Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | CARLOS BERGUETE COELHO | ||
Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE | ||
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Data do Acordão: | 02/07/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS | ||
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Sumário: | I – Ainda que os actos provados em 3 e em 4 revistam formas de agressão enquanto pancadas (“calduços” e “agressões como uma toalha de banho húmida e torcida” produzidas em ambiente escolar), entende-se que a fundamentação do tribunal, reconduzindo-as a “brincadeiras, com os contornos típicos da adolescência”, reflectiu pormenorizadamente as razões por que assim as caracterizou e, como tal, intrinsecamente incompatíveis com uma real intenção do arguido em atingir o ofendido, sem perder de vista, pois, que nem toda a ofensa desse tipo assume dignidade, inevitavelmente ponderada, esta, à luz do que a prova produzida pôde transmitir. II – A especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude. E na referência do legislador à especial perversidade, tem-se em vista“ uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”, significando, assim, um recurso a uma concepção emocional de culpa e que pode reconduzir-se à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor” | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora 1. RELATÓRIO Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, da Instância Local de Reguengos de Monsaraz, Comarca de Évora, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido DD, imputando-lhe a prática, como autor material, em concurso efectivo e na forma consumada, de cinco crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, alíneas c), d), e), e h), e de um crime de coação, p. e p. pelo art. 153.º, n.º 1, todos do Código Penal (CP). A assistente EE, em representação do seu filho menor, LA, deduziu acusação particular contra o mesmo arguido, imputando-lhe, em autoria material, um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º do CP, no que foi acompanhada pelo Ministério Público. Ainda, a assistente, em representação de LA, formulou pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado, peticionando a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 2.850,00, sendo € 2.500,00 por danos não patrimoniais e o restante por danos patrimoniais, tudo acrescido dos juros legais. O arguido apresentou contestação e arrolou testemunhas. Realizado julgamento e proferida sentença, decidiu-se: 1. absolver o arguido dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, e 145º, nºs 1, alínea a) e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, alíneas c), d), e) e h), e do crime de coacção, p. e p. pelo art. 153.º, n.º 1, todos do CP, por que vinha acusado. 2. absolver o arguido da prática de um crime de injúria. 3. condenar o arguido pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do CP, na pena de 100 (cem) dias de multa à razão diária de € 5,00 (cinco euros). 4. condenar o arguido/demandado a pagar ao ofendido LA a quantia de € 285,00, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal desde a data de trânsito em julgado até efectivo e integral cumprimento. 5. absolver o demandado do demais peticionado. Inconformados com a decisão, o arguido/demandado e o Ministério Público interpuseram recursos. Extraíram as conclusões: - o arguido/demandado: a) A douta sentença, na parte em que condena o arguido, é ilegal e injusta, porque errada e mal fundamentada, violando o artigo 143º do Código Penal, sendo passível de recurso nos termos do artigo 410º do Código de Processo Penal. b) Desde logo, porque considera existente e provada a prática do crime sem que se tenha apurado a data em que ocorreu, nem sequer de forma aproximada ou delimitada pelo ano civil. c) Efectivamente, no facto provado nº 5, o que se diz é que os factos ocorreram “em dia não concretamente apurado”, sem mais. d) Atenta a prova produzida, em nenhum documento, declaração do arguido, do ofendido, da mãe deste ou de qualquer das testemunhas ouvidas, se alcança ou retira a data, certa ou aproximada, da prática dos factos relatados no facto provado nº 5 da douta sentença. e) Na incerteza desse elemento, o tribunal devia ter dado relevância penal à dúvida, absolvendo o arguido do crime e, consequentemente, também do pedido de indemnização. f) Tratando-se de um crime cujo procedimento depende de queixa, a determinação da data da ocorrência dos factos puníveis é essencial para se saber se a queixa foi apresentada dentro do prazo legal, e se deveria ter ou não havido julgamento. g) Há erro na interpretação da prova testemunhal produzida em audiência relativamente ao facto provado nº 6, quando considera provado que a colher usada para mascarrar o ofendido estava incandescente. h) E quando considera provado que este pedia insistentemente para o largarem. i) Nenhuma das testemunhas relevantes para prova deste facto nº 6 diz que a colher estava incandescente ou que o ofendido pedia insistentemente para o largarem. j) É o caso da testemunha JA (segmento 20160301120318_1384055_2870805), ao minuto 5:40 e seguintes, que diz: “Era apenas para mascarrar…O LM queimou a colher…a colher não arrefeceu…pensámos que já estava fria, mas não estava…”;. k) E ao minuto 9:30 e seguintes, perguntado se o ofendido tentou soltar-se, respondeu que “não” e perguntado se o ofendido disse que a colher estava quente, respondeu que “não”. l) Ou ao minuto 27:50 e seguintes, que diz que “não viu aquecer a colher…estava quente, não sabia a temperatura…”, e perguntado se o objectivo era queimar, respondeu que “não, era mascarrar”. m) E da testemunha LM (segmento 20160301142127_1384055_2870805), que ao minuto 6:00 e seguintes, diz: “Foi só para sujar…quando eu vi que queimou, tirei…”. n) E ao minuto 19:35 e seguintes: “Não pensei que ela estivesse tão quente…quando a meti na testa para esfregar e vi que estava a queimar e ele disse pára” e perguntado se pararam, respondeu “sim”. o) E da testemunha MR (segmento 20160301144822_1384055_2870805), que ao minuto 5:00 e seguintes, diz: “Aquilo não era para queimar, era só uma brincadeira para mascarrar…”. p) E da testemunha Duarte (segmento 20160301151649_1384055_287085, que ao minuto 0:43 e seguintes, diz: “Mascarraram uma colher…e depois passaram-na pela testa do LA ”. q) Ou da testemunha AL (segmento 20160301154434_1384055_2870559), que ao minuto 3:37 e seguintes, diz: “Acho que houve uma colher que estava quente…”. r) E ao minuto 4:45 e seguintes, perguntado sobre o que aconteceu quando colocaram a colher no ofendido, diz: “Deslargámos…ele até se deixava rir..”. s) E ao minuto 14:40 e seguintes, perguntado sobre qual a intenção dos colegas, diz “Era mesmo mascarrar” e perguntado se pediram desculpa e que disseram, diz que “Pediram desculpa e não iam ter brincadeiras dessas mais…”. t) Também o ofendido/assistente nunca refere que a colher estava incandescente nas declarações, gravadas no segmento áudio 2016030102629_1384055_2870805. u) Onde, quando questionado, diz ao minuto 2:40 e seguintes, que “Começaram a queimar uma colher supostamente era para me mascarrarem mas acabaram por me queimar”. v) E ao minuto 14:17 e seguintes, perguntado sobre a intenção, diz que ”Ao início, mascarrar-me aqui no bigode e depois é que começaram a aquecer a colher e acabaram por me queimar”. w) Também o arguido, no depoimento gravado no segmento 20160301095954_1384055_2870805, uma vez interrogado, diz ao minuto 7:52 e seguintes, diz que “Eu não sabia que aquilo estava quente…dois segundos aquilo ficava preto…fica preto na colher e depois mascarra…”. x) E ao minuto 9:17 e seguintes, sobre a reacção do ofendido, diz que “Depois é que disse que aquilo estava quente e a gente parámos…foi-se limpar e sentiu aquilo quente…e no outro dia é que ficou vermelho…”. y) Logo, não é admissível considerar provados estes atributos do facto provado nº 6. z) Sem estes atributos, não podia entender-se que o arguido agiu com dolo eventual, como o fez a douta sentença recorrida. aa) Muito provavelmente, os factos nem teriam relevância penal. bb) Havendo, quando muito, apenas negligência, o que determinaria a aplicação do artigo 148º do CP. cc) A douta sentença deu também relevância, como meio de prova documental, aos fotogramas de fls. 25 e 26 do processo e que foram juntas pela mãe do ofendido em 6 de Junho de 2014. dd) Estas fotografias não têm qualquer indicação da data em que foram tiradas. ee) Nem permitem identificar a pessoa do ofendido ou qualquer outra. ff) E não foram desenvolvidas quaisquer diligências para o efeito. gg) Nem permitem dizer que as marcas que nelas se vêem procedem de queimadura, muito menos de queimadura provocada por uma colher. hh) O ofendido não foi assistido em qualquer estabelecimento de saúde ou por qualquer profissional de saúde no seguimento da prática dos factos, não havendo qualquer hipótese de aferir se as lesões sofridas são compatíveis com as supostas lesões evidenciadas nas fotografias em questão. ii) Assim, não devia a douta sentença ora recorrida ter tido em consideração estas fotografias como meio de prova, pelo que, ao fazê-lo, errou e agiu de forma ilegal. jj) Considera-se exagerada a medida concreta da pena aplicada, em função da gravidade e das circunstâncias do crime, bem como da personalidade e dos antecedentes criminais do arguido, e ainda em função da idade deste quando os factos ocorreram. kk) As lesões foram de pequena gravidade, nem sequer tendo sido assistido ou tratado por qualquer profissional de saúde ou em qualquer estabelecimento de saúde. ll) E não apresenta quaisquer marcas ou sequelas. mm) O que foi provado testemunhalmente em audiência. nn) Pela testemunha HB – depoimento gravado no segmento 20160317115503_1384055_2870805, ao minuto 10:50 e seguintes, que perguntado se viu marcas de queimadura na testa e na face do ofendido, respondeu “não”; oo) E pela testemunha Maria Luzia – depoimento gravado no segmento 20160317113820_1384055_2870805, ao minuto 6:14 e seguintes, que perguntada se viu alguma vez o LA com alguma marca de queimadura, respondeu “não”. pp) Os actos foram praticados num contexto escolar conturbado generalizado. qq) O arguido era um aluno bem comportado e estudioso, com uma personalidade bem formada, tendo 16 anos recém cumpridos, e sem quaisquer antecedentes criminais. rr) Não foi ele a colocar a colher no rosto do ofendido, nem sequer foi ele que teve a ideia de levar a efeito a brincadeira. ss) Pelo que, face a estas circunstâncias, justificava-se a absolvição ou pelo menos que se fixasse ao arguido o número mínimo de dias da pena de multa, e pelo valor diário mínimo legalmente admitido. tt) Salvo o devido respeito, o que o Tribunal pretendeu foi satisfazer a comunidade escolar e a própria comunidade social local, emitindo uma sentença que servisse de exemplo e assustasse os alunos tumultuosos. uu) Em detrimento de uma correcta avaliação das circunstâncias e da culpa do arguido, como se impunha. vv) Assim, porque injusta e reveladora de um certo abuso de poder, a douta sentença deve ser anulada. ww) No que se refere à condenação em indemnização cível, diga-se que não se concorda com o montante de € 285,00 fixado na douta sentença, que se crê excessivo. xx) Porque não há nenhuma referência, real ou presumida, ao quantum doloris. yy) E porque o arguido não tem rendimentos próprios. zz) Sobrecarregando-se o seu agregado familiar, o qual não tem, como é óbvio, qualquer responsabilidade no caso. Nestes termos, nos demais de direito, e com o mui douto suprimento desse Venerando Tribunal, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência: A) Absolver-se o arguido do crime pelo qual foi condenado; ou B) Caso assim não seja entendido, condenar o arguido em pena de multa pelos mínimos legais em vigor; C) Quanto à condenação no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais, a haver a ela lugar, deve ordenar-se a sua substancial redução Mais se requer, em caso de condenação, nos termos do artigo 48º do CP, que seja permitida a substituição da pena em concreto aplicada por prestação de trabalho a favor da comunidade, fixando-se um número de dias adequado, em função do tipo de crime e da sua pequena gravidade. Requer-se ainda, em caso de condenação, que seja dispensada a transcrição da sentença no certificado de registo criminal do arguido, ao abrigo e nos termos do artigo 13º da lei nº 37/2015, de 5 de Maio. - o Ministério Público: 1. O Tribunal recorrido julgou como provado que o arguido desferiu pancadas com a mão no pescoço do ofendido e que lhe desferiu pancadas nas pernas com uma toalha húmida e torcida, mas julgou não provado que o arguido quisesse desferir-lhe pancadas e assim atingir-lhe o corpo e a saúde, sabendo que lhe causava dor. 2. Esta decisão revela erro notório na apreciação da prova, pois que ao julgar verificado que o arguido desferiu as pancadas descritas no corpo do ofendido, decorre de modo claro e evidente das regras de experiência comum e do normal acontecer que o arguido sabia que ao desferir tais pancadas provocava dor no corpo do ofendido – resultado este que, se não quis, previu como necessária consequência da sua actuação. Tal regra da normalidade, atingível a qualquer comum cidadão, não é, de modo nenhum, afastada seja por qualquer facto julgado provado seja pelos fundamentos expostos na motivação da matéria de facto. 3. Não pode o Tribunal entender pancadas com a mão no pescoço e com uma toalha húmida e torcida nas pernas como “brincadeiras” sem dignidade penal. 4. Ademais, tanto que não se trata de uma “brincadeira” com o consentimento do ofendido que não se provou qualquer relação de amizade entre este e o arguido (pelo contrário, dos depoimentos colhidos entre os alunos da turma resulta que estes pertenciam a grupos de amigos distintos), como não se prova que o desferir de tais pancadas fosse recíproco. 5. Não resultou provada qualquer circunstância de desculpa ou de exclusão da ilicitude. 6. O crime de ofensa, previsto no artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, tutela a integridade física da pessoa humana. Sendo um crime material e de dano, verifica-se quando ocorre uma lesão do corpo ou da saúde de outrem, independentemente da dor ou do sofrimento causado ou de gerar incapacidade para o trabalho[1]. 7. A prova do elemento subjectivo é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais factos indiciados e das regras de experiência comum.. 8. Razões pelas quais não restam dúvidas quanto ao preenchimento do tipo objectivo e subjectivo de ilícito do crime de ofensas à integridade física e à sua consequente punibilidade. 