Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1464/04-3
Relator: ALMEIDA SIMÕES
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
Data do Acordão: 10/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário:
I – A propriedade horizontal constitui uma unidade onde se encontram fundidos direitos de propriedade singular e de compropriedade.

II – Se faltarem requisitos legais para que um imóvel (ou parte dele) possa ser havido como constituído em propriedade horizontal, dá-se a conversão para o regime de compropriedade.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A” e mulher “B” demandaram, no Tribunal de …, “C” e mulher “D”, pedindo que os réus sejam condenados a permitir que os autores se sirvam do sótão de um determinado prédio sito na Rua …, em …, que se abstenham de praticar actos que privem os autores do uso dessa divisão e que permitam a entrada de pessoal técnico que avalie o estado actual do sótão e sua futura divisão.
Alegaram, no essencial, que o referido prédio encontra-se constituído em propriedade horizontal, sendo os autores os proprietários da facção “A” (r/chão) e os réus os proprietários fracção “B” (1º andar), vindo indicado na escritura de constituição da propriedade horizontal, para além do mais, que o sótão do prédio fazia parte desta última fracção.
Mas, na acção que correu termos no Tribunal de … sob o nº …, foi proferida sentença, já transitada, que declarou a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal, decorrendo dessa decisão que, actualmente, o sótão é propriedade dos autores e dos réus, na proporção de 50%.
Contrariando o decidido, os autores têm sido privados do uso do sótão, de neles incorporar obras e de avaliar o estado do mesmo.

Contestaram os réus no sentido da improcedência da acção, salientando, inter alia, que a decisão proferida no processo nº … “não decretou a compropriedade do sótão”.

Foi proferido despacho saneador, descritos os factos assentes e organizada a base instrutória e, após julgamento, a sentença considerou a acção procedente e condenou os réus:
a) A permitir que os autores se sirvam do sótão do prédio em que foi declarada a nulidade parcial do título constitutivo de propriedade horizontal no proc. n.º …, que correu termos neste tribunal de …;
b) A absterem-se de praticar actos que privem os autores do uso a que têm direito em relação ao sótão referido na alínea a);
c) A permitir a entrada no sótão de pessoal técnico que avalie o estado actual do mesmo e a possibilidade da sua futura divisão.

Inconformados, os réus apelaram, tendo alegado e formulando as conclusões que se transcrevem:

