Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1235/05-2
Relator: MANUEL NABAIS
Descritores: INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
FORMALIDADES
RECURSO
Data do Acordão: 05/12/2005
Votação: DECISÃO DO EXM.º PRESIDENTE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA O PRESIDENTE
Decisão: DEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário:
Para que um recurso se considere interposto basta que no respectivo requerimento se manifeste expressamente ao tribunal que proferiu a decisão recorrida a vontade de interpor recurso da decisão com a qual o recorrente não concorda e se indique a espécie de recurso, não exigindo a lei o uso de expressões ou fórmulas especiais para declarar a vontade de interpor recurso.
Decisão Texto Integral:
I. Nos autos da acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, sob o nº …, apresentou o A, …, em 29JUN04, um requerimento do teor seguinte, dirigido à M.ma Juiz de Direito daquele Tribunal, junto a fls. 525:
«O autor, …, não se conformando com a sentença de fls., dela pretende interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora.
Desde já requer, tendo em consideração que em sede de recurso o apelante pretende impugnar a decisão de facto, que lhe sejam facultadas cópias das cassetes contendo o depoimento de parte e o das testemunhas.
Deste modo, o requerente poderá, tempestivamente, proceder à transcrição.
Sobre tal requerimento incidiu o seguinte despacho, proferido em 13JUL04:
“Fls. 525:
Entregue, conforme requerido, cópia da prova gravada, logo que o autor juntar as competentes cassetes virgens para o efeito.”
Notificado daquele despacho, “e porque já se encontra efectuada a transcrição”, veio o A. requerer à M.ma Juiz, em 10SET04, “se digne admitir e fixar efeito ao recurso.”
Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho:
Requer o autor, a fls. 533, que o Tribunal "se digne admitir e fixar efeito ao recurso", "porque já se encontra efectuada a transcrição".
Cumpre apreciar e decidir:
Para que seja admitido um recurso torna-se necessário que o mesmo seja efectivamente interposto, o que não ocorre in casu.
Na verdade, por mais que compulsemos os autos, não vislumbramos qualquer requerimento em que o autor interponha, efectivamente recurso.
Apenas, a fls. 525, manifesta o propósito de poder vir a interpor recurso, sem que o faça efectivamente, declarando, apenas pretender vir a fazê-lo.
Ora, segundo, qualquer dicionário de língua portuguesa (língua na qual se praticam os actos processuais) pretender, é apenas e só a manifestação de uma intenção de intenção de praticar, no futuro um acto e não a sua efectiva prática no presente.
Com efeito, se o autor, com o requerimento de fls. 525 interpusesse efectivamente recurso teria dito "o autor vem interpor recurso .... requerendo a sua admissão, com efeito ... " ou "o autor interpõe recurso … o qual deve deve ser admitido com efeito ... ", em vez de, "pretende interpor recurso (…)", para em seguida referir que, "desde já requer
( ... ) cópias das cassetes ( ... )."
Assim, do requerimento de fls. 525, a única coisa se retira é que, o autor requer ("desde já) cópia das cassetes da prova gravada, com o fundamento de que, pretende (é sua intenção) vir a interpor (no futuro) recurso da sentença. O que até à data ainda não fez.
Ora, não tendo sido interposto qualquer recurso, carece de objecto o requerimento de fls. 533, no sentido de que o Tribunal admita e fixe efeito ao recurso.
Pelo exposto, e porque nenhum recurso foi efectivamente interposto, indefiro o requerido pelo autor a fls. 533.
Custas do incidente pelo autor (art° 446°, nºs 1 e 2 do C.P.C.), fixando-se em 2 (duas) U.C. a taxa de justiça (art° 16° do C.C.J.).»
Inconformado com tal despacho, dele reclamou o A., nos termos do art° 688° do CPP, alegando, em substância:
[...] Não será necessário grande exercício de hermenêutica para perceber que quando uma parte, a quem uma decisão é desfavorável, expressa que dessa decisão "PRETENDE INTERPOR RECURSO" (imperativo), está mesmo, sem margem para qualquer dúvida, a dizer que está a interpor recurso.
Todos os dicionários de língua portuguesa “são inequívocos no sentido de que PRETENDER significa SOLICITAR, EXIGIR, INTENTAR, RECLAMAR COMO UM DIREITO, REQUERER
[...]
A expressão "pretende interpor recurso", independentemente de ter um entendimento unívoco, não pode deixar de ser interpretada no seu contexto e com o bom senso que é comum a toda Magistratura Judicial.
[...] O ora reclamante, afora ter dito que queria recorrer, expressou logo a seguir a sua pretensão de lhe serem facultadas cópias da prova gravada, uma vez que iria, e vai, impugnar a decisão tomada sobre a matéria de facto. E para quê?
[...] Se o A. não quisesse recorrer a que propósito é que se iria meter em grandes encargos (as transcrições custaram quase € 600)? Para coisa nenhuma?
Mantido o despacho reclamado e observado o disposto no n.º 4 do cit. art° 688°, não houve resposta.
Cumpre decidir.