9. Ao julgar como provado que o arguido DD dirigiu-se a LA e desferiu-lhe pancadas, com a mão, no pescoço e que o arguido DD aproximou-se de LM e, com a toalha de banho húmida e torcida, desferiu-lhe pancadas, com a mesma, nas pernas e ao julgar como não provado que ao actuar da forma descrita o arguido quis desferir-lhe pancadas no pescoço e com a toalha húmida [e torcida] e assim atingir o seu corpo, saúde e o seu bem-estar físico, sabendo que lhe causava dor, intuito que logrou concretizar, a decisão recorrida violou as regras da experiência comum, e, consequentemente, o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, incorrendo no vício de erro notório da apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, c) do Código de Processo Penal. 10. Por respeito às regras do normal acontecer e da experiência comum – bem como aos princípios da tipicidade e da legalidade vigentes em direito penal e corolários de Estado de Direito democrático – deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue, também, provado o elemento subjectivo do tipo de crime de ofensas à integridade física simples – ou seja que o arguido, ao actuar da forma descrita, sempre de modo livre, voluntário e consciente, quis desferir pancadas com a mão no pescoço de LA e com uma toalha húmida e torcida nas suas pernas, sabendo que lhe atingia o corpo e lhe causava dor. 11. Acresce que, LA, ofendido nos autos, cujas declarações foram valoradas pelo Tribunal recorrido, quando perguntado acerca de agressões físicas referiu pancadas no pescoço e chicotadas com a toalha, desferidas, designadamente, pelo arguido, referindo que “ficava a doer e depois passava”, mais declarando que dizia aos colegas (incluindo ao arguido) “para parar”. Afirmou, pois, sem sombra para dúvida que essas pancadas lhe doíam (cfr. sessão da audiência de discussão e julgamento de 01.03.2016, gravação no sistema áudio a partir das 10h27m01s, entre os minutos 03m19s e 05m12s). 12. Ainda que se considere que inexiste o referido vício de erro notório de apreciação da prova (ou qualquer outro vício de conhecimento oficioso que implique a alteração da decisão da matéria de facto no sentido aludido), sempre incorreu o Tribunal recorrido num erro de julgamento, pelo que deve a decisão sobre a matéria de facto ser alterada no sentido de se considerar provado que, por reporte ao facto n.º 3 da factualidade provada, o ofendido disse ao arguido para parar e que o arguido, ao actuar da forma descrita, sempre de modo livre, voluntário e consciente, quis desferir pancadas com a mão no pescoço de LA e com uma toalha húmida e torcida nas suas pernas, sabendo que lhe atingia o corpo e lhe causava dor, em face das declarações do ofendido (e da demais prova valorada na decisão recorrida). 13. O Tribunal recorrido erra na apreciação da prova e cai em contradição insanável na fundamentação, ao dar como assente no ponto 6 dos factos provados que enquanto o arguido DD continuava a agarrar os braços de LA , mantendo imobilizado, o menor de 16 anos LM encostou a colher incandescente na testa e na face direita de LA , queimando-o, enquanto este pedia insistentemente para o largarem porque já estava queimado e considerar, depois, como provado, somente, o dolo eventual, ou seja que o arguido DD representou como possível que queimaria LA , tendo-se conformado com tal desfecho, intuito que logrou concretizar, tendo actuado em conjugação de esforços com LM e JC, a fim de concretizar uma das ofensas. 14. Não podia, pois, o Tribunal recorrido dar como provado que o arguido continuou a segurar o ofendido enquanto a colher incandescente era encostada na cara deste e enquanto o mesmo dizia para o largarem, que o estavam a queimar, e que (apenas) considerou como possível que queimaria o ofendido, conformando-se com tal desfecho, intuito que logrou concretizar. Ou o arguido se conforma com o resultado, representando como possível – caso em que actua com dolo eventual – ou actua com o intuito produzir determinado resultado (ou seja, querendo a sua ocorrência) – caso em que o dolo é directo. 15. Incorreu, assim, o Tribunal no vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal, uma vez que, ao julgar provados dois factos objectivamente contrários, o tribunal incorreu numa contradição insanável da fundamentação, que resulta da leitura da decisão recorrida, conjugada com as regras da normalidade e da experiência comum. 16. Nesta conformidade, deve a referida decisão sobre a matéria de facto ser alterada e substituída por outro que considere que o arguido actuou com dolo directo – ou seja, que o arguido actuou com o propósito conseguido de, em conjugação de esforços e de intentos com dois menores de 16 anos, queimar a face do ofendido, pois apenas este facto subjectivo ou interno é logicamente compatível com o facto de o arguido continuar a segurar o ofendido enquanto este dizia que o estavam a queimar. 17. Ao decidir sobre a matéria de facto do modo transcrito e ao concluir pela inexistência de especial censurabilidade (simplesmente) aludindo (mais uma vez) ao contexto, a uma “intenção primária de mascarrar” – julgando-se provado que o ofendido pediu insistentemente para o largarem porque já estava queimado – e ao facto de se tratar numa “brincadeira que acabou mal”, sem fundamentar o afastamento de cada uma das alíneas do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal imputadas na acusação, o Tribunal recorrido incumpriu o dever de fundamentação, violando o disposto nos artigos 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e 132.º, nºs. 1 e 2 do Código Penal. 18. Pelo que, apesar de tudo, douta sentença recorrida deve, nesta parte, ser considerada nula, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal. 19. Não há dúvidas que o arguido actuou em conjugação de esforços e de intentos com outros dois alunos da mesma turma, à data inimputáveis em razão da idade, sendo certo que esta comparticipação dos três agentes (arguido incluído) na modalidade de autoria material e o empenhamento de cada indispensável ao resultado verificado – a queimadura – natural será concluir pela especial perversidade da conduta, neste caso, do arguido. 20. De facto, LA, especificamente sobre este episódio, ao descrever o episódio em que o queimaram com uma colher quente na cara disse (cfr. sessão da audiência de discussão e julgamento de 01.03.2016, gravação no sistema áudio a partir das 10h27m01s, entre os minutos 02m20s e 03m10s): «Senhora Juíza: E o Senhor o que é que fez quando o estavam a agarrar? LA: tentei soltar-me. Senhora Juíza: E não conseguiu? LA: Não.» 21. Pelo que a conjugação de esforços e de intentos entre o arguido e os restantes dois agentes foi crucial, pois que o ofendido ter-se-ia afastado, evitando a queimadura, não fosse a força física dos dois agentes (um deles o arguido) que o seguravam, impedindo a fuga. 22. Deste modo, resulta da prova dos autos (e do teor da própria sentença recorrida) que o arguido agiu movido pelo intuito de humilhar o ofendido, juntamente com mais dois colegas da turma, em frente aos restantes rapazes da turma, agarrando por trás e com força, enquanto outro colega encostava colher incandescente na face do ofendido – facto que era conhecido pelo arguido – tendo aquele afirmado para o largarem porque o estavam a queimar. 23. É esta a imagem global do facto, de co-autoria dolosa, de humilhação, de surpresa e de frivolidade ou superficialidade da actuação do arguido que apenas poderá levar pela especial censurabilidade com que o arguido agiu. 24. Assim, impõem a prova produzida, as regras de experiência comum e o descrito no artigo 132.º, n.º 1 e n.º 2, e) e h), por aplicação do artigo 145.º, n.º 2, ambos do Código Penal, a alteração da decisão da matéria de facto, revogando-se a mesma na parte em que considera não provado o facto descrito no ponto 12 e ser julgado provado o seguinte facto: Ao actuar da forma supra descrita, de modo livre, voluntário e consciente, o arguido DD quis molestar LA, em conjugação de esforços e de intentos com dois menores de 16 anos, no interior da escola e em frente aos restantes alunos, movido pelo intuito de causar sofrimento físico e psíquico a este, o que concretizou e é revelador da especial perversidade da sua conduta. 25. E, em conformidade, ser alterada a decisão de direito, condenando-se o arguido pelo prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido nos termos conjugados dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, a) e n.º 2, e 132.º, n.º 2, e) e h), todos do Código Penal. 26. Por tudo exposto, deve ser dado provimento ao recurso e em consequência: i. Ser alterada a decisão recorrida sobre a matéria de facto, por padecer de vício de erro notório da apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, c) do Código de Processo Penal, e incorrer em erro de julgamento, violando o artigo 127.º do mesmo Código, no sentido de se julgar provado que, por reporte ao facto n.º 3 da factualidade provada, o ofendido disse ao arguido para parar e que o arguido, ao actuar da forma descrita, sempre de modo livre, voluntário e consciente, quis desferir pancadas com a mão no pescoço de LA e com uma toalha húmida e torcida nas suas pernas, sabendo que lhe atingia o corpo e lhe causava dor, o que representou, em face das declarações do ofendido (e da demais prova valorada na decisão recorrida); ii. Em conformidade, ser revogada a sentença recorrida e ser substituída por outra que condene o arguido pela prática de (mais) dois crimes de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo disposto no artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal. iii. Deve, ainda, a sentença recorrida ser revogada, por padecer de vício de contradição insanável e de nulidade por falta de fundamentação, de acordo com o previsto nos artigos 379.º, n.º 1, a) e artigo 410.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, bem como de erro de julgamento, em violação do previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, e ser alterada a decisão da matéria de facto, revogando-se a mesma na parte em que considera não provado o facto descrito no ponto 12 e ser julgado provado o seguinte facto: Ao actuar da forma supra descrita, de modo livre, voluntário e consciente, o arguido DD quis molestar LA, em conjugação de esforços e de intentos com dois menores de 16 anos, no interior da escola e em frente aos restantes alunos, movido pelo intuito de causar sofrimento físico e psíquico a este, causando-lhe sofrimento, humilhação e vergonha, o que é revelador da especial perversidade da sua conduta. iv. E, nessa sequência, ser revogada a decisão condenatória e substituída por outra que condene o arguido pelo prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido nos termos conjugados dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, a) e n.º 2, e 132.º, n.º 2, e) e h), todos do Código Penal. Os recursos foram admitidos. Apresentaram respostas, concluindo: - o Ministério Público: 1. Os factos sob apreciação estão devidamente enquadrados no decurso do ano lectivo 2013/2014, mais precisamente no ano de 2014, conforme decorre da factualidade provada e das declarações do arguido, do assistente e das testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento (quer as da acusação, quer as da defesa). 2. Deve ser dada credibilidade às declarações do assistente, conjugadas com a demais prova produzida e com as regras da experiência comum, para formar a convicção de que a colher se encontrava “incandescente” e que pedira aos autores dos factos, em particular ao arguido, para o largarem. 3. A douta sentença recorrida não merece reparo ao julgar provado, no ponto n.º 6 da factualidade assente, que a colher se encontrava incandescente e que o ofendido pedia insistentemente para o largarem. 4. Atenta a gravidade dos factos – que justificam, no entender do Ministério Público – o enquadramento jurídico no tipo qualificado, não se demonstra exagerada ou desproporcional, no sentido de excessiva. 5. Pelo exposto, deve ser negado provimento ao presente recurso e ser julgado procedente o recurso apresentado pelo Ministério Público, pelas razões aí expostas, responsabilizando-se o arguido, ora recorrente, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, no que diz respeito aos factos ora em discussão. - o arguido/demandado: a) Ao contrário do alegado pela recorrente, não há erro notório na apreciação da prova quando o tribunal recorrido considera provado que o arguido deu alguns calduços ou pancadas no pescoço do ofendido ou que lhe deu com uma toalha torcida nas pernas (factos provados nºs 3 e 4 da douta sentença recorrida), sem que tenha considerado provado que essa conduta era criminalmente relevante. b) Não se provou a frequência e a intensidade dos calduços ou que estes tenham provocado qualquer lesão ao ofendido. c) Também do episódio da toalha torcida nas pernas não resultou qualquer dano ou lesão para o ofendido. d) Tendo ficado provado à saciedade, isso sim, que estes dois comportamentos se inserem num contexto generalizado e recíproco de brincadeiras entre os alunos da turma, em que os que levam calduços também os dão, o que a própria recorrente acaba por reconhecer. e) Pelo que não se compreende que a recorrente queira ver nesta atitude uma violação das regras da experiência comum. f) Quando destas, no contexto em que as acções ocorreram, resulta precisamente o contrário. g) Assim, e bem, entendeu o tribunal recorrido que, embora possam ter relevância do ponto de vista civil ou disciplinar, o que não se desconhece e não deixa de se valorar, não têm estas acções relevância criminal e por isso não se pune o arguido. h) Por outro lado, não é admissível que se queira punir o arguido apenas para servir de exemplo para toda a comunidade, e para prevenção de eventual prática de crimes no futuro, enquanto adulto, se as acções praticadas ocorreram num contexto como o atrás descrito. i) Se um dos fins das penas é constituírem exemplo e desincentivo à prática de crimes, quando as condutas são comprovadamente criminais, já não se compreende que essa finalidade seja determinante para considerar criminais as acções quando estas, fundadamente, não são relevantes deste ponto de vista ou quando, pelo menos, subsiste dúvida. j) Inexiste, pois, erro notório da apreciação da prova ou violação do artigo 127º do CPP. k) Também não há erro de julgamento, como pretende a recorrente, nem se justifica a impugnação (com a sua alteração) da matéria de facto. l) Recorde-se o facto provado nº 3: Entre 01 de Setembro de 2013 e 30 de Junho de 2014, no interior da escola, com regularidade não concretamente apurada, o arguido DD dirigiu-se a LA e desferiu-lhe pancadas, com a mão, no pescoço. m) Bem como o nº 4: Em data não apurada, o arguido DD aproximou-se de LM e, com a toalha de banho húmida e torcida, desferiu-lhe pancadas, com a mesma, nas pernas. n) Dos quais pretende a recorrente retirar a prova de um outro, a acrescentar à matéria de facto provada, do seguinte teor, como consta de fls. 489/90 dos autos: o ofendido disse ao arguido para parar e que o arguido, ao actuar da