Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1573/10.5TBLLE-C.E1
Relator: JOSÉ MANUEL GALO TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: FALTA DE CITAÇÃO
PROCURAÇÃO FORENSE
RATIFICAÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 11/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário:
I- A acção executiva cível está sujeita à disciplina da Portaria nº280/2013, de 26 de Agosto, e o acesso à tramitação electrónica implica a junção de uma procuração e, nessa medida, esta é também pressuposto de qualquer intervenção.
II- A forma de compatibilizar o direito constitucional de acesso ao direito no caso das acções tramitadas electronicamente é fazer uma interpretação actualista quanto aos efeitos relacionados com a apresentação de uma procuração forense, de modo a evitar que a simples junção de instrumento de mandato forense não implique directa e necessariamente a preclusão de possibilidade de invocação da nulidade por falta de citação.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
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I – RELATÓRIO:
Na presente acção executiva, o executado AA não se conformou com o douto despacho que indeferiu o pedido de declaração de nulidade do acto de citação.
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Inconformado com tal decisão, o recorrente apresentou recurso de apelação e formulou as seguintes conclusões:
a) Nos termos do artigo 851º do CPC, se o executado não tiver sido citado, como foi o caso, pode o mesmo invocar, a todo o tempo, aquela nulidade.
b) Que, no actual regime processual para que o advogado tenha acesso a autos pendentes de execução “virtual”, é necessário que, previamente junte aos autos a procuração forense em face do disposto no artigo 27º da Portaria 280/2013 que impõe o registo prévio dos advogados.
c) O que significa que, aquando da junção da procuração forense aos autos, não é nem era legalmente possível conhecer o seu conteúdo ou, sequer os actos praticados, não podendo, obviamente, invocar-se um vício desconhecido.
d) Consequentemente, nem o executado nem o seu mandatário poderiam conhecer a total falta de citação para o termos da acção.
e) Ora, tal como consta do requerimento apresentado em 17/02/2014, só na data ali mencionada é que o mandatário do executado, em face da notificação recebida do agente de execução, teve conhecimento da falta de citação efectuada quer da nulidade pela inobservância das formalidades legais, em face do disposto na norma processual citada em 8.º e no artº 198º do CPC então vigente.
f) Não bastando, no caso esgrimir com a letra do artigo 196.º do CPC, que vem já desde o ano de 1939 sem ter sido adaptada à nova realidade jurídica sem o interpretar de acordo com as regras da hermenêutica jurídica – o que não fez,
g) sendo certo que no artigo 9º do CC, não se prevê a interpretação livre do direito que se fez na decisão recorrida.
h) Para o advogado ter acesso aos autos, tem previamente de apresentar requerimento nos autos, tal como consta, designadamente do artigo 27º da Portaria 280/2013 de 26 de Agosto, cujo nº2 que dispõe:
“O acesso ao sistema informático de suporte à actividade dos Tribunal para efeitos de consulta de processos, requer o prévio registo dos advogados”.
Trata-se de um facto notório, que a Mª. Juiz não pode ignorar.
i) Ora, em anotação ao artigo 205º do CPC de José Lebre de Freitas, sobre o tema ali refere: “No primeiro caso, embora lhe esteja subjacente a ideia de que, á data da intervenção, a parte pode ter tomado conhecimento da nulidade, a lei não atende a qualquer circunstância da qual possa resultar que esse conhecimento não deverá ter tido lugar; parte antes do princípio de que uma intervenção cuidadosa da parte implicará sempre o exame do processo e a verificação de que alguma nulidade foi cometida.
No segundo caso, ao invés, em alteração do regime do CPC de 1939 (Alberto dos Reis, idem cit., II, págs. 503-504, e Eurico Lopes Cardoso, CPC anotado cit., págs. 165-166), há que atender às circunstâncias concretas, máxime à existência duma relação de precedência entre os dois actos, para ajuizar se é razoável presumir que o conhecimento teve lugar ou se o levaria uma actuação normalmente diligente.