*
II. Os recursos interpõem-se por meio de requerimento, dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida e no qual se indique a espécie de recurso interposto e, nos casos previstos nos nºs 2, 4, e 6 do art° 678° e na parte final do n° 2 do art° 754°, o respectivo fundamento. É o que estatui o art° 687°, n° 1 do CPC.
A questão que reclama solução consiste em saber se o instrumento processual de fls. 525 deve (como defende o ora Reclamante) ou não (como entende a Mª Juiz) considerar-se um requerimento de interposição de recurso.
Em abono da sua tese, aliás douta, sustenta a Mº Juiz, em substância, que «do requerimento de fls. 525, a única coisa se retira é que, o autor requer ("desde já) cópia das cassetes da prova gravada, com o fundamento de que, pretende (é sua intenção) vir a interpor (no futuro) recurso da sentença. O que até à data ainda não fez.»
Contra este entendimento insurge-se, porém, o Reclamante argumentando, em síntese, que “quando uma parte, a quem uma decisão é desfavorável, expressa que dessa decisão "PRETENDE INTERPOR RECURSO" (imperativo), está mesmo, sem margem para qualquer dúvida, a dizer que está a interpor recurso.
Antecipando a resposta a dar à questão suscitada dir-se-á que o entendimento da Mª Juiz não pode, salvo o devido respeito, ser acolhido.
Com efeito, vai longe o tempo das fórmulas sacramentais (de que são exemplos acabados a mancipatio e a stipulatio do Direito Romano).
Não exige a lei o uso de expressões ou fórmulas especiais para declarar a vontade de interposição de recurso.
As palavras mais não são que o veículo das ideias, o lado externo da vontade.
Para que uma peça processual (requerimento) possa ser considerada um requerimento de interposição de recurso exige-se apenas que nela se manifeste expressamente, ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, a vontade de interpor recurso de uma decisão com a qual o recorrente não concorda e se indique a espécie de recurso. Como se dizia na versão originária do art° 687º do CPC, os recursos interpõem-se por meio de requerimento em que se exprima a vontade de recorrer [expressão que, por supérflua, veio a ser eliminada] e se indique a espécie de recurso.
Retirando-o do contexto em que se insere – ao arrepio das boas regras da hermenêutica – atribui a Mª Juiz ao verbo pretender o significado de apenas e só a manifestação de uma intenção de praticar, no futuro um acto e não a sua efectiva prática no presente.
Ora, pretender (do latim praetendere, que, etimologicamente, significa estender diante, alegar), tem, entre outros, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, os seguintes significados: afirmar, assegurar, sustentar, exigir, reclamar, requerer. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, assinala ao vocábulo em questão, a par de outras, as seguintes acepções: exigir, desejar, querer, solicitar, sustentar, afirmar, intentar, requerer, propor-se. De harmonia com a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, pretender significa, além do mais, reclamar como um direito, solicitar, requerer, desejar, exigir, intentar. Para o Dicionário Prático Ilustrado (Lello & Irmão – Editores), pretender significa reclamar como um direito, solicitar, querer, exigir, aspirar a, afirmar, sustentar, empregar diligências, tratar.
Também o significado que a praxis e a linguagem forenses emprestam ao vocábulo pretender se recusa a encaixar-se na exegese da Ma Juiz, isto é, na acepção em que tomou a expressão “pretende interpor recurso”.
Para concluir que assim é, basta atentar no seguinte passo de Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, p. 327, em anotação ao art° 688°: Heitor Martins fez a observação de que devia o recorrente indicar, no requerimento, a espécie de recurso que pretende interpor (itálico meu).
António Simões Correia/António Rodolfo/José Manuel Simões Correia, Formulário Geral de Processo Civil, Comercial, Fiscal e Administrativo, vol. II, apresentam, entre outros, os seguintes modelos de requerimentos de interposição de recurso, sendo meu o sublinhado: "Pedro Aires [ ... ] não se conformando com a sentença proferida a fls .... pretende dela apelar para a Relação do distrito” (p.p.30/31); “O Banco da Beira [...] não podendo conformar-se com o acórdão proferido a fls. …, pretende dele interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça […] (fls. 96); A Sociedade Construtora, L.da [...] pretende recorrer para o Tribunal Pleno deste acórdão [...] (fls. 266).
Por outro lado, na peça processual em questão, o ora Reclamante não só afirma a sua discordância com a sentença da qual pretende interpor recurso de apelação, como também se considera já, efectivamente – e não apenas eventualmente – apelante como, finalmente, diz quepretende impugnar a decisão de facto requerendo, por isso, que lhe “sejam facultadas cópias das cassetes contendo o depoimento de parte e o das testemunhas.
Conclui-se, pois, que, através do requerimento em questão junto a fls. 525), o ora Reclamante não se limitou a manifestar a intenção de, no futuro, vir a recorrer da sentença, mas interpôs efectivamente recurso de apelação dessa sentença.
III. Face ao exposto, na procedência da reclamação, revoga-se o despacho reclamado, que será substituído por outro que admita o recurso pelo ora Reclamante interposto, através do requerimento de fls. 525.
Não é devida tributação.
Évora, 12 de Maio de 2005.