Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
179/07.0GBPSR-A.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: SUBSTITUIÇÃO DA MULTA POR TRABALHO
PRAZO
Data do Acordão: 01/08/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: O prazo previsto no art. 490.º, n.º 1, do CPP, para requerimento da substituição da multa por dias de trabalho, não tem natureza peremptória, pelo que o seu decurso não preclude a possibilidade de vir a ser formulado mais tarde e ser deferido.
Decisão Texto Integral:
Processo nº 179/07.0GBPSR-A.E1


Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:



I - RELATÓRIO

Por despacho de 13-05-201O, proferido no âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 179/07.0GBPSR, que corre termos no Tribunal Judicial de Ponte de Sôr, foi deferido o pedido do arguido de substituição da pena de multa por dias de trabalho.
Deste despacho interpôs o Ministério Público o presente recurso, terminando a respectiva motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
“1 - Por sentença de 17 de Novembro de 2008, o arguido A foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5, perfazendo o total de € 400;
2 - Dessa sentença foi o arguido notificado em 23 de Novembro de 2008, tendo a mesma transitado em julgado em 5 de Janeiro de 2009;
3 - Das guias para pagamento da multa foi o arguido notificado em 9 de Fevereiro de 2009, sendo a data limite de pagamento 24 de Fevereiro de 2009;
4 - Apenas após ter sido notificado para vir explicar ao tribunal o motivo pelo qual não tinha procedido ao pagamento da multa em dívida, veio o arguido requerer, em 3 de Novembro de 2009, a substituição da multa por trabalho a favor da comunidade;
5 - Nos termos das disposições conjugadas do disposto no artigo 489.º, nºs 1 e 2, e artigo 490.º do Código de Processo Penal, o requerimento para a substituição da multa por dias de trabalho a favor da comunidade é apresentado no prazo de 15 dias após a notificação para o pagamento (da multa).
6 - A decisão da Meritíssima Juíza a quo que, a 13 de Maio de 2010, deferiu a substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade violou o disposto nos artigos 490.º, n.º 1 e 489.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal;
7 - O prazo previsto no artigo 490.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tem natureza peremptória;
8 - Mesmo entendendo que o prazo previsto no artigo 490.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não tem natureza peremptória, não deve ser admitido tal requerimento decorridos mais de oito meses desde a data limite de pagamento da multa;
9 - O deferimento, em tais situações, coloca na disponibilidade do condenado a forma e tempo de cumprimento da pena, prejudicando de forma grave a eficácia penal da multa.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser o despacho proferido pela Meritíssima Juíza a quo substituído por outro que determine o pagamento integral da multa e indefira a requerida substituição da pena de multa por trabalho a favor da comunidade”.
*
Não foi apresentada resposta ao recurso.
Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, entendendo que deve ser negado provimento ao recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objecto do recurso.

Tendo em conta as conclusões acima enunciadas, que delimitam o objecto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, é apenas uma, em síntese, a questão que vem suscitada no presente recurso:
- Saber se os prazos previstos nos artigos 489º e 490º do C. P. Penal são ou não peremptórios.


2 - O despacho recorrido.

O despacho revidendo é do seguinte teor:
“Por sentença de 17.11.2008, transitada em julgado em 05.01.2009, o arguido foi condenado na pena de 80 dias de multa, à razão diária de € 5,00.
Entretanto, a fls. 143, o arguido veio justificar o não pagamento atempado da pena de multa e requerer a substituição daquela pena por dias de trabalho.
Dada vista ao Ministério Público, o mesmo opôs-se à requerida substituição.
Entretanto, conforme despacho de fls. 148, a DGRS elaborou e juntou aos autos plano de execução de prestação de trabalho a favor da comunidade (cfr. nº 2 do artigo 490º do CPP), contendo uma breve caracterização sócio-familiar do arguido, o seu enquadramento profissional, a sua disponibilidade e motivação, e propondo, a final, que o arguido preste trabalho na Câmara Municipal de Ponte de Sôr, no sector de limpeza de espaços verdes.
Dada vista ao Ministério Público, o mesmo opôs-se a substituição, por ser extemporâneo o requerido.
Ora, é certo que tal requerimento foi apresentado manifestamente fora do prazo a que alude o nº 2 do art. 489º, aplicável ex vi nº 1 do art. 490º, ambos do Cód. Proc. Penal.
Porém, tal requerimento visa obstar à conversão da pena de multa na prisão subsidiária, pelo que, considerando que a execução de pena detentiva apenas se deve verificar depois de esgotadas as demais possibilidades, se entende que o mero decurso daquele prazo não preclude a faculdade de ser formulado tal requerimento.
Por outro lado, conforme resulta do relatório supra mencionado, o arguido encontra-se familiarmente integrado, bem como motivado para trabalhar, e, apesar de possuir baixas qualificações profissionais, através do seu trabalho poderá dar um contributo importante para a comunidade em que se encontra inserido e, em simultâneo, aumentar a sua valorização pessoal e profissional.
Considera-se, assim, que o plano de execução apresentado assegura as finalidades subjacentes à punição.
Face ao exposto, e atento o disposto no art. 48º do Cód. Penal, defere-se a requerida substituição da pena de multa na qual o arguido A foi condenado nos presentes autos, por dias de trabalho na Câmara Municipal de Ponte de Sôr, pelo período de 80 (oitenta) horas, em horário a acordar com a entidade beneficiária, durante a semana ou aos fins-de-semana, tendo em conta o disposto nos nºs 3 e 4 do art. 58º, aplicável ex vi nº 2 do artigo 48º do Código Penal.
Notifique, sendo que o arguido deverá igualmente ser notificado do teor do art. 7º do Decreto-Lei nº 375/97, de 24/12 (cfr. também art. 15º deste diploma.
Comunique, nos termos do nº 3 do artigo 490º do CPP”.