forma descrita, sempre de modo livre, voluntário e consciente, quis desferir pancadas com a mão no pescoço de LA e com uma toalha húmida e torcida nas suas pernas, sabendo que lhe atingia o corpo e lhe causava dor, o que representou. o) Mas sem razão. p) O tribunal valorizou e teve em conta (e bem) as regras da experiência comum, entendendo que aquelas acções eram desprovidas de relevância penal, e por isso se absteve de condenar o arguido por tais factos. q) Como também ficou provado, estas acções decorreram num contexto de brincadeira generalizada e recíproca entre os alunos, sem que o arguido (ou os outros alunos), quisessem ou sequer representassem a possibilidade de causarem danos ou agressões uns aos outros. r) Não deve, pois, a decisão recorrida ser alterada nesta parte. s) Inexiste igualmente erro na apreciação da prova e contradição insanável na fundamentação, não podendo o tribunal dar como provados concomitantemente os factos 6 e 8, como pretende a recorrente. t) Recordemos os ditos factos: 6. Acto contínuo, enquanto o arguido DD continuava a agarrar os braços de LA, mantendo imobilizado, o menor de 16 anos LM encostou a colher incandescente na testa e na face direita de LA, queimando-o, enquanto este pedia insistentemente para o largarem porque já estava queimado; 8. Ao actuar da forma supra descrita, o arguido DD representou como possível que queimaria LA, tendo-se conformado com tal desfecho, intuito que logrou concretizar, tendo actuado em conjugação de esforços com LM e JC, a fim de concretizar uma das ofensas. u) No entendimento da recorrente, resulta do facto nº 6 a existência de intenção e da especial censurabilidade da conduta do arguido. v) Devendo o tribunal ter antes considerado provado que: ao actuar da forma supra descrita, de modo livre, voluntário e consciente, o arguido DD quis molestar LA, em conjugação de esforços e de intentos com dois menores de 16 anos, no interior da escola e em frente aos restantes alunos, movido pelo intuito de causar sofrimento físico e psíquico a este, o que concretizou e é revelador da especial perversidade da sua conduta. w) E por isso devia ter condenado o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido nos termos conjugados dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, a) e n.º 2, e 132.º, n.º 2, e) e h), todos do Código Penal. x) Pelo contrário, ficou provado nos autos que com aquela brincadeira se pretendia apenas mascarrar o ofendido, à semelhança do que antes já haviam feito com outro colega. y) É o que se provou pelos testemunhos de: JA – depoimento gravado no segmento 20160301120318_1384055_2870805, ao minuto 5:40 e seguintes, que diz: “Era apenas para mascarrar…O LM queimou a colher…a colher não arrefeceu…pensámos que já estava fria, mas não estava…”; ao minuto 9:30 e seguintes, perguntado se o ofendido tentou soltar-se, respondeu que “não” e perguntado se o ofendido disse que a colher estava quente, respondeu que “não”; ao minuto 27:50 e seguintes, disse que “não viu aquecer a colher…estava quente, não sabia a temperatura…”; perguntado se o objectivo era queimar, respondeu que “não, era mascarrar”; z) Do LM – depoimento gravado no segmento 20160301142127_1384055_2870805, ao minuto 6:00 e seguintes, que diz: “Foi só para sujar…quando eu vi que queimou, tirei…”; ao minuto 19:35 e seguintes: “Não pensei que ela estivesse tão quente…quando a meti na testa para esfregar e vi que estava a queimar e ele disse pára”; perguntado se pararam, respondeu “sim”; aa) Do MR– depoimento gravado no segmento 20160301144822_1384055_2870805, ao minuto 5:00 e seguintes, que diz: “Aquilo não era para queimar, era só uma brincadeira para mascarrar…”; bb) Do Duarte– depoimento gravado no segmento 20160301151649_1384055_287085, ao minuto 0:43 e seguintes, que diz: “Mascarraram uma colher…e depois passaram-na pela testa do LA ”; cc) E do AL – depoimento gravado no segmento 20160301154434_1384055_287055, ao minuto 3:37 e seguintes, que diz: “Acho que houve uma colher que estava quente…”; ao minuto 4:45 e seguintes, perguntado sobre o que aconteceu quando colocaram a colher no ofendido, diz: “Deslargámos…ele até se deixava rir.”; ao minuto 14:40 e seguintes, perguntado sobre qual a intenção dos colegas, diz “Era mesmo mascarrar” e perguntado se pediram desculpa e que disseram, diz que “Pediram desculpa e não iam ter brincadeiras dessas mais…”. dd) Inexistiu, pois, qualquer intenção de queimar o ofendido ou de agredir a sua integridade física por outro modo. ee) Mas sim, e apenas, a vontade de levar a cabo uma brincadeira já experimentada com outros colegas, sujando ou mascarrando o ofendido. ff) Pelo que não merece a douta sentença, na parte em que não considera o dolo directo e a especial perversidade como fazendo parte da actuação do arguido, qualquer censura. Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso do arguido e da procedência do recurso do Ministério Público. Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), nada foi apresentado. Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. 2. FUNDAMENTAÇÃO O objecto de cada recurso define-se pelas conclusões que o recorrente respectivo extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas nos arts. 379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10 (publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995), Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48, e Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320/321. Assim, delimitando-os, residirá em apreciar: - recurso do arguido/demandado: A) - da impugnação da matéria de facto; B) - da redução da medida da multa e sua substituição; C) - da redução do montante indemnizatório; D) - da dispensa de transcrição da condenação no registo criminal. - recurso do Ministério Público: A) - da nulidade da sentença; B) - do erro notório na apreciação da prova; C) - da contradição insanável da fundamentação; D) - da impugnação da matéria de facto; E) - da subsunção ao crime de ofensa à integridade física qualificada; F) - da integração em vários crimes de ofensa à integridade física simples. Questões prévias relativamente ao recurso do arguido/demandado: Atentando no valor global do pedido de indemnização civil deduzido nos autos (€ 2.850,00), relativamente ao que o arguido/demandado, aqui recorrente, vem suscitar que o montante indemnizatório fixado seja excessivo, não é admissível recurso, nos termos do art. 400.º, n.º 2, do CPP, uma vez que esse valor é inferior à alçada do tribunal recorrido (cfr. art. 44.º da Lei n.º 62/2013, de 26.08). Por isso, a questão definida em C) - da redução do montante indemnizatório - não será conhecida, não obstante se possam extrair consequências relativas à atribuição da indemnização, eventualmente decorrente da apreciação da impugnação da matéria de facto (art. 403.º, n.º 3, do CPP), se esta vier a ter influência nesse aspecto. Identicamente, a questão referida em D) - da dispensa de transcrição da condenação no registo criminal - não pode agora, independentemente de saber se a condenação se mantém, ser conhecida por esta Relação, uma vez que, nos termos do art. 13.º da Lei n.º 37/2015, de 05.05, essa determinação cabe fazer na sentença ou em despacho posterior e, deste modo, se não efectuada e não se tratando de aplicação oficiosa, redunda em matéria não suscitada/conhecida em 1.ª instância e, assim, insusceptível de apreciação em recurso. Neste sentido, podem apontar-se o acórdão da Relação de Lisboa de 21.11.2002, no proc. n.º 0065569, rel. Nuno Gomes da Silva, e o acórdão desta Relação de Évora de 07.04.2015, no proc. n.º 1406/10.2PBFAR.E1, rel. João Gomes de Sousa, aqui adjunto. Ao nível da matéria de facto, consta da sentença recorrida: Factos provados: 1. LA é filho de JA e de EE e nasceu em 02 de Agosto de 1999. 2. No ano lectivo de 2013/2014, na Escola Secundária Conde de Monsaraz, sita em Reguengos de Monsaraz, o arguido DD e LA frequentaram o 8º ano de escolaridade, na turma F do curso de área vocacional. 3. Entre 01 de Setembro de 2013 e 30 de Junho de 2014, no interior da escola, com regularidade não concretamente apurada, em contexto não concretamente apurado, o arguido DD dirigiu-se a LA e desferiu-lhe pancadas, com a mão, no pescoço. 4. Em data não apurada, o arguido DD aproximou-se de LM e, com a toalha de banho húmida e torcida, desferiu-lhe pancadas, com a mesma, nas pernas. 5. Em dia não concretamente apurado, no interior do balneário da escola, o arguido DD, juntamente com os menores de 16 anos JA e LM, agarrou os braços de LA, por detrás das costas, e imobilizou-o, enquanto o menor de 16 anos LM aquecia uma colher, com um isqueiro, dizendo a LA “agora vou mascarrar-te a cara”. 6. Acto contínuo, enquanto o arguido DD continuava a agarrar os braços de LA, mantendo imobilizado, o menor de 16 anos LM encostou a colher incandescente na testa e na face direita de LA, queimando-o, enquanto este pedia insistentemente para o largarem porque já estava queimado. 7. Na sequência das agressões supra descritas, LA sofreu duas queimaduras na face. 8. Ao actuar da forma supra descrita, o arguido DD representou como possível que queimaria LA, tendo-se conformado com tal desfecho, intuito que logrou concretizar, tendo actuado em conjugação de esforços com LM e JC, a fim de concretizar uma das ofensas. 9. O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal. Mais se provou que: 10. O ofendido, em virtude das queimaduras, sofreu dor. 11. O arguido DD encontra-se a estudar, tendo optado pela vertente profissional de agricultor. 12. Reside com a mãe, pai e irmão. 13. O arguido DD não regista quaisquer antecedentes criminais. Factos não provados: 1. Que, no contexto do facto n.º 3 provado, tal sucedeu na presença dos demais alunos, imediatamente antes de entrar nas aulas e que LA dizia ao arguido para parar. 2. Que o facto n.º 5 provado ocorreu No dia 28 de Janeiro de 2014, pelas 14h30m. 3. Que o arguido DD desferia pancadas no pescoço de LA com regularidade diária e também na cantina na fila para o almoço. 4. Em datas não concretamente apuradas, mas seguramente entre 01 de Setembro de 2013 e 31 de Janeiro de 2014, no interior da sala de aula, na escola, o arguido DD, conjuntamente com os menores de 16 anos LM, JA e JS, por diversas vezes, desferiu pontapés nas pernas de LA e, de seguida, começou a rir e a troçar do mesmo. 5. Nestas exactas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido DD ordenava ainda a LA que fizesse determinadas coisas, como atirar papéis para cima de colegas, ou gritar, ou dar cambalhotas, tudo na sala de aula, a fim de ser expulso e, se o mesmo não lhe obedecesse, no fim das aulas, desferia-lhe pontapés. 6. Por tal motivo, com medo de ser agredido e humilhado pelo arguido DD, LA atirava papéis para cima de colegas, gritava, ou dava cambalhotas, acabando por ser expulso da sala de aula. 7. Em data não concretamente apurada, mas seguramente entre 10 e 15 de Janeiro de 2014, de manhã, no interior do balneário da escola, após o término de uma aula de educação física, enquanto LA se encontrava sentado num banco, a vestir-se, o menor de 16 anos LM abeirou-se de si e desferiu-lhe um pontapé nas pernas e, acto contínuo, desferiu-lhe várias bofetadas nas costas, dizendo “agora ficas vermelho, agora ficas com as minhas mãos marcadas nas costas”. 8. Que, por referência ao facto n.º 4 provado, a toalha estava molhada. 9. No mesmo ano lectivo, em data não concretamente apurada, de manhã e no interior da escola, o arguido DD, acompanhado dos menores de 16 anos LM e JC, dirigiu-se pela retaguarda a LA, dizendo “vamos brincar ao estica” e, acto contínuo, agarrou o mesmo pelos braços, enquanto LM o agarrava pelas pernas, içando-o por completo na horizontal, a uma altura aproximada de 80 cm do solo. 10. De seguida, o arguido DD disse “vamos largá-lo”, tendo o corpo de LA caído desamparado no pavimento, em mosaico, onde embateu com as costas. 11. Na sequência de tal agressão, LA sentiu dores nas costas. 12. Ao actuar da forma supra descrita, o arguido DD previu e quis agredir LA, em conjugação de esforços com outros menores, no interior da escola e em frente aos restantes alunos, movido única e exclusivamente pelo intuito de causar sofrimento físico e psíquico a este, causando-lhe temor, sofrimento, humilhação, nervosismo, medo e vergonha, o que é revelador da especial perversidade da sua conduta. 13. O arguido DD sabia que LA não queria adoptar comportamentos disruptivos para ser expulso na sala de aula, como atirar papéis para cima de colegas, ou gritar, ou dar cambalhotas, e, não obstante, previu e quis forçá-lo a tal, dizendo-lhe que, se não lhe obedecesse, desferia-lhe pontapés, bem sabendo que a sua conduta era adequada a constranger aquele a praticar tais actos, assim limitando a sua liberdade pessoal, o que concretizou. 14. Que o arguido sabia que LA tinha 14 anos. 15. Que, ao actuar da forma descrita, o arguido quis desferir-lhe pancadas no pescoço, com a toalha húmida, dar-lhe pontapés, queimá-lo e projectar o corpo deste no pavimento e assim atingir o seu corpo, saúde e o seu bem-estar físico, sabendo que lhe causava dor, intuito que logrou concretizar. 16. Que o arguido DD, com regularidade diária, dirigiu-se em voz alta e sem que nada o justificasse a LA dizendo “és um maricas, não tens tomates, és um filho da puta, a tua mãe anda com outros homens, paneleiro, balé, coveiro, tu és filho de um velho de São Pedro que é o bacano” 17. Que, com estas expressões, o arguido ofendeu a honra e consideração do ofendido, em circunstâncias que não só facilitaram como efectivaram a sua divulgação, tendo o arguido actuado com intenção de ofender a honra e consideração do ofendido e da assistente. 18. Que as expressões foram sempre proferidas na presença de várias pessoas, nomeadamente colegas de escola, que prontamente tomaram consciência do sentido e do alcance das mesmas. 