Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2430/11.3TBPTM.E1
Relator: SILVA RATO
Descritores: CAPITAL SOCIAL
ENTRADAS EM DINHEIRO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 06/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Estabelece o art.º 88º do CSC que a eficácia interna do aumento de capital produz efeitos a partir da data da deliberação que a decidiu determinando os efeitos internos desse aumento antes do seu registo, nomeadamente atribuindo eficácia constitutiva a esse aumento de capital e às respectivas participações.
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc. N.º 2430/11.3TBPTM (Apelação)
Comarca de Faro (Portimão-IL–SCível-J2)
Recorrente: Fundo de Capital de Risco (…)
Recorrido: (…) Unipessoal, Ld.ª
R42.2015

I. Fundo de Capital de Risco (…), representado por (…) – Sociedade de Risco S.A., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra (…) – Unipessoal, Ld.ª, pedindo que a Ré seja condenada a restituir-lhe € 45.000,00 acrescidos de juros contados desde a citação da Ré.
Para tanto alegou, em síntese, que participou no capital do social da Ré mediante uma entrada de € 45.000 em dinheiro, integralmente realizada, e que esta não procedeu ao registo de tal deliberação nem lhe forneceu os elementos necessários para tanto.
Por via disso, entende que a deliberação é juridicamente inexistente e que a Ré se locupletou com o montante acima referido sem causa jurídica que o justifique.

Citada a Ré (primeiro editalmente e depois na pessoa do M.º P.º), não deduziu contestação.

Efectuado julgamento, foi proferida sentença em que foi decidido o seguinte:
Pelo exposto, julgo a acção totalmente improcedente, por falta de fundamento legal e, em consequência, absolvo a ré do pedido.
…”

