Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | CARLOS BERGUETE COELHO | ||
Descritores: | RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO VIOLAÇÃO DAS REGRAS DA CONCORRÊNCIA VENDAS COM PREJUÍZO PREÇO DE COMPRA EFECTIVO | ||
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Data do Acordão: | 04/16/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | 1 - A venda com prejuízo, ou seja, em que a oferta para venda ou venda de produtos a um agente económico ou a um consumidor seja feita a preço inferior ao seu preço de compra, é proibida nos termos do art. 3.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 370/93, de 29.10, na redacção dada pelo Dec. Lei n.º 140/98, de 16.05, constituindo contra-ordenação punível de acordo com o seu art. 5.º. 2 - É vista, pois, como uma prática restritiva do comércio, enquanto comportamento que impede uma livre concorrência, destinando-se esta a preservar dinâmica competitiva saudável, a disciplinar a atividade dos agentes económicos e a garantir os direitos dos consumidores. 3 – Entende-se como preço de compra efetivo o preço constante da fatura de compra, após a dedução dos descontos diretamente relacionados com a transação em causa que se encontrem identificados na própria fatura ou, por remissão desta, em contratos de fornecimento ou tabelas de preços e que sejam determináveis no momento da respectiva emissão. 4 - Descontos diretamente relacionados com a transacção em causa são os descontos de quantidade, os descontos financeiros e os descontos promocionais desde que identificáveis quanto ao produto, respectiva quantidade e período por que vão vigorar | ||
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Decisão Texto Integral: | .Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora 1. RELATÓRIO M, S.A., devidamente representada, impugnou judicialmente a decisão da Autoridade da Concorrência, proferida em 23.03.2012, no processo de contra-ordenação n.º 37/2011, que a condenou na coima de €4.676,22, pela prática da contra-ordenação p. e. p. nos termos do n.º 1 do art. 3.º e da alínea a) do n.º 2 do art. 5.º do Dec. Lei n.º 370/93, de 29.10, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 140/98, de 16.05, sancionável com coima de €2.493.99 a €14.963,94. Enviados os autos ao Ministério Público junto do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, foram remetidos a juízo, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 62.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Dec. Lei n.º 433/82, de 27.10, na redacção actual, onde lhes foi atribuído o número em epígrafe. Admitida a impugnação e realizada audiência, proferiu-se sentença que negou provimento àquela e manteve a condenação da arguida. Inconformada, a arguida interpôs recurso, formulando as conclusões: «1. Como decorre do art. 379º nº 1 al a), com referência ao art. 374º nº 2 do CPP, é nula a sentença que não contiver a enumeração dos factos provados e não provados; 2. In casu, a sentença silencia-se no tocante aos factos não provados, sendo certo que tal omissão em que incorre consubstancia o falado vício, que traduz nulidade, e que agora se arguí; 3. Como discreteou o Conselheiro Pereira Madeira no acórdão nº 4307/2004 do STJ, a falta de enunciação dos factos “não provados” torna nula a sentença penal respectiva, não por qualquer oca razão de estéril formalismo, antes porque, tal omissão, inviabiliza outras tarefas processuais inultrapassáveis, como é o caso da indagação dos vícios da matéria de facto a que alude o art. 410º nº 2 do CPP, mormente o da insuficiência; 4. Com efeito, ao entender, como entendeu, que o desconto de rappel não é um desconto de quantidade, mas aquilo que apelida de desconto com “cariz subjectivo”, curial era que a instância tivesse enunciado nos factos provados e nos não provados matéria que amparasse essa sua ilação. 5. Mais: ao dar por assente que, e citamos, no caso do rappel há diferenciação da percentagem de desconto a aplicar em virtude da quantidade (sublinhado é nosso) de produtos adquirida – pág. 7 da sentença – e não vindo nos factos provados e não provados nada que infirme tal, fica por explicar como consegue a decisão sob recurso justificar esta sua conclusão segundo a qual o apregoado desconto não cumpre os requisitos legais vertidos no DL 370/93 revisto. 6. Como se anotou no acórdão tirado no processo 10.672/08 da Relação de Lisboa (junto como doc. 1), a enumeração dos factos provados e não provados na decisão é uma exigência também imposta pelo art. 205º da CRP e do art. 97º nº 4 do CPP. 7. Com os condimentos probatórios certificados na douta sentença recorrida, em que é possível localizar no sector dos factos provados frases como “da factura consta nota remissiva”, e “de acordo como o Contrato Geral de Fornecimento (CGF) celebrado entre a arguida e o seu fornecedor a mesma beneficia de um desconto de rappel que no primeiro escalão se situa em 5,5%, o referido primeiro escalão está definido tendo como ponto de partida a quantidade “1” unidade”, dizíamos, tendo como suporte os ditos segmentos factuais dados como provados, e não havendo registo de nenhum facto não provado, não poderia a instância ter fundamentado a sua decisão com base numa suposta ineficácia do falado desconto de rappel para a matéria dos autos, tal como o fez. 8. Em razão disso, arguí-se a nulidade da sentença. 