Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ALBERTO JOÃO BORGES | ||
Descritores: | DIFAMAÇÃO AGRAVADA IMUNIDADE EXERCÍCIO DO PATROCÍNIO FORENSE NECESSIDADE DE DEFESA PROVA DA VERDADE DOS FACTOS | ||
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Data do Acordão: | 02/28/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | 1. A imunidade que a lei assegura aos senhores advogados é a imunidade necessária ao exercício do mandato, o que pressupõe o exercício do mandato de acordo com o princípio da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (note-se que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato…”, o que tem implícita uma limitação a tais imunidades, pois que elas existem apenas na medida do necessário ao exercício do mandato). 2. A imunidade não é, pois, absoluta já que tem como limite a conformidade do exercício do mandato ao estatuto da profissão, estatuto que lhe impõe “um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no presente estatuto”, devendo – no exercício da profissão – “proceder com urbanidade, nomeadamente para com os magistrados…”, “defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas” e “exercer o patrocínio dentro dos limites da lei e da urbanidade…”(art.ºs 83, 90, 92 e 105 do EOA). 3. A partir do momento em que tais limites são ultrapassados – tendo em conta, designadamente, o princípio da necessidade e da proporcionalidade – deixa de ter fundamento ou justificação a invocada imunidade, na medida em que colide com outros direitos fundamentais, igualmente com consagração constitucional, como seja o direito à honra e bom nome. 4. A aplicação do n.º2 do art. 180.º do Código Penal, pressupõe a verificação cumulativa dos requisitos aí previstos – a imputação for feita para realizar interesses legítimos” e o agente “provar a verdade da mesma imputação” ou tiver fundamento sério para, de boa-fé, a reputar verdadeira. 5. A prova da verdade da imputação só é possível desde que esta respeite a factos concretos, pois que o art.º 180 n.º 1 do CP tipifica claramente duas situações: a imputação, ainda que sob a forma de suspeita, de um facto, ou a formulação de um juízo, sendo que a justificação prevista no n.º 2 daquele preceito respeita apenas à imputação de um facto, não à formulação de qualquer juízo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. No Tribunal Judicial da Comarca de Évora (1.º Juízo Criminal) correu termos o Proc. Comum Singular n.º 213/07.4TAARL, no qual foi julgado o arguido JA, melhor identificado na sentença de fol.ªs 754 e seguintes, datada de 11.02.2011, pela prática, em autoria material, de um crime de difamação, p. e p. pelos art.ºs 26, 180 n.º 1, 182, 183 n.º 1 al.ª a) e 184, conjugados com o art.º 132 al.ª l), todos do CP, tendo sido condenado – a final – pela prática do mencionado crime, p. e p. pelos art.ºs 180 n.º 1, 182 e 184, em articulação com o art.º 132 n.º 2 al.ª l), todos do CP, na pena de cento e cinquenta dias de multa, à taxa diária de 20,00 €, o que perfaz o montante global de 3.000,00 €. 2. Recorreu o arguido daquela sentença, em recurso que dirigiu ao tribunal em 17.03.2011, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões: a) O presente procedimento criminal encontra-se prescrito desde 3 de Abril de 2010. b) Ao não conhecer da prescrição criminal, a douta sentença recorrida violou o disposto no art.º 118 n.º 1 al.ª d) do CP, conjugado com o art.º 121 n.º 2 do mesmo diploma. c) Este processo, este julgamento e esta sentença violam a imunidade do recorrente, consagrada no art.º 208 da Constituição da República Portuguesa. d) A norma dos art.ºs 114 da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, e 144 da Lei 52/2008, de 28 de Agosto (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) – LOFTJ – são inconstitucionais, por violação do art.º 208 da Constituição da República, na interpretação recorrida, que inutiliza, por redundância, a norma constitucional, não a distinguindo do n.º 2 do art.º 180 do CP. e) Todas as afirmações produzidas pelo recorrente no seu requerimento de abertura de instrução são, pelo menos, verosímeis, atentos os elementos do processo, a prova produzida em audiência, e os correspondentes factos, quando demonstrados, seriam vantajosos para os seus constituintes. f) A afirmação da sentença, segundo a qual o recorrente chamou imbecil ao senhor Procurador da República, não encontra suporte prévio no despacho de pronúncia, resultando da opção do Mm.