Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2410/06-3
Relator: ALMEIDA SIMÕES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA DE CASAL
Data do Acordão: 03/01/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA
Sumário:
I – Antes de impor a alguém que preste contas, o tribunal deve decidir se o mesmo a isso está obrigado.

II – O Processo de prestação de contas tem em vista estabelecer se, quem trata de negócios alheios, ou simultaneamente alheios e próprios, actuou com dedicação e cuidado exigíveis, em face da situação concreta.

III – O cabeça-de-casal tem poderes de administração ordinária da herança e não poderes de disposição, salvo quanto a frutos ou outros bens deterioráveis. Quanto aos não deterioráveis só pode dispor na medida da satisfação de certas despesas e encargos. Assim, o cabeça-de-casal não pode dispor duma carteira de títulos, mas já tem que prestar contas dos dividendos dela resultantes.
Decisão Texto Integral:
PROCESSO Nº 2410/06

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

“A” mulher “B”intentaram, no Tribunal de …, uma acção especial de prestação de contas contra “C”, pedindo que o réu preste contas, no âmbito do exercício das funções de cabeça-de-casal no inventário n° 483/2002, que correu termos no mesmo Tribunal, por óbito de “D”, filha dos autores e mulher do réu, pela administração da herança "no concernente às acções partilhadas, e que aos autores couberam".
O réu contestou no sentido de não estar obrigado à prestação de contas, porquanto não existiam quaisquer acções no acervo hereditário; de qualquer modo, mesmo que existissem, a sua movimentação exigia a participação de todos os interessados.

Produzidas as provas oferecidas, foi proferida sentença a julgar que o réu não está obrigado a prestar contas relativamente à gestão da carteira de títulos, dado que os respectivos actos só podem ser praticados por todos os herdeiros, por implicarem, necessariamente, actos de gestão.

Inconformados, os autores apelaram, tendo alegado e formulado as conclusões que se transcrevem:
1ª. Ficou provado que o réu não prestou contas, nem anualmente, nem nunca, como lhe era imposto pelo artigo 2093° do Código Civil.
2a. Ora, não o tendo feito, tem necessariamente, que ser condená-lo a fazê-lo.
3a. A decisão proferida violou o disposto nos artigos 2093°, 2019° e 2087° do CC e 668° nº 1 alíneas c) e d) do CPC.

O réu contra-alegou a pugnar pela confirmação do decidido.

Os Exmos Desembargadores-adjuntos tiveram visto no processo.

São os seguintes os factos que a 1ª instância teve como assentes:
1. Por morte de “D” correu termos o processo de inventário de que estes autos são apenso.
2. O réu foi nomeado e desempenhou as funções de cabeça-de-casal no âmbito do referido processo de inventário.
3. Os autores são pais de “D”.
4. O réu foi casado com “D” até à data da sua morte.
5. Não existem quaisquer outros herdeiros.
6. Entre os bens que foram partilhados no processo referido em 1. encontram-se títulos mobiliários.
7. O réu não prestou contas da administração dos títulos mobiliários existentes no património de “D”.

Vejamos, então:
A questão que se coloca no presente recurso consiste apenas em determinar se o réu, enquanto cabeça-de-casal do inventário aberto por óbito de sua mulher, está obrigado a prestar contas pela gestão da carteira de títulos que foi da inventariada.
Como se sabe, o processo de prestação de contas - artigos 1014 ° e seguintes do CPC - tem em vista estabelecer se, quem trata de negócios alheios ou de negócios simultaneamente alheios e próprios, o fez adequadamente, ou seja, com a dedicação e cuidado exigíveis, em face da situação concreta.
No entanto, antes de o tribunal impor a alguém a prestação, deve decidir, previamente, se está obrigado a prestar contas artigo 1014°-A nº 3 do CPC.
É nesta fase que nos encontramos, dado que, na decisão recorrida, se entendeu tão-só que o réu não está obrigado a prestar contas, por não caber no âmbito das funções de cabeça-de-casal a gestão da carteira de títulos mobiliários.
Será assim ?
Dispõe o artigo 2079° do Código Civil que a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal, que a deverá exercer com prudência e zelo (art. 2086° al. b )), prestando contas anualmente, caso lhe sejam exigidas (art. 2093° nº 1 CC).
Mas a lei não definiu o conteúdo dessa administração, limitando-se a indicar algumas das atribuições do cabeça-de-casal:
- cobrar as dívidas activas da herança, quando a cobrança possa perigar com a demora ou o pagamento seja feito espontaneamente (art. 2089°);
- pedir aos herdeiros ou a terceiros a entrega dos bens que deva administrar e usar contra eles das acções possessórias (art. 2088°);
- vender os frutos ou outros bens deterioráveis (art. 2090° nº 1);
- vender os frutos não deterioráveis, na medida do necessário para satisfazer as despesas do funeral e sufrágios, bem como os encargos da administração (art. 2090° n° 2).
Fora destes casos, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078° (legitimidade de o herdeiro desacompanhado poder reclamar para a herança a propriedade de um qualquer bem), os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros e contra todos os herdeiros (art. 2091 ° nº 1 ).
Resulta, assim, que o cabeça-de-casal tem poderes de mera adl1rinistração ordinária da herança, não tendo poderes de disposição, salvo quanto a frutos ou outros bens deterioráveis e a frutos não deterioráveis, estes na justa medida da satisfação de certas despesas e encargos.
Assim, em regra, o cabeça-de-casal, sem os demais herdeiros, não pode alienar, permutar ou onerar bens da herança, como também não pode adquirir outros bens.
Por isso, as operações de compra e venda de títulos mobiliários estão vedadas ao cabeça-de-casal, por se traduzirem na prática de actos de disposição que excedem os poderes de mera administração ordinária da herança.
De resto, sendo o cabeça-de-casal nomeado de acordo com a ordem estabelecida no artigo 2080° do Código Civil, sem que se cuide de saber se possui especiais conhecimentos de administração, para além dos que é suposto ter um "bom pai de família", seria destituído de senso que ao cabeça-de-casal fosse exigível participar no mercado de capitais, de grande fluidez e complexidade, como é conhecido de todos.
Deste modo, não está o cabeça-de-casal obrigado a prestar contas no que respeita à gestão da carteira de títulos da inventariada, mas terá de as prestar relativamente ao destino dado aos dividendos e outros rendimentos que os mesmos títulos propiciaram, no período de exercício das suas funções, em face do disposto no já citado artigo 2093° n° 1 do Código Civil.

Ante todo o exposto, julgando parcialmente procedente a apelação, acorda-se em revogar a decisão recorrida, determinando-se que o réu está obrigado a prestar contas, mas apenas quanto às quantias provenientes do rendimento dos títulos relacionados no inventário.
Custas pelos apelantes e pelo apelado, em idêntica proporção.
Évora, 1 de Março de 2007