Inconformada com tal decisão, veio o Autor interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
I. Encontra-se provado nos autos que, no dia 04/06/2008, realizou-se uma assembleia gerai da Ré com vista, ademais, à discussão e aprovação do novo contrato social, aprovação da sua transformação em sociedade anónima e aprovação do aumento do seu capital social, por reforço da participação social do seu único sócio e entrada de 4 novos sócios, entre os quais o aqui Recorrente, tendo todas estas deliberações sido aprovadas;
II. Mais resultou provado que, com vista ao projectado aumento de capital, o Recorrente subscreveu uma participação no valor de € 45.000,00, tendo realizado integralmente a sua participação, por meio da entrega de um chegue na data da deliberação, cheque esse depositado pela Ré em 06/06/2008;
III. Resultou ainda provado que, apesar de todas as tentativas realizadas pelo Recorrente, as deliberações tomadas nunca chegaram a ser inscritas no registo comercial, encontrando-se o Recorrente impossibilitado de as registar, por factos imputáveis à Ré, sendo que desde 14/02/2011 o Recorrente não consegue contactar o único sócio da Ré, nomeado administrador único da sociedade transformanda na assembleia geral aqui em crise;
IV. Pela simples leitura dos factos provados se verifica que a decisão a tomar nos presentes autos não pode ser outra se não a total procedência da presente acção;
V. Ao contrário da posição defendida pelo tribunal a quo, não é certo que a falta de registo das deliberações aqui em causa não produza qualquer efeito inter partes, tudo se passando como se estas tivessem sido efectivamente registadas;
VI. As deliberações em causa nos presentes autos constituem alterações a elementos essenciais do acto constitutivo da sociedade, não produzindo efeitos, nem inter partes, antes da sua inscrição no registo;
VII. Se há alterações ao contrato constitutivo que não carecem de registo para terem validade e plena eficácia entre as partes – como é o caso das alterações aos elementos constantes das alíneas a), d), e), g), h) e i) do artigo 9° do Código das Sociedades Comerciais – outras há que, sem o registo, nenhuma validade têm, nem mesmo inter partes, como é o caso das deliberações aqui em crise;
VIII. Não tendo sido as deliberações registadas, o que existe juridicamente é uma sociedade unipessoal por quotas, com o capital social de € 5.000,00, denominada "(…), Unipessoal, Lda.";
IX. A sociedade transformanda, sociedade anónima denominada "(…), S.A.", com o capital social de € 100.000,00, nunca chegou a existir, não sendo o Recorrente sócio desta sociedade;
X. As alterações do acto constitutivo da sociedade podem ter, nos exactos termos e condições expostas, plena validade e eficácia entre as partes quando e na medida em que estas assim o pretenderem;
XI. Nos autos, é incontroversa a falta de vontade do sócio único da sociedade Ré, e dos demais subscritores do capital social da sociedade transformanda, em constituir entre si e com o Recorrente a sociedade anónima "(…), S.A.", com o capital social de € 100.000,00;
XII. Acaso o sócio único da Ré tivesse vontade em fazer valer inter partes as deliberações tomadas e não registadas, não teria este tido o comportamento de total ausência de resposta às solicitações do Recorrente, comportamento esse que se encontra provado nos autos – cfr. pontos 10 a 19 dos factos provados;
XIII. Tal falta de vontade é extensiva aos demais subscritores do capital social da sociedade transformanda, os quais, devidamente notificados pelo Recorrente, se remeteram, à semelhança do que sucedeu com o sócio único da Ré, ao mais profundo silêncio, nada fazendo para registar ou permitir que o Recorrente registasse as deliberações tomadas na assembleia geral de 04/06/2008;
XIV. E, se as partes não pretendem fazer valer esses efeitos, parece manifesto não poder o tribunal substituir-se a estas e determinar, sem qualquer outra justificação, que as deliberações produzam efeitos;
XV. O que, no limite, consubstanciaria a imposição da organização das partes em sociedade, contra a sua própria vontade, o que manifestamente não pode ser;
XVI. Do exposto resulta que o valor entregue pelo Recorrente para efeitos de realização do capital social por si subscrito foi entregue com vista de um efeito que não se chegou a verificar;
XVII. A sociedade Ré enriqueceu à custa do Recorrente, sem qualquer causa justificativa;
XIX. O enriquecimento da Ré foi obtido à custa do empobrecimento do Recorrente, que se viu despojado da quantia de € 45.000,00; sendo o enriquecimento da Ré directamente proporcional ao empobrecimento do Recorrente;
XX. Encontram-se, assim, reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a obrigação de restituição com base no enriquecimento sem causa, devendo, por isso, a Ré ser condenada a restituir ao Recorrente aquilo com que injustamente se locupletou, isto é, o valor de € 45.000,00 entregue pelo Recorrente com vista à realização de um efeito que não se chegou a realizar.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente procedente...”

