Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2587/03-2
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
TEMPO DE TRABALHO
Data do Acordão: 02/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO SOCIAL
Decisão: RECURSO NÃO PROVIDO
Sumário:
1. Quando a entidade patronal autoriza o trabalhador, que exerce as funções de motorista, a levar a viatura que conduz para junto da sua residência no final de cada jornada de trabalho e partir daí para a jornada seguinte, tem de se considerar que o motorista durante essas deslocações ainda se encontra sob a direcção e fiscalização da sua entidade patronal;
2. Para cálculo do período de condução para efeitos do disposto no art. 6º nº1 do Regulamento (CEE) nº 3820/85 do Conselho de 20 de Dezembro de 1985, tem de se considerar também o tempo de condução nessas deslocações de e para a residência do trabalhador.

Chambel Mourisco
Decisão Texto Integral:
Processo nº 2587/03-2

Acordam, em audiência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

A Guarda Nacional Republicana de ... levantou auto de notícia a A. ...som sede em ..., em virtude do trabalhador desta empresa ..., motorista, ter conduzido, no dia 3 e 4 de Junho de 2001, o veículo pesado de passageiros de matrícula ..., sem ter respeitado os períodos máximo de trabalho e mínimo de descanso.
Foi instruído o respectivo processo de contra-ordenação, no termo do qual foi proferida decisão, que considerou verificada a contra-ordenação prevista no art. 6º n º1 e 8º do Regulamento ( CEE) nº 3820/85, do Conselho de 20 de Dezembro, considerada grave pelo nº1 do art. 7º do DL nº 272/89, de 19 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pelo nº2 do art. 7º da Lei nº 114/99, de 3 de Agosto, e punível com coima de € 648,44 a € 1795,67, nos termos da alínea c) do nº3 do art. 7º da Lei 116/99, actualizada pelo art. 5º do DL nº 323/2001, de 17 de Dezembro, imputável a título de negligência, tendo sido aplicada em concreto a coima no montante de € 800.
A arguida interpôs recurso de impugnação judicial desta decisão para o Tribunal do Trabalho de ..., que negou provimento ao recurso.
Inconformada com a decisão daquele tribunal, a arguida interpôs o presente recurso, tendo nas suas motivações formulado as seguintes conclusões:
1. Por douta sentença proferida foi julgado improcedente o recurso de impugnação interposto pela ora Recorrente mantendo-se, em conformidade, a decisão da autoridade administrativa que condenou aquela no pagamento de coima no montante de € 800,00.
2. No que respeita à utilização da viatura para uso próprio do motorista da Recorrente, que corresponde ao cerne da questão em debate, acontece que, contrariamente ao invocado, nas próprias considerações tecidas na sentença a quo, no âmbito dos factos dados como provados, se confirma o ponto de vista da Recorrente ao sustentar, e considerar como facto provado, que o motorista: “Admitiu que algumas vezes tenha feito pequenas deslocações com a viatura, nos períodos de espera, para tratar de assuntos seus(...), e foi peremptório em afirmar que nunca foi sancionado tela sua entidade patronal por isso”.
3. Ora, se o uso próprio foi considerado facto assente e provado, através da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, não se consegue descortinar a razão, ou a necessidade, de o Tribunal a quo manifestar continuadamente, durante a sua fundamentação, o argumento inverso!
4. Existindo clara contradição entre os factos dados como provados e a decisão proferida.
5. No que respeita ao facto de a Recorrente não sancionar os seus trabalhadores por os mesmos utilizarem os seus instrumentos de trabalho para uso próprio, servirá este caso de paradigma para o dito popular “preso por ter cão; preso por não ter cão”. É usado em desabono da Recorrente a circunstância de não sancionar os seus trabalhadores por estes se servirem das viaturas em seu uso próprio. Pois seguramente no dia em que tal beneficio deixasse de ser atribuído para além da Recorrente perder parte dos trabalhadores os que restariam de imediato recorreriam a juízo alegando que lhe estariam a ser negados direitos adquiridos, e, seguramente, veriam garantidos judicialmente tais direitos!
6. Desconsiderar o peso do testemunho que garante o uso próprio da viatura, pelos motoristas, “para tratar de assuntos seus” corresponde a ignorar por completo a realidade da actividade de transporte de turismo no Algarve!
7. Tratando-se de uma actividade sazonal - que funciona entre Maio e Setembro - e a mão de obra qualificada, ao nível exigido, muito reduzida, os trabalhadores adquirem um poder negocial e de exigência inusitado, apenas conhecido nas profissões em que os trabalhadores adquirem um poder igual ou superior à entidade patronal!