3. O nº2 tem aplicação, quer aos casos de nulidade de que o Tribunal conhece oficiosamente, quer àqueles em que é exigida a reclamação dos interessados: em ambos, independentemente de reclamação, o juiz tem o dever de tomar as providências necessárias para que a irregularidade seja suprida, quando dela se aperceba”.
j) O nº1 do artº 205º, ali se refere que a arguição da nulidade, aplicada ao caso em concreto, conta-se:
“…do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte foi notificada para qualquer termo, dele, mas neste ultimo caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”
k) Tal como se demonstra, só na data da notificação referida é que o executado teve conhecimento da falta de citação e da sua nulidade nos termos dos preceitos legais acima mencionados, sendo tempestiva a sua invocação.
l) Estamos, no caso, perante as regras do artigo 923º, e actualmente 851º do CPC em que por tal vício o executado que não tenha sido citado pode invocar a todo o tempo, posto que se trata de um ato pessoal para o qual o mandatário com poderes forenses não poderia sequer representar o executado, nem poderia
m) legalmente antes da junção da procuração ter acesso aos autos para verificar a falta e nulidade de citação.
n) Trata-se de uma nulidade essencial, que lhe causa manifesto prejuízo, porque tal nulidade afecta os seus direitos de defesa que ilegalmente, seriam cerceados por tal vício insanável no caso em concreto e que lhe cercearia o direito a um processo justo, no qual possa apresentar a sua defesa, tal como consta do acórdão do tribunal Constitucional adiante transcrito, impedindo o executado de fazer valer os seus direitos designadamente de tutela jurisdicional efectiva; do princípio constitucional da igualdade de armas, do contraditório e bem assim do princípio legal contemplado no artigo 10º da DUDH, totalmente desconsiderados na decisão recorrida.
o) A conclusão a extrair de tais factos é a de que não é possível a aplicação literal do artigo 196º do CPC (actual artº 189º) que vem, desde o ano de 1939 sem ter sido adaptada à nova realidade jurídica da existência dos processos virtuais sem o interpretar de acordo com as regras da hermenêutica jurídica – o que a Mmª juiz não fez, sendo certo que no artigo 9.º do CC, não prevê a interpretação livre do direito seguido na R, decisão.
2.ª Tal como se decidiu no Ac. do TRP de 18/12/2013, há falta de citação nas situações descritas nas diversas alíneas do nº1 do artigo 195º do CPC (actualmente artº 189º), designadamente “quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por falto que não lhe seja imputável (artº 195º, nº1, alínea e) do CPC), como é o caso em que nunca teve residência em tal morada e que a junção da procuração forense aos autos não lhe permitia a consulta prévia dos mesmos.
3.ª Ora, tal como se decidiu no Ac. do STJ de 06-05-2012, 7.ª Secção – P.º 409/10.1TCFUN.L1.S1 em que foi Relator o Juiz Conselheiro Lopes do Rego, ali se considerou que a relevância do ato de citação, está em conexão com a garantia fundamental de acesso aos tribunais.
“A possibilidade de invocação incidental dos vícios de falta ou nulidade da citação no âmbito da própria acção executiva nos termos do artº 921º, nº3 do CPC, não implica que o executado revel fique dispensado do ónus – que lhe é imposto pelos artº 196º e 198º, nº2, parte final do CPC, de invocar tal vício nos casos em que a natureza do ato praticado (levantamento das sobras da venda judicial).
A intervenção tardia do executado pressupõe necessariamente que ele não podia, razoavelmente ter deixado de se aperceber da nulidade principal cometida em seu prejuízo”.
4.ª Tal como se decidiu no Ac. do STJ proferido no processo 32896/04.1YYLSB-A.L1.S1 em que foi Relatora a Juíza Conselheira Ana Paula Boularot, no caso dos autos, tratava-se de aplicar ao Ministério Público a norma do artigo 196º do CPC e no qual se considerou que mesmo que o “MP” ao longo do processo em que teve intervenção em representação do ausente, nunca tenha suscitado tal questão, não era de aplicar tal cominação e daí que aquela nulidade pese embora tal intervenção, não foi considerada sanada.