Cumpre decidir.
***
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
1. O Fundo de Capital de Risco (…), anteriormente denominado Fundo de Capital de Risco para Investidores Qualificados PME (…), foi criado em 04/05/2007 e encontra-se registado na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários sob o n.º (…);
2. A "(…) – Sociedade de Capital de Risco, S.A", é a sociedade gestora do FCR (…);
3. A ré é uma pessoa colectiva de direito comercial;
4. No dia 04/06/2008 realizou-se uma assembleia geral da ré cuja ordem de trabalhos consistia na deliberação sobre o balanço da sociedade à data de 31/01/2008, para efeitos de transformação da sociedade em sociedade anónima, aprovação do aumento de capital de € 5.000 para € 100.000 após aprovação do balanço, discussão e aprovação do projecto de transformação da sociedade em sociedade anónima, discussão e aprovação do novo contrato social, aprovação da transformação da sociedade em sociedade anónima, renúncia dos então órgãos sociais e eleição dos membros dos órgãos sociais para o triénio de 2008/2010;
5. No âmbito do ponto 2 da ordem de trabalhos foi deliberado aprovar o aumento de capital da sociedade do montante de 5.000 € (cinco mil euros) para o montante de 100.000 € (cem mil euros) mediante o reforço de € 95.000 (noventa e cinco mil euros) por reforço da participação do actual sócio e entrada de quatro novos sócios pela forma proposta no projecto de transformação;
6. No âmbito do ponto 7 da ordem de trabalhos foi deliberado nomear (…) administrador único da ré para o triénio 2008/2010;
7. O aumento de capital foi realizado mediante, além do mais, uma entrada de € 45.000 (quarenta e cinco mil euros) a realizar pelo autor;
8. O autor realizou integralmente a sua entrada de capital na data da deliberação mediante a entrega dum cheque que a ré depositou em 06/06/2008;
9. Até à presente data, as deliberações tomadas na AG referida no ponto 3 não foram inscritas no registo comercial;
10. Com vista ao registo das deliberações tomadas na AG referida no ponto 3, após correcção da acta da AG, o autor remeteu-a à ré para recolha de assinaturas;
11. Em 27/08/2009 a ré notificou o autor da versão final da acta, já passada para o livro de actas e assinada por três dos subscritores do aumento de capital, bem como dos demais documentos anexos à mesma;
12. Após, uma vez que o registo da deliberação não se encontrava feito, o autor decidiu promove-o directamente, disso dando conhecimento à ré;
13. O autor não conseguiu, então, registar as deliberações porque a acta não se encontrava assinada por todos os participantes na AG, o balanço apresentado, embora datado de 30/04/2008, reportava-se 31/01/2008 e o relatório apresentado pelo ROC reportava-se a 28/04/2008;
14. Com vista a promover o registo, realizou-se nova AG com vista a rectificar a ata da AG realizada a 04/06/2008;
15. Após a nova AG, o administrador único da ré não promoveu a correcção do balanço e do relatório do ROC;
16. Após a nova AG, o autor enviou, em 02/11/2010, cartas registadas com aviso de recepção dirigidas ao administrador único da ré e a cada um dos demais sócios subscritores do aumento de capital, (…), (…) e (…);
17. As cartas referidas no ponto anterior foram todas recebidas, à excepção da remetida a (…);
18. Em 14/02/2011, o administrador único da ré remeteu ao autor o doc. a fls. 93, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
19. Desde 14/02/2011 que o autor não consegue contactar o administrador único da ré.
***
III. Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

A questão a decidir resume-se, pois, a saber se estamos perante uma situação enquadrável no instituto do enriquecimento sem causa.

Nos termos do disposto no art.º 473º, n.º 1, do Cód. Civ., “aquele que, sem causa justificativa, enriquece à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo que injustamente se locupletou”.
Não havendo “lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, …” (art.º 474º do Cód. Civ.).
Perante este quadro, resulta à evidência que só se pode deitar mão do instituto do enriquecimento sem causa, enquanto fonte da obrigação de restituir, quando não houver outro fundamento que suporte esse direito à restituição.

No caso em apreço, em face da matéria dada como provada, estamos perante um processo de transformação de uma sociedade unipessoal em sociedade anónima, em conformidade com o disposto no art.º 130º e sgs. do CSC, com alteração do contrato social, por via do aumento de capital e da entrada de novos sócios.
Sendo obrigatório, nos termos do disposto na alínea r) do n.º 1 do art.º 3º do CRC e do art.º 166º do CSC, o registo da transformação da sociedade e das restantes alterações ao seu pacto social.
A questão que se coloca é a de saber se não tendo sido levadas ao registo comercial, as referidas transformação e alteração do pacto social da Ré não produzem quaisquer efeitos jurídicos.

Em face do disposto nos artigos 1º e 13º do Código do Registo Comercial, pode-se concluir que o fim último do registo é o da protecção de terceiros, por via da publicidade dos actos das sociedades comerciais, quer sejam os seus actos constitutivos, quer se reportem à sua transformação em sociedades de tipo diverso, quer ainda aludam à alteração dos respectivos pactos sociais.
Tendo os factos sujeitos a registo eficácia entre as partes, ainda que não registados, com excepção dos actos constitutivos das sociedades e suas alterações, a que se aplica o Código das Sociedades Comerciais.