9. De resto, vindo a sentença fundamentada em termos segundo os quais considerou que o desconto de rappel constante do CGF seria um desconto acordado independentemente das transacções concretas realizadas no momento presente (sic), sem que essa afirmação tabelar mostre ressonância nos factos narrados e dados como provados, incorreu-se em manifesta insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vicio previsto no art. 410º nº 2 a) do CPP, cujo conhecimento é oficioso. 10. O que define o objecto dos autos num cenário como o que aqui se apresenta é desde logo a decisão administrativa, então volvida acusação (cfr. art. 62º nº 1 do RGCO), e não a impugnação judicial, tal como preconiza a sentença. 11. Por outro lado, incorrecto é dizer-se que a arguida aceitou os factos constantes da decisão agora volvida acusação. 12. O que a arguida sempre pugnou foi justamente pela inexistência de factos que possibilitassem a inserção da temática “acusada” no quadro legal que ali vinha invocada. 13. De acordo com a douta sentença a quo o rappel não é um desconto de quantidade, e traduz essa sua ideia dizendo que se trata ali de um desconto de “cariz subjectivo” (sic). 14. Ora, neste particular até nem merecia crítica a douta sentença, pois que em boa verdade, sendo como é um desconto negociado no âmbito de uma dada transacção comercial e lavrado (ou consignado) num contrato que como tal mais não é que a concretização de um dado acordo de vontades, esse desconto, diríamos mesmo, qualquer desconto concebido nesses termos, é um desconto de cariz subjectivo, porque resultando da vontade dos sujeitos intervenientes no acto. 15. “subjectivo” nos dicionários significa o “que é próprio do sujeito ou relativo a ele; que pertence ao sujeito enquanto ser consciente”. 16. Logo dizer-se que o desconto de rappel tem cariz subjectivo, que é o mesmo que dizer, que resulta da natureza de vontades dos sujeitos que intervieram na transacção e que firmaram o contrato respectivo, é de total inocuidade para o debate do assunto controvertido, pois que nada adianta quanto a saber se esse desconto cumpre (ou não) os requisitos legais aqui exigíveis. 17. A lei define num outro patamar a putativa relevância dos descontos a invocar na presente temática, a saber, descontos de quantidade, financeiros e promocionais. 18. A arguida em cumprimento do ónus que sobre si impendia de apresentar prova documental relativamente aos descontos que invocou – art. 3º nº 5 do DL 370/93 revisto -, juntou factura com nota remissiva para outros contratos com ela relacionados, o dito contrato geral de fornecimento (CGF). 19. O produto em causa está devidamente identificado em tais documentos, como assim o período de vigência do desconto, e os ditos elementos estão relacionados com a transacção em causa, por via desde logo da nota remissiva e do acordo que as partes celebraram em vista dessa transacção plasmada na factura dos autos. 20. Na enumeração dos factos provados consta a factura, respectiva nota de remissão, e o rappel escalonado, com quantidade a partir de “1” unidade, ou seja, do 1º escalão. 21. Acresce ainda o desconto financeiro, incluído também no rol dos factos certificados. 22. Assim, devem considerar-se os dois seguintes descontos: rappel de 5,5% (1º escalão) inserido no mencionado CGF e o desconto financeiro de 0,5% inserido na factura e no mesmo CGF. 23. O rappel é um desconto relacionado com as quantidades adquiridas pelo cliente em face do volume de compras efectuado durante um dado período de tempo; daí a sua natureza de desconto de quantidade, e o preenchimento, com isso, do primeiro requisito legal. 24. Esse desconto está escalonado em função do montante das compras, por isso que é fixado em função do volume de vendas imediato tendo como referência a concreta transacção, e nessa exacta medida é desconto determinável no momento da emissão da factura, e sendo-o, tem-se por estabelecido o segundo requisito legal (2ª parte do nº 2 do art. 3º). 25. Aspectos acautelados seriam ainda os que se prendem com a identificação do produto, respectiva quantidade e o período de tempo por que vai vigorar o desconto, tudo consignado no contrato geral de fornecimento. 26. O outro desconto, de 0,5% foi aceite quer pela entidade administrativa quer pela instância, ainda que estivesse contabilizado também no CGF e sem que quanto a ele se tivessem suscitados dúvidas sobre a sua aplicabilidade (ou não) ao caso dos autos, que é como quem diz, à concreta transacção. 27. Um contrato a que se chegue por via remissiva prevista na própria factura tem que ver com essa factura e concomitantemente os eventuais descontos ali previstos terão que ver com a transacção plasmada na factura. 28. Interessa trazer à colação o acórdão da Relação de Lisboa, com o seguinte sumário, Iº Na determinação do preço de compra efectivo, para efeito de se apurar se existe venda com prejuízo, são de ponderar os descontos que obedeçam ao exigido pelo art.3, do Dec. Lei nº370/93, de 29Out.; IIº O requisito que impõe que os descontos constem da factura, pode ser preenchido com a remissão que esta faz para os “descontos e outras contrapartidas decorrentes de todos os contratos e acordos celebrados entre as partes”; IIIº Tratando-se de desconto de factura – referido no Acordo Geral – tal transforma-o num desconto de quantidade, determinado quanto ao produto e quantidade facturados, bem como ao período, ou seja, de imediato; 30. De resto, não basta afirmar-se, como na pag. 7 da douta sentença, que “nem se diga que o desconto foi negociado em virtude das quantidades de produtos previamente adquiridas pelo comprador, pois tais quantidades não respeitam a esta transacção” (sic), 31. Quando na mesma peça decisória, mais acima, e ainda na pag. 7, se logrou afirmar textualmente que, “no caso do rappel escalonado há diferenciação da percentagem de desconto a aplicar em virtude da quantidade de produto adquirida”sic. 32. É assim manifesta a contradição, pois por um lado assenta a sentença a sua fundamentação em que o no caso do rappel escalonado há diferenciação da percentagem de desconto a aplicar em virtude da quantidade de produto adquirida, para logo depois se desmentir a si própria e considerar que nem se diga que o desconto foi negociado me virtude das quantidades de produtos previamente adquiridas pelo comprador, pois tais quantidades não respeitam a esta transacção. 