Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2026/06-3
Relator: JOÃO MARQUES
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
Data do Acordão: 10/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO CÍVEL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
Os meros detentores não podem lançar mão dos mecanismos de defesa da posse previstos nos artigos 1276º e seguintes do Código Civil, designadamente a sua restituição provisória.
Decisão Texto Integral:
PROCESSO Nº 2026/06
*
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
*
“A”, divorciada, residente na …, n° …, 4°, Dtº, …, como dependência da acção que lhe move “B”, com sede na Rua …, n° …, …, requereu, contra esta, procedimento cautelar de restituição provisória da posse relativamente moradia n° …, sita no prédio urbano do …, "Urbanização …", freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° … do Livro 13-15, inscrito na matriz predial Urbana n° … e predial rústica n° …
Alega, resumidamente, que deteve a respectiva posse entre 1984 e meados de Maio de 2006, a qual teve início através de arrendamento efectuado entre o seu ex-marido e os primeiros proprietários e construtores da Urbanização, posse essa contínua, ininterrupta, de boa fé, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ali constituindo a residência do casal, pagando a respectiva renda e despesas de condomínio, energia e electricidade, não recebendo a renda a ora requerida desde 2000, data em que a adquiriu a urbanização, através do processo de falência, por simples recusa desta, sendo que o respectivo sócio gerente tem procurado despejar todos os moradores e possuidores, visando a valorização do seu investimento, contexto em que se insere a acção de reivindicação que, sem qualquer fundamento, contra si instaurou e na qual a requerente deduziu pedido reconvencional em que invocou a aquisição do imóvel por usucapião.
Por outro lado, a requerida, com receio da mais que provável decisão judicial desfavorável, concebeu e concretizou um plano visando esbulhar a requerente da posse da fracção, designadamente, aproveitando a ausência da requerente, arrombando a porta, destruindo a fechadura e substituindo-a por outra, e removendo todo o recheio e equipamento deixando a casa completamente despida, devoluta e imprópria para habitar e nela colocando um placard com indicação de "Vende-se".

Designada a audiência sem audição da parte contrária, inquiridas as testemunhas e analisados os demais elementos de prova, foi a providência julgada improcedente.

É do assim decidido que vem interposto o presente recurso, em cuja alegação formula as seguintes conclusões:
1 - De acordo com a construção objectiva da posse, esta é integrada por um elemento objectivo (o corpus) traduzido no exercício e poderes de facto sobre a coisa e um elemento subjectivo (o animus), traduzido na convicção de se actuar, no exercício daqueles poderes, como se fosse titular do direito real que lhes corresponde;
2 - O Mm° Juiz "a quo" deu como provado "que se apurou um conjunto de actos materiais praticados pela requerente";
3- Conforme observa a doutrina (Mota Pinto, Direitos Reais, 1970,191), "Como a prova do animus poderá ser muito difícil, para facilitar as coisas, a lei presume a posse naquele que exerce o poder de facto, ou seja, o exercício do corpus faz presumir o ammus”;
4- Considera o Mm° Juiz "'a quo", na fundamentação da resposta 4 à matéria de facto que "ao actos materiais apurados (e dos quais se poderia deduzir a convicção da requerente) são ambíguos por tanto serem compatíveis com a actuação de um proprietário como com a actuação de um arrendatário".
5- Acrescenta ainda doutamente o Mm° Juiz que existe uma incompatibilidade entre a posição de senhorio e de inquilino, já que quem não é proprietário não pode pretender ser em simultâneo também arrendatário, já que não pode ser senhorio de si mesmo.
6- Assim, ao ter considerado ambíguos os factos apurados, o Mmº Juiz "a quo" está a admitir, manifesta e explicitamente, que no caso dos autos estamos em presença de uma situação que gera dúvidas;
7 - Ora estas situações são solucionadas pelo legislador, com recurso á presunção legal constante do art° 1252°, n° 2 do C.C.;
8- O que o tribunal não pode é concluir, após ter admitido que os factos são ambíguos e compatíveis com a actuação de senhorio e inquilino, que a requerente agia como arrendatária, pelo simples facto de ter sido suscitada a existência do contrato e que seria apta a pôr em causa a sua convicção como proprietária,
9- Este argumento é tão válido para o que o tribunal afirmou como para a situação inversa, ou seja, tendo-se apurado que a requerente agia como proprietária, logo teremos que também afastar o contrato de arrendamento, porquanto a qualidade de senhorio é incompatível com a de inquilino.
10- Se o Mm° Juiz considerou na resposta 4 à matéria de facto que "os actos materiais apurados são ambíguos", não podia deixar de concluir que existem dúvidas, estando adstrito a fazer operar o comando do art° 1252" n° 2 do C.C.,
11- A prova documental e testemunhal produzida impunham uma decisão diversa na resposta à matéria de facto, no que se refere à parte final da resposta 4, "como sendo sua arrendatária", nos termos do preceituado no art° 712° n° 1, alínea a) do C.P.C.;
12- Na verdade, a testemunha que melhor revelou conhecer os factos, Sr. …, pela particularidade de ter exercido funções da administração da Urbanização, foi peremptório no seu depoimento ao afirmar que a actuação da requerente era como legítima proprietária".