8. A este poder - decorrente da imperiosa necessidade de mão de obra qualificada e da escassa oferta - tem a entidade patronal, Recorrente no caso sub judice, de se sujeitar às exigências dos trabalhadores, sob risco de os perder para a concorrência e com isso se ver impossibilitado de cumprir compromissos assumidos.
9. Ainda que tal não fosse uma exigência dos trabalhadores seguida de acordo, a Recorrente sempre poderia facultar tal uso próprio da viatura aos seus trabalhadores, o que se considera na linha do imperativo constitucional da igualdade, conforme é prática corrente na generalidade das outras empresas.
10. Veja-se que as deslocações efectuadas entre a residência do motorista e o seu local de trabalho, bem como aquelas em que se desloca na viatura em seu benefício e fora do horário de trabalho, devem ser consideradas unicamente em seu inteiro benefício, que desse modo não necessita de utilizar a sua própria viatura (caso a tenha), nem de despender gastos com o respectivo combustível e outros consumíveis da viatura.
11. É descabido referir-se não ter ficado provado que a Recorrente desconheceria a que título o motorista circulou com o veículo no período em causa nos presentes autos. Esse desconhecimento traduz-se no pleno conhecimento da Recorrente de que o serviço distribuído para cada trabalhador é o que consta na escala de serviços afixada semanalmente no local da respectiva sede e assim comunicado ao trabalhador. Em consequência, qualquer outro funcionamento da viatura - veja-se que os motoristas não podem conduzir os seus veículos sem que o tacógrafo esteja accionado - corresponde a uso próprio do motorista.
12. Repare-se que o registo comutado pelo tacógrafo apenas prova que o veículo foi conduzido durante os períodos horários aí constantes, não provando, em caso algum, que todos os períodos se reportam ao período de trabalho do motorista em causa! E fora dos períodos de trabalho o motorista pode usar a viatura livremente, sem qualquer sujeição a horários de circulação.
13. Nem se diga que com esse entendimento se põe em causa a segurança rodoviária, pois onde estaria essa segurança se depois de oito horas de trabalho ao serviço da Recorrente o motorista fizesse, em viatura sua, uma viagem de mais seis ou sete horas?! Qual a diferença de tal viagem após as oito horas de trabalho ser efectuada em viatura sua ou em viatura da Recorrente e que esta lhe disponibiliza?! Apenas uma discriminação flagrantemente inconstitucional fundaria tal interpretação!
14. O que se pretende enunciar em sede de inconstitucionalidade, por violação do artigo 13° da Constituição da Republica Portuguesa (doravante C.R.P.) diz respeito, única e exclusivamente, à imposição de coimas, como a presente, às entidades patronais por possibilitarem que os motoristas de veículos pesados utilizem as viaturas que lhe estão adstritas nas suas deslocações pessoais, a título de benefício concedido pelo empregador e correspondendo a direito adquirido pelo trabalhador.
15. Nessa medida, implica a introdução de uma discriminação gritante entre trabalhadores, impedindo-se que, em situações idênticas, a uns seja proibido o gozo de um benefício que é facultado aos restantes, vendo-se as respectivas empresas impossibilitadas de facultar o uso das viaturas aos seus trabalhadores, acabando por perder os seus serviços para entidades concorrentes que facultam tal utilização ou que têm de compensar os trabalhadores por não lhe poderem - como qualquer outra empresa - facultar o uso próprio dos seus próprios instrumentos de trabalho.
16. Intimamente relacionado com o principio da igualdade está a proibição de práticas diferenciadoras desautorizadas ou injustificadas, ou seja, a prática de discriminações arbitrárias, sendo que, do que se trata, neste domínio, é não apenas de proibir discriminações, mas, também, de “proteger as pessoas contra discriminações”, sendo certo que os factores de desigualdade inadmissível enunciados no aludido art. 13º, nº 2 são unanimemente tidos como meramente exemplificativos ou enunciativos, e não como factores taxativos. Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional em Acórdão datado de 22 de Maio de 1984 (N.° 44/84, Diário da República n.° 159, II Série, pp. 6156--6157) e a Comissão Constitucional no Parecer n.° 5/82, de 25 de Janeiro, Pareceres XVII (81-82), pp. 178-179.
17. Acresce ainda que, por “repouso” deve entender-se "Qualquer período ininterrupto de, pelo menos, uma hora durante a qual o condutor pode dispor livremente do seu tempo”, nos termos do preceituado no art. 1°, n.° 5 do Regulamento 3820/85 do Conselho (C.E.E.), preceito que é completamente ignorado na decisão ora recorrida.
18. Pelo que, apenas se pode considerar como “período de condução”, para efeitos de controlo dos limites máximos leais, o período durante o qual o trabalhador está na livre disponibilidade da entidade empregadora e no exercício das suas funções, o que não foi considerado nos presentes autos.