19. Que, em virtude da conduta do arguido: a. O ofendido ficou triste, revoltado e gritava com a sua família. b.O ofendido chorava à noite, sozinho no seu quarto. c. O ofendido deixou de conseguir dormir à noite. d. Sentiu vergonha. e. Passou a ser seguido por psiquiatra infantil e psicólogo, tendo despendido a quantia de € 350,00. f. Teve medo. g. O ofendido tinha pesadelos, acordando durante a noite a gritar e a chorar. h. Que o ofendido só se acalmava se a mãe se deitasse ao seu lado. i. Que tinha vergonha porque todas as pessoas gozavam com ele. j. Deixou de querer ir à escola. k. Começou a isolar-se e a querer deixar de sair de casa. l. O ofendido tornou-se um adolescente angustiado, triste, com o seu amor-próprio ferido, humilhado e vive em constante sobressalto, com medo de ser agredido. m. Que o ofendido esteve 30 dias em casa por indicação do psiquiatra. n. Que a médica do LA lhe disse que não o queria nem perto da escola. o. Que na sequência da actuação do arguido, o ofendido enfrentou diversos problemas disciplinares. Motivação da decisão da matéria de facto: O tribunal assentou a sua convicção, essencialmente, na prova testemunhal produzida em sede de audiência e a que atribuiu especial seriedade e credibilidade. Concretizando, O arguido prestou declarações tendo admitido que, efectivamente, deu pancadas no pescoço do ofendido (os chamados “calduços”) e confirmou o episódio da colher aquecida, afirmando ter agarrado no LA para que este não fugisse. Importa realçar que o arguido relatou ao tribunal que este tipo de episódios ocorriam no contexto da escola e que eram normais entre os rapazes da turma. Referiu que o faziam por pura brincadeira, sendo que tal como ele dava calduços a LA, este dava-lhe de volta outros tantos calduços, sendo tal comportamento considerado normal entre todos, não causando dor ou desconforto. Mais referiu que LA tinha muito mau comportamento dentro da sala de aulas, sendo que se sentava atrás na sala e o arguido à frente (não contactando dentro das aulas). Ouvido LA, este demonstrou ter uma memória ténue sobre os acontecimentos, apenas se lembrando de alguns eventos após conduzido nesse sentido pelo tribunal. Pelo referido ofendido foi confirmado o episódio dos calduços, da toalha húmida e da queimadura. No mais, não se recorda, não sabendo afirmar se o arguido também lhe chamava nomes, dando, claramente, a entender que havia diversas pessoas que lhe dirigiam palavras insultuosas. LA negou que tenha alguma vez dado calduços ao arguido, tendo negado também um episódio em que mostrou o seu órgão sexual (o que levou à sua suspensão enquanto medida disciplinar). Afirmou que teve acompanhamento psicológico por lhe ter sido diagnosticado, desde cedo, hiperactividade. O tribunal ficou, pois, com a percepção que LA relatou o sucedido na escola relativamente a vários colegas, não tendo vincado, de forma especial, a intervenção do arguido, falando, por diversas vezes, no plural (“eles”, “dizia-lhes”, etc.). A sua mãe, EE, ouvida em tribunal, afirmou que nunca soube o que se passava, só percepcionando nódoas negras no corpo do LA, sendo que nunca percebeu muito bem o que se passava. Não soube explicar quem batia ao LA ou quem o injuriava, pelo que o seu depoimento não relevou para prova directa dos factos. Contudo, relatou que durante o 8.º ano o ofendido andava triste, choroso, não queria ir à escola, em virtude do que sofria durante o horário escolar. As declarações do arguido (que admitiu a existência de calduços e o episódio da queimadura) e bem assim os depoimentos do ofendido e da sua mãe relevaram para prova de todos os factos provados. No que respeita aos factos imputados o tribunal teve em consideração o teor das declarações prestadas pelo arguido, ofendido e sua mãe, sendo que a demais prova serviu como prova complementar, nos seguintes termos: Quanto aos factos n.ºs 5, 6 e 7, o tribunal teve em especial consideração o teor dos depoimentos de JC, LM, MR, Duarte, AL, Alin, JG (colegas de escola e de turma do arguido e ofendido, que assistiram ao sucedido), que, nesta parte, depuseram de forma séria coerente e credível. Quanto ao facto n.º 8, cumpre afirmar que o tribunal ficou com a convicção (através do teor das declarações do arguido, ofendido, e colegas de turma, nomeadamente JC, LM, MR, D, AL, Alin, JG) que a intenção primária do arguido seria de sujar a cara ao ofendido. Assim, não pode o tribunal afirmar que seria tal a sua intenção, apenas podendo afirmar, apelando às regras da normalidade e senso comum, que o arguido representou como possível tal desfecho, tendo-se conformado com tal. Assim, os factos atinentes ao conhecimento e vontade com que o arguido actuou, foram extraídos dos respectivos factos objectivos, analisados à luz das regras da lógica e experiência comum, atentas as concretas circunstâncias do caso concreto. Assim, o tribunal assentou a sua convicção, nomeadamente, nos seguintes elementos: Prova documental: 1. Fotogramas de fls. 25 e 26; 2. Fotocópias de fls. 8 a 16; 3. Fichas de Identificação de fls. 29 a 32; 4. Informação escolar de fls. 51 e 54 a 56; 5. Documentação clínica de fls. 148 a 182; 6. Print da base de dados dos SIC, de fls. 208 e 209. No que concerne aos antecedentes criminais foi tido em conta o teor do Certificado do Registo Criminal, junto aos autos. Há que deixar expresso que de toda a prova produzida resultou, com evidência para o tribunal, que a turma onde o arguido e LA se integravam era altamente problemática, marcada por inúmeros episódios disciplinares, com expulsões e castigos sucessivamente aplicados. Chegou mesmo a ser mencionado que seria a pior turma da escola. Em face da prova produzida, o tribunal não tem dúvidas que toda a turma se pautava por uma rebeldia inerente, desafio constante e desrespeito para com os professores e directores. Os alunos (em especial os rapazes) adoptavam brincadeiras agressivas, como pontapés, pancadas no pescoço, empurrões e outro tipo de brincadeiras, sendo que a testemunha AR (director do Agrupamento de Reguengos de Monsaraz), de forma credível, chegou mesmo a falar em “espírito de claque de futebol”. É nesse contexto que, aos olhos do tribunal, deve ser apreciada a prova. No que respeita ao ofendido, resultou de forma evidente que o mesmo era gozado por diversas pessoas; contudo, era um adolescente problemático que respondia da mesma forma e tinha um comportamento desadequado e desafiador na sala de aula. Ademais, era um adolescente que tinha amigos e que se dava com vários membros da turma (nomeadamente, Duarte – mencionados por diversas testemunhas). De facto, JA (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma), corroborou as declarações do arguido no sentido de que aquele tipo de pancadas era usual na escola e que todos davam pancadas no pescoço e todos levavam, sem excepção, sendo que tal não passava de uma brincadeira entre colegas de escola. Deixou claro que LA tinha um péssimo comportamento dentro da sala de aula e que se comportava mal porque queria e não porque alguém o obrigava. LM (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma), referiu que nunca viu o arguido bater no ofendido, contudo tais brincadeiras eram normais entre os rapazes da turma e tratavam-se de brincadeiras entre colegas. Não se pretendia magoar, sendo apenas uma brincadeira. Mais referiu que o comportamento de LA era muito mau e que ele se portava mal na sala porque queria e não porque alguém o obrigasse a isso. MR (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma), pouco acrescentou à prova produzida, tendo confirmado a história do isqueiro e da queimadura. Corroborou ainda as anteriores testemunhas no sentido de que o comportamento de LA era muito mau o que levava a sanções disciplinares. O seu depoimento demonstrou ser pouco credível e pouco comprometido com a realidade, demonstrando querer proteger o arguido de quem é amigo. Assim o tribunal não teve em especial consideração o seu depoimento. Em todo o caso, foram lidas as suas declarações prestadas em inquérito, a fim de avivar a sua memória. Duarte (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma), confirmou o teor do episódio da queimadura, não tendo relatado qualquer facto praticado pelo arguido. O seu depoimento demonstrou ser pouco credível e pouco comprometido com a realidade, demonstrando querer proteger o arguido de quem é amigo. Assim o tribunal não teve em especial consideração o seu depoimento. Em todo o caso, foram lidas as suas declarações prestadas em inquérito, a fim de avivar a sua memória. Ana (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma), afirmou que, efectivamente, se tratava de uma turma problemática, com diversos problemas disciplinares. Foram lidas as suas declarações prestadas em inquérito, a fim de avivar a sua memória, tendo a testemunha afirmado que, efectivamente, o arguido estava inserido num grupo que acabava por gozar e bater em diversos colegas, não afirmando, contudo, que o arguido batia ou gozava com outros colegas. AL (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma), confirmou a existência de pancadas no pescoço, afirmando tratar-se de uma brincadeira. Assistiu, igualmente, ao episódio da queimadura, que relatou. Alin (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma), apenas assistiu ao episódio da queimadura, que relatou. A testemunha Cláudia (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma) referiu que o arguido era dos alunos mais sossegados da turma e que o ofendido tinha diversos problemas disciplinares. Mais referiu que o ofendido causava diversos distúrbios na sala de aula e que se ria e gostava de fazer os outros rir. Mais referiu que o ofendido chamava nomes e respondia, não se deixando ficar. CR (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma) afirmou que o ofendido tinha como amigo Duarte e que participava nas brincadeiras e era muito mal comportado, que actuava com o propósito de fazer os outros rir e que “tinha o rei na barriga”. Referiu que o arguido era mais sossegado e estava sentado à frente para prestar atenção às aulas. Considera que o ofendido não tinha medo do arguido e que apenas o respeitava por ser mais velho. As testemunhas JG e Joana prestaram um depoimento, particularmente, credível e relevante para o tribunal, afirmando, de forma assertiva, que as brincadeiras eram usuais entre os rapazes da turma e que o ofendido participava nas brincadeiras de igual para igual. Mais afirmaram que o ofendido teve diversos problemas disciplinares. As testemunhas Maria, Alexandra, Maria de Lurdes, MR, HB e Maria Teresa (todos professores na escola frequentada pelo arguido e pelo ofendido, sendo que, com excepção de Alexandra, foram todos professores do arguido e do ofendido no ano de 2013/2014) afirmaram de forma unívoca e consonante que o ofendido era um aluno mal comportado, com diversos problemas disciplinares, sendo que o arguido sempre foi um bom aluno que se destacava de forma positiva na sala de aula. Nunca presenciaram qualquer agressão, sendo que apenas souberam do episódio da queimadura meses mais tarde, por via da mãe de LA. Referiram que nunca viram o ofendido triste ou choroso, afirmando sem margem para dúvidas que o ofendido não tinha medo dos colegas e que participava nas brincadeiras de igual para igual. Mais afirmaram que o ofendido respondia sempre na mesma moeda, sendo que se portava mal dentro da sala para fazer os colegas rir, acabando por se prejudicar, porque acabava por ser, não raras vezes, expulso das aulas. A determinada altura, em sede de julgamento, foi afirmado, nomeadamente, por HB e Maria Teresa que o ofendido LA era o líder do seu grupo, sendo aceite pela turma. Entre os professores ouvidos, ninguém afirmou LA como vítima de bullying, tendo sido realçado que, pelo contrário, LA adoptava comportamentos agressivos em especial com colegas mais novos. Referiram que o arguido era o mais sossegado e que se sentava à frente na turma, não entrando nas confusões, então, existentes. * Da prova produzida resulta evidente para o tribunal que o ofendido não adoptava uma postura de vítima típica de bullying, pois que adoptava condutas rebeldes e de desafio constante para com a equipa educativa e para com os seus colegas. Isso mesmo foi explicitamente explicado por CF (psicólogo clinico que acompanhou o ofendido) que afirmou que o ofendido tinha a perturbação de oposição, que tem na sua base uma tendência depressiva, caracterizada por uma atitude de desafio constante, com condutas agressivas, para com adultos e pares e que fará, não raras vezes, parte do processo de criação do Eu, que é típico da adolescência (no caso do ofendido, afirmou que tal perturbação assumia a natureza de patologia). Mais referiu que o ofendido não era uma vítima, usando o seu tamanho para se impor e adoptando uma postura exibicionista, muitas vezes para se integrar, acabando por ser vítima dele próprio (como alusão ao facto de ter insucesso escolar associado à indisciplina). Na verdade, o tribunal tem por certo que o ofendido tentou escamotear a realidade, negando todos os factos que em tese poderiam ser prejudiciais para si (negando o episódio em que o mesmo mostrou os seus órgãos genitais na sala de aulas, sendo certo que tal ocorrência foi confirmada à saciedade por diversas testemunhas; negando que dava calduços, quando tal ocorrência foi afirmada à saciedade por diversas testemunhas, entre outros episódios) e afirmando os demais, sendo que ficou patente (pela audição de quase todas as testemunhas) que o ofendido tinha diversos problemas disciplinares. O ofendido afirmou que nunca respondia e nunca batia nos seus colegas, factos que foram infirmados por toda a prova produzida. Neste conspecto, o depoimento de MB (psiquiatra da infância e da juventude que acompanhou LA) foi especialmente esclarecedor, ao afirmar de forma peremptória que o ofendido e a sua mãe, em especial esta última, adoptavam um comportamento disfuncional e desculpabilizante. Afirmou que a mãe do ofendido sempre externalizou as culpas, não querendo compreender e aceitar a própria responsabilidade do seu filho em todos os problemas escolares. A referida testemunha, de forma séria coerente e credível, afirmou que LA era muito conflituoso, disfuncional, com um comportamento disruptivo e provocador. Afirmou de forma clara que em casa do ofendido não havia regras e que toda a questão da fobia escolar foi como que um “alibi” para os problemas disciplinares e de insucesso escolar. De resto, da prova produzida fluiu com certeza que a queixa que originou os presentes autos surgiu na sequência da constatação por parte da mãe do ofendido de que este iria ficar retido nesse ano, facto que não agradou à mãe do ofendido. A testemunha MB afirmou de forma esclarecedora que LA não adoptava uma postura de típica vítima de bullying, sendo, antes, um agente provocador. A ideia de que quer o LA, quer a sua mãe externalizavam as culpas foi uma constante no depoimento de MB, tendo o seu depoimento sido muito relevante para o Tribunal. Foi um depoimento sério, coerente e credível. Não sendo um elemento decisivo, importa deixar expresso que o ofendido era um dos alunos mais altos da turma, tendo um porte físico não negligenciável. Assim, e neste contexto, não se vê que a conduta do arguido tenha visado humilhar e maltratar o ofendido, sendo enquadrável num contexto de insubordinação generalizada. De resto, da prova produzida ficou patente que o arguido era quem menos participava neste tipo de brincadeiras, destacando-se, pela positiva, no contexto da sala de aula por ser bom aluno e disciplinado. Tal foi afirmado pelos seus pares e pelos professores, de forma consentânea. O ofendido, durante todo o seu discurso, acabou por externalizar as culpas pelos seus problemas disciplinares, dizendo que as professoras o expulsavam apenas porque ele fazia barulho na cadeira. Ademais, afirmou que apenas tinha problemas disciplinares porque ficava nervoso com o que os outros colegas lhe faziam, adoptando uma postura de desculpabilização, sendo certo que todos os professores ouvidos afirmaram que o ofendido nunca foi a vítima na turma, sendo mal comportado desde sempre. Todos os professores ouvidos foram unânimes ao afirmar os problemas de comportamento de LA, que passavam por desafio de autoridade, barulho em sala de aula e pelo facto de não colaborar nas tarefas escolares. A mãe do ofendido adoptou o mesmo discurso, afirmando que o seu filho era muito sensível e que as professores embirravam com o seu filho por tudo e por nada, adoptando uma postura de desresponsabilização do filho. Mencionou que, actualmente, o ofendido continua a ter problemas disciplinares e está “tremido” na escola, não sabendo explicar a razão, sendo que já não está na mesma turma que o arguido. Disse, ainda, a mãe do ofendido que este teve acompanhamento psicológico até aos 12/13 anos, sendo que apenas parou no 7.