Considerando violados os artºs 1251° e 1252° n° 2, do C. C., pede a revogação da decisão e o decretamento da providência.

A requerida contra-alegou pugnando pela confirmação da decisão.
O Mmº juiz sustentou o decidido.

Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.

A douta decisão impugnada considerou demonstrados os seguintes factos:
1- A moradia n° 5, sita no prédio do …, Urbanização …, …, …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° … do Livro 8-15, inscrito na matriz predial urbana n° … e predial rústica sob o n° …, foi dada de arrendamento por contrato de 8.8.1984, para habitação e pelo prazo de 12 meses (supondo-se sucessivamente renovado), por “C” a “D”, então casado com a requerente, de quem se divorciou por sentença transitada em julgado em 17.04.1996.
2- A requerente passava na moradia muitos fins-de-semana e as suas férias com a família e amigos.
3- Tomando ali as suas refeições e banhos.
4- Ali dormindo, recebendo visitas, utilizando a moradia n° 5 como sendo sua arrendatária.
5- Pagando as despesas de condomínio e consumo de energia e água, tendo sido pagas em nome do ex-cônjuge da requerente pelo menos as rendas até Agosto de 1990, Fevereiro e Setembro de 1991, Fevereiro a Abril e Dezembro de 1993 , Janeiro e Maio a Agosto de 1994 e Fevereiro a Abril de 1997.
6- O que fez desde data não determinada mas não posterior a 1984 e até ocorrerem os factos referidos em 12.
7 - De forma contínua e ininterrupta.
8 - Por forma a ser conhecida por outras pessoas.
9- Sem oposição de quem quer que seja.
10- A “B” instaurou contra a requerida uma acção de reivindicação, com o pedido de desocupação da moradia e a restituição daquela, livre e desonerada de pessoas e bens, na qual a requerente deduziu reconvenção, na qual invocou a aquisição do imóvel por usucapião e ou a existência de um contrato de arrendamento que legitima a sua posse.
11- No âmbito da referida acção, a requerida invocou a simulação do contrato de arrendamento.
12- A requerida, em data não determinada, mas não posterior à segunda semana de Maio do corrente ano, estando a requerente em Lisboa, alterou ou substituiu a fechadura da porta da moradia em causa e removeu todo o recheio e equipamento da casa, deixando-a completamente despida.
13- A requerida veio informar aos autos principais, através de requerimento, de que desistia da acção porquanto “D”, titular do contrato de arrendamento identificado nos autos, veio a rescindir o contrato e a entregar as chaves do locado.
14- O Sr. “D” não se desloca há mais de 10 anos àquele imóvel.