33. Acresce, como dito supra, que estas conclusões além de contraditórias entre si não encontram estofo no probatório dos autos – cfr factos provados e não provados. 34. Tudo isto sem prejuízo da falada questão prévia, traduzida na (arguida) nulidade, por se ter omitido na sentença a enumeração dos factos não provados e por ali se ter incorrido no vício do art. 410º nº 2 a) do CPP; 35. Assim, a conduta sob análise não integra objectivamente a previsão do art. 3º nº 1 do D.L. 370/93 actualizado pelo D.L. 140/98, comando este que se mostra violado pela decisão recorrida, bem assim como o nº 3 do mesmo preceito; 36. Violado foi ainda o art. 5º nº 2 do mesmo diploma e art. 18º do RGCO; 37. Deve, pois, a presente sentença ser declarada nula face à questão prévia suscitada, ou então revogada e substituída por outra que absolva a recorrente da imputada prática de venda com prejuízo; 38. Em anotação final a recorrente faz consignar, para os devidos e legais efeitos, que prescinde da realização de audiência - art. 411º nº 5 do C.P.P, a contrario ». O Ministério Público apresentou resposta, concluindo: «1- A douta sentença recorrida não padece de qualquer nulidade. 2- Tribunal “a quo” apreciou todas as questões pertinentes, só não o fazendo sobre questões circunstanciais que considerou irrelevantes. 3- Da leitura dos factos provados, resulta que todos os factos invocados com relevo para a decisão da causa foram objecto de conhecimento e apreciação. 4- Dos factos provados na douta sentença temos de concluir que a matéria de facto provada é suficiente para a decisão de direito. 5- A coima aplicada mostra-se correctamente doseada e adequada. Em face do exposto, deverá ser negado provimento ao recurso e confirmada a douta decisão recorrida.». O recurso foi admitido. Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, tão-só concluindo nada obstar ao conhecimento do recurso. Efectuada notificação para o efeito do n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), nada foi apresentado. Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. 2. FUNDAMENTAÇÃO O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância, em processo de contra-ordenação, está definido nos arts. 73.º a 75.º do referido RGCO, aprovado pelo mencionado Dec. Lei n.º 433/82, sucessivamente alterado pelo Dec. Lei n.º 356/89, de 17.10, pelo Dec. Lei n.º 244/95, de 14.09, pelo Dec. Lei n.º 323/2001, de 17.12, e pela Lei n.º 109/2001, de 24.12, mormente seguindo a tramitação dos recursos em processo penal (n.º 4 do seu art. 74.º), decorrente do principio da subsidiariedade a que alude o seu art. 41.º, n.º 1. Em conformidade, atento o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, o objecto do recurso é definido pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente de acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995. Atenta-se igualmente que, no que concerne ao tipo de recurso em apreço e constituindo desvio ao princípio geral de que as Relações conhecem de facto e de direito (art. 428.º do CPP), apenas se conhece, em regra, da matéria de direito, sem prejuízo de alteração da decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida ou de anulação e devolução do processo ao mesmo tribunal, conforme dispõe o aludido art. 75.º. Delimitando, então, o objecto do recurso, reside em apreciar: A) - se a sentença recorrida enferma de nulidade; B) – se a sentença incorre em insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; C) – se a conduta da recorrente não integra a contra-ordenação por que foi condenada. Consta da sentença recorrida: Matéria de facto provada: Mostram-se provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa: Em ação de fiscalização realizada no dia 14 de Maio de 2010, pela ASAE, à unidade “C”, situada no Centro Comercial LoureShopping, em Loures, pertencente à arguida, estavam expostos para venda ao público vários produtos selecionados para análise de eventuais vendas com prejuízo, nomeadamente o produto “Água sem Gás, C, 5l”. A “Água sem Gás, C, 5l” encontrava-se exposta para venda ao público ao preço de € 0,35 (com IVA incluído à taxa de 5%). O preço unitário da “Água sem Gás, C, 5l” constante da fatura de aquisição do produto pela arguida é de € 0,36 (sem iva). Da fatura de aquisição do produto pela arguida está indicado um desconto financeiro de 0,5% se o pagamento for realizado em 75 dias. Da fatura consta a seguinte nota remissiva: “Sobre estes produtos incidem, ainda, os descontos e outras contrapartidas decorrentes de todos os contratos e acordos celebrados entre as partes, de acordo com o Dec.-Lei n.º 370/93, 29.10, na redacção do Dec.-Lei n.