5.ª Também no Ac. do TRL de 26/09/2013 (P.º 1444/12.0TYLSB.L1-6), ali se considerou que, no caso de notificação pessoal, à qual se aplicam as disposições relativas à realização da citação pessoal, de harmonia com o disposto no artigo 256º do CPC, tal omissão é geradora de nulidade mesmo em face da norma do artº 196º do CPC.
Também no Ac. do TRP – P.º 0835621, de 12/17/2008, sobre o tema em análise ali se decidiu: “A intervenção deve mostrar que o interessado teve, do processo, aquele conhecimento que a citação lhe deveria dar, e revela que a falta o não impediu de vir a juízo pugnar pelo seu direito.
A intervenção relevante deve, como acima se referiu, preencher as finalidades da citação; pressupõe, portanto, o conhecimento do processo que esta propiciaria. Só assim seria legítimo presumir que o réu prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação.
A entender-se assim, como se entendeu na sentença recorrida, a situação poderia constituir para a ré (estando esta de boa fé) uma verdadeira armadilha, impondo-se-lhe uma conduta com um significado que ela não dominava necessariamente, o que seria pouco consentâneo com um processo equitativo, de exigência constitucional (artº 20º, nº4, da CRP).
A nosso ver, a "intervenção no processo" pressupõe, portanto, o conhecimento ou a possibilidade de conhecimento da pendência do processo, como decorreria da citação; se, com esse conhecimento, o réu intervém sem arguir a falta de citação é porque não está interessado em prevalecer-se dessa omissão, devendo a mesma considerar sanada.
Não é essa, como parece evidente, a situação com que deparamos nos autos.
Também sobre o tema em análise se decidiu no TC – Ac. 678/98 em que foi Relator o Conselheiro Bravo Serra, no qual se decidiu:
“A celeridade processual, conquanto sendo um valor que deve presidir à administração da justiça, não poderá, claramente, ser erigida a um tal ponto que, em seu nome, vá sacrificar aqueloutros valores que, afinal, são componentes de direitos fundamentais tais como os do acesso aos tribunais em condições de igualdade e de uma efectividade de defesa.
6.ª Conforme consta do acórdão do TC acima referido, ali se considerou quanto à norma em causa, em caso análogo:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 2º e 20º da Lei Fundamental, a norma constante do artº 196º do Código de Processo Civil quando interpretada no sentido de se considerar…sanada a falta de citação do réu que contestou e interveio no processo e ao qual foi entregue duplicado da petição inicial desconforme com o original constante dos autos;
7ª. (…)
8.ª No entendimento do Apelante, o R. despacho, violou as seguintes normas:
a) Do Código Civil (Artigos 8º, nº3, 9º, ao não interpretar a lei de acordo com as regras da hermenêutica jurídica, limitando-se a Mmª Juiz a ter em conta o elemento literal do preceito do artigo 196º (actual 189º) do CPC, sem o interpretar, como teria de fazer, tendo em vista que no ordenamento jurídico nacional, não vigora o princípio do direito livre mas vinculado a uma interpretação de acordo com as regras da hermenêutica jurídica).
b) Do Código Processo Civil (Artigo 152º ao não ter aplicado a lei como devia, a R. decisão torna-se injusta e ilegal. Artigo188º do CPC na medida em que na sua interpretação, a Mmª Juiz teria de socorrer-se das regras de interpretação do direito ante os factos que o processo evidenciam e concluir que, actualmente, em face das novas regras que impõe, determinados procedimentos no acesso aos autos, não era possível aplicar cegamente o conteúdo do artigo 189.º do CPC, sem ter em conta a nova factualidade subjacente que decorre das novas regras que o próprio legislador consagrou no aceso aos processos por parte dos mandatários, em que tal como se demonstra, não é possível conhecer previamente o seu conteúdo, sem previamente juntar o instrumento de procuração para puder ter acesso ao processo virtual.