3 - Factos com relevo para a decisão.

Com interesse para a decisão a proferir, há que considerar os factos e as circunstâncias seguintes:
a) O arguido A foi condenado nestes autos, por sentença proferida em 17-11-2008, e devidamente transitada em julgado, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 5 euros (o que perfaz o montante global de 400 euros), pela prática de um crime de condução sem habilitação legal.
b) O arguido, em 09-02-2009, foi notificado para proceder ao pagamento dessa pena de multa (e das custas em que também foi condenado), sendo que a data limite de pagamento era 24 de Fevereiro de 2009.
c) O arguido, nessa altura, não requereu o pagamento da pena de multa em prestações, nem requereu a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade.
d) Em 03-11-2009, o arguido requer a substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade.
e) Por despacho de 27-11-2009, a Mmª Juíza entendeu não ser de indeferir liminarmente o pedido do arguido, tendo solicitado à Direcção-Geral de Reinserção Social que informasse sobre a possibilidade de o arguido prestar trabalho a favor da comunidade.
f) Recebido o relatório da DGRS, e através do despacho objecto do recurso (datado de 13-05-2010), a Mmª Juíza deferiu a requerida substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade.


4 - Apreciação do mérito do recurso.

Entende o Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente que, in casu, o requerimento do arguido a solicitar a substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade é extemporâneo, já que foi apresentado para além dos prazos previstos nos artigos 489º e 490º do C. P. Penal, prazos estes que têm natureza peremptória.
Ao contrário, no despacho recorrido entendeu-se que ainda se podia deferir, como se deferiu, o requerimento do arguido para substituição da pena de multa por dias de trabalho.
Cumpre decidir.
O artigo 47º do Código Penal define os traços fundamentais da pena de multa (moldura/regra, taxa diária, e a possibilidade do seu pagamento diferido ou em prestações).
Por sua vez, o artigo 48º do Código Penal prevê a possibilidade de substituição da multa por trabalho, dispondo, no seu nº 1: “a requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho …, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Já no C. P. Penal, preceitua o respectivo artigo 489º, sob a epígrafe “prazo de pagamento”, que “a multa é paga após o trânsito em julgado da decisão que a impôs e pelo quantitativo nesta fixado, não podendo ser acrescida de quaisquer adicionais” (nº 1); “o prazo de pagamento é de 15 dias a contar da notificação para o efeito” (nº 2); “o disposto no número anterior não se aplica no caso de o pagamento da multa ter sido deferido ou autorizado pelo sistema de prestações” (nº 3).
Por seu turno, sob a epígrafe “substituição da multa por dias de trabalho”, dispõe o artigo 490º do mesmo C. P. Penal, que “o requerimento para substituição da multa por dias de trabalho é apresentado no prazo previsto nos nº 2 e 3 do artigo anterior…” (nº 1), e que “em caso de não substituição da multa por dias de trabalho, o prazo de pagamento é de quinze dias a contar da notificação da decisão” (nº 4).
Numa interpretação puramente literal destes preceitos legais, seria de concluir que o condenado em pena de multa, que pretenda vê-la substituída por dias de trabalho, teria, necessariamente, de requerer tal substituição no decurso do prazo de 15 dias a que alude o referido artigo 489º, nº 2, do C. P. Penal.
Porém, e com o devido respeito pela opinião contrária, não se justifica, a nosso ver, uma tal interpretação (tão literal e restritiva).
Na verdade, a figura da substituição da multa por dias de trabalho remonta já ao Código Penal de 1886, em cujo artigo 123º se previa que, na falta de bens suficientes e desembaraçados, a pena de multa podia ser modificada na sua execução “pela substituição por prestação de trabalho” (posteriormente, com a publicação do D.L. nº 371/77, de 05/09 - que alterou a redacção desse artigo 123º -, ficou ainda mais claro que o cumprimento da prisão aplicada em alternativa à pena de multa apenas teria lugar quando a multa não fosse paga, não pudesse ser executada, e não pudesse ser substituída por dias de trabalho, desenhando-se assim, manifestamente, a opção do legislador pelas vias de cumprimento não detentivas e pela recusa das penas curtas de prisão, surgindo a prisão alternativa como a derradeira solução, quando todas as demais tivessem falhado).