º 140/98, de 16.05”. De acordo com o “Contrato Geral de Fornecimento (CGF)” celebrado entre a arguida e o seu fornecedor, a mesma beneficia de um “desconto de rappel”, que, no primeiro escalão se situa em 5,5%. O referido primeiro escalão está definido tendo como ponto de partida a quantidade “1” unidade. A arguida quis colocar e colocou à venda o produto “Água sem Gás, C, 5l” pelos preços por que o fez, bem sabendo ser a sua conduta punida por lei. Agiu a arguida consciente e voluntariamente na prática dos factos que lhe são imputados, ciente da proibição e conformada com o prejuízo ilícito que resultou da sua ação. De acordo com o Relatório de Gestão referente ao exercício de 2010, a MC explora um universo de lojas de base alimentar que operam em Portugal Continental sob as insígnias C, M e MB. A insígnia C. foi a primeira cadeia de hipermercados em Portugal, a cadeia M. respeita a mini-hipermercados e supermercados localizados em centros populacionais de média dimensão e a MB é essencialmente alimentar, localizada de preferência em zonas habitacionais nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. O volume de negócios da MC totalizou 3.132,4 milhões de euros, representando um crescimento de 2,9% face ao ano anterior. Os resultados líquidos totalizaram 54 milhões de euros, apresentando uma variação positiva de 24,8 milhões de euros, por comparação com o ano de 2009. Matéria de facto não provada: Com relevância para a decisão da causa (excluindo conclusões, matéria de direito e factos instrumentais não essenciais), não resultaram não provados quaisquer outros factos. Motivação da decisão de facto: O recurso de impugnação judicial, enquanto recurso, apresenta particularidades em relação ao processo por crime. Estando em causa, nesta sede, um recurso, o objecto do processo é fixado em função do conteúdo do articulado de impugnação. Daqui resulta que não há que produzir prova sobre os factos aceites pelo arguido. Não se trata de prova por confissão no sentido que esta pode ter no direito civil, isto é, não se consideram os factos provados por o arguido os não ter especificadamente impugnado. Em processo contraordenacional vale o princípio da presunção de inocência e o consequente ónus de prova pela acusação. No entanto, só deve ser produzida prova e apreciada a factualidade posta em causa pelo arguido. Os factos constantes da decisão recorrida que o arguido não questione ficam fora do objeto do recurso. * In casu, a arguida admitiu, no essencial, a generalidade dos factos provados, não pondo em causa a venda do produto ao preço referido, nem o preço de aquisição constante da fatura. Porém, vem a arguida invocar que deviam ter sido levados em conta os descontos constantes do acordo comercial com o fornecedor, mais propriamente, o desconto de “rappel”, no seu primeiro escalão, que se traduz em 5,5%. Face ao documento junto aos autos, e que consiste no referido acordo comercial com o fornecedor, e aos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência, MB, instrutora do processo, e BP, gestor e funcionário da arguida, deu-se como provada a existência do contrato entre a arguida e o fornecedor, o qual prevê o referido desconto de “rappel”, tendo o primeiro escalão início em “1” unidade. Em sede de Direito apreciar-se-á a sua relevância e aplicabilidade ao caso. Não obstante a Recorrente não ter impugnado a demais matéria provada, pelo que a mesma não carece de motivação, refira-se, de qualquer modo, que a convicção do tribunal relativamente à restante matéria de facto dada como provada sempre resultaria pacífica em face da análise do teor dos documentos juntos aos autos e referidos na decisão administrativa, bem como dos depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas. Enquadramento jurídico: Sendo estes os factos apurados com relevo para a decisão do presente recurso, há que proceder ora ao seu enquadramento jurídico. À arguida vem imputada a prática, como autora material de uma contraordenação p.p. pelos arts. 3.º, n.º 1 e 5.º, n.º 2, al. a), ambos do DL n.º 370/93, de 29 de Outubro, na redação que lhe foi dada pelo DL n.º 140/98, de 16 de Maio. Dispõe o art. 3.º, n.º 1 referido que: é proibido oferecer para venda ou vender um bem a um agente económico ou a um consumidor por um preço inferior ao seu preço de compra efetivo, acrescido dos impostos aplicáveis a essa venda e, se for caso disso, dos encargos relacionados com o transporte. O n.º 2 do mesmo preceito refere que: entende-se por preço de compra efetivo o preço constante da fatura de compra, após a dedução dos descontos diretamente relacionados com a transação em causa que se encontrem identificados na própria fatura ou, por remissão desta, em contratos de fornecimento ou tabelas de preços e que sejam determináveis no momento da respetiva emissão. Por seu turno, o n.º 3 diz que: “Entende-se por descontos diretamente relacionados com a transação em causa os descontos de quantidade, os descontos financeiros e os descontos promocionais desde que identificáveis quanto ao produto, respetiva quantidade e período por que vão vigorar”. Assim, temos de entender que apenas são relevantes para esta noção de venda com prejuízo os descontos de natureza meramente económica que se repercutem diretamente no preço da fatura. A questão que se suscita neste caso consiste em saber se um desconto de “rappel”, cujo primeiro escalão se inicia em “1” unidade, deve ser considerado um desconto de quantidade ou antes um desconto em função da pessoa do comprador, não diretamente relacionado com a transação em causa. No caso de um “rappel” escalonado, há diferenciação da percentagem de desconto a aplicar em virtude da quantidade de produtos adquirida. Assim, poder-se-ia, prima facie, ver aqui um desconto de quantidade, uma vez que o desconto a aplicar variaria em função da quantidade de produtos adquirida. Por outro lado, poder-se-ia argumentar que estes descontos são negociados