º ano de escolaridade. Após o sucedido (e relatado na acusação) o ofendido voltou a ter consultas de psicologia e psiquiatria. Assim, o tribunal não põe em causa que o percurso escolar do ofendido tenha sido, de facto, conturbado. Contudo, tal ficou a dever-se por um conjunto de situações e vivências que não podem ser imputadas ao arguido, nomeadamente agressões ocorridas noutra escola ou outras agressões de que foi alvo (factos relatados pela própria mãe do ofendido) e ainda mau comportamento do ofendido. Quanto aos danos sofridos (facto n.º 19), para além da dor causada pela queimadura, não se pode dizer que tenham sido causados pelo arguido. Na verdade, ficou patente que o arguido era a pessoa que menos tinha intervenção nas brincadeiras, tendo dado alguns calduços ao arguido e acertado com uma toalha húmida. Tais calduços/episódio da toalha foram com que intensidade? Com que frequência? O Tribunal não conseguiu apurar tais elementos, não podendo, na sua falta, afirmar que tais condutas causaram no ofendido os danos que alega. Terão tais actos tido a virtualidade de ter causado tristeza, melancolia, depressão? Ou tais estados serão causados por algo maior ou mesmo pela patologia base do ofendido (oposição)? Ou ainda por outros eventos na vida do ofendido (recorde-se que pela mãe do ofendido foi afirmado que este sofreu uma agressão grave antes mesmo do 8.º ano que lhe deixou marcas psicológicas graves)? Será que o arguido foi ao psiquiatra em virtude da actuação do arguido? Em que medida? Não se sabe. O tribunal tem muitas dúvidas, não conseguindo afirmar que tal tristeza, melancolia e demais danos, sentimentos, a terem existido, decorreram dos actos do arguido. Ademais, fluiu da prova que existiram outras agressões (perpetradas por terceiros) que foram causa de alguma tristeza e melancolia e outros sentimentos e consequências negativas. Porém, nada disso pode ser imputado ao arguido. Dos factos provados não é possível afirmar que o arguido com a sua conduta causou tristeza, melancolia ao ofendido, pois que de todo este contexto resulta que o próprio ofendido adoptava uma postura incorrecta acabando por se prejudicar e por sofrer com o seu próprio insucesso escolar. Reitera-se, ainda, nesta sede, que ficou demonstrado à saciedade que o arguido adoptava uma postura positiva em contexto escolar, sendo um dos alunos que menos intervenção tinha nas brincadeiras existentes entre rapazes. Ademais, ficou patente que o ofendido sempre teve inúmeros problemas psicológicos e disciplinares, não sendo possível afirmar que os calduços, o episódio da toalha húmida e ainda o episódio da queimadura (com excepção da dor sentida que resultou demonstrada) tenha causado os danos que o ofendido pretende imputar ao arguido, como tristeza, melancolia, etc. De resto, ficou patente que o ofendido se ria constantemente destas brincadeiras, participando activamente nelas, não tendo demonstrado nunca tristeza ou melancolia por aqueles factos. Não resulta que o arguido tenha actuado com o propósito de humilhar ou maltratar. O que fez foi no contexto daquela turma específica em que eram inúmeros os problemas disciplinares, em que eram usuais tais brincadeiras, com os contornos típicos da adolescência (postura de desafio, oposição, criação de individualidade, como foi bem explicado pelo Dr. CF (psicólogo clinico que acompanhou o ofendido). Do exposto resultou a ausência de prova quanto aos factos 6/12 a 13 e 18. Quanto ao facto n.º 8 não provado decorreu o mesmo da total ausência de prova nesse sentido e de prova do contrário. Quanto ao facto n.º 15 não provado: resultou o mesmo de prova de facto incompatível (quanto ao episódio da queimadura) e ainda da ausência de prova cabal nesse sentido. Quanto aos factos n.º 16, 17 e 18 não provados, o tribunal tomou em consideração que, apesar de tais nomes terem sido avançados por outras testemunhas, a verdade é que o verdadeiro destinatário das mesmas não soube afirmar que o arguido lhe dirigiu tais palavras. Ademais, num contexto em que vários colegas chamavam nomes uns aos outros, o tribunal não consegue afirmar, com certeza, que o arguido chamou qualquer nome ao ofendido. Existe, pois, uma dúvida que deverá ser resolvida a favor do arguido. Quanto aos demais factos, resultaram os mesmos da ausência de prova cabal nesse sentido. Na verdade, o ofendido não soube afirmar a prática pelo arguido dos factos não provados, sendo que posteriormente tal foi afirmado por outras testemunhas, sem que contudo o tribunal tenha ficado convencido da veracidade dos factos dados como não provados, atento o que ficou escrito supra. As testemunhas não mencionadas supra não foram tidas em especial consideração, tendo em conta que não souberam adiantar nada em concreto e de relevante sobre os factos dos autos, não tendo presenciado nada em concreto. Apreciando, segundo cronologia lógica e preclusiva: - recurso do Ministério Público: A) - da nulidade da sentença: A nulidade da sentença vem suscitada pelo recorrente por referência a ausência de fundamentação quanto ao afastamento da especial perversidade do arguido, reportada no facto não provado em 12 - “Ao actuar da forma supra descrita, o arguido DD previu e quis agredir LA, em conjugação de esforços com outros menores, no interior da escola e em frente aos restantes alunos, movido única e exclusivamente pelo intuito de causar sofrimento físico e psíquico a este, causando-lhe temor, sofrimento, humilhação, nervosismo, medo e vergonha, o que é revelador da especial perversidade da sua conduta”. Invoca que ao decidir sobre a matéria de facto do modo transcrito e ao concluir pela inexistência de especial censurabilidade (simplesmente) aludindo (mais uma vez) ao contexto, a uma “intenção primária de mascarrar” – julgando-se provado que o ofendido pediu insistentemente para o largarem porque já estava queimado – e ao facto de se tratar numa “brincadeira que acabou mal”, sem fundamentar o afastamento de cada uma das alíneas do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal imputadas na acusação, o Tribunal recorrido incumpriu o dever de fundamentação, violando o disposto nos artigos 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. Ora, a fundamentação é dos requisitos da sentença, desta devendo constar, de acordo com o disposto nesse art. 374.º, n.º 2, “a enumeração dos factos provados e não provados, bem como (…) uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, sob pena de nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP. Concretiza o desiderato constitucional do art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), impondo-a “na forma prevista na lei” e, assim, como parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático e da legitimação da decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (Gomes Canotilho/Vital Moreira, em Constituição Anotada, pág. 799). Além de que se insere em exigência do moderno processo penal, com a dupla finalidade de, extraprocessualmente, constituir condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que a determinaram e, intraprocessualmente, de realização do objectivo de reapreciação da decisão por via do sistema de recursos. Aparentemente, o recorrente pretende reportar-se, quer à fundamentação de facto, quer de direito, concretamente acerca daquela especial perversidade. No tocante à fundamentação de facto, releva o necessário exame crítico das provas. Acompanhando, neste âmbito, o acórdão do STJ de 03.10.2007, no proc. n.º 07P1779, in www.dgsi.pt: O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto -, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr., v. g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01). O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proc. 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proc. 141/00). Assim sendo, ainda que o tribunal não o afirme expressamente, resulta inteligível que o afastamento daquela circunstância, isto é, da especial perversidade (que, em si mesma e em rigor, é uma conclusão e não, propriamente, um facto) decorreu da concreta análise, que explicitou, de todo o contexto em que a agressão ocorreu, motivando, mormente, a valoração que atribuiu à intenção que à mesma presidiu. Compreende-se a discordância do recorrente quanto a essa fundamentação, com o sentido de que consubstancie errada visão, tendo em conta, como refere, que o arguido actuou em conjugação de esforços e de intentos com outros dois alunos da mesma turma, à data inimputáveis em razão da idade. Contudo, a comparticipação destes dois agentes foi desconsiderada (desconhecendo-se o fundamento). Ora, a comparticipação dos três agentes (arguido incluído) na modalidade de autoria material e o empenhamento de cada um foi indispensável para a verificação do resultado – a queimadura –, pelo que natural será concluir pela especial perversidade da conduta, neste caso, do arguido. Isto porque, não fosse o arguido (e o outro agente) a segurar com força no ofendido, este ter-se-ia soltado e afastado (pelo menos) logo que sentisse a colher incandescente queimar-lhe a pele. Todavia, afigura-se que o explanado pelo tribunal permite dilucidar as razões por que decidiu desse modo, em função da imagem global que entendeu verificar-se, embora o recorrente aluda a que, na sua perspectiva, devesse ter sido diferente. Por seu lado, sem prejuízo do que vier a resultar da apreciação em matéria de facto, na vertente da fundamentação de direito, é o próprio recorrente que, reportando-se à sentença, sublinha que nesta consta: “No caso dos autos e atento tudo o que ficou escrito supra, não se considera que o arguido tenha actuado com especial perversidade e censurabilidade, não se vislumbra que o arguido tenha sido movido por um sentimento de total oposição ao dever-ser jurídico, devendo tal conduta ser lida à luz do contexto vivido, idade do arguido e intenção inicial e primária da conduta que seria apenas sujar o ofendido. De mencionar que em face do elenco dos factos provados, o tribunal está convicto de que o arguido foi motivado por uma brincadeira que acabou mal, não tendo sido motivado por maldade ou qualquer prazer de causar dor a outrem (tendo ficado demonstrado que LA não foi uma vítima particularmente indefesa), ainda que tenha sido praticada com ajuda de outros dois colegas”. Reconhece, pois, que o tribunal não deixou de fundamentar o afastamento em causa e, acrescente-se, tanto quanto necessário, ao abordar a imputação efectuada pela acusação, através de menção aos aspectos que poderiam motivar a especial agravação da culpa do arguido. Inexiste, pois, razão para a nulidade da sentença. Passa-se, ora, ao mérito dos recursos em sede de matéria de facto, que ambos os recorrentes pretendem impugnar. Neste âmbito e como vem sendo amplamente reconhecido, tal impugnação pode ser feita por duas vias; uma mais restritiva, através dos vícios da decisão, previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP e, outra, mais abrangente, por via da reapreciação da prova, desde que em obediência às especificações impostas pelo art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. Se, no primeiro caso, se tem em vista, tão-só, aqueles vícios e devendo resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, cingindo-se, assim, ao que essa decisão em si mesma contenha, sem apelo a elementos que não lhe sejam intrínsecos, já, no segundo, respeitadas essas especificações, se defrontarão as mesmas com o que foi decidido, comportando uma reapreciação, ainda que não se equiparando a um novo julgamento. A propósito dessa reapreciação, sublinhou-se no acórdão do STJ de 10.03.2010, in CJ Acs. STJ ano XVIII, tomo I, pág. 219, Como o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se de um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento (…) O objeto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento (…) A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção "cirúrgica", no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação (…) A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão. Também, como Damião da Cunha já acentuava, in “A Estrutura dos Recursos, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, Abril-Julho, 1998, págs. 259 e seg., os recursos configuram-se no Código de Processo Penal como um remédio e não como um novo julgamento sobre o objecto do processo e, note-se por isso, não destinados a limitar (ou arredar) o princípio da livre apreciação, consagrado no art. 127.º do CPP, ou a suprir a imediação e a oralidade de que o tribunal que julgou dispôs, mas apenas a corrigir erros de julgamento. Em sintonia, com o acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012, de 08.03 (publicado in D.R. I Série n.