Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2819/03-1
Relator: MANUEL NABAIS
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
DEFICIÊNCIAS DA GRAVAÇÃO DA PROVA
IRREGULARIDADE
ANULAÇÃO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 02/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO
Sumário:
    As deficiências da gravação das declarações oralmente produzidas na audiência de julgamento consubstanciam a irregularidade prevista no artº 123º, n.º 2 do CPP, a qual afecta a validade do acto, podendo apenas ser sanada com a realização de novo julgamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I- No 2º Juízo Criminal da Comarca de …, realizado o julgamento, no âmbito do processo comum n.º 345/00… (tribunal singular), foi proferida sentença que:
    1.a) Condenou o arguido A como autor de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo Artigo 137º, n.º 1, do Código Penal, na pena de doze meses de prisão e como autor de um crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, com referencia ao artº 69º, ambos do Código Penal, na pena de três meses de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de um ano;
    1.b) Juridicamente unificadas as penas parcelares de prisão, nos termos do artº 77º do CP, foi o arguido condenado na pena única de treze meses de prisão.
    2.a) Absolveu a Companhia de Seguros Allianz, S.A, do pedido de indemnização contra ela deduzido pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social;
    2.b) Na parcial procedência do respectivo pedido de indemnização civil deduzido pelas assistentes/demandantes B, C, e D condenou a Companhia de Seguros Allianz, S.A., a pagar:
    2.c) A cada uma das demandantes B, C e D a quantia de 3.990 euros;
    2.d) Às demandantes B, C e D a quantia global de 34.916 euros.
Inconformado, interpôs recurso o arguido, sintetizando o seu inconformismo nas seguintes conclusões:
    1. Da prova produzida em audiência de julgamento não resultou provado que o arguido, após guinar para a sua direita passou a rodar com o veículo na berma do lado direito, atento o seu sentido de marcha.
    2. Não resultou provado que o peão E caminhava pela berma do lado direito da estrada, atento o sentido de marcha do veículo do arguido.
    3. Não ficou apurado que o arguido foi embater frontalmente no peão.
    4. Não foi possível apurar que o embate ocorreu no espaço que vai entre o início da berma do lado direito da estrada, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido e 1,20 metros de tal berma.
    5. A ter-se pronunciado sobre os factos referidos, deveria o Tribunal “a quo” ter dado como provado que tanto a vítima como o arguido seguiam na faixa de rodagem.
    6. Dúvida subsiste quanto à determinação do nexo de causalidade entre as lesões provocadas pelo acidente e a morte.
    7. O arguido não contribuiu de forma exclusiva para a produção do acidente nem para o resultado morte que lhe sobreveio,
    8. Pelo que não poderia ter-lhe sido imputada culpa exclusiva.
    9. A pena aplicada ao arguido não deveria ter sido a de prisão efectiva.
    10. O arguido não tem antecedentes criminais;
    11. A personalidade do arguido, o seu comportamento anterior e posterior aos factos permitem a formulação de prognóstico favorável de que a censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição,
    12. Pelo que deveria ter sido aplicada a suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artº 50º, n° 1, do C.P.
    13. Podendo ser acompanhada de imposição de deveres, regras de conduta ou do regime de prova previsto no artº 53° do mesmo Código.
    14. A douta sentença recorrida violou, assim, o disposto nos artºs 410°, n° 2, als. a) e c), 50°, n°s 1 e 2, 53°e 70°, todos do Código Penal,
    15. Pelo que deve ser alterada, modificando-se a matéria de facto em crise e substituindo se a pena de prisão pela suspensão da execução da pena de prisão.
Respondeu o Exº Magistrado do MP junto do tribunal a quo, pugnando pela procedência do recurso, salvo no que concerne à pena de prisão aplicada ao arguido.
Nesta instância, o Exº Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto Parecer concluindo no sentido do reenvio do processo para novo julgamento, por ser “manifesto não estar esta Tribunal da Relação em condições de conhecer da questão de facto”, uma vez que, “como dá nota o Ex.º Procurador-Adjunto [...] o lado A da 4ª cassete é imperceptível quanto à identificação das testemunhas e quanto a grande parte do depoimento das mesmas. Quanto à parte audível e perceptível da gravação, as testemunhas em pouco ou nada esclareceram os depoimentos já prestados em audiência.
Nota: 3/4 do lado A e a totalidade do lado B não contêm qualquer registo fonográfico. A totalidade da cassete n.º 5 não contém também qualquer registo audio da audiência.”