em função do volume de compras efetuado pelo comprador, o que, numa primeira abordagem nos remeteria também para o conceito de desconto de quantidade. Porém, numa análise mais aprofundada da matéria, verifica-se que a aquisição de uma única unidade do produto é suficiente para preencher o primeiro escalão, ou seja, para que a entidade beneficie do desconto. Ora, não existe uma transação em quantidade tal que justifique um tratamento diferenciado, em função da própria transação. Por outras palavras, o desconto não é justificado pela quantidade de produtos adquirida mas pela pessoa do comprador. Nem se diga que o desconto foi negociado em virtude das quantidades de produtos previamente adquiridas pelo comprador, pois tais quantidades não respeitam a esta transação, o desconto não é diretamente relacionado com a concreta transação em causa. Assim, um desconto de “rappel” cujo primeiro escalão se inicia em “1” unidade não é um desconto económico, diretamente relacionado com a transação e objetivamente justificado em função daquela transação. Trata-se, antes, de um desconto com cariz subjetivo, negociado com determinados agentes económicos em virtude do seu historial de negócios, independentemente das transações concretas realizadas no momento presente. In casu, resultou provado que a arguida expunha para venda um produto, ao preço unitário de €0,35 (com IVA à taxa de 5%). O preço unitário de aquisição constante da fatura é de € 0,36 (sem IVA). Há que atender ao desconto financeiro de 0,5%, referido nos factos provados, bem como à taxa de IVA de 5%. Inexistem quaisquer descontos que se possam considerar relevantes para o cálculo do preço efetivo, pois que a fatura não indica quaisquer outros descontos concretos e o desconto de “rappel” mencionado no acordo comercial não tem aqui relevância jurídica, pelos motivos atrás expostos. Assim, o preço de venda ao público, com IVA de 5%, é de € 0,35, enquanto o preço de compra efetivo, com IVA de 5% e atendendo ao desconto financeiro, é de € 0,37, o que consubstancia uma venda com prejuízo. Efetivamente, a arguida pôs à venda o produto referido por um preço inferior ao de compra efetivo, pelo que estão preenchidos os elementos objetivos do tipo contraordenacional que lhe vem imputado. Em termos subjetivos, a arguida quis praticar os factos, bem sabendo que os mesmos são proibidos por lei, pelo que agiu com dolo direto. Estão assim reunidos todos os elementos subjetivos e objetivos do tipo contraordenacional em causa. Apreciando o objecto do recurso: A) - se a sentença recorrida enferma de nulidade: A recorrente vem arguir a nulidade da sentença, invocando a ausência de enumeração dos factos não provados, preterindo o disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPP. Na verdade, constituindo, a fundamentação, um dos requisitos da sentença, desta deve constar, de acordo com o disposto naquele art. 374.º, n.º 2, a enumeração dos factos provados e não provados, bem como (…) uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, sob pena de nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP. Insere-se em exigência do moderno processo penal que, ao nível contra-ordenacional, como processo sancionatório, se afigura inteiramente aplicável, por via do art. 41.º, n.º 1, do RGCO e no respeito das garantias de defesa, com a dupla finalidade de, extraprocessualmente, constituir condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que a determinaram e, intraprocessualmente, de realização do objectivo de reapreciação da decisão por via do sistema de recursos. Trata-se da concretização do desiderato constitucional do art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), impondo a fundamentação na forma prevista na lei, como parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático e da legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (conforme Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição Anotada, pág. 799), por respeito às garantias de defesa do condenado (art. 32.º, n.º 1, da CRP) e de acesso à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º, n.º 4, da CRP), no sentido de que se assegure, também, um julgamento equitativo (“fair trail”), como vem sendo reconhecido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e se apresenta consagrado, em termos amplos, no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Segundo Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Verbo, 1993, vol. II págs. 112/113: Quando tratámos dos actos decisórios referimos a finalidade da sua fundamentação: lograr uma maior confiança do cidadão na Justiça, o autocontrolo das autoridades judiciárias e o direito de defesa a exercer através dos recursos. A primeira das finalidades indicadas ajuda à compreensão da decisão e, consequentemente, à sua aceitação, facilitando a necessária confiança dos cidadãos nas autoridades judiciárias. O autocontrolo que a exigência de motivação representa manifesta-se a níveis diferentes: por um lado, obsta à comissão de possíveis erros judiciários, evitáveis precisamente pela necessidade de justificar a decisão; por outro lado, implica a necessidade de utilização por parte das autoridades judiciárias de um critério racional de valoração da prova, já que se a convicção se formou através de meras conjecturas ou suspeitas, a fundamentação será impossível. Assim, a motivação actua como garantia de apreciação racional da prova. Finalmente, a motivação é absolutamente imprescindível para efeitos de recurso, sobretudo quando tenha por fundamento o erro na valoração da prova; o conhecimento dos