O Magistrado do Ministério Público apresentou a sua resposta tendo concluído:
1. A arguida violou o disposto no art° 7°, n° 1, do DL 272/89, de 19.08;
2. Esta norma impõe a obrigação de pausas e interrupções na condução, visando acautelar o interesse público da segurança rodoviária;
3. A norma imposta aos motoristas de veículos pesados de transporte rodoviário pelo Regulamento CEE n° 3820/85, de 20.12, visa impedir que estes conduzam por um período superior ao regulamentado;
4. O que está em causa neste diploma é o tempo de condução contínua de um veículo de transporte de passageiros, ainda que vazio;
5. Independentemente do facto de o motorista usar o veículo para a satisfação de necessidades pessoais;
6. Pode dizer-se que a norma exige que o motorista cesse, necessária e completamente a condução do veículo, quando se encontre no período de descanso;
7. Esta interpretação do artigo referenciado, não viola o princípio da igualdade consignado na Constituição;
8. Pois este comando institucional apenas proíbe que se estabeleçam distinções de tratamento materialmente infundadas;
9. E aqui a última ratio da norma é o acautelamento do interesse público da segurança rodoviária.

Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente.

Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º nº2 do C.P.P., não tendo o recorrente apresentado resposta.

Foram colhidos os vistos.

Cumpre apreciar e decidir:

O Tribunal recorrido deu como provados e não provados os seguintes factos:
1. Factos provados.
1. No dia 5/6/2001, cerca das 21 h e 10 m, ... conduzia o veículo pesado de passageiros com a matrícula ..., no exercício da sua actividade de motorista, realizada no âmbito de contrato de trabalho que mantinha então com a recorrente ..., sob a autoridade, direcção e fiscalização desta, quando foi interceptado por elementos da Brigada da GNR.
2. Verificados os tacógrafos da viatura acima identificada pelo agente da GNR, apurou o mesmo que no período compreendido entre as 7 horas e 15 minutos do dia 3 de Junho desse ano e as 4 horas e 15 minutos do dia 4 do mesmo mês e ano o veículo esteve a circular, conduzido sempre pelo mesmo e acima identificado motorista, sem que tenha beneficiado de qualquer período de repouso de pelo menos 9 horas consecutivas.
3. Analisado o mencionado tacógrafo do mesmo resulta que nos dias em causa a viatura esteve a circular entre os seguintes períodos de tempo:
- Das 7 h e 15 m às 7 h e 45 m
- Das 8h e 50 m às 9 horas
- Das 12 h às 14 h e 50 m
- Das 16 h e 10 m às 16 h e 20 m
- Das 17 h e 15 m às 18 h e 35 m
- Das 21 h e 20 m às 23 h e 45 m
- Das 2 h e 10 m ( dia 4) às 4 h e 15 m
4. Nos períodos de tempo acima referidos a viatura foi sempre conduzida pelo motorista ..., sob a direcção e fiscalização da recorrente, em execução de ordens que lhe foram transmitidas via telefónica pelos funcionários encarregados da elaboração das escalas de serviço e sua transmissão aos motoristas.
5. A Ré acordou com o motorista em causa, tal como com outros motoristas, que ele levaria a viatura para sua casa, ao final de cada jornada de trabalho, e daí partiria para a jornada seguinte.
6. Com o mencionado acordo a Ré obtinha um estacionamento da viatura em local mais próximo à zona de serviço a que estava afecta, e bem assim uma maior facilidade de o motorista, quando chamado, se deslocar para a imediata prestação da sua actividade profissional, ao serviço da Ré.
7. A Ré não autorizou o motorista em causa a usar a viatura em seu beneficio particular, nem este o fez no período de tempo relativamente ao qual foi levantado o auto, e proferida a condenação em recurso.
8. A Ré forneceu indicações aos motoristas ao seu serviço de que deveriam avisar os funcionários encarregados da efectuação das escalas de serviço de quando estivessem a trabalhar para além dos períodos máximos permitidos.
9. Não obstante tais avisos nem sempre a Ré procedia à substituição dos motoristas por outros, ora por ter contratado grandes quantidades de serviço, não tendo motoristas em número suficiente para a sua execução, na época alta, ora por não ser viável a interrupção do serviço de transporte de passageiros até chegar o motorista substituto, sob pena de haver reclamações dos serviços que a Ré presta no exercício da sua actividade comercial.
10. No dia em causa o motorista não avisou o encarregado das escalas de que iria exceder, como excedeu , o período máximo de trabalho.
11. Sendo certo que o encarregado das escalas, que, no período de tempo em causa nos autos, as distribuiu ao motorista acima identificado, teve conhecimento de todos os períodos de condução que este efectuou e não providenciou a sua substituição nem tão pouco adequou o serviço, que lhe destinou, ao cumprimento do período mínimo de descanso diário.
12. A recorrente , no período de tempo em causa, ao distribuir o serviço que efectivamente distribuiu ao seu motorista, sabia que tinha de o fazer respeitando os períodos mínimos de descanso diário de 9 horas consecutivas, e admitindo como possível que a execução de todo o serviço fosse causa determinante de que ele não beneficiasse desse período mínimo de descanso, conformou-se , pelo menos, com a violação legal.
13. O motorista ... foi determinado, pelo responsável pela elaboração das escalas de serviço, a assinar o documento constante de folhas 30 dos autos, mediante a promessa de que isso não lhe causaria problemas e a declaração de que a sua entidade patronal precisava de tal documento para (se eximir ao) “pagamento da coima” correspondente à infracção objecto dos autos.
14. A recorrente exerce a actividade comercial de transporte de passageiros.

2. O Tribunal recorrido fundamentou da seguinte forma a decisão proferida sobre a matéria de facto:
- a prova documental junta aos autos, designadamente o auto de contra-ordenação, o disco de tacógrafo de folhas 4 e a declaração de folhas 30;
- as declarações prestadas em audiência pela representante da entidade autuante ( o IDICT), que fez a leitura do tacógrafo em causa, com a expressa menção de todos os períodos de tempo durante os quais a viatura foi conduzida, e os períodos de tempo em que esteve parada;
- e o testemunho do motorista que, dentre o mais, disse expressamente que no período de tempo em causa nos autos foi ele, e apenas ele, que conduziu a viatura, condução essa que fez sempre na execução de serviços que lhe foi ordenada pela recorrente, serviços esses transmitidos via telefónica pelos responsáveis pela elaboração e transmissão das escalas de serviço aos motoristas. Fez ainda a leitura do tacógrafo, coincidente com a da representante do IDICT, e explicou o que se apurou e está referido nos pontos da matéria de facto numerados de 5) a 11). Mais prestou, quanto à matéria provada sob o nº 12) as declarações vertidas em acta, e outras explicativas.
Quer a representante do IDICT quer o motorista mostram-se identificados conforme da acta de audiência consta e demostraram directo conhecimento dos factos sobre os quais depuseram, idoneidade e isenção.

3. Factos não provados:
- o motorista do veículo em causa apenas tivesse conduzido o mesmo, ao serviço da recorrente, sua entidade patronal até às 18 h e 30 m do dia 3 e a partir das 7 h e 15 m do dia 5;
- a recorrente desconhecesse a que título o mencionado motorista tenha circulado com o veículo entre as 21 h e 30 m do dia 3 e as 2 e as 4 h do dia 4;
- o motorista tivesse usado a viatura, nos períodos acima mencionados, para seu uso próprio ou sequer que nesses períodos se tivesse deslocado com ela para a sua residência;
- a recorrente tenha a prática de permitir que os seus motoristas utilizem as viaturas que lhes estão adstritas para seu uso pessoal , ou que estes as usem em seu benefício sem o conhecimento da recorrente;
- seja prática nas empresas do sector comercial da recorrente permitir aos seus motoristas a utilização das viaturas que lhes estão adstritas para exercício da sua actividade profissional em deslocações pessoais, como complemento salarial.