c) Da Constituição (Clara violação do princípio constitucional do direito de acesso e à tutela jurisdicional efectiva a que se refere o artigo 2º e 20º; do principio do contraditório, do direito à defesa, bem como em cara violação do Ac. do TC acima citado e cujo sumário consta:
“Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 2º e 20º da Lei Fundamental, a norma constante do artº 196º do Código de Processo Civil quando interpretada no sentido de se considerar sanada a falta de citação do réu que contestou e interveio no processo e ao qual foi entregue duplicado da petição inicial desconforme com o original constante dos autos;
b) Em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando-se que o aresto impugnado seja reformulado em consonância com o juízo de inconstitucionalidade constante da precedente alínea.”
Em face do exposto, Requer a V. Exas:
1. Que, ante as conclusões apresentadas se julgue procedente o recurso com as legais consequências;
2. Que, se revogue a R. decisão proferida, com o reconhecimento da nulidade da citação do executado, à luz do disposto no artigo 851º do CPC, seguindo-se a sua tramitação subsequente.
3. Que se declare inconstitucional a norma do artigo 189º do CPC, quando interpretada no sentido da decisão recorrida, por violação dos princípios normativos constante do artigo 2º e 20º da CRP tal como se decidiu no Ac. do TC acima mencionado.
Assim decidindo se fará: Justiça».
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A parte contrária não contra-alegou.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº4 e 639º, nº1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº2, ex vi do artigo 663º, nº2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Apesar da extensão das alegações de recurso[1] [sendo totalmente destituída de utilidade a apresentação do texto quase integral de decisões de tribunais superiores e isso só não levou à emissão de convite para reformar as conclusões por razões de celeridade processual], o thema decidendum está circunscrito à apreciação da alegada errada interpretação do Tribunal recorrido quanto aos efeitos da apresentação de uma procuração no âmbito de uma execução que corre termos da Portaria nº44/2013, de 25 de Outubro.
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III – DOS FACTOS APURADOS:
Do teor dos articulados e dos elementos constantes dos autos resultou provada a seguinte factualidade:
1) Em 29/10/2011, o agente de execução elaborou uma nota de citação do executado AA.
2) Em 18/11/2013, o executado AA fez juntar aos autos uma procuração do seu advogado.
3) Em 17/02/2014, o executado veio deduzir o incidente de falta de citação do executado.
4) Por decisão datada de 27/06/2014, o 2º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial proferiu decisão que concluiu pela não verificação da falta de citação do executado AA.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO:
A citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender (primeira parte do nº1 do artigo 219º do Novo Código de Processo Civil). Com a citação, que completa o esquema da relação processual iniciado, num primeiro lance, com a proposição da acção, o réu fica constituído no ónus de contestar[2] [3].
A citação é o acto processual mais relevante tendente a assegurar a realização dos princípios do contraditório e da transparência e que, assim, em termos abstractos, permite que sejam impulsionadas e perfectibilizadas as garantias de defesa.
As partes devem poder exercer em condições de igualdade o direito de acesso aos Tribunais. Para tanto, é imprescindível que se verifique, em termos reais, o cumprimento integral do princípio do contraditório, o qual tem consagração constitucional nos artigos 2º e 20º, nº1, da Constituição da República Portuguesa e está reflectido na lei ordinária nos artigos 3º e 4º do Novo Código de Processo Civil, entre outros.
Só assim, na verdade, se pode perspectivar que o princípio do contraditório foi observado e que ao réu foi, na prática, dada a possibilidade de uma actuação na lide em condições idênticas à do autor, princípio e possibilidade essas que que defluem dos aludidos normativos constitucionais.