O Código Penal de 1982 acentuou, ainda mais, esta opção do legislador, impondo a aplicação, sempre que possível, de sanções penais não detentivas, como decorre, desde logo, do ponto nº 10 da “Introdução” a tal Código Penal: “é (…) nas medidas não detentivas que se depositam as melhores esperanças. Assim, e desde logo, na multa, que, ao lado da prisão, o Código consagra como outra das penas principais. (…) Referência especial merece o regime proposto para o caso da não pagamento da multa. Face à proibição da sua conversão em prisão (que é o sistema tradicional, praticado ainda na generalidade dos países), houve que definir um regime variado que, embora se propusesse tornar realmente efectiva a condenação, não deixasse de tomar em conta uma vasta gama de hipóteses (desde a simples recusa, sem motivo sério, de pagar até aos casos em que a razão do não cumprimento não é imputável ao agente) que podem levar ao não pagamento da multa. Daí a regulamentação extensa dos artigos 46º e 47º que prevê o pagamento diferido ou em prestações, o recurso à execução dos bens do condenado, a substituição, total ou parcial, da multa por prestação de trabalho em obras e oficinas do Estado ou de outras pessoas de direito público e, finalmente - mas só se nenhuma dessas outras modalidades de cumprimento puder ser utilizada -, a aplicação da prisão pronunciada em alternativa na sentença”.
Com a revisão do Código Penal, operada pelo D.L. nº 48/95, de 15/03, a figura da substituição da multa por trabalho ficou prevista no supra transcrito artigo 48º do Código Penal, passando a definir-se, com clareza, duas exigências para a aplicação de tal substituição:
1ª - A exigência de requerimento do condenado para que a substituição seja efectuada.
2ª - Que essa substituição realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Neste ponto, e como bem escreve Maia Gonçalves (in “Código Penal Português Anotado e Comentado”, 10ª ed., 1996, pág. 227, nota nº 1 ao artigo 48º), “estes requisitos, agora expressamente formulados, já existiam no domínio da versão originária do Código, mormente, quanto ao primeiro, por exigência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da história do preceito, e, quanto ao segundo, por exigências das finalidades da pena”.
Ora, face a tudo quanto fica dito, subjazendo à instituição desta medida o nítido intuito de obviar aos efeitos negativos que se reconhecem às reacções penais detentivas (mormente às de curta duração), deve entender-se (como entendemos) que o prazo previsto no nº 1 do artigo 490º do C. P. Penal não é um prazo peremptório, ou seja, o seu decurso não faz precludir a possibilidade de o condenado requerer a substituição da multa por dias de trabalho.
A visão personalista que ilumina o direito penal português, e, dentro dela, a definição que nele é feita dos fins das penas (como é sabido, esses fins prendem-se, além do mais, com a ideia da ressocialização do condenado), apontam, a nosso ver, para que seja errada a interpretação segundo a qual, por uma razão de cariz essencialmente formal (o não requerimento no estrito prazo assinado na lei), tenha de ser preterida a possibilidade de opção por uma pena que, in casu, se revele mais adequada.
Por fim, há ainda que ter em conta o estabelecido no artigo 49º do Código Penal, que, sob a epígrafe “conversão da multa não paga em prisão subsidiária”, dispõe: “se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços” (nº 1); “o condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado” (nº 2); “se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa” (nº 3); “o disposto nos nºs 1 e 2 é correspondentemente aplicável ao caso em que o condenado culposamente não cumpra os dias de trabalho pelos quais, a seu pedido, a multa foi substituída” (nº 4).
Isto é, nos termos deste preceito legal, a conversão da pena de multa em pena de prisão subsidiária só pode (e deve) ter lugar:
1º - Quando a pena de multa não tenha sido substituída por prestação de trabalho.
2º - Quando a pena de multa não tenha sido paga (voluntariamente ou coercivamente - isto é, nesta última situação, não tenha sido executada).
3º - Quando o incumprimento da pena de multa tenha sido culposo.
Além disso, e é muito relevante para a questão que agora nos ocupa, o nº 2 do artigo 49º do Código Penal estabelece, sem dúvidas ou hesitações, que o condenado pode, a todo o tempo, evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
Afinal, e conforme decorre deste normativo legal, o condenado está sempre em tempo de pagar a multa em que foi condenado, mesmo que já tenha entrado em incumprimento e mesmo que o incumprimento tenha sido declarado.
Ora, por identidade de razões, e vista a concreta situação posta nestes autos, deve considerar-se que o arguido/condenado A está em tempo de requerer a substituição da pena de multa por dias de trabalho, conforme bem se considerou (e decidiu) no despacho revidendo.
Em jeito de síntese: a pena de multa pode ser substituída por trabalho a favor da comunidade, mesmo que o arguido o requeira após o decurso do prazo referido nos artigos 489º, nº 2, e 490º, nº 1, do C. P. Penal (não devendo ser indeferida essa pretensão do arguido apenas com base na extemporaneidade do requerimento apresentado).
Soçobra, pois, o recurso interposto pelo Ministério Público no âmbito dos presentes autos, sendo de manter a decisão da Mmª Juíza a quo.



III - DECISÃO

Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
*
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 08 de Janeiro de 2013.

João Manuel Monteiro Amaro
Maria Filomena de Paula Soares