O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do CPP, podendo sempre o tribunal de recurso conhecer de quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida ou ainda os vícios referidos no art. 410º do CPP.
Nos termos do art. 75º nº1 do DL nº 433/82, de 27/10, a segunda instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
Assim, algumas considerações da recorrente, consignadas nas suas conclusões, referentes à apreciação da prova pelo tribunal recorrido, não podem ser apreciadas por este tribunal.
Nas suas conclusões a recorrente suscita as seguintes questões:
1. Contradição entre factos dados como provados e a decisão;
2. Inconstitucionalidade do art. 7º nº1 do DL nº 272/89, de 19 de Agosto, por violação do princípio da igualdade uma vez que a interpretação feita pelo tribunal recorrido origina discriminação dos trabalhadores das empresas que exercem actividade comercial de transportes de passageiros;
3. O que se deve entender por período de condução.

Primeira questão:
- Contradição entre factos dados como provados e a decisão.
Como referem M. Simas Santos e M. Leal- Henriques/C.P.Penal anotado, II Vol./739, por contradição entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e na qualidade.
Para os fins do preceito do art. 410º nº2 al. b) do CPP, constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Tal vício existe, quando de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre fundamentos invocados.
A recorrente alega, no que respeita à utilização da viatura para uso próprio do seu motorista, que contrariamente ao invocado, nas próprias considerações tecidas na sentença “a quo”, no âmbito dos factos dados como provados, se confirma o seu ponto de vista ao sustentar, e considerar como facto provado, que o motorista: “Admitiu que algumas vezes tenha feito pequenas deslocações com a viatura, nos períodos de espera, para tratar de assuntos seus(...), e foi peremptório em afirmar que nunca foi sancionado tela sua entidade patronal por isso”.
Acrescenta a recorrente que, se o uso próprio, foi considerado facto assente e provado, através da prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, não se consegue descortinar a razão, ou a necessidade, de o Tribunal a quo manifestar continuadamente, durante a sua fundamentação, o argumento inverso.
Parece-nos que não assiste nenhuma razão à recorrente.
Vejamos o que ficou realmente provado:
Ficou provado que a viatura conduzida pelo motorista da recorrente ..., no período compreendido entre as 7.15 h do dia 3/6/2001 e as 4.15 h do dia 4/6/2001, circulou nos seguintes tempos:
- Das 7 h e 15 m às 7 h e 45 m
- Das 8h e 50 m às 9 horas
- Das 12 h às 14 h e 50 m
- Das 16 h e 10 m às 16 h e 20 m
- Das 17 h e 15 m às 18 h e 35 m
- Das 21 h e 20 m às 23 h e 45 m
- Das 2 h e 10 m ( dia 4) às 4 h e 15 m
Ficou igualmente provado que nos períodos de tempo acima referidos a viatura foi sempre conduzida pelo referido motorista, sob a direcção e fiscalização da recorrente, em execução de ordens que lhe foram transmitidas via telefónica pelos funcionários encarregados da elaboração das escalas de serviço e sua transmissão aos motoristas.
Mais se provou que a Ré não autorizou o motorista em causa a usar a viatura em seu beneficio particular, nem este o fez no período de tempo relativamente ao qual foi levantado o auto, e proferida a condenação em recurso.
Esta factualidade é absolutamente clara e não entra em contradição com outro facto também dado como provado de que a Ré acordou com o motorista em causa, tal como com outros motoristas, que ele levaria a viatura para sua casa, ao final de cada jornada de trabalho, e daí partiria para a jornada seguinte.
Na verdade, temos de considerar que o motorista no período da deslocação, de e para casa, antes e depois, da jornada de trabalho, ainda se encontrava sob a direcção e fiscalização da sua entidade patronal.
Esta conclusão, fundamenta-se, em termos factuais, no ponto 6 da matéria provada, quando refere que “Com o mencionado acordo a Ré obtinha um estacionamento da viatura em local mais próximo à zona de serviço a que estava afecta, e bem assim uma maior facilidade de o motorista, quando chamado, se deslocar para a imediata prestação da sua actividade profissional, ao serviço da Ré.”
Face a tal factualidade, temos de concluir, como na decisão recorrida, que a entidade patronal beneficiava com o referido acordo e que a jornada de trabalho se iniciava e terminava no local onde ficava estacionada a viatura da recorrente.
Quanto ao alegado uso da viatura, em benefício particular do motorista para efectuar outros trajectos, refira-se que ficou provado que no período de tempo relativamente ao qual foi levantado o auto isso não se verificou.
Assim, a fundamentação não enferma de contradição muito menos insanável e também não existe contradição entre a fundamentação e a decisão.