Na realidade, ao sistema processual civil repugnam as decisões proferidas à revelia dos interessados, pela fácil constatação de que, em tais circunstâncias, os riscos de injustiça material são muito superiores aos que se conseguem através de processos com contraditório efectivo.
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A lei adjectiva distingue a falta de citação da nulidade da citação. Haverá falta de citação quando: (a) o acto tenha sido completamente omitido; (b) tenha havido erro de identidade do citado; (c) se tenha empregado indevidamente a citação edital; (d) se mostre que foi efectuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade; (e) se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável, conforme decorre da letra do disposto no artigo 188º, nº1, do Código de Processo Civil.
Haverá nulidade da citação quando, na sua realização, não hajam sido observadas as formalidades prescritas na lei, como resulta do disposto no nº1 do artigo 191º do mesmo diploma.
Se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade, face ao consignado no artigo 189º do Código de Processo Civil.
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Após ter feito o elenco das disposições legais aplicáveis ao caso concreto, a decisão recorrida afirma que «no presente caso, a primeira intervenção do executado ocorre com a junção de procuração a Advogado, sem que, por essa ocasião, viesse a alegar a falta de citação.
Assim, e como o executado interveio no processo, através da junção de procuração a constituir mandatário, sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade que, eventualmente, pudesse verificar-se».
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Enquanto o réu ou o Ministério Público se mantiver em situação de revelia, ou melhor, enquanto se conservar alheio ao processo está sempre a tempo de arguir a falta da sua citação[4].
Lebre de Freitas[5] também assinala que ao intervir no processo o réu (ou o Ministério Público) tem, ou pode logo ter, pleno conhecimento do processado, pelo que optando pela não arguição da falta, não pode deixar de se presumir iuris et de jure que dela não quer, porque não precisa, prevalecer-se.
No plano jurisprudencial as decisões apontam para que o conhecimento ou a possibilidade de conhecimento da pendência do processo, como decorreria da citação; se, com esse conhecimento, o réu intervém sem arguir a falta de citação é porque não está interessado em prevalecer-se dessa omissão, devendo a mesma considerar-se sanada[6]. Ou seja, a nulidade decorrente da falta de citação deve ser arguida no próprio acto que constitua a sua primeira intervenção no processo, sob pena de sanação nos termos do artigo 196º [actual artigo 189º] do Código de Processo Civil. Necessário para que a intervenção no processo seja relevante para efeitos de sanação da falta de citação, nos termos do disposto no artigo 196º [artigo 189º] do Código de Processo Civil, é que a mesma pressuponha o conhecimento ou a possibilidade de conhecimento da pendência do processo, como decorreria da citação[7].
Em sede de acção declarativa ou executiva com tramitação em papel é assim de concluir que a junção da procuração a advogado constitui uma intervenção (acto judicial) relevante que faz pressupor o conhecimento do processo que a mesma permite, de modo a presumir-se que o réu prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação[8].
A questão que se coloca é a de saber se no caso concreto, o acesso aos autos pressuponha o conhecimento do estado do processo?
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A presente acção executiva cível está sujeita à disciplina da Portaria nº280/2013, de 26 de Agosto e esse diploma regula os aspectos da tramitação electrónica dos processos judiciais nos tribunais de primeira instância.
Prescreve o artigo 27º que o acesso ao sistema informático de suporte à actividade dos tribunais para efeitos de consulta de processos requer o prévio registo dos advogados e solicitadores, nos termos do nº2 do artigo 5º.
O acesso ao sistema informático referido no número anterior por advogados, advogados estagiários e solicitadores requer o seu registo junto da entidade responsável pela gestão dos acessos ao sistema informático (artigo 5º, nº2, da aludida Portaria).
Como o processo físico não existe, o acesso à tramitação electrónica implica a junção de uma procuração e, nessa medida, esta é também pressuposto de qualquer intervenção.
