pessoas susceptíveis de fornecerem informações úteis, e deles receber, sem prejuízo, quanto ao suspeito, do disposto no artº 59º, informações relativas a um crime e, nomeadamente, à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária”.
Aquele acórdão faz notar que «a norma está inserida numa disposição que vai dirigida para a actuação dos órgãos de polícia criminal em lugares públicos, onde se contactam pessoas por fundada suspeita de envolvimento na prática de crimes - em flagrante, quase flagrante, como será a regra - ou em permanência irregular no território nacional ou por existência de mandado de detenção contra as mesmas.
Tal actuação é determinada pela urgência da situação, destinada à descoberta e à conservação de meios de prova. Mas quanto à recolha de informações úteis relativas ao crime, logo se ressalva, em relação ao suspeito, o disposto no artº 59º [...]
Ou seja, no momento em que surja fundada suspeita de que a “fonte de informação” pode coincidir com o arguido de um crime, o agente de órgão de polícia criminal suspende de imediato o acto de pedido de informações, sob pena de tais declarações não poderem ser usadas contra ela - n.º 3 do artº 59º e n.º 4 do artº 58º».
Por outro lado, diz-se no mesmo acórdão, “se ao MP assiste a faculdade de conferir aos órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito, até mesmo por despacho de natureza genérica, não se conceberia, na economia do sistema, especialmente dos actos não delegáveis, a permissão para interrogatórios sem redução a auto e sem observância das restantes formalidades, nomeadamente de assistência de defensor. Tanto menos aceitável quanto o sistema de controlo teoricamente deixa muito a desejar”.
Em suma: tendo-se o arguido remetido ao silêncio na audiência de julgamento, não pode ser valorada a sua (eventual) confissão do crime, feita perante um órgão de polícia criminal, com base na qual foi levantado o auto de notícia que o deu como agente daquele crime.

III- Face ao exposto, na improcedência do recurso, confirma-se a sentença recorrida.

Não é devida tributação.
Honorários da ilustre Defensora Oficiosa nos termos da tabela anexa à Portaria nº 150/2002, de 19FEV.

Évora, 13 de Janeiro de 2004

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Manuel Nabais
Sérgio Poças
Orlando Afonso
Ferreira Neto




______________________________

[1] Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 4ª ed, p. 72, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., p. 341.
[2] J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 204.
[3] Auto é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolam os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido perante aquele (artº 99º, n.º 1 do CPP).
[4] No concernente à confissão do arguido dos factos que lhe são imputados, releva a fase processual e a forma da confissão para determinar os seus efeitos probatórios, muito embora seja sempre válido o princípio de que o valor probatório da confissão será sempre livremente apreciado pelo tribunal. É que, mesmo nos casos em que a lei atribui efeitos especiais à confissão integral e sem reservas, com a consequente dispensa de produção de outra prova, tal apenas sucede num momento posterior ao funcionamento do princípio da livre apreciação da confissão pelo tribunal para determinar se a mesma reveste ou não características de «confissão livre, integral e sem reservas», como diz o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, Pgs. 169/170).
[5] Ac. do STJ, de 29MAR95, BMJ, 445-279. No mesmo sentido, Acs do STJ, de 13MAI92, CJ, 1992, t. III, p. 19, 24FEV93, CJ/STJ, 1993, t. I, p. 202, 13MAI99, Proc. n.º 201/99 (quanto às conversas informais), cujo sumário se encontra publicado na Base de Dados da DGSI, sob o n.º SJ199905130002013, e de 20NOV02, CJ/STJ, 2002, t. III, p. 232.
[6] Ac. de 7FEV01, Proc. n.º 4/00- 3ª; idem nos Acs. de 10JAN01-Proc. n.º 2539/00-3ª e 11JUL01, CJ/STJ, 2001, t. III, p.167, onde são citados os dois primeiros arestos.
[7] J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p.202.