meios de prova e do processo dedutivo são absolutamente necessários para poder avaliar-se da correcção da decisão sobre a prova dos factos, pois só conhecendo o processo de formação da convicção do julgador se poderá avaliar da sua legalidade. Também, o mesmo Autor, ob. cit., vol. III, Verbo, 1994, pág. 288, Na fundamentação há que distinguir três partes: a enumeração dos factos provados e não provados, a exposição de motivos que fundamentam a decisão e a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e, quanto à indicação dos factos provados e não provados, são todos aqueles submetidos à apreciação do tribunal e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, os constantes da acusação (ou da pronúncia) e da contestação, quer sejam substanciais quer instrumentais ou acidentais, e ainda os não substanciais que resultem da discussão da causa e sejam relevantes para a decisão e também os substanciais que resultarem da discussão, quando aceites nos termos do art. 359.º, n.º 2. A exigência legal de enumeração dos factos substituiu a necessidade de formulação de quesitos sobre a matéria de facto, que anteriormente, à luz do CPP de 1929, se impunha e destina-se a permitir que a decisão demonstre que o tribunal considerou especificadamente toda a matéria de prova que foi trazida à apreciação e que tem relevo para a decisão, por ter sido incluída na acusação ou na pronúncia e na contestação (A. A. Tolda Pinto, in “A Tramitação Processual Penal”, 2.ª edição, pág. 953, e acórdãos do STJ de 05.06.1991, CJ, ano XVI, tomo III, pág. 29, e de 18.12.1997, BMJ n.º 477, pág. 185), devendo sobre eles tomar posição, nos termos do art. 368.º, n.º 2, do CPP. Deste modo, mesmo no que se reporta a factos não provados, desde que relevantes no sentido configurado, não está o tribunal desonerado de os enumerar, especificando-os, não sendo aceitável que o faça por mera remissão para peças processuais. Em concreto, o tribunal recorrido fez constar da sentença que não resultaram não provados quaisquer factos com relevância para a decisão da causa, o que, embora comportando uma indicação genérica, não consente a conclusão de que descurou essa vertente. Se é certo que a enumeração de factos constitui elemento da fundamentação da sentença conforme referido, não é menos verdade que, não existindo factos não provados segundo a perspectiva do tribunal, a fórmula usada tem de aceitar-se, pois, não o reconhecer, significaria obrigação de indicação de factos irrelevantes. A questão residirá, então, em saber se outros factos deveriam ter sido enumerados, relativamente ao que a recorrente concretiza que a sentença olvidou enumerar, como não provado, o desconto constante do contrato que conduziu a que não tivesse sido aceite como desconto correspondente ao “rappel”. Todavia, não lhe assiste razão, para o âmbito da apreciação que aqui se tem em vista. Com efeito, o tribunal considerou como provado que “De acordo com o “Contrato Geral de Fornecimento (CGF)” celebrado entre a arguida e o seu fornecedor, a mesma beneficia de um “desconto de rappel” que, no primeiro escalão se situa em 5,5%” e que “O referido primeiro escalão está definido tendo como ponto de partida a quantidade “1” unidade”. Ora, a enumeração de que diferente desconto não se tivesse provado redunda prejudicada perante o teor assinalado como provado, pelo que inexiste qualquer omissão a apontar ao tribunal ao não ter feito a pretendida indicação nos factos não provados. Diferente questão reside em saber se a conclusão que extraiu quanto à análise desse tipo de desconto será de aceitar, mas esta, contrariamente ao que transparece da alegação da recorrente, é tema que se prende com matéria de direito, e não com a nulidade em vista. Acresce que, conjugando o teor do relatório e da fundamentação da matéria de facto da sentença (fls. 315, 316 e 319) com a impugnação que foi efectuada (fls. 239/249), não se descortina que a matéria objecto de julgamento não tenha sido inteiramente apreciada, mormente que, implicitamente, outros escalões do aludido desconto existiam nesse contrato. Não se configura, pois, nulidade da sentença. B) - se a sentença incorre em insuficiência para a decisão da matéria de facto provada: Sustentando que a sentença padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a recorrente invoca a fundamentação da mesma no sentido de que o desconto acordado seria independente da transacção concreta em causa, embora não tendo esse aspecto, no seu entender, ressonância na matéria fixada. Tal vício, para existir, terá de resultar do texto da sentença, por si só e conjugado com as regras da experiência comum (art.º 410. n.º 2, do CPP), com o significado de que a decisão de facto apurada não seja suficiente para a decisão de direito encontrada ou, como salienta Germano Marques da Silva, ob. cit., vol. III, pág. 325, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. Ou, como se assinalou no acórdão do STJ de 20.04.2006, no proc. n.º 06P363 (www.dgsi.pt ), A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista à sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena. Encontra o seu fundamento, além do mais, na preterição do princípio da descoberta da verdade material, consagrado no art. 340.