Segunda questão:
- Inconstitucionalidade do art. 7º nº1 do DL nº 272/89, de 19 de Agosto, por violação do princípio da igualdade uma vez que a interpretação feita pelo tribunal recorrido origina discriminação dos trabalhadores das empresas que exercem actividade comercial de transportes de passageiros.

A recorrente refere que o que pretende enunciar em sede de inconstitucionalidade, por violação do artigo 13° da Constituição da Republica Portuguesa, diz respeito, única e exclusivamente, à imposição de coimas, como a presente, às entidades patronais por possibilitarem que os motoristas de veículos pesados utilizem as viaturas que lhe estão adstritas nas suas deslocações pessoais, a título de benefício concedido pelo empregador e correspondendo a direito adquirido pelo trabalhador.
Acrescenta que nessa medida, implica a introdução de uma discriminação gritante entre trabalhadores, impedindo-se que, em situações idênticas, a uns seja proibido o gozo de um benefício que é facultado aos restantes, vendo-se as respectivas empresas impossibilitadas de facultar o uso das viaturas aos seus trabalhadores, acabando por perder os seus serviços para entidades concorrentes que facultam tal utilização ou que têm de compensar os trabalhadores por não lhe poderem - como qualquer outra empresa - facultar o uso próprio dos seus próprios instrumentos de trabalho.
Não vislumbramos a mínima consistência na argumentação da recorrente para sustentar a alegada inconstitucionalidade.
Todas as entidades patronais, em pé de igualdade, podem perfeitamente possibilitar que os seus motoristas de veículos pesados utilizem as viaturas que lhe estão adstritas nas suas deslocações pessoais.
Também todas as entidades patronais têm o dever, em pé de igualdade, de cumprir as disposições relativas aos tempos de condução e de repouso e às interrupções da condução.
Perante o eventual incumprimento, e se fiscalizadas, todas as entidades patronais podem ser alvo de processo de contra-ordenação que pode culminar com a aplicação de uma coima.
A posição defendida pela recorrente é que teria a virtualidade de permitir o sistemático incumprimento da lei de forma bem escandalosa. A alegada utilização da viatura para fins particulares do motorista, na sua perspectiva, e nos moldes em que é defendida, fora da disponibilidade da entidade empregadora, seria o pretexto para justificar toda e qualquer violação da lei.
Qualquer comparação dos veículos de transporte rodoviário com os instrumentos de trabalho referidos pela recorrente, como o telemóvel, computador e livros é descabida face aos interesses que se pretendem proteger com as normas reguladoras de tempos máximos de condução e mínimos de repouso.