Compulsando o Código das Sociedades Comerciais, verificamos que são diversas as disposições do CSC que estabelecem o regime jurídico das sociedades comerciais entre a sua constituição e o seu registo.
Desde logo, na secção sob a epígrafe, Regime da Sociedade Antes do Registo – art.ºs 36º e sgs. – o CSC estabeleceu, e no que interessa ao caso em apreço, o regime jurídico das sociedades antes do seu registo comercial, definindo, nomeadamente, no seu art.º 37º, as regras das relações entre sócios antes do registo do acto constitutivo da sociedade.
Sendo de sublinhar que o regime aplicável nas relações entre sócios, em face deste dispositivo, é o definido pelo respectivo contrato e pelo CSC, a menos que qualquer das atinentes regras pressuponha o registo definitivo do contrato.
Reforçando tal regime, estabelece ainda o art.º 88º do CSC que a eficácia interna do aumento de capital produz efeitos a partir da data da deliberação que a decidiu determinando os efeitos internos desse aumento antes do seu registo, nomeadamente atribuindo eficácia constitutiva a esse aumento de capital e às respectivas participações, nos termos aí definidos.

Perante este quadro que, em nosso entender, se aplica não só ao período compreendido entre o acto constitutivo da sociedade e o registo do mesmo, como também ao período compreendido entre o acto deliberativo da transformação da sociedade primitiva numa nova sociedade, de tipo diverso, e o registo dessa transformação e das respectivas alterações ao pacto social, afigura-se-nos resultar, com evidência, que a falta de registo da transformação da sociedade e das atinentes alterações ao pacto social, não gera, só por si, a invalidade ou ineficácia do contrato relativamente aos respectivos sócios (ver neste sentido, Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 5ª Ed., págs. 212), devendo as relações entre os sócios, em tudo em que não pressuponha o registo do contrato, reger-se pelo pacto social e pelas disposições do CSC.
Devendo-se ainda imputar aos membros da administração nomeados no pacto social, nos termos dos art.ºs 72º e 79º do CSC, a responsabilização para com a sociedade e respectivos sócios, por actos danosos, nomeadamente no período compreendido entre o acto constitutivo da sociedade, ou da sua transformação e o respectivo registo.

Voltando ao caso em apreço, estamos perante a transformação de uma sociedade unipessoal em sociedade anónima, com aumento de capital e alteração do elenco dos sócios, e nomeação de administrador único, que foram aprovadas em Assembleia Geral.
Não se vislumbrado, em face da matéria dada como provada, que haja fundamento para considerar que as deliberações tomadas, tendo em vista a transformação da primitiva sociedade numa nova sociedade, sejam inválidas ou ineficazes.
Cabendo ao administrador único promover a correcção do balanço e do relatório do ROC, a fim de ser efectuado o competente registo da nova sociedade.
No que todos os sócios devem colaborar e diligenciar.
Pelo que cabe ao Autor, dentro do quadro societário, diligenciar no sentido de responsabilizar o administrador único ou os seus sócios, pela omissão dos actos necessários à finalização do processo de transformação da sociedade, através do respectivo registo comercial.
Ou então, entre o mais, querendo reaver o seu capital, promover Assembleia Geral que admita a sua saída de sócio da sociedade transformada, embora ainda não registada, com a devolução do capital correspondente à sua entrada no capital da nova sociedade.

Consequentemente, havendo causa para o enriquecimento da sociedade Ré na medida do valor entregue pelo Autor, resultante da realização da entrada de capital numa sociedade em que, embora ainda imperfeita no seu processo de transformação, por não ter sido ainda registada, o seu acto constitutivo é válido e eficaz entre as partes, a presente acção tem que improceder.

Improcede assim o presente recurso.
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IV. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante.
Registe e notifique.
Évora, 25 de Junho de 2015
Silva Rato
Assunção Raimundo
Abrantes Mendes