Cumprido o disposto no artº 417º, n.º 2 do CPP, não houve resposta.
No exame preliminar a que alude o cit. artº 417º entendeu-se que as apontadas anomalias da gravação magnetofónica das declarações oralmente produzidas na audiência de julgamento configuram a irregularidade processual prevista no artº 123º do CPP, que determina a nulidade do julgamento e respectiva repetição.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. Nas conclusões que extrai da motivação do recurso - e são elas que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum, de harmonia com a jurisprudência pacífica do STJ - além de suscitar questões de direito, insurge-se o recorrente contra a decisão proferida sobre matéria de facto, invocando concomitantemente os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova a que aludem, respectivamente, as als. a) e c) do n.º 2 do artº 410º do CPP.
Impugnando o recorrente a decisão proferida sobre matéria de facto, deveria o tribunal a quo proceder à transcrição da gravação magnetofónica da prova oralmente produzida na audiência de julgamento, conforme acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ, de 16JAN03, publicado no DR, I Série-A, de 30JAN03, sob a designação de Assento n.º 2/2003, exigência esta que não foi cumprida e que se revela impossível de cumprir, face à deficiente gravação de parte da cassete n.º 4 (o lado A é imperceptível quanto à identificação das testemunhas e quanto a grande parte do depoimento das mesmas) e inexistência de qualquer registo fonográfico em ¾ do lado A e na totalidade do lado B da mesma cassete bem como da totalidade da cassete n.º 5), como refere o MP. Tais anomalias impossibilitam igualmente o cumprimento do ónus imposto ao recorrente nos n.ºs 3, als b) e c) e 4 do artº 412º do CPP.
Face às descritas deficiências da gravação magnetofónica das declarações oralmente produzidas na audiência de julgamento - a que se procedeu por imposição do dispositivo do n.º 1 do artº 364º do CPP, visto não se ter prescindido de recurso da matéria de facto - este tribunal vê-se colocado na impossibilidade de conhecer de facto, quando, in casu, como se referiu, deveria conhecer de facto e de direito.
Há, pois, que averiguar a consequência jurídico-processual daqueles vícios da gravação.
No núcleo essencial das garantias de defesa do arguido, em processo penal, inscreve-se o duplo grau de jurisdição, tanto em matéria de facto como em matéria de direito, a que o artº 32º, n.º1 da Lei Fundamental confere dignidade constitucional (não exigindo, porém, tal normativo um recurso irrestrito em matéria de facto).
Efectivamente, como se escreve no AC. n.º 219/89do TC, publicado no DR, II Série, de 30JUN89, “no plano garantístico, e no rigor dos princípios, tão importante é reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução que tenha sido encontrada para a questão de facto, como da solução que haja sido dada à questão de direito”.
O novo CPP não ignorou este imperativo Constitucional, erigindo-o como um dos vectores das inovações introduzidas, como flui do proémio daquele diploma cf.III.7, al. c).
Continuando a apostar em objectivos de economia processual, de eficácia e de garantia, reafirma-se claramente aquele imperativo constitucional na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII (publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 27, de 28JAN98), onde pode ler-se que, com as alterações introduzidas ao CPP, “assegura-se um recurso efectivo em matéria de facto” (n.º 16, al. g).
A documentação da prova oralmente produzida é condição de um efectivo recurso em matéria de facto.
A defeituosa gravação magnetofónica das declarações oralmente produzidas na audiência de julgamento impede, como se referiu, que esta Relação conheça de facto, o que constitui uma intolerável compressão do direito de recurso em matéria de facto, concedido pela lei aos arguidos.
Tais anomalias não constituem nulidade, seja insanável seja dependente de arguição, já que não faz parte dos respectivos catálogos constantes dos artºs 119º e 120º do CPP, respectivamente, nem como tais são cominadas noutras disposições legais, sendo certo que em matéria de nulidades vigora o princípio da legalidade (artº 118º, n.º 1 do CPP)
As anomalias em causa consubstanciam a irregularidade prevista no artº 123º, n.º 2 do CPP, a qual afecta a validade do acto, podendo apenas ser sanada com a realização de novo julgamento.

III- Face ao exposto, anula-se o julgamento de que emerge o acórdão recorrido e ordena-se a sua repetição.
Sem custas.

Évora, 10 de Fevereiro de 2004

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Manuel Nabais
Sérgio Poças
Orlando Afonso