º 77, de 18.04.2012), ficaram esclarecidos, quer a razão de ser daquelas especificações, quer os contornos que deve revestir o seu cumprimento. Assim, vejamos. - recurso do Ministério Público: B) - do erro notório na apreciação da prova: O recorrente invoca que a sentença padece de erro notório na apreciação da prova, incidindo, na sua perspectiva, na conjugação dos factos provados em 3 -“Entre 01 de Setembro de 2013 e 30 de Junho de 2014, no interior da escola, com regularidade não concretamente apurada, em contexto não concretamente apurado, o arguido DD dirigiu-se a LA e desferiu-lhe pancadas, com a mão, no pescoço” - e em 4 - “Em data não apurada, o arguido DD aproximou-se de LM e, com a toalha de banho húmida e torcida, desferiu-lhe pancadas, com a mesma, nas pernas” e não provado em 15 - “Que, ao actuar da forma descrita, o arguido quis desferir-lhe pancadas no pescoço, com a toalha húmida, dar-lhe pontapés, queimá-lo e projectar o corpo deste no pavimento e assim atingir o seu corpo, saúde e o seu bem-estar físico, sabendo que lhe causava dor, intuito que logrou concretizar”. Considera, segundo refere, que a decisão recorrida violou as regras da experiência comum, e, consequentemente, o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, incorrendo no vício de erro notório da apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, c) do Código de Processo Penal, ao julgar como provado que o arguido DD dirigiu-se a LA e desferiu-lhe pancadas, com a mão, no pescoço e que o arguido DD aproximou-se de LM e, com a toalha de banho húmida e torcida, desferiu-lhe pancadas, com a mesma, nas pernas e ao julgar como não provado que ao actuar da forma descrita o arguido quis desferir-lhe pancadas no pescoço e com a toalha húmida e torcida e assim atingir o seu corpo, saúde e o seu bem-estar físico, sabendo que lhe causava dor, intuito que logrou concretizar. Insurge-se, afinal, contra a circunstância de que o tribunal a quo se tenha baseado no contexto que mencionou na motivação para concluir como descrito no facto não provado em 15, em detrimento, no seu entender, da normalidade, atingível a qualquer cidadão, que não é, de modo nenhum, afastada seja por qualquer facto julgado provado seja pelos fundamentos expostos. Tal erro-vício haverá de ser interpretado como o tem sido o facto notório em processo civil, ou seja, como o facto de que todos se apercebem directamente ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório (acórdão do STJ de 06.04.1994, in CJ Acs. STJ, ano II, tomo II, pág. 185). Como referem Simas Santos/Leal-Henriques, ob. cit., Rei dos Livros, 2008, págs. 77/78, consubstancia falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis. Erro notório, no fundo, é, pois, a desconformidade com a prova produzida em audiência ou com as regras da experiência (decidiu-se contra o que se provou ou não provou ou deu-se como provado o que não pode ter acontecido). E acompanhando o Ex.mo Conselheiro Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2.ª edição, 2016, pág. 1275, Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta. Dentro destes parâmetros, na situação, o tribunal motivou expressamente: “(…) os factos atinentes ao conhecimento e vontade com que o arguido actuou, foram extraídos dos respectivos factos objectivos, analisados à luz das regras da lógica e experiência comum, atentas as concretas circunstâncias do caso concreto. (…) Há que deixar expresso que de toda a prova produzida resultou, com evidência para o tribunal, que a turma onde o arguido e LA se integravam era altamente problemática, marcada por inúmeros episódios disciplinares, com expulsões e castigos sucessivamente aplicados. Chegou mesmo a ser mencionado que seria a pior turma da escola. Em face da prova produzida, o tribunal não tem dúvidas que toda a turma se pautava por uma rebeldia inerente, desafio constante e desrespeito para com os professores e directores. Os alunos (em especial os rapazes) adoptavam brincadeiras agressivas, como pontapés, pancadas no pescoço, empurrões e outro tipo de brincadeiras, sendo que a testemunha AR (director do Agrupamento de Reguengos de Monsaraz), de forma credível, chegou mesmo a falar em “espírito de claque de futebol”. É nesse contexto que, aos olhos do tribunal, deve ser apreciada a prova. E reportando-se, em pormenor, aos depoimentos recolhidos: “JA (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma), corroborou as declarações do arguido no sentido de que aquele tipo de pancadas era usual na escola e que todos davam pancadas no pescoço e todos levavam, sem excepção, sendo que tal não passava de uma brincadeira entre colegas de escola. (…) LM (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma), referiu que (…) tais brincadeiras eram normais entre os rapazes da turma e tratavam-se de brincadeiras entre colegas. (…) (…) Ana (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma) (…) tendo a testemunha afirmado que, efectivamente, o arguido estava inserido num grupo que acabava por gozar e bater em diversos colegas.(…) AL (colega de escola do arguido e ofendido, que integrava a mesma turma), confirmou a existência de pancadas no pescoço, afirmando tratar-se de uma brincadeira. (…) (…) As testemunhas JG e Joana prestaram um depoimento, particularmente, credível e relevante para o tribunal, afirmando, de forma assertiva, que as brincadeiras eram usuais entre os rapazes da turma e que o ofendido participava nas brincadeiras de igual para igual. (…) (…) Entre os professores ouvidos, ninguém afirmou LA como vítima de bullying, tendo sido realçado que, pelo contrário, LA adoptava comportamentos agressivos em especial com colegas mais novos. (…) Da prova produzida resulta evidente para o tribunal que o ofendido não adoptava uma postura de vítima típica de bullying, pois que adoptava condutas rebeldes e de desafio constante para com a equipa educativa e para com os seus colegas. (…) A testemunha MB afirmou de forma esclarecedora que LA não adoptava uma postura de típica vítima de bullying, sendo, antes, um agente provocador. (…) De resto, da prova produzida ficou patente que o arguido era quem menos participava neste tipo de brincadeiras, destacando-se, pela positiva, no contexto da sala de aula por ser bom aluno e disciplinado. Tal foi afirmado pelos seus pares e pelos professores, de forma consentânea. (…) Tais calduços/episódio da toalha foram com que intensidade? Com que frequência? O Tribunal não conseguiu apurar tais elementos (…). Assim, tendo em conta, tal como o recorrente refere, que a prova do elemento subjectivo é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais factos indiciados e das regras de experiência comum. Isto é, a factualidade que concretiza o elemento subjectivo, neste caso, o dolo, em particular, a representação da dor ou da lesão no corpo do ofendido, não é susceptível de ser provada directamente por testemunhas ou por outro elemento probatório, já que este elemento subjectivo, como a própria designação indica, concretiza-se em factos internos, não visíveis ou palpáveis, do próprio agente, cuja prova é possível de dois modos: ou através da confissão do agente, ou através das regras de experiência comum e de normalidade, inferindo-se de outros factos a prova (indirecta) desse elemento, afigura-se que o tribunal recorrido, ainda que reportando-se aqueles depoimentos, não descurou os sinais de personalidade do arguido, bem como do ofendido, ponderando-os, além do mais, sem prejuízo da sua juventude, no contexto escolar, concreto, de certa rebeldia e agressividade, que não contende com regras da experiência. Se bem que os actos em causa, referidos nos factos provados em 3 e em 4 revistam formas de agressão enquanto pancadas, entende-se que a fundamentação do tribunal, reconduzindo-as a “brincadeiras, com os contornos típicos da adolescência”, reflectiu pormenorizadamente as razões por que assim as caracterizou e, como tal, intrinsecamente incompatíveis com uma real intenção do arguido em atingir o ofendido, sem perder de vista, pois, que nem toda a ofensa desse tipo assume dignidade, inevitavelmente ponderada, esta, à luz do que a prova produzida pôde transmitir. Nesta perspectiva, contrariamente à posição do recorrente, a conjugação de todos os elementos carreados à motivação é suportada pelas regras da experiência ou, pelo menos, note-se, tais regras não impõem que assim não deva ser. Não se revela, então, o alegado erro notório. C) - da contradição insanável da fundamentação: Reportando-se aos factos provados em 6 - “Acto contínuo, enquanto o arguido DD continuava a agarrar os braços de LA, mantendo imobilizado, o menor de 16 anos LM encostou a colher incandescente na testa e na face direita de LA, queimando-o, enquanto este pedia insistentemente para o largarem porque já estava queimado” - e em 8 - “Ao actuar da forma supra descrita, o arguido DD representou como possível que queimaria LA, tendo-se conformado com tal desfecho, intuito que logrou concretizar, tendo actuado em conjugação de esforços com LM e JC, a fim de concretizar uma das ofensas” -, o recorrente detecta contradição insanável na fundamentação do tribunal. Invoca que os dois factos são objectivamente contrários, pois que, no seu entender, segundo refere, apenas é logicamente compatível com o facto de o arguido continuar a segurar o ofendido enquanto este dizia que o estavam a queimar, que o arguido actuou com o propósito conseguido de, em conjugação de esforços e de intentos com dois menores de 16 anos, queimar a face do ofendido. A contradição insanável da fundamentação (ou entre esta e a decisão) supõe posições antagónicas e inconciliáveis entre si nos factos descritos ou entre essa descrição e fundamentação. Segundo Germano Marques da Silva, ob. cit., vol. III, pág. 325, respeita antes de mais à fundamentação da matéria de facto, mas pode respeitar também à contradição na própria matéria de facto (fundamento da decisão de direito). Assim, tanto constitui fundamento de recurso (…) a contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, pois pode existir contradição insanável não só entre os factos dados como provados, mas também entre os dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Ainda, conforme acórdão do STJ de 13.10.1999, in CJ Acs. STJ, ano XXIV, tomo III, pág. 184, Existe o vício de contradição insanável de fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal. No âmbito invocado, o tribunal fundamentou: “Quanto aos factos n.ºs 5, 6 e 7, o tribunal teve em especial consideração o teor dos depoimentos de JC, LM, MR, Duarte, AL, Alin, JG (colegas de escola e de turma do arguido e ofendido, que assistiram ao sucedido), que, nesta parte, depuseram de forma séria coerente e credível. Quanto ao facto n.º 8, cumpre afirmar que o tribunal ficou com a convicção (através do teor das declarações do arguido, ofendido, e colegas de turma, nomeadamente JC, LM, MR, Duarte, AL, Alin, JG) que a intenção primária do arguido seria de sujar a cara ao ofendido. Assim, não pode o tribunal afirmar que seria tal a sua intenção, apenas podendo afirmar, apelando às regras da normalidade e senso comum, que o arguido representou como possível tal desfecho, tendo-se conformado com tal”. Desde logo, não se descortina que os indicados factos sejam contraditórios entre si, uma vez que, além de haverem de ser conjugados com o provado em 5, segundo o qual o arguido agarrou os braços do ofendido enquanto o menor LM lhe dizia “agora vou mascarrar-te a cara”, da circunstância de que o ofendido viesse a ser queimado pelo mesmo LM não decorre que o arguido tivesse esse propósito ou que necessariamente representasse esse resultado. Isso se infere, aliás, da motivação do tribunal, sendo que, também, o pedido do ofendido para que o largassem surge relacionado com esse resultado e, apenas, com este tem de ser interpretado, não servindo, pois, para sustentar que outra perspectiva quanto à vontade do arguido tenha de afirmar-se. Acresce que o tribunal não deixou de atentar, como consignou, nas “concretas circunstâncias do caso concreto”, apoiadas nos elementos de prova que mencionou para alicerçar, nessa vertente, a sua convicção. Afigura-se que o alegado vício não existe. - recurso do arguido/demandado: A) - da impugnação da matéria de facto: O recorrente pretende impugnar os factos provados em 5 - “Em dia não concretamente apurado, no interior do balneário da escola, o arguido DD, juntamente com os menores de 16 anos JÁ e LM, agarrou os braços de LA, por detrás das costas, e imobilizou-o, enquanto o menor de 16 anos LM aquecia uma colher, com um isqueiro, dizendo a LA “agora vou mascarrar-te a cara”” - e em 6 - “Acto contínuo, enquanto o arguido DD continuava a agarrar os braços de LA, mantendo imobilizado, o menor de 16 anos LM encostou a colher incandescente na testa e na face direita de LA, queimando-o, enquanto este pedia insistentemente para o largarem porque já estava queimado”. Para o efeito, em síntese, invoca ausência de apuramento da data em que teriam ocorrido e de prova bastante de que a colher estivesse incandescente e que o ofendido pedia para o largarem, convocando os elementos que menciona e por referência, designadamente, a passagens da mesma, a que alude e localiza no suporte de gravação da audiência. Assim, dado que deu cumprimento ao aludido art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, nada impede a apreciação em vista. Vejamos. Relativamente à apontada circunstância atinente à data dos factos, o recorrente refere que nunca se apurou a data da prática do crime, o que seria essencial, uma vez que se está a falar de um elemento essencial do crime ou, pelo menos, de uma sua circunstância essencial, de ordem temporal Compulsada a prova produzida, em nenhum documento, declaração do arguido, do ofendido, da mãe deste ou de qualquer das testemunhas ouvidas, se alcança ou retira a data, certa ou aproximada, da prática dos factos relatados. Mais se diga que tratando-se de um crime cujo procedimento criminal depende de queixa, sendo o prazo para a efectuar de 6 meses, a determinação da data da ocorrência dos factos puníveis é essencial para se saber se a queixa foi apresentada dentro do prazo legal, e se deveria ter ou não havido julgamento. Todavia, assim não é. Se bem que não se tivesse conseguido concretizar o dia em que se teriam verificado, decorre que foram reportados ao “ano lectivo de 2013/2014”, “entre 01 de Setembro de 2013 e 30 de Junho de 2014”, como resulta do provado em 2 e em 3, sendo que, apesar da conveniência no apuramento do tempo em que determinados factos com relevância penal tenham ocorrido, apenas se exige, quanto possível, que essa circunstância permita, ainda que sem a exactidão pretendida pelo recorrente, que, através da mesma, seja viável o exercício da defesa e do contraditório. Ora, perante a motivação decisória, dúvidas não se colocam relativamente ao acontecido e ao lugar e contexto em causa, nem, de forma alguma, que o aqui recorrente, em razão dessa ausência de dia preciso, tivesse visto os seus direitos de o discutir em julgamento diminuídos, resultando, sim, ao invés, que esses factos ocorreram e nesse período lectivo, o que não foi infirmado, antes pelo contrário, pela prova produzida em audiência. Manifestamente, não se trata de factos genéricos que não tivessem permitido o cabal contraditório. Por seu lado, afigura-se que o invocado quanto ao exercício do direito de queixa não constitui fundamento que pudesse fazer prevalecer o sentido, pretensamente atribuído pelo recorrente, de que, pela via da ausência de dia concreto, se lograsse, então, concluir que o acontecido ficaria esquecido. Relativamente à problemática da colher e da postura do ofendido, reflectida particularmente nesse facto provado em 6, o recorrente entende que os testemunhos considerados, na sentença, como relevantes (de JC, LM, MR, Duarte, AL, Alin e JG), nenhuma destas testemunhas diz ou admite que a colher estava incandescente ou que o ofendido pedia insistentemente para o largarem. Desde logo, não pondo em crise que a colher