Terceira questão:
O que se deve entender por período de condução.
Defende a recorrente, que para o cálculo do período de condução, para efeitos de controlo dos limites máximos legais, ao contrário do que consta na sentença recorrida, só pode considerar-se o tempo durante o qual o trabalhador está na livre disponibilidade da entidade empregadora e no exercício das suas funções.
Como já se referiu, e uma vez que na nossa perspectiva, no período da deslocação, de e para casa, antes e depois, da jornada de trabalho, o motorista ainda se encontra sob a direcção e fiscalização da entidade patronal esta questão perde a relevância pretendida pela recorrente.
De qualquer forma sempre se dirá que nos termos do art. 6º nº1 do Regulamento (CEE) nº 3820/85 do Conselho de 20/12/1985, a duração total de condução compreendida entre dois períodos de repouso diário ou entre um período de repouso diário e um período de repouso semanal, não deve ultrapassar nove horas, podendo ser de dez horas duas vezes por semana.
O período de repouso diário está definido no art. 8º nº1 do mencionado regulamento devendo ser pelo menos de onze horas consecutivas, podendo ser reduzido a um mínimo de nove horas consecutivas três vezes por semana no máximo, desde que, em compensação, seja acordado um período de repouso correspondente, antes do final da semana seguinte. Nos dias em que o repouso não for reduzido, em conformidade com o disposto no primeiro parágrafo este pode ser gozado em dois ou três períodos separados durante o período de 24 horas, devendo um destes períodos ser de, pelo menos 8 horas consecutivas. Neste caso, a duração mínima de repouso é de 12 horas.
O art. 1º nº5, do Regulamento citado, define genericamente “repouso” como qualquer período ininterrupto de, pelo menos, uma hora durante a qual o condutor pode dispor livremente do seu tempo.
Desta disposição não se pode retirar o argumento, como parece fazer a recorrente, para defender a possibilidade de repouso parcelar, sem respeitar o definido no art. 8º do Regulamento.
Na verdade, o repouso diário pode ser gozado em dois ou três períodos separados durante o período de 24 horas, mas um desses períodos nunca pode ser inferior a 8 horas.
As normas reguladoras dos tempos máximos de condução e mínimos de repouso têm subjacente, para além do aspecto laboral ( higiene, saúde e segurança no trabalho) um fundamento concorrencial e de segurança rodoviária.
O controlo dessa normas é efectuado através do registo feito pelo aparelho de controlo, denominado tacógrafo, que deve equipar todos os veículos afectos ao transporte rodoviário de passageiros ou de mercadorias
(Regulamento comunitário nº 3821/85 do Conselho de 20/12/1985, publicado no Jornal Oficial L 370 de 31/12/1985).
O registo dos elementos fornecidos pelo aparelho de controlo é feito numa folha de registo denominada disco de tacógrafo.
Este disco destinado a inscrever os dados transmitidos pelo aparelho é válido apenas por um período de vinte e quatro horas que é aferido a partir do momento em que o condutor toma o veículo a seu cargo. Nesse momento o condutor deve anotar no disco o seu nome e apelido, data e lugar do início da utilização da folha, matrícula do veículo e a leitura do conta-quilómetros.
Quando o condutor terminar o serviço ou quando tenha de substituir o disco por ter excedido o período de vinte e quatro horas, deve anotar a data e lugar do fim do serviço ou do final do disco e a leitura do conta-quilómetros ( cfr. Regulamento nº 3821/85).
A fiscalização pelas autoridades dos períodos de condução e repouso é feita através da leitura dos respectivos discos que o condutor tem de apresentar.
Como já se referiu a sufragar-se o entendimento da recorrente sobre o que se deve entender por período durante o qual o trabalhador está na livre disponibilidade da entidade empregadora e no exercício das suas funções, qualquer fiscalização estaria inviabilizada e consequentemente frustada a protecção dos interesses visados pela lei.
Estaria na livre disponibilidade da entidade patronal a indicação dos períodos que não deviam ser considerados exercício de funções profissionais, com a alegação de que a viatura fora utilizada pelo motorista para fins particulares.
Nesta linha, poderia sempre a entidade patronal apresentar prova “fácil” para poder demonstrar o cumprimento escrupuloso das normas reguladoras dos tempos máximos de condução e mínimos de repouso.
Seria um mundo de “vantagens” que o legislador recusou em nome da higiene, saúde e segurança no trabalho, segurança rodoviária e harmonização das condições de concorrência.
Assim, carecem de fundamento os argumentos aduzidos pela recorrente.

Pelo exposto, a Secção Social do Tribunal da Relação de Évora decide negar provimento ao recurso da arguida mantendo na íntegra a decisão recorrida.
Custas pela recorrente fixando a T.J. em cinco UC.

( Nota: processado e revisto pelo relator que assina e rubrica as restantes folhas- art. 94 nº2 do CPP).
Évora, 2004/ 2 /3

Chambel Mourisco
Baptista Coelho
André Proença
Gonçalves Rocha