Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3/11.0TAMTL.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 06/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. A noção de documento, prevenida no artigo 255.º do Código Penal, implica que se traduza em declaração idónea para provar facto juridicamente relevante, devendo esta aptidão ser entendida numa ampla dimensão, enquanto se compadeça com a segurança no tráfico jurídico que se pretende proteger com a incriminação.

2. A circunstância de se ter tratado de uma fotocópia certificada pela arguida não colide com a sua natureza de documento para efeitos penais, dado que teve origem em original fabricado por aquela e com aposição, também por si, de assinatura falsa quanto ao suposto subscritor do mesmo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, do Tribunal Judicial de Mértola, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida MS, imputando-lhe, em concurso efectivo, em autora material e na forma consumada, dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