º do CPP que, em qualquer circunstância e com a finalidade da boa decisão da causa, ainda que no domínio contra-ordenacional, não pode ser esquecido. Em concreto, afigura-se que, analisado o conjunto dos factos provados, o desconto em apreço aparece minimamente relacionado com a factura de aquisição do produto, só assim justificando que se tivesse feito aí menção ao “Contrato Geral de Fornecimento” e a que este consta da mesma. Contudo, o directo relacionamento do desconto à aquisição, que o tribunal entendeu não existir, como resulta da fundamentação de direito que operou, foi suportado, independentemente da sua razoabilidade, na circunstância do primeiro escalão corresponder ao mínimo de uma unidade e afastando a viabilidade de considerar-se para o efeito outras aquisições prévias, o que não revela em sede do preconizado vício. Essas outras aquisições não teriam de constar da matéria de facto, porque excedendo o objecto do julgamento, não se divisando, pois, que necessárias fossem para que a decisão de direito tivesse sido proferida, como decorre, aliás, da fundamentação, quer de facto, quer jurídica, da sentença. C) - se a conduta da recorrente não integra a contra-ordenação por que foi condenada: A discordância da recorrente consubstancia-se em que, na sua perspectiva, o desconto de “rappel” deveria ter sido considerado como relevante para integrar desconto de quantidade, para a determinação do preço de compra efectivo do produto, tendo por consequência que a exposição para venda da “Água sem Gás, C, 51” não estava a ser efectuada com prejuízo. Como decorre da sentença, esse desconto não foi entendido como tal, no essencial, em razão de admitir, no primeiro escalão, a aquisição da unidade do produto, não repercutindo transacção em quantidade que o justifique. A venda com prejuízo, ou seja, em que a oferta para venda ou venda de produtos a um agente económico ou a um consumidor a preço inferior ao seu preço de compra, é proibida nos termos do art. 3.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 370/93, de 29.10, na redacção dada pelo Dec. Lei n.º 140/98, de 16.05, constituindo contra-ordenação punível de acordo com o seu art. 5.º. È vista, pois, como uma prática restritiva do comércio, enquanto comportamento que impede uma livre concorrência, destinando-se esta a preservar dinâmica competitiva saudável, a disciplinar a actividade dos agentes económicos e a garantir os direitos dos consumidores. A nova redacção do aludido art. 3.º do Dec. Lei n.º 370/93, no intuito de, como consta do preâmbulo do Dec. Lei n.º 140/98, introduzir ao diploma em causa, enquanto instrumento de repressão de comportamentos que impeçam uma concorrência leal entre as empresas, por se encontrar o anterior desajustado face às profundas alterações que o relacionamento entre estas tem vindo a registar nos últimos anos, em resultado do peso cada vez maior da chamada «grande distribuição» nos circuitos económicos, as alterações necessárias ao desempenho efectivo dos objectivos de promoção do equilíbrio e da transparência das relações entre agentes económicos que lhe estão subjacentes, veio definir a noção de preço de compra efectivo, como sendo o preço constante da factura de compra, após a dedução dos descontos directamente relacionados com a transacção em causa que se encontrem identificados na própria factura ou, por remissão desta, em contratos de fornecimento ou tabelas de preços e que sejam determináveis no momento da respectiva emissão. Por seu lado, os descontos directamente relacionados com a transacção em causa são os descontos de quantidade, os descontos financeiros e os descontos promocionais desde que identificáveis quanto ao produto, respectiva quantidade e período por que vão vigorar. É relativamente aos designados descontos de quantidade que a questão é colocada pela recorrente, pois, segundo decorre da sentença, contrariamente ao entendimento que preconiza baseado na documentação junta aos autos (factura e contrato geral de fornecimento), foram eles afastados pelo tribunal para, em concreto, poderem vir a ser deduzidos ao preço de compra constante da factura. Na gíria comercial, consubstanciam o denominado “rappel”, definido como um prémio, na forma de devolução de dinheiro ou crédito futuro, estabelecido para quando um cliente atinge determinados objectivos ou condições pré-definidas, cujo objectivo é estimular os canais de venda ou clientes a atingir maiores volumes de encomendas. Tendencialmente vocacionado para o sector da distribuição, configura o desconto que se concede a um cliente por atingir um consumo determinado durante um período de tempo estabelecido, sendo normalmente concedido em forma de escalões, a que corresponderão outros tantos descontos. Consta, em geral, dos contratos de fornecimento estabelecidos com os fornecedores, embora a mera designação como “rappel” não seja bastante para que seja legalmente tido como desconto de quantidade para o efeito da previsão daquele art. 3.º do Dec. Lei n.º 370/93. Na verdade, os descontos de quantidade só são admissíveis, para tanto, quando: - estejam directamente relacionados com a transacção em causa: - se mostrem identificados na factura ou, por remissão desta, em contratos de fornecimento ou tabelas de preço; - se traduzam em descontos reportados a quantidades; - sejam susceptíveis de determinação no momento da emissão da factura. Ora, a factura em causa, constante de fls. 85, conforme provado, inclui a referência de que “Sobre estes produtos incidem, ainda, os descontos e outras contrapartidas decorrentes de todos os contratos e acordos celebrados entre as partes, de acordo com o Dec.-Lei n.º 370/03, de 29.10, na redacção do Dec.-Lei n.