1ª. O sótão ou vão do telhado não podem ser considerados como elementos vitais da construção e não integram a estrutura do prédio, não sendo, por isso, elementos imperativamente comuns do mesmo.
2ª. Daí que, o mesmo seja coisa que se presuma comum desde que não conste do título constitutivo da propriedade horizontal a sua afectação exclusiva a qualquer fracção autónoma, podendo essa presunção ser ilidida por prova de que essa parte do prédio está efectivamente afectada à utilização exclusiva de uma fracção.
Ora,
3ª. O que a douta sentença recorrida fez, salvo o devido respeito, foi concluir que, porque do título constitutivo da propriedade horizontal não consta o uso exclusivo do sótão a uma qualquer fracção autónoma (ou consta, mas foi declarada nula nessa parte) ela presumir-se-á sempre comum.
Porém,
4ª. Não é essa interpretação correcta da alínea e) do nº 2 do art. 1421° do Código Civil, pois se assim fosse não existiria possibilidade de ilidir a presunção. Essa parte presume-se comum se não constar do título essa afectação exclusiva, mas ainda assim essa presunção pode ser ilidida.
5ª. A ilisão dessa presunção é feita pela demonstração de que essa parte que se presume comum está afectada materialmente ao uso de uma fracção existe uma destinação objectiva daquela parte à utilização daquela fracção à data da própria constituição do condomínio.
6ª. Cotejando esta interpretação com os factos dados como assentes nos autos fica plenamente ilidida essa presunção, pois que se apurou que têm sido os ora recorrentes a utilizar o sótão para arrumos, já antes da constituição da propriedade horizontal os mesmos tinham afectado o sótão para a sua utilização exclusiva e a única escada de acesso ao mesmo situa-se no interior da fracção dos recorrentes.
7ª. Esta afectação material do uso e fruição exclusiva do sótão anterior à constituição da propriedade horizontal traduz-se, segundo alguns autores, num verdadeiro direito pessoal de gozo sobre coisa, apto a permitir ao seu titular defende-lo contra as agressões que o impeçam ou perturbem.
Pelo que,
8ª. O facto de se considerar como nulo o título constitutivo da propriedade horizontal na parte em que atribui o uso exclusivo do sótão aos recorrentes não impede que estes demonstrem a afectação material do mesmo à sua fracção, ilidindo a presunção de que essa parte é comum, tendo sido essa prova que foi feita no caso em apreço.
9ª. Mesmo que assim se não entenda, o que só por mera hipótese se admite, a douta sentença recorrida não deveria, no entender dos recorrentes, presumir o âmbito da declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal na parte decisória do processo nº … que correu termos por este Tribunal Judicial de …
10ª. Impunha-se que esta fosse clara, concisa e precisa, resolvendo todas as questões colocadas à sua apreciação, sem deixar às partes possibilidades de interpretação, consoante o seu entendimento.
Para além disso,
11ª. A douta decisão recorrida ao considerar procedente a acção judicial dá anuência a um conjunto de pedidos dos recorridos que constituem um manifesto abuso de direito, na medida em que estes pretendem exercer um direito que em consciência sabem não lhes assistir por violar os limites da boa fé, dos bons costumes e o fim social ou económico desse direito.
Assim sendo,
12ª. Deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a acção interposta, considerando-se o sótão não como parte comum, mas como parte afecta ao uso exclusivo da fracção autónoma de que os ora recorrentes são proprietários.
13ª. A douta sentença recorrida violou os artigos 334°, 1418°, 1420° nº 1 e 1421º nº 2 alínea e) do Código Civil.

Os autores contra-alegaram a pugnar pela confirmação da sentença.

Colhidos os vistos, cabe decidir.

São os seguintes os factos que a 1ª instância deu como provados:

1. O teor do documento n.º 1, fls. 5 a 11, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, no qual consta, designadamente, que a propriedade sobre a fracção autónoma corresponde à letra “A” do prédio sito na Rua … se encontra inscrita a favor dos autores.
2. O teor do documento n.º 2, fls. 12 a 16, cujo conteúdo se dá integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
3. As fracções do prédio aludido em 1. mostram-se matricialmente inscritas sob os arts. … - A e B na Repartição de Finanças de …, nos termos do documento n.º 3, fls. 31 a 33, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4. O teor da sentença, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, proferida no âmbito dos autos que, sob o n.º …, correram termos neste Tribunal, conforme consta do documento n.º 4, fls. 34 a 65.
5. Os autores encontram-se privados do uso do sótão da casa a que se refere o ponto n.º 1.
6. Têm sido os réus a utilizar o sótão usando-o para arrumos.
7. Na sequência da acção que, sob o n.º …, correu termos neste Tribunal, os autores quiseram tomar posse de parte do sótão.
8. Solicitaram ao mandatário dos réus, por carta datada de 12.06.2001, que diligenciasse junto dos mesmos pela designação de dia e hora para levar ao local um técnico para efectuar medições e apresentar soluções para divisão do sótão.
9. Dizendo que aguardavam uma resposta urgente durante os próximos dias.
10. Até à data da propositura da presente acção, nem os réus nem o seu mandatário deram resposta ao aludido no ponto 8.
11. Os autores estão impedidos de utilizar o sótão.
12. De nele incorporar obras.
13. E de avaliar o estado do mesmo tendo em vista futuras intervenções.
14. A única escada de acesso ao sótão situa-se no interior da fracção dos réus.
15. O sótão tem duas janelas.
16. Uma para o lado nascente que apresenta uma altura ao solo de 6 metros.
17. Outra do lado poente que dá acesso a uma varanda para as traseiras com uma altura ao solo de 9 metros.
18. Antes da constituição da propriedade horizontal os réus já tinham afectado o sótão para a sua utilização exclusiva.