foi aquecida com um isqueiro, é perfeitamente lógico que pudesse ter ficado incandescente, ou seja, “em brasa” e, como tal, que queimasse o ofendido. Não obstante a alusão das mencionadas testemunhas e, também, do ofendido, tendo em conta as passagens transcritas pelo recorrente, a que, no essencial, existia o intuito de “mascarrá-lo”, não decorre que tenham excluído que a colher estava quente e, por isso, tenha provocado a reacção do ofendido. Assim, não se aceita que o recorrente, através dessas passagens, pretenda atribuir ao tribunal meras convicções pessoais, sem suporte na prova, uma vez que, apesar desse referido intuito, a circunstância de que o ofendido tivesse sentido queimadura, o que não é infirmado por algum depoimento, objectivamente se justificou pelo grau de aquecimento da colher, bem como, por sua vez, aquela provada reacção correspondeu ao que seria normal, tudo isso conforme à prova e sem contender com as regras da experiência. No tocante aos fotogramas de fls. 25 e 26, o recorrente insurge-se relativamente a que tenham sido atendidos pelo tribunal e, como refere, não contendo as ditas fotografias qualquer indicação da data em que foram tiradas (seja na frente ou no verso), nem elas permitem identificar a pessoa do ofendido ou qualquer outra, e do processo apenas consta o mero registo feito pela GNR na sequência da junção pela mãe de que respeitam ao LA e, ainda, não se alcança com um mínimo de certeza ou sequer de probabilidade que as marcas que nelas se vêem procedem de queimadura, muito menos de queimadura provocada por uma colher. Desde logo, tais fotogramas foram atendidos, como consta da motivação, a par da restante prova e não reflectem senão lesões compatíveis com a provada queimadura, pelo que, tendo sido juntos aos autos pela mãe do ofendido, apesar da ausência de menção à data em que foram obtidos, aparentemente se relacionaram com os factos em análise. Tal não surpreende e, certamente, no pressuposto, normal, de que esse tipo de lesão não seja frequente, ainda que no contexto escolar que fundamentou, acabou o tribunal por conferir aos mesmos a aceitação de que respeitassem àquela situação vivenciada pelo ofendido. O tribunal não apelou a prova ilegal, se bem que se aceite que esses fotogramas, por si só, não fossem susceptíveis de suportar bastante fundamento para o efeito, ao que foi sensível, na medida em que a motivação, meramente referindo-os, se harmoniza com reduzido grau de relevo que, aos mesmos, isoladamente, poderia ser conferido. Em síntese conclusiva, afigura-se que o tribunal, beneficiando da imediação e da oralidade, mediante ponderada conjugação da prova disponível, estabeleceu raciocínio lógico e assente nas regras da experiência, sem que crítica mereça apontar-se devido a terem os factos impugnados sido dados como provados. Aliás, os elementos invocados pelo recorrente não suportam, minimamente, diferente posição que ao tribunal se devesse ter imposto. A sua alegação acaba por reconduzir-se a mera crítica à convicção extraída. Na verdade, a censura quanto à forma de obtenção da convicção do tribunal não pode assentar, simplisticamente, no ataque da fase final da mesma, antes havendo que residir na violação de passos para a sua formação, sob pena de inadequada interpretação do disposto no art. 127.º do CPP, não obstante essa liberdade de apreciação esteja limitada por critérios de legalidade, da lógica, da experiência, dos conhecimentos científicos e, assim, configurando uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo (Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, págs. 202/203). O caminho trilhado pelo tribunal para lograr a sua convicção é perfeitamente inteligível e revela respeito pelos limites da livre apreciação probatória. Por isso, também, a mera invocação do recorrente a que devia ter dado relevância penal à dúvida, isto é, propondo a aplicação do princípio in dubio pro reo não serve para a infirmar. Ao longo da motivação, manifesta-se convencimento assertivo e congruente, não suscitando reparo. Os factos impugnados não merecem, pois, modificação. - recurso do Ministério Público: D) - da impugnação da matéria de facto: Numa primeira abordagem, o recorrente preconiza que “sempre se deverá revogar a decisão recorrida, na parte em que considerou como não provado que no contexto do facto n.º 3 provado, tal sucedeu na presença dos demais alunos, imediatamente antes de entrar nas aulas e que LA dizia ao arguido para parar e que o arguido quis desferir-lhe pancadas no pescoço e com a toalha húmida e assim atingir o seu corpo, saúde e o seu bem-estar físico, sabendo que lhe causava dor, intuito que logrou concretizar”, apelando, para tanto, às declarações do ofendido, conjugadas com as regras da experiência. Transcreve passagens e localização dessas declarações, reportando-se, como indica, por referência aos factos provados em 3 - “Entre 01 de Setembro de 2013 e 30 de Junho de 2014, no interior da escola, com regularidade não concretamente apurada, em contexto não concretamente apurado, o arguido DD dirigiu-se a LA e desferiu-lhe pancadas, com a mão, no pescoço” e em 4 - “ Em data não apurada, o arguido DD aproximou-se de LM e, com a toalha de banho húmida e torcida, desferiu-lhe pancadas, com a mesma, nas pernas” -, a alteração, em parte, do facto não provado em 15 - “Que, ao actuar da forma descrita, o arguido quis desferir-lhe pancadas no pescoço, com a toalha húmida, dar-lhe pontapés, queimá-lo e projectar o corpo deste no pavimento e assim atingir o seu corpo, saúde e o seu bem-estar físico, sabendo que lhe causava dor, intuito que logrou concretizar” -, ou seja, no sentido que o arguido tivesse actuado, no âmbito do provado como referido, querendo atingi-lo no corpo, saúde e bem-estar físico, sabendo que lhe causava dor. Por sua vez, há que atentar, ainda, na alusão do recorrente, acerca da pretensão de que o facto não provado em 12 - “Ao actuar da forma supra descrita, o arguido DD previu e quis agredir LA, em conjugação de esforços com outros menores, no interior da escola e em frente aos restantes alunos, movido única e exclusivamente pelo intuito de causar sofrimento físico e psíquico a este, causando-lhe temor, sofrimento, humilhação, nervosismo, medo e vergonha, o que é revelador da especial perversidade da sua conduta” - deva considerar-se como provado, reconduzindo, também, ao apelo às declarações do ofendido, afirmando, este, que não se conseguia soltar, quando o estavam a agarrar. Nada obviando à apreciação em vista, porque acatando os ónus de especificação do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, a posição do recorrente sustenta-se, por um lado, em que o ofendido declarou que aquele tipo de “brincadeiras” lhe doía e dizia para parar e, por outro, no tocante à situação da queimadura, que tentou soltar-se e não conseguiu. Ora, relativamente às declarações do ofendido, o tribunal sublinhou que “demonstrou ter uma memória ténue sobre os acontecimentos, apenas se lembrando de alguns eventos após conduzido nesse sentido pelo tribunal. Pelo referido ofendido foi confirmado o episódio dos calduços, da toalha húmida e da queimadura. No mais, não se recorda, não sabendo afirmar se o arguido também lhe chamava nomes, dando, claramente, a entender que havia diversas pessoas que lhe dirigiam palavras insultuosas”. Mais fundamentou que “Não resulta que o arguido tenha actuado com o propósito de humilhar ou maltratar. O que fez foi no contexto daquela turma específica em que eram inúmeros os problemas disciplinares, em que eram usuais tais brincadeiras, com os contornos típicos da adolescência, sendo que a abordagem acerca desse contexto se mostra amplamente revelada, conforme já expendido em B) e se dispensa, aqui, repetir. Aliás, sem embargo da legítima discordância do recorrente, não se afastou que esses actos do arguido provocassem dor e inerente reação do ofendido, mas, simplesmente, que assumissem, no apurado contexto, o propósito daquele em magoar, com a cabal virtualidade de ultrapassarem a dimensão agressiva que é tolerada nas circunstâncias concretas que se depararam. Não com o sentido que se deva desvalorizar esse tipo de atitudes, mas com a compreensão da realidade, inevitavelmente não se quedando pela análise formal de que qualquer acto mais agressivo em contexto escolar, e indisciplinado, se associe necessariamente a uma vontade séria de lesar o corpo e a saúde. Crê-se, ainda, que, através dos sinais obtidos pela prova produzida e, mormente, pelas declarações, quer do arguido, quer do ofendido e restantes testemunhas, não se impõe que o tribunal, nesse particular subjectivo que acompanhou as acções em causa, devesse ter decidido como o recorrente pretende. Acresce que, questionando-se elemento não percebido directamente, adequada valoração não poderia, sem mais, extrair-se da objectividade sem apoio suficientemente forte, pois se assim não fosse, representaria prejuízo para o arguido, quiçá, como se esse preconizado dolo se presumisse em abstracto. Sem que a invocada afirmação do ofendido imponha diferente perspectiva, reitera-se, aqui, o já expendido relativamente à fundamentação do dolo que presidiu à acção do arguido. No tocante à dita especial perversidade, o fundamentado contexto da acção constituiu, também, elemento que levou o tribunal a afastá-la, como resulta implícito do que motivou. Além de que, ponderando-o, o carácter especialmente desvalioso da personalidade do arguido dificilmente se atingiria, olhando para a pormenorizada fundamentação dos diversos elementos de prova recolhidos em julgamento, que o recorrente não logra, minimamente, ultrapassar. Deste modo, outras considerações não se justificam, uma vez que a motivação decisória é plenamente transparente do percurso racional e lógico seguido, que se pautou pelos legais critérios. Não decorre, pois, em concreto, violação das regras da experiência (cfr. art. 127.º do CPP). Por tudo o que fica dito, a visada modificação desses factos não tem sucesso. E) - da subsunção ao crime de ofensa à integridade física qualificada: Assente a matéria de facto, que não padece de qualquer vício e não foi infirmada pela impugnação preconizada pelo recorrente, a subsunção ao crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do CP, revela-se prejudicada. Ainda assim, dada a sua pertinência, decorre da sentença: «A censurabilidade será tanto maior quanto maior for o distanciamento do individuo em relação ao dever-ser jurídico-penal. De facto, a censurabilidade consiste na actuação contrária à espinha-dorsal do sistema, os seus valores e princípios. Este distanciamento incrementa o juízo de (des)valor em relação à conduta – a censurabilidade. No que diz respeito à especial perversidade, por outro lado, “(…) tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”[2]. Assim, a perversidade consiste na conclusão de que o agente decidiu actuar com base em pressupostos sem qualquer respaldo valorativo na nossa Ordem Jurídica e, por esse motivo, absolutamente rejeitados pela sociedade. No caso dos autos e atento tudo o que ficou escrito supra, não se considera que o arguido tenha actuado com especial perversidade e censurabilidade, não se vislumbra que o arguido tenha sido movido por um sentimento de total oposição ao dever-ser jurídico, devendo tal conduta ser lida à luz do contexto vivido, idade do arguido e intenção inicial e primária da conduta que seria apenas sujar o ofendido. De mencionar que em face do elenco dos factos provados, o tribunal está convicto de que o arguido foi motivado por uma brincadeira que acabou mal, não tendo sido motivado por maldade ou qualquer prazer de causar dor a outrem (tendo ficado demonstrado que LA não foi uma vítima particularmente indefesa), ainda que tenha sido praticada com ajuda de outros dois colegas. Não se descortina, pois, qualquer especial censurabilidade e perversidade». Pese embora o alerta do recorrente, para suportar a sua posição, à imagem global do facto, de co-autoria dolosa, de humilhação, de surpresa e de frivolidade ou superficialidade da actuação do arguido que apenas poderá levar pela especial censurabilidade com que o arguido agiu, por referência concreta às alíneas c), d), e) e h) no n.º 2 do art. 132.º do CP, ex vi art. 145,º, n.º 2, do CP, afigura-se que o tribunal estabeleceu adequada asserção, proporcional à culpa revelada, mormente, quedando-se pelo dolo eventual. É pacífico, designadamente conforme acórdão do STJ de 13.07.2005, in CJ Acs. STJ ano XIII, tomo II, pág. 247, reportando às circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º do CP, aqui aplicável, que o crime de homicídio qualificado é definido a partir da enunciação de uma cláusula geral – especial censurabilidade ou perversidade – contida no nº 1 do preceito e concretizada ou desenvolvida no nº 2 através de exemplos-padrão. Esses dois critérios – um generalizador e outro especificador – são complementares e têm mútua implicação. A partir deles, poder-se-á sintetizar assim a estrutura do tipo agravado: ocorre o homicídio qualificado sempre que do facto resulta uma especial censurabilidade ou perversidade que possa ser imputada ao arguido por força da ocorrência de qualquer dos exemplos-padrão enumerados no nº 2, ou, tendo estes natureza exemplificativa, sem deixarem de ser elementos constitutivos de um tipo de culpa, qualquer outra circunstância substancialmente análoga (…) Com esta formulação dual pretende assinalar-se a interacção recíproca entre o chamado critério generalizador e os exemplos-padrão. Esse critério generalizador é determinante de um especial tipo de culpa, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados, devendo resultar de uma imagem global do facto agravada (Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Coimbra Editora, 1999, tomo I, págs. 25/26). A qualificação derivará, pois, de uma culpa agravada, ainda que algumas das circunstâncias elencadas nesse preceito contendam com um mais acentuado desvalor da acção, enquanto elementos da ilicitude. Acompanhando o mesmo Autor, ob. cit., pág. 29, citando Teresa Serra, in “Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena”, págs. 62 e segs., o pensamento da lei é o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas, pelo que, mesmo para quem defenda que tais circunstâncias constituem tipos de ilícito, como J. Curado Neves, in “Indícios de Culpa ou Tipos de Ilícito. A difícil relação entre o nº 1 e o nº 2 do artigo 132º do C.P”, in “Liber Discipulorum”, Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, págs. 721 e segs., toda a punição passará pela efectiva comprovação da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Pode dizer-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, isto é, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude. E que na referência do legislador à especial perversidade, tem-se em vista, como referido na sentença, “uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade”, significando, assim, um recurso a uma concepção emocional de culpa e que pode reconduzir-se à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder, citado por Teresa Serra, ob. cit., pág. 64. Os índices exemplificados desse n.