Desta forma, a única forma de compatibilizar o direito constitucional de acesso ao direito no caso das acções tramitadas electronicamente é fazer uma interpretação actualista quanto aos efeitos relacionados com a apresentação de uma procuração forense, de modo a evitar que a simples junção de instrumento de mandato forense não implique directa e necessariamente a preclusão de possibilidade de invocação da nulidade por falta de citação.
A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (artigo 9º, nº1, do Código Civil).
O enunciado textual da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso», como decorre do nº2 do preceito sub judice.
Por último, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº3 do artigo 9º do Código Civil).
Sobre a problemática da interpretação actualista, podem consultar-se Manuel de Andrade[9], Pires de Lima e Antunes Varela[10], Baptista Machado[11], Oliveira Ascensão[12], Castro Mendes[13], Menezes Cordeiro[14], Fernando Bronze[15], Castanheira Neves[16], Herbert Hart[17], Karl Engish[18] e Karl Larenz[19], entre outros.
Neste enquadramento, ao mesmo tempo que manda atender às circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada, o referido artigo 9º não deixa expressamente de considerar relevantes as condições específicas do tempo em que a norma é aplicada, segmento que assume uma evidente conotação actualista[20].
Como realça Baptista Machado[21] não tem que nos surpreender essa posição actualista do legislador se nos lembrarmos que uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na “unidade do sistema jurídico”.
Pinto Monteiro propugna que «particularmente importante, como forma de renovação interna do sistema jurídico (dentro da perspectiva tradicional e corrente) (…) é transpor para a realidade presente o juízo de valor que presidiu à elaboração da norma, adaptando o seu significado à evolução – social e jurídica – entretanto operada, por forma a extrair da norma um novo sentido e ajustá-la assim à evolução histórica ocorrida. O que poderá eventualmente implicar uma mudança de sentido que lhe era originalmente atribuído, em face da realidade histórica vigente ao tempo da sua entrada em vigor» [22].
Porém, é de atender que «só será legítimo estender o campo da aplicação da norma, se dela resultar um desfecho que se compagine com o sistema jurídico enquanto unidade e o resultado interpretativo não afrontar o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas valores caros ao Direito»[23].
Em parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República[24] pode ler-se que «para a determinação do sentido prevalecente das normas, deve levar-se em consideração a letra da lei – simultaneamente ponto de partida e limite da interpretação –, e a componente lógica da interpretação, que engloba os elementos racional ou teleológico, sistemático e histórico.
A teleologia da norma reclama a análise das situações reguladas, do interesse que se pretendeu proteger e do âmbito de tal protecção. Qualquer norma jurídica faz parte de um sistema global que se pretende coerente, não podendo deixar de ser interpretada no âmbito do complexo normativo em que se insere.
As circunstâncias políticas, culturais e sociais em que as normas foram elaboradas, eventualmente constantes de trabalhos preparatórios ou preâmbulos dos diplomas legislativos, podem facilitar a sua compreensão».
No caso, nem a historicidade do diploma, nem a sua exposição de motivos servem de elementos coadjuvantes interpretativos. Porém, à luz do pensamento legislativo, da teologia normativa e da própria legística impõe-se uma solução compatível com o sistema jurídico enquanto unidade e que, em concreto, é a única forma de salvaguardar o livre e efectivo acesso ao direito.
Na realidade e neste horizonte interpretativo, não pode prevalecer uma prática jurisprudencial que, ao considerar que a simples apresentação de uma procuração constitui uma intervenção relevante e decisiva no sentido de implicar uma conformação com a falta de citação, acaba, ao cabo e ao resto, por consolidar uma aparência de uma veracidade virtual, limita a garantia de acesso aos Tribunais e atinge reflexamente os eventuais direitos no uso de meios de defesa legalmente salvaguardados.
Como afirma Castro Mendes, a interpretação deve ser actualista, pois a lei tem valor como instrumento social e não como peça de tradição[25]. Trata-se assim de transpor para o condicionalismo actual aquele juízo de valor (identificado do ponto de vista que presidiu à feitura da lei) e de ajustar o próprio significado da norma à evolução entretanto sofrida (pela introdução de novas normas ou decisões valorativas) pelo ordenamento em cuja vida ela se integra[26].