Vejamos, então, as questões que se mostram enunciadas pelos apelantes.

É consabido que o título constitutivo da propriedade horizontal é o acto modelador do estatuto da propriedade horizontal, sendo esta um direito real que combina a propriedade singular e a compropriedade, fundindo-se tais direitos para constituir uma unidade nova.

Assim, conforme estabelece o art. 1420º nº 1 do Código Civil, cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício (sendo estas, obrigatoriamente, as indicadas no art. 1421º nº 1, para além de outras que possam ficar sujeitas ao mesmo regime).

Na situação que se aprecia, mostra-se provado que, na escritura de constituição da propriedade horizontal, ficou a constar que o sótão integrava a fracção “B” (1º andar), pertencente aos réus (doc. fls. 14 a 16).

No entanto, por sentença proferida no proc. Nº … do Tribunal de …, já transitada, no qual as partes são as mesmas da presente acção (fls. 34 e segs.), foi declarada a nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal, por inobservância dos requisitos legalmente exigidos, tendo ainda sido declarada zona comum a ambas as fracções o vestíbulo ou hall com cerca de dois m2 localizado no interior do imóvel, bem como toda a zona das escadas que dá acesso à cave e o hall de 4 m2 que lhe dá acesso.

Procurando na fundamentação da sentença a razão da nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal e seu âmbito, pode ler-se a fls. 58: Por conseguinte, outra não pode ser a conclusão que a verificação da nulidade parcial do título constitutivo, uma vez que, nem o sótão se mostra referenciado nas plantas do projecto, e a cave e o 1º andar foram aprovados como divisões amplas, vindo depois posteriormente, e sem qualquer requerimento para alteração do projecto apresentado à entidade camarária pelos réus, a constar a compartimentação das divisões da referida escritura para constituição da propriedade horizontal, com destino e finalidade concretizada. Nulidade parcial e não total, porquanto são essas as divergências que se mostram determinantes e que afectam a validade do título, já que é fundamentalmente delas que se alcança a violação das mencionadas regras imperativas e a falta de requisitos legalmente exigidos - cf. arts. 294º e 1416º do CC e tese perfilhada pelo assento de 10.5.89, com as legais consequências a extrair do nº 1 deste citado artigo.

O que significa que a razão da nulidade parcial do título constitutivo da propriedade horizontal teve também como fundamento a falta de requisitos legalmente exigidos quanto ao chamado “sótão”, uma vez que este não constava do projecto edificativo aprovado.

Ora, de acordo com o nº 1 do art. 1416º do Código Civil, há lugar à conversão sistemática da propriedade horizontal carecida dos requisitos legais no regime comum da compropriedade, o que importa a sujeição ope legis do chamado “sótão” ao regime da compropriedade.

Mas daí não pode retirar-se que aos autores assista o direito de fazerem utilização dessa parte do prédio como zona de arrumo ou para qualquer outra finalidade, ou de aí realizarem obra.

Na verdade, o “sótão” é o vão do telhado e não se mostrando definido que reúna as características que permitam o seu uso para um determinado fim, designadamente, por não ter sido previsto no projecto de construção aprovado, não pode ser afectado para a destinação que os autores lhe pretendem dar.

Mutatis mutandis, também aos réus não é lícita a sua utilização, embora essa questão não constitua objecto específico da presente acção.

Ou seja, na situação actual que se mostra apurada, aquilo a que as partes chamam “sótão” é uma área do prédio a que não pode ser dada qualquer ocupação pelos condóminos.

Sem prejuízo, como é evidente, de poder ser visitado para se conhecer do estado do telhado ou da estrutura do prédio.

Em face do exposto, julgando procedente a apelação, embora por razões distintas das alegadas, acorda-se em revogar a sentença recorrida, absolvendo-se os réus do pedido.

Custas pelos apelados.

Évora, 14 Out. 2004