º 2 do art. 132.º, uma vez verificados no iter criminis, não são, porém, de funcionamento automático, ou seja, deles não decorre necessariamente que se conclua que o comportamento do agente esteja revestido de uma especial censurabilidade ou perversidade. É necessário que, no caso concreto, exaspere a culpa ou a ilicitude. A inversa não deixa também de ser verdadeira. O facto de não se verificar, no caso concreto, algum dos índices referidos não afasta por si só a qualificação, posto que possa determinada circunstância demonstrar uma especial censurabilidade ou perversidade. Em qualquer caso, a integração nessa natureza especial do homicídio (ou da ofensa à integridade física) exige do julgador prudência e bom senso. Sintomaticamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem pautado a sua orientação no sentido de que a qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência inevitável da existência de qualquer dessas circunstâncias, defendendo, sim, como essencial, que as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples. Tal entendimento não é isento de deparar com dificuldades, como a referida por Teresa Serra, ob. cit., págs. 70/71, de que “a ausência de qualquer das referidas circunstâncias (isto é, das circunstâncias legalmente descritas) indiciar a inexistência da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Logo, indicia que o caso se deve subsumir no art.º 131.º.” E acrescentando que “Só circunstâncias extraordinárias ou um conjunto de circunstâncias especiais que assentam num aumento essencial da ilicitude e/ou da culpa e que sejam expressivas do leitbild dos exemplos-padrão, podem levar à afirmação da existência de especial censurabilidade ou perversidade do agente”, não sendo suficiente para tanto um mero aumento da culpa para justificar a diferença de grau existente entre o homicídio simples e o homicídio qualificado. De qualquer modo, aos exemplos-padrão se atribui uma função delimitadora dos casos atípicos, deles se devendo apreender, não apenas o seu especial grau de gravidade, mas também a sua estrutura valorativa. Também, por poder afectar o princípio da legalidade, não se permite o apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplo-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto ou de uma situação valorativamente análoga (acórdão do STJ cit., de 13.07.2005). Por isso, conforme refere o Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 43, o que o aplicador tem de fazer é tão-só (…) partir da situação tal como ela foi representada pelo agente. E a partir dela perguntar se a situação, tal como foi representada corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, além de que, in CJ ano XII, tomo 4, pág. 52, o que motiva a agravação (…) tem a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples. Concretamente, a imagem global dos factos aponta, efectivamente, para a bondade da solução seguida pelo tribunal, relativamente à qual, a argumentação do recorrente não tem suporte válido para infirmar, uma vez que, sobretudo, a importância do contexto envolvente, servindo para delimitar a dimensão dessa culpa, acaba por ser, por si, injustificadamente descurada. E) - da integração em vários crimes de ofensa à integridade física simples: Admitindo a integração dos factos na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, não operando, pois, a preconizada especial perversidade, o recorrente vem, ainda, colocar a questão relativamente aos restantes actos do arguido provados em 3 e em 4, de virem a ser considerados como (mais) dois crimes de ofensa à integridade física simples. Todavia, exigindo-se o dolo para a subsunção em vista, não se mostra, o mesmo, comprovado, pelo que, para além do fundamentado pelo tribunal quanto à falência, no caso, da dignidade penal desses actos, desde logo afastado fica esse enquadramento. - recurso do arguido/demandado: B) - da redução da medida da multa e sua substituição: O recorrente considera que a pena aplicada é exagerada, preconizando a aplicação de multa no número mínimo de dias e no valor diário mínimo. Invoca, no essencial: O arguido é bem comportado nas aulas e dos alunos mais bem comportados na escola, e dos mais estudiosos e atentos; é dos que menos participava nas brincadeiras geradoras de confusões e ofensivas entre colegas; não tem antecedentes criminais; foi colaborante e teve um comportamento irrepreensível (o que é expressamente reconhecido pelo tribunal); não foi ele que colocou a colher aquecida no rosto do ofendido, nem sequer foi ele que teve a ideia de levar a efeito a brincadeira, limitando-se a ser um dos participantes no caso, e é ele o condenado, e de forma dura para quem é tão jovem e detentor de uma personalidade bem formada. Teve o azar de ser o único com idade suficiente para ser objecto de procedimento criminal….Com esta condenação, salvo o devido respeito, o que o Tribunal pretendeu foi satisfazer a comunidade escolar (como que substituindo-se a esta perante a inacção notória da Escola…), e a própria comunidade social local, privilegiando o carácter de exemplo a dar com esta sentença, em detrimento de uma correcta avaliação das circunstâncias e da culpa do arguido, como se impunha. Por seu lado, consta da sentença recorrida: «No que concerne à determinação da medida da pena concretamente a aplicar ao arguido, nos termos do disposto no art. 71.º, n.º 1, do CP, será feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Assim, constituindo a culpa o limite inultrapassável da medida da pena (art. 40.º, n.º 2, do CP), e decorrendo o seu limite mínimo de considerações ligadas à prevenção geral, a medida exacta da pena será fruto das exigências de prevenção especial. No mais, a medida da pena, além de determinada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção geral e especial, deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra aquele, devendo o Tribunal atender, nomeadamente, ao grau de ilicitude do facto, à culpa do agente, à intensidade do dolo ou negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, aos fins ou aos motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente e à sua situação económica, à conduta posterior e anterior ao facto e à falta de preparação, revelada através dos factos, para manter uma conduta conforme às prescrições ético-jurídicas. Cotejando os factos do caso sub judice, e tendo em conta os princípios supra referidos, para além das razões de prevenção geral e especial a que se aludiu supra, verificamos que: - No que respeita à ilicitude, a mesma revela-se de intensidade média, tendo em consideração que não decorreram consequências particularmente gravosas da conduta do arguido. - No que concerne à culpa, o arguido actuou com dolo eventual, que corresponde à modalidade menos intensa do dolo. A sua culpa é, por isso, também ela, baixa, porque moldada no aludido dolo. - Em benefício do arguido o facto de ter admitido a prática dos factos e de ter adoptado uma conduta colaborante com o tribunal e uma postura irrepreensível em sede de sala de audiências. Nestes termos, tudo ponderado, mostra-se adequado aplicar ao arguido pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. 143.º do Código Penal, a pena de 100 dias de multa. Por último na terceira fase, enunciada pelo nº 3 do artigo 71º do Código Penal, tecem-se os considerandos que fundamentam a determinação efectuada. Neste âmbito, dispõe o nº 2 do artigo 47º do mesmo diploma legal que, «A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no nº 1 do artigo 71º», correspondendo cada dia de multa a uma quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais (nº 2 do mesmo artigo). No caso, tendo em consideração as condições pessoais do arguido, o Tribunal entende ser adequada a fixação de uma taxa diária de 5 euros». Vejamos. Tendo optado pela aplicação de pena não privativa da liberdade, já que o tipo legal do art. 143.º do CP prevê a moldura abstracta de prisão até três anos ou multa, esta situando-se entre os limites de 10 a 360 dias (art. 47.º, n.º 1, do CP), o tribunal enunciou os factores a que atendeu, para o efeito da medida concreta da multa, por referência ao art. 71.º, n.º 1, designadamente, também, reportando-se às exigências de prevenção que consignou: «Em sede de exigências de prevenção geral de integração, o alarme social provocado por estes crimes, atentatórios de bens tão essenciais como a integridade física não deixa de ser relevante, especialmente tendo em consideração o aumento exponencial da prática de tais crimes no nosso país e o receio que causam na população em geral. Assim, têm-se por médias as exigências de prevenção geral. Em sede de exigências de prevenção especial de socialização, haverá que ter em atenção que o arguido, apesar de ter agido dolosamente, não apresenta antecedentes criminais, pelo que se reputam de médias as exigências de prevenção especial». Como emerge do art. 40.º, n.º 1, do CP, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, elementos decisivos para a determinação da pena concreta, pois constituem as finalidades a que a punição se subordina. Na protecção de bens jurídicos, vai ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem bens e valores, ou seja, de prevenção geral. A previsão, a aplicação ou a execução da pena devem prosseguir igualmente a realização de finalidades preventivas, que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes, isto é, uma finalidade de prevenção especial. As finalidades das penas - de prevenção geral positiva e de integração e de prevenção especial de socialização - conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime. Conforme Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, 1993, pág. 214, culpa e prevenção são (…) os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena. Por seu lado, a medida da culpa funciona como pressuposto axiológico-normativo de qualquer pena, nos termos do n.º 2 daquele art. 40.º, o que significa que não pode exceder, na sua medida, o grau de culpa que se apresente. Este, no essencial, reconduz-se a um juízo de valor, de apreciação, que enuncia o que a situação em análise, em todos os seus elementos - factuais, do agente, da sociedade -, vale aos olhos da consciência e do que deve ser do ponto de vista da sua validade lógica, ética e do direito (acórdão do STJ de 10.04.1996, in CJ Acs. STJ ano IV, tomo II, pág. 168). A medida da pena corresponderá, então, a um quantum que varia entre um ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável -, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Assim, no caso vertente, será a finalidade de tutela e protecção do bem jurídico em causa - a integridade física e psíquica - que há-de constituir o motivo fundamento da pena; de tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade da norma, que a prevenção geral impõe, sendo de destacar, além de se tratar de um bem pessoal e, por isso, com necessidade de acrescida protecção, que, tal como sublinhado pelo tribunal, “o aumento exponencial da prática de tais crimes no nosso país e o receio que causam na população em geral”, assistindo-se a preocupante crescendo de violência entre os jovens e com o que isso representa no sentido de deficiente formação, que deve, desde logo, ser, quanto necessário, reprimida. Por seu lado, no tocante aos diversos factores atendidos, não pode esquecer-se que a ilicitude dos factos assumiu algum relevo, ainda que as consequências não tenham sido especialmente gravosas e, se bem que o recorrente tenha agido com dolo eventual, não se aceita que a multa configure uma forma disfarçada de absolvição, impondo-se que represente uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 124). Adoptado legalmente, quanto à pena de multa, o modelo ou sistema de dias de multa - em que a sua determinação concreta se faz em dois momentos distintos, obedecendo as respectivas operações a diferentes critérios e teleologia, sem que, contudo, se perca de vista a globalidade da sua conjugação, atenta a natureza eminentemente económica que lhe é característica -, afigura-se, em função da culpa e das exigências de prevenção (art. 47.º, n.ºs 1 e 2, do CP), que a pena fixada merece manter-se. Com efeito, apesar de já se situar em número de dias (100) algo distante do mínimo legal, não o excedeu em medida exagerada, não atingindo, sequer, a média legal. Claramente, a aplicação da multa no número mínimo de dias não se adequa, de forma alguma, à gravidade subjacente aos factos. Nem algum sentido tem a alegação do recorrente de que o tribunal quis satisfazer a comunidade escolar e a própria comunidade social local, emitindo uma sentença que servisse de exemplo e assustasse os alunos tumultuosos, dado que, por um lado, o número de dias fixado não é notoriamente elevado e, por outro, o que transparece, ao invés, é que o tribunal foi sensível ao contexto escolar e à juventude do recorrente. Quanto ao quantitativo diário fixado € 5,00), corresponde ao mínimo legal (art. 47.º, n.º 2, do CP), pelo que não é viável redução do mesmo. Havendo a sanção de representar algum sacrifício para o condenado, sob pena de se desacreditar e gerar sentimentos de insegurança, de inutilidade e de impunidade (acórdão do STJ de 02.10.1997, in CJ Acs. STJ, ano V, tomo III, pág. 183), o montante global da multa (€ 500,00) constitui sacrifício que ao recorrente deve ser exigido, para que as finalidades punitivas em presença sejam devidamente preservadas. Como tal, a pena aplicada é consentânea com a sua culpa e necessária, adequada e proporcional, não representando qualquer excesso. Finalmente, no que concerne à sua substituição por trabalho, prevista no art. 48.º do CP, uma vez que sempre depende de requerimento do condenado e em fase de execução da pena, cumprirá ao recorrente, se assim o entender, fazê-lo em 1.ª instância, e não colocá-lo a esta Relação por via do recurso. 3. DECISÃO Em face do exposto, decide-se: - negar provimento aos recursos interpostos pelo arguido e pelo Ministério Público e, assim, - manter a sentença recorrida. Custas a cargo do arguido/recorrente, com taxa de justiça de 4 UC. Sem tributação quanto ao Ministério Público/recorrente, dada a isenção de que beneficia. Processado e revisto pelo relator. 7.Fevereiro.2017 __________________ Carlos Jorge Berguete __________________ João Gomes de Sousa _________________________________________________ [1] Assim, Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pp. 204 e 205, em anotação ao artigo 143.º. [2] Serra, Teresa, “Homicídio Qualificado, tipo de culpa e medida da pena”, Almedina, Coimbra, 1997, págs. 63 e 64 |