Vejamos então.
Se percorrermos a contestação que a ora agravante apresentou na acção de que este procedimento é dependência, facilmente constatamos (art°s 6° a 19°) que o título legítimo que invoca para a ocupação da moradia é o arrendamento celebrado entre a anterior proprietária da Urbanização e o então seu marido “D”.
Com efeito, é, na sequência disso, ou seja da "posse legitimada pelo contrato de arrendamento” (art 13°) que depois alega que nela reside vários períodos de tempo no ano, passa férias com família e amigos (art° 14°), toma refeições e banhos (art° 15°), ali dormindo, recebendo visitas, fruindo e utilizando a moradia como sendo sua arrendatária (art° 16°), direito esse exercido de boa fé (art° 17°), de forma a ser conhecido por outras pessoas (art° 18°), sem oposição de quem quer que seja, há mais de 20 anos (art° 19°), esclarecendo no art° 20° que o arrendamento foi celebrado em 8.08.84.
Ante a realidade de que a referida contestação foi apresentada em 8.06.2005, cingindo-nos à sua própria alegação, teria actuado, até esta data, ou seja durante 20 anos e 10 meses (o que legitima a expressão "há mais de 20 anos" ) como arrendatária.
Mas, de repente, acrescenta no referido art° 20°, que tem a posse real e efectiva há mais de 20 anos, "pública, pacífica, reiterada e de boa fé" para, depois, no art° 21º afirmar que "por virtude da posse exercida pela Ré no imóvel subjudice ter mais de 15 anos, ser reiterada, pública, pacífica e de boa fé, comportando-se a R, como autêntica proprietária da moradia, determina que se tenha constuído sobre o imóvel o direito de usucapião, facto que a ora ré invoca para todos os legais e devidos efeitos, de harmonia com o disposto no art° 12930 e 1296 do Código Civil".
E é nesta base que depois formula o pedido reconvencional no sentido de "a autora ser condenada ao reconhecimento do direito de usucapião que a ré detém sobre a moradia sub Júdice”. Porém, "para a eventualidade do direito de usucapião não se mostrar reconhecido, não concedendo, mas por mero dever de patrocínio, deverá ser reconhecida à ré o direito de legítima arrendatária ou legítima titular da posse sobre o imóvel reclamado nos autos".
Ora, dando de barato a patente imprecisão de conceitos ilustrada, designadamente na invocação de um "direito de usucapião" (a usucapião não é um direito, mas uma das formas de aquisição de determinados direitos, como os de propriedade, usufruto, etc) na versão da agravante, agiu como arrendatária durante mais de 20 anos e ao mesmo tempo, em mais de 15 deles, como "autêntica proprietária", mesmo estando demonstrado que em Abril de 1997 (sete anos antes da alegação destes factos) ainda foram pagas rendas na sequência do contrato.
Não terá sido perante esta constatação que o Mm° Juiz, considerou os factos ambíguos, certo como é que, relativamente ao mesmo prédio não podia a agravante actuar simultaneamente como arrendatária e "autêntica proprietária"?
Uma coisa é certa: para a agravante, a origem da posse que por via do presente procedimento pretende ver restituída, está no arrendamento celebrado entre a anterior proprietária da Urbanização e o seu então marido, o que bem claramente está espelhado logo no art° 1 ° do seu requerimento inicial, surgindo, por outro lado, como pensamos ter demonstrado, ilógica e completamente descabida a invocação do "direito de usucapião", para além de que, como bem se observa na decisão recorrida, no contexto do art° 1265º do C. Civil, sempre haveria que invocar a inversão do título de posse e o momento em que teria ocorrido, para então se contar o prazo necessário para a usucapião, nos termos da parte final do art° 1290° do mesmo diploma.
Porque assim é, tendo a decisão recorrida mostrado cabalmente à agravante que não pode ser-lhe reconhecida a posição de arrendatária da vivenda, primeiro porque não foi parte no contrato de arrendamento, depois porque nem sequer alegou que a posição de arrendatária lhe tivesse sido transmitida na sequência do divórcio por qualquer das formas previstas no art° 84° do RAU e, por fim, porque também não decorre dos autos que tenha sido reconhecida como tal, a sua posição é de mera detentora.
Ora, os meros detentores, não podem lançar mão dos mecanismos de defesa da posse previstos nos art°s 1276° e segs. do CC, designadamente a sua restituição provisória.
Contexto em que surgem manifestamente irrelevantes as conclusões da douta alegação.

Por todo o exposto e sem necessidade de mais considerandos, negando provimento ao agravo, confirmam a douta decisão recorrida.
Custas pela agravante.