º 140/98, de 16.05”, sendo que, também, se deu como provado que De acordo com o “Contrato Geral de Fornecimento” (CGF) celebrado entre a arguida e o seu fornecedor, a mesma beneficia de um “desconto de rappel”, que, no primeiro escalão se situa em 5,5%. Com efeito, esse contrato foi celebrado com a empresa fornecedora da água (“Águas de São Martinho”) exposta para venda em estabelecimento da recorrente, com data de 19.02.2009, vigorando, segundo o seu ponto 6, desde essa data e pelo prazo de dezoito meses, renovável automaticamente, por igual período, salvo se qualquer das partes puser termo ao mesmo e, ainda, conforme seu ponto 6.3, Para efeitos de cálculo do Rappel (desconto de quantidade), o prazo de vigência coincide com o ano civil. Por seu lado, no seu ponto 8, remete, para o Anexo I, a definição dos preços dos produtos e das condições de fornecimento, resultando deste, como objecto de descontos de quantidade, a gama negociada (bebidas) e, como incentivo para aumento de vendas, o referido “rappel”, escalonado em de 1.00 até 1.0000000,00 EUR, 5,50% e, de 1.0000001,00 até 99999999999,00 EUR, 5,75%. Afigura-se que não subsiste dúvida quanto ao relacionamento desse “rappel” com a transacção em apreço, dada a remissão feita na factura nos moldes exigíveis e atenta a determinabilidade do produto incluído na negociação. Aliás, não se detecta fundamento para concluir, como fez o tribunal “a quo”, que, através do exame dos documentos que aqui relevam, esse “rappel” não esteja directamente relacionado com a transacção em causa, nem isso decorre da matéria de facto fixada e respectiva motivação. Contudo, sem prejuízo desta realidade, ainda que o “rappel” esteja relacionado com as quantidades mencionadas nos respectivos escalões, o tribunal entendeu que essa definição não consentia a compatibilidade necessária de que fosse verdadeiramente negociado em função do volume de compras, por se admitir que a aquisição de uma única unidade era suficiente para o benefício do desconto. Enveredou por, implicitamente, condicionar a tipificação desse desconto a circunstância que, a nosso ver, não tem cobertura legal, nem poderá ter estado na mente do legislador. Na verdade, as quantidades abrangidas na definição desse “rappel”, que ficaram a constar do contrato negociado, têm inerente o incentivo em que o mesmo se traduz e não se podem dissociar do tendencial objectivo de crescimento, tendo em conta, necessariamente, o sector da distribuição em que se inserem. Para isso, também, contribui a diferenciação entre escalões, à medida que as quantidades vão crescendo, naturalmente não sendo perspectivável que, no tipo de negociação em apreço, estejamos em presença de quantidades que se reduzam à unidade. O estabelecimento de escalões é a forma normal de definir quais os descontos para as quantidades definidas, à luz do aludido incentivo, sendo que é essa inclusão de escalões o elemento diferenciador do “rappel” relativamente a outros tipos de descontos, de forma a que, identicamente ao que se prevê também no contrato em apreço, quando se atinge determinado escalão, esse desconto se aplica a todo o consumo anterior. Entende-se que o ponto de partida definido para o primeiro escalão, ainda que seja a unidade, não serve para desvirtuar a sua natureza de descontos de quantidade. Na verdade, sufragando-se a perspectiva da sentença, equivaleria a descurar essa natureza, fazendo prevalecer a definição de escalões, que não é mais do que um instrumento de cálculo, estabelecendo margens, no âmbito comercial pacificamente aceite e, por maioria de razão, quando envolve o sector da grande distribuição. Inexistem, pois, em concreto, elementos que infirmem que o desconto de “rappel” que ficou provado seja tido, para os legais efeitos, como desconto de quantidade, já que, de acordo com o entendimento que deixámos explicitado, preenche os requisitos exigidos pelos n.ºs 2 e 3 do art. 3.º do Dec. Lei n.º 370/93, na redacção actual. Há que considerar, em consequência, que esse desconto tenha relevância para o cálculo do preço de compra efectivo, devendo ser deduzido ao preço constante da factura, pelo que se imporá a modificação do que ficou fundamentado na sentença, no sentido de suportar a condenação da recorrente na contra-ordenação resultante de venda com prejuízo. Concretizando, o preço unitário do produto constante da factura é de €0,37, com IVA de 5%, atendendo ao desconto financeiro admitido de 0,5%, a que acresce, como dedução, o desconto de quantidade de, pelo menos, 5,5%, correspondente ao primeiro escalão definido. Obtém-se, assim, o preço de compra efectivo de €0,35. Tal preço é idêntico àquele por que o produto era exposto para venda. Deste modo, não se configura venda com prejuízo, dado que o preço de venda não é inferior ao seu preço de compra efectivo, pelo que não se mostra a conduta da recorrente como integrando a ilicitude inerente à contra-ordenação por que foi condenada. Operada, nestes termos, a modificação do entendimento quanto ao enquadramento dos factos efectuado na sentença, implicitamente as atribuídas intencionalidade e consciência da ilicitude da recorrente (que constam da matéria de facto aí fixada) ficam afastadas. 3. DECISÃO Em face do exposto e concluindo, decide-se: - conceder provimento ao recurso interposto pela arguida e, assim, - revogar a sua condenação, mantida pela sentença, pela contra-ordenação de venda com prejuízo, p. e p. pelos arts. 3.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, alínea a), do Dec. Lei n.º 370/93, na redacção dada pelo Dec. Lei n.º 140/98; - absolvê-la da prática dessa mesma contra-ordenação, ficando sem efeito a coima aplicada. Sem custas. Processado informaticamente e integralmente revisto pelo Relator. Évora, 16 de Abril de 2013 (Carlos Berguete Coelho) (João Gomes de Sousa) |