Tendo presente a realidade social, económica e a própria evolução tecnológica, inclusivamente na dimensão do acesso ao direito através do recurso a ferramentas informáticas, de acordo com os cânones de uma boa interpretação, estando a hermenêutica actualista legitimada pelo Código Civil e pela Teoria do Direito, o julgador tem de tomar em consideração as circunstância de tempo e de modo em que a lei deve ser aplicada e, como corolário lógico, no domínio da Tramitação Electrónica dos Processos Judiciais preconizada pela Portaria nº280/2013, de 26/08, não é legítima a conclusão que a simples apresentação de uma procuração, que é condição de acesso ao sistema electrónico e constitui pressuposto de qualquer actuação processual futura, implica a sanação de eventual falta de citação de uma das partes e preclude a hipótese de suscitar a competente nulidade.
O apelante pretendia que se reconhecesse a existência da nulidade de citação, mas não é essa a finalidade do recurso e em concreto este Tribunal não dispõe de meios para essa averiguação. O objecto do recurso era saber se a simples apresentação de uma procuração forense no âmbito de execução virtual sanava uma hipótese de falta de citação.
Deste modo, decide-se revogar a decisão recorrida em ordem a averiguar se efectivamente ocorreu o acto de citação que o apelante diz ter sido preterido ou, eventualmente, se for caso disso, se ocorreu intervenção processual subsequente que tenha suprido a nulidade da citação, algo que já extravasa o domínio do presente recurso.
Fica assim prejudicada a apreciação da constitucionalidade, sendo que a questão estava relacionada com a interpretação dada à norma pelos Tribunais e não com a compatibilidade de conteúdo entre a regra em apreciação e a Lei Fundamental.
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V – DECISÃO:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que se adeqúe ao supra mencionado.
Sem custas (artigo 527º do Código de Processo Civil).
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 03/11/2011

José Manuel Galo Tomé de Carvalho

Mário Branco Coelho

Isabel Maria Peixoto Imaginário



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[1] O recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida), in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2013, in www.dgsi.pt.
[2] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio da Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 274.
[3] Aqui com as necessárias adaptações à circunstância de se tratar de um processo de natureza executiva.
[4] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 1948, pág. 313.
[5] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra 2001, em anotação em artigo em discussão.
[6] Acórdão do Tribunal da Relação do porto de 17/12/2008, in www.dgsi.pt.
[7] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05/04/2011, in www.dgsi.pt.
[8] Neste sentido ver o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/11/2013, in www.dgsi.pt.
[9] Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 4ª edição, Coimbra, 1987.
[10] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 1987, págs. 58-59.
[11] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12ª reimpressão, Almedina, Coimbra 2002, págs. 190-191.
[12] O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11ª edição, Almedina, Coimbra 2003, págs. 388-389
[13] Introdução ao Estudo do Direito, Dislivro, Lisboa 1994, pág. 220-221.
[14] Tratado de Direito Civil, Vol. I, 4ª edição, Almedina, Coimbra 2012, págs. 671 e seguintes.
[15] Lições de Introdução ao Direito, Coimbra Editora, Coimbra 2006.
[16] Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais, BFDUC, Coimbra Editora, Coimbra 1993.
[17] O conceito de Direito, tradução Ribeiro Mendes, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1996.
[18] Introdução ao Pensamento Jurídico, tradução Baptista Machado, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1977.
[19] Metodologia da Ciência do Direito, tradução José Lamego, 6ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1977.
[20] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2007, in www.dgsi.pt.
[21] Obra citada, pág. 191.
[22] Cláusulas limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra 2003, pág. 25.
[23] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/10/2007, in www.dgsi.pt.
[24] Parecer nº70/99.
[25] Introdução ao Estudo do Direito, pág. 221.
[26] Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 191.