º Juiz recorrido por razões que o recorrente desconhece, de um dos, pelo menos, 3, significados da palavra “estulto”: é, por isso, nula a sentença recorrida, nessa parte (art.º 379 n.º 1 al.ª b) do CPP). g) A imputação à acusação deduzida pelo senhor Procurador tem fundamento na adopção da pretensa e inventada filiação partidária dos arguidos como elemento indiciário, bem como pela dependência em que se colocou das opiniões e pareceres dos técnicos da Câmara Municipal, inclusive, quanto à interpretação das leis, patente em toda a acusação. h) Deve revogar-se a sentença recorrida e absolver-se o arguido. 3. O Ministério Público junto da 1.ª instância suscitou como questão prévia a rejeição do recurso, por interposto fora do prazo legal, dizendo, em síntese: a) O recurso foi interposto pelo arguido em 17.03.2011, quando a decisão condenatória foi proferida na sua presença e depositada na secretaria do tribunal em 11.02.2011. b) O prazo para a interposição do recurso é de 20 dias, contados da data do depósito da sentença, prazo que é elevado para 30 dias quando o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, o que apenas pode ter lugar quando o recorrente pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do art.º 412 n.º 3 do CPP (art.º 411 n.º 4 do CPP). d) O arguido não cumpriu este ónus e, por consequência, o recurso deve ter-se por circunscrito à matéria de direito e ao conhecimento oficioso dos vícios do art.º 410 n.º 2 do CPP, sendo o prazo da sua interposição de 20 dias. e) Tendo o recurso dado entrada no tribunal em 17.03.2011 deve o mesmo considerar-se fora de prazo e, por isso, ser rejeitado (art.ºs 414 n.º 2 e 420 n.º 1 al.ª b) do CPP). f) Os factos ocorreram em 3.04.2008, pelo que tendo ocorrido uma causa suspensiva da prescrição do procedimento criminal – prevista no art.º 120 n.ºs 1 al.ª b) e 2 do CP – e causas interruptivas previstas nas al.ªs a), b) e d) do n.º 1 do art.º 121 do CP, a última das quais em 7.12.2010, o procedimento criminal não se encontra prescrito. g) Não foi violada a imunidade do advogado consagrada no art.º 208 da CRP, que mais não é do que uma garantia constitucional a par de outras garantias, que não reveste carácter absoluto ou irrestrito, como pretende o recorrente. h) A conduta do arguido, sendo de considerar como típica e culposa, é susceptível de sancionamento penal, não se mostrando salvaguardada pela imunidade acima referida. i) Os art.ºs 114 da Lei 3/99, de 13.01, e 144 da Lei 52/08, de 28.08, não enfermam de qualquer inconstitucionalidade, por violação do disposto no art.º 208 da CRP, na interpretação que inutiliza a norma constitucional, não a distinguindo do art.º 180 n.º 2 do CP. j) A sentença condenatória não padece de qualquer nulidade prevista no art.º 379 n.º 1 al.ª b) do CPP, pois os factos dados como provados constam – todos eles – da pronúncia, não se tendo verificado qualquer alteração substancial ou não substancial dos mesmos. k) Com a prolação da sentença o tribunal a quo não violou qualquer norma jurídica e fez uma correcta aplicação do direito. l) Deve rejeitar-se o recurso, por interposto fora de prazo, ou – caso assim não se entenda – negar-se provimento ao recurso e confirmar-se a sentença recorrida. 4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso e, assim não se entendendo, pela sua improcedência, dizendo, em síntese: - A acusação deduzida não foi acolhida num primeiro momento, pelo despacho de não pronúncia, mas tal despacho foi posteriormente revogado, pelo que não se pode afirmar que a acusação não existiu e que é ineficaz a notificação que da acusação foi feita (e mostrando-se esta validamente efectuada, verifica-se uma causa de interrupção e suspensão do prazo de prescrição, independentemente do sucesso da acusação e da bondade desta); - A questão relativa à imunidade do arguido encontra-se exemplarmente equacionada e bem resolvida, quer na sentença recorrida, quer no acórdão anteriormente proferido nos autos. 5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP). 6. Vêm como provados na 1.ª instância os seguintes factos: 01) No decurso da fase de inquérito do Processo n.º ---05.0TAEVR, JB, JM e JP emitiram procuração forense a favor do arguido, Dr. JA, atenta a sua qualidade de Advogado, com o propósito de este assegurar a defesa dos mesmos em tal processo, onde assumiram a qualidade de arguidos. 02) Findo o inquérito, o Magistrado do Ministério Público responsável pela direcção do mesmo – o Senhor Procurador da República do Departamento de Investigação e Acção Penal de Évora, Dr. AR – proferiu, em 13 de Julho de 2007, despacho final, sendo este em parte de arquivamento e em parte de acusação. 03) Em sede de acusação pública foi imputada a JB, JM e JA a prática, em co-autoria, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256 n.ºs 1 al.ªs a) e c) e 3, com referência ao art.º 255, ambos do CP, na versão em vigor. 04) JB, JM e JP entenderam impugnar tal despacho, o que fizeram sob a forma de requerimento de abertura de instrução, redigido e subscrito pelo seu Advogado, o aqui arguido. 05) Tal requerimento de abertura de instrução, dirigido ao “Exm.º Senhor Doutor Juiz de Instrução do Tribunal de Instrução Criminal de Évora” e entrado nos serviços do Departamento de Investigação e Acção Penal de Évora no dia 27 de Setembro de 2007, encontra-se articulado, na íntegra, da seguinte forma (segue o texto do mesmo, retirado por fotocópia do texto da decisão recorrida): 06) As expressões de seguida transcritas dirigem-se ao subscritor do despacho de acusação, o que resulta, quer das críticas directas ao seu teor, quer da referência expressa ao mesmo e na qualidade que detém de magistrado do Ministério Público: “a acusação, porque um exercício (…) sectariamente orientado (…), deve ser rapidamente removida”; “O Senhor Procurador da República, Dr. AR, não faz, manifestamente, a mais pequena ideia do que seja o crime de falsificação de documento que estultamente imputa aos arguidos”; “a cronologia dos factos é na investigação e na acusação, objecto de cuidadosa e desonesta manipulação”; “e porque as simpatias (e antipatias) políticas das pessoas foram eleitas, pelo Senhor Procurador da República, em elemento indiciário relevante, Requer-se que o Senhor Dr. AR seja ouvido em depoimento para que esclareça se se situa na área política do Partido Comunista Português para, caso seja verdade, ser requerida a sua recusa (…) Tudo isto, Meritíssimo Juiz, porque é iniludível a motivação político-partidária deste processo e desta acusação. Porque estes autos, afinal, ocupam-se apenas da tentativa de judicialização da luta movida peia (deverá ler-se pela) pela estrutura local do Partido Comunista Português”; “esta acusação é mais um desses disparates, uma prevaricação continuada, um frete aos quadros da Câmara Municipal de Évora”; “reafirmando, por isso, que este processo, esta acusação, são políticos e como tal devem ser vistos. Só a natureza política e sectária deste procedimento desde a abertura do inquérito até à acusação determina a nulidade de todo ele: o processo penal não existe, obviamente, para isto, não tem esta finalidade e a sua utilização perversa para tudo isto configura o vício de desvio de poder”; “a omissão deste facto, evidentemente, muito relevante, demonstra a vesga e dolosa determinação de incriminar ilegalmente os arguidos”. 07) Visam as mesmas, de forma e pelo meio em que são produzidas, atingir a honra, o bom nome, a credibilidade, a consideração e a competência profissional do Senhor Procurador Dr. AR, que são postos em causa e ofendidos. 08) O arguido agiu livre e voluntariamente, com o propósito de ofender a honra e consideração do Dr. AR. 09) Agiu consciente que os factos descritos e vertidos naquela peça processual são punidos e conformou-se com a sua conduta. 10) No âmbito do aludido processo n.º ---05.0TAEVR, realizada a instrução, o Mm.º Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Évora proferiu despacho de não pronúncia, abrangendo os arguidos patrocinados pelo Dr. JA, bem como os demais. 11) O Ministério Público interpôs recurso de tal despacho, sendo que, por acórdão datado de 19 de Maio de 2009 e que constitui decisão definitiva em tais autos, o Venerando Tribunal da Relação de Évora decidiu negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida. 12) O arguido é advogado há 36 anos, tendo escritório em Lisboa. 13) No exercício de tal profissão liberal aufere rendimentos mensais incertos e não concretamente apurados. 14) Vive em casa própria, que se encontra integralmente paga, a sua esposa é gerente comercial, auferindo rendimento mensal não concretamente apurado, tem a seu cargo um filho menor, estudante, tem como habilitações literárias a licenciatura em Direito e do seu Certificado de Registo Criminal nada consta. 7. E não se provou, de acordo com a sentença recorrida: - que, com as expressões que constam sublinhadas no ponto 5 dos factos provados e não referidas no ponto 6 dos factos provados, visou o arguido atingir a honra, consideração e competência profissional do Senhor Procurador da República, Dr. AR; - que o arguido agiu com o propósito de denegrir no meio judicial o bom nome e reputação do Dr. AR como magistrado do Ministério Público. 8. Quanto à convicção que o tribunal formou relativamente aos elementos subjectivos do tipo, escreveu-se: “… a prova dos mesmos advém da análise do conjunto das circunstâncias exteriores que envolveram o comportamento do arguido (com efeito, o elemento subjectivo é um elemento interno, «para cuja determinação restará ao Juiz considerar as circunstâncias exteriores que de qualquer modo possam ser expressão da relação psicológica do agente com o facto, inferindo unicamente de tais circunstâncias a existência dos elementos representativos e volitivos, na base das comuns regras da experiência (artigo 127 do CPP)»” – acórdão da RG de 13.06.2006, Proc. 963/05.1, in www.dgsi.pt). “Com efeito, não sendo aquelas expressões necessárias à defesa dos constituintes patrocinados pelo Dr. JA… há que concluir que a sua utilização visou apenas diminuir a honra e consideração do ofendido (aliás, só assim se compreende a insistência em identificar o magistrado visado pelo seu nome completo…”. 9. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412 do CPP). Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no que respeita à matéria de facto, seja no que respeita à matéria de direito. Elas devem conter por isso um resumo claro e preciso da motivação, enquanto fundamento do pedido, pois são aquelas que delimitam o âmbito do recurso, ou seja, as questões submetidas à apreciação do tribunal superior (art.ºs 412 e 410 n.ºs 1 e 2 do CPP), Feitas estas considerações, e atentas as conclusões da motivação do recurso assim entendidas, são as seguintes as questões colocadas pelo recorrente à apreciação deste tribunal: 1.ª – A nulidade da sentença (art.º 379 n.º 1 al.ªs b) e c) do CPP), por condenar por factos diversos dos constantes da pronúncia e por omissão de pronúncia (ao não conhecer da prescrição do procedimento criminal); 2.ª – A violação do art.º 208 da Constituição da República Portuguesa; 3.ª – A violação do art.º 180 n.º 2 do CP. --- O Ministério Público suscita, na resposta à motivação do recurso, como questão prévia – no que é secundado pelo Ministério Público junto deste tribunal – a rejeição do recurso, por intempestivo, uma vez que, não tendo o recurso por objecto a reapreciação da prova gravada – que apenas pode ter lugar quando o recorrente pretenda a impugnar a decisão preferida sobre a matéria de facto nos termos do art.º 412 n.ºs 3 e 4 do CPP – o prazo para a interposição do recurso é de 20 dias a contar do depósito da sentença na secretaria, ex vi art.º 411 n.º 1 al.ª b) do CPP, quando é certo que, tendo a sentença sido depositada em 11.02.2011, o recorrente veio a interpor recurso apenas em 17.03.2011. Assim não o entendemos. O prazo de recurso é de 20 dias (a contar do depósito da decisão na secretaria), ou 30 dias (se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada) – art.º 411 n.ºs 1 al.ª b) e 4 do CPP. O recorrente não impugnou a matéria de facto de acordo com os ditames estabelecidos no art.º 412 n.ºs 2 e 3 do CPP – concretizando os factos que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida – mas alegou factualidade tendente a demonstrar a veracidade dos factos, por referência a determinadas provas, que especificou, e indicando os respectivos suportes onde se encontram registadas. Temos que tal é quanto basta para que o recorrente beneficie do prazo alargado do recurso, ou seja, para se poder considerar que o recurso tem por objecto, também, a reapreciação da prova gravada, sendo que a lei, ao conceder tal prazo alargado, não o faz depender da impugnação da matéria de facto em conformidade com as exigências legais. Não pode esquecer-se que a ratio material subjacente ao alargamento do prazo concedido para o recurso, nos termos do art.º 411 n.º 4 do CPP, radica na maior dificuldade que se depara ao recorrente quando pretenda impugnar a matéria de facto, pelas exigências legais a que esta deve obedecer e, consequentemente, pela maior dificuldade que a análise das provas documentadas suscita, não fazendo qualquer sentido – e seria até contrário ao espírito subjacente àquela norma - conceder-lhe um prazo e, depois, porque a impugnação não obedeceu ao rigor processual exigido, vir dizer que, afinal, o recurso era extemporâneo (bem pode acontecer que o recorrente menos escrupuloso se possa aproveitar desse expediente para beneficiar do alargamento do prazo do recurso, mas essa é questão que aqui não cabe analisar, pois no caso em apreço não há razões para afirmar que a impugnação da matéria de facto, nos moldes em que foi efectuada, visou apenas beneficiar do alargamento do prazo de recurso). Acresce que o legislador foi sensível a esta questão – e às dificuldades que a impugnação da matéria de facto pode suscitar – estabelecendo que o tribunal de recurso, caso as conclusões não permitam deduzir as indicações previstas no art.º 412 n.ºs 2 a 5 do CPP, deve ordenar o seu aperfeiçoamento (art.º 417 n.º 3 do CPP). Improcede, por isso, a questão prévia suscitada. --- 9.1. – 1.ª questão Suscita o recorrente a nulidade da sentença por condenar por factos diversos dos descritos na pronúncia e por omissão de pronúncia, pois que não conheceu da prescrição do procedimento criminal (art.º 379 n.º 1 al.ª b) e 379 n.º 1 al.º c) do CPP, respectivamente). Relativamente à primeira questão alega que do despacho de pronúncia não consta que o arguido tenha chamado “imbecil” ao senhor procurador, pelo que não podia a sentença condenar o arguido por tal facto. Ora a sentença recorrida transcreveu a expressão utilizada pelo arguido dirigida ao senhor Procurador que (sic) “não faz a mais pequena ideia do que seja o crime de falsificação do documento que estultamente imputa aos arguidos”. Esse é um dos factos imputados ao arguido – e provado - que o tribunal, na aplicação do direito, e no âmbito da sua função jurisdicional, analisou e enquadrou juridicamente, atento o contexto em que o mesmo se passou e a qualidade dos intervenientes, concluindo que “estultamente é o mesmo que imbecilmente…”. Não se pode dizer, por isso, que condenou por factos diversos dos descritos na pronúncia, o que equivale a dizer que não se verifica a nulidade invocada (condenação por factos diversos dos descritos na pronúncia). O que esta conduta poderia configurar era – não uma condenação por factos diversos dos descritos na pronúncia – mas uma errada qualificação dos factos, um erro de julgamento, questão que nada tem a ver com a invocada nulidade. Improcede, por isso, a invocada nulidade (art.º 379 n.º 1 al.ª b) do CPP). Não deixará de se acrescentar que, por muitas voltas que de dê, chamar estulto a alguém ou afirmar que alguém actua estultamente é, em suma (veja-se o Dicionário Enciclopédico de Língua Portuguesa, A – L, Selecções do Reader`Digest), dizer que esse alguém é “tolo”, “néscio”, “imbecil”, “insensato”, “inepto”, “estúpido”, significado comumente aceite e conhecido pela generalidade das pessoas medianamente instruídas e que o recorrente, atenta a sua qualidade de advogado, não podia desconhecer. Invoca ainda o recorrente a nulidade da sentença recorrida por não ter conhecido da prescrição do procedimento criminal. Não conheceu nem tinha que conhecer, quer porque não se trata de questão que lhe fosse submetida por qualquer dos intervenientes processuais, quer porque, sendo embora de conhecimento oficioso, o tribunal não tem que se pronunciar sobre a prescrição se ela não existe, como efectivamente não existe. Não se pode dizer, por isso, que o tribunal omitiu o seu dever de pronúncia sobre tal questão, se ela não lhe foi suscitada e, de facto, não tem elementos para concluir que a mesma se verifica. Improcede, por isso, a invocada nulidade por omissão de pronúncia (art.º 379 n.º 1 al.ª c) do CPP). Não deixará de se acrescentar que não ocorre a invocada prescrição do procedimento criminal. De facto, sendo o prazo de prescrição do procedimento criminal de dois anos, tal prazo – que se iniciou em 27.09.2007 (data da prática dos factos) – interrompeu-se em 3.04.2008 (data da constituição de arguido) e com a notificação da acusação (em 25.06.2008). Por outro lado, com a notificação da acusação, em 25.06.2008, tal prazo suspendeu-se, mantendo-se suspenso até 25.06.2011, ex vi art.º 120 n.º 2 do CP (art.ºs 118 n.ºs 1 al.ª d) e 2, 119 n.º 1, 121 n.ºs 1 al.ªs a) e b) e 2 e 120 n.ºs 1 al.ª b) e 2, com referência aos art.ºs 180 n.º 1 e 184, todos do CP). Desde a última interrupção (data da notificação da acusação), e ressalvando o prazo da suspensão subsequente à mesma (que é de três anos), não decorreu ainda o prazo de prescrição do procedimento criminal. Não obsta a este entendimento o facto da acusação ter sido revogada pelo despacho de não pronúncia (em 1.ª instância), pois que este despacho foi revogado em sede de recurso, confirmando, na sua essência, a acusação, pelo que não se pode dizer que – de algum modo – a decisão de não pronúncia, em primeira instância, possa ter apagado ou tornado ineficaz a acusação. Significa isto que o procedimento criminal subsequente à acusação, e independentemente das vicissitudes processuais que se seguiram, consequência da tramitação processual posterior, se manteve pendente, com a consequente suspensão prevista no art.º 120 n.º 1 al.ª b) do CP, sendo certo que - e citamos (art.º 120 n.º 1 al.ª b) do CP) – “a prescrição do procedimento criminal suspende-se… durante o tempo em que: (…) b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação…”. O legislador, que não podia ser alheio à eventual hipótese de não confirmação da acusação em sede de instrução, apenas atribui efeitos suspensivos à notificação da decisão instrutória quando não tenha sido deduzida acusação, o que permite concluir que, tendo sido deduzida, enquanto se mantiver pendente o procedimento criminal – e independentemente da tramitação posterior - se mantém suspenso o prazo de prescrição. Improcede, por isso, a invocada prescrição do procedimento criminal. 9.2. – 2.ª questão Invoca o recorrente a violação do art.º 208 da CRP, com referência ao art.º 114 da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, e 144 da Lei 52/2008, de 28 de Agosto, em suma, porque, no seu entender, a imunidade de que gozam os senhores advogados no exercício do mandato forense obsta à sua responsabilização pela prática dos factos que nestes autos lhe foram imputados e pelos quais foi condenado. Não é assim. A imunidade que a lei assegura aos senhores advogados é a imunidade necessária ao exercício do mandato, o que pressupõe o exercício do mandato de acordo com o princípio da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (note-se que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato…”, o que tem implícita uma limitação a tais imunidades, pois que elas existem apenas na medida do necessário ao exercício do mandato). Como se escreveu na decisão recorrida “imunidade e irresponsabilidade não são necessariamente sinónimos de impunidade (conforme se escreve no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Março de 2006, «as imunidades necessárias de que fala o art.º 208 da CRP não são, obviamente, todas as condutas que o Sr. Advogado queira adoptar» - in www.dgsi.pt, Proc. 8665/2004-9)”. Depois, a lei ordinária (art.º 114 da Lei 3/99, de 13.01, e 144 da Lei 52/2008, de 28.08) – ex vi art.º 208 da CRP – estabelece, em termos idênticos: “1 – A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato… (…) 3 – A imunidade necessária ao desempenho eficaz do mandato forense é assegurada… designadamente: (…) b) Do direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão”, ou seja, tal imunidade não é absoluta, pois que tem como limite a conformidade do exercício do mandato ao estatuto da profissão, estatuto que lhe impõe “um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidade da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no presente estatuto”, devendo – no exercício da profissão – “proceder com urbanidade, nomeadamente para com os magistrados…”, “defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas” e “exercer o patrocínio dentro dos limites da lei e da urbanidade…”(art.ºs 83, 90, 92 e 105 do EOA). A partir do momento em que tais limites são ultrapassados – tendo em conta, designadamente, o princípio da necessidade e da proporcionalidade – deixa de ter fundamento ou justificação a invocada imunidade, na medida em que colide com outros direitos fundamentais, igualmente com consagração constitucional, como seja o direito à honra e bom nome. Pretende o recorrente que os art.ºs 114 da Lei 3/99, de 13.01, e 144 da Lei 52/2008, de 28.08, são inconstitucionais, por violação do art.º 208 da CRP, na interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, na medida em que inutiliza aquela norma constitucional. Não é assim, pois que é a própria norma constitucional (o citado art.º 208) que remete para o legislador ordinário a definição dos concretos limites das imunidades aí consagradas – veja-se que a restrição de direitos liberdades e garantias está expressamente consagrada no art.º 18 da Constituição, desde que essas restrições se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos – por outro lado, a restrição da imunidade consagrada no art.º 208 da CRP, na interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, contém-se nos limites estritamente necessários à salvaguarda de outro direito fundamental, também constitucionalmente consagrado: o direito ao bom nome e reputação do ofendido. Improcede, por isso, a 2.ª questão suscitada. --- 9.3.- 3.ª questão Pretende o recorrente que as afirmações que lhe são imputadas – e que, no entender da sentença recorrida, integram o crime de difamação, p. e p. pelos art.ºs 180 n.º 1, 182 e 184, com referência ao art.º 132 n.º 2 al.ª l), todos do CP - são, pelo menos, verosímeis, pelo que deveria o tribunal ter aplicado o disposto no art.º 180 n.º 2 do CP. Também nesta parte não tem razão o recorrente. A conduta não é punível quando a “imputação for feita para realizar interesses legítimos” e o agente “provar a verdade da mesma imputação"ou tiver fundamento sério para, de boa-fé, a reputar verdadeira (art.º 180 n.º 2 do CP). Trata-se de dois requisitos, que têm que se verificar cumulativamente. Ora, a prova da verdade da imputação só é possível desde que esta respeite a factos concretos, pois que o art.º 180 n.º 1 do CP tipifica claramente duas situações: a imputação, ainda que sob a forma de suspeita, de um facto, ou a formulação de um juízo, sendo que a justificação prevista no n.º 2 daquele preceito respeita apenas à imputação de um facto, não à formulação de qualquer juízo. Como se escreve no acórdão da RC de 23.04.98, Col. Jur., XXIII, t. 2, 64, “nos casos de formulação de juízos ofensivos, o recurso àquela causa de justificação não é legalmente possível, dada a inadmissibilidade da exceptio veritatis…”. No caso concreto não estamos perante a imputação de factos concretos – considerados difamatórios – mas antes perante a formulação de juízos sobre o carácter e a personalidade do ofendido, que, escreve-se: - estultamente imputa um crime de falsificação aos constituintes do arguido; - tratou cronologicamente os factos (na investigação e na acusação) com “cuidadosa e desonesta manipulação”; - a acusação é um exercício “sectariamente orientado… uma prevaricação continuada, um frete aos quadros da Câmara Municipal de Évora… só a natureza política e sectária deste procedimento desde a abertura do inquérito até à acusação determina a nulidade de todo ele”; - demonstra “a vesga e dolosa determinação de incriminar ilegalmente os arguidos”. Trata-se, manifestamente, de suspeitas, insinuações – objectivamente ofensivas da honra, consideração e bom nome do visado – não de imputações de factos, pelo que não tem aplicação o disposto no art.º 180 n.º 2 do CP. Não deixará de se acrescentar que, ainda nos casos em que o agente demonstre a verdade da imputação, a sua conduta só pode considerar-se justificada desde que ela seja feita para realizar interesses legítimos, ou seja, interesses juridicamente protegidos, mas sempre no respeito pelo princípio da necessidade do meio, o que equivale a dizer que a conduta do agente se deve circunscrever ao absolutamente necessário para a realização daquele interesse, o que no caso – manifestamente, pelo que acima se deixou dito – não acontece, pois a conduta do arguido extravasa, em muito, o objectivamente necessário para a defesa dos interesses que, enquanto mandatário, lhe incumbia defender. Improcede, por isso, a terceira questão supra enunciada. 10. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida, que nenhuma norma ou princípio legal ou constitucional violou, designadamente os apontados pelo recorrente. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC. (Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado) Évora, 28/02/2012 (Alberto João Borges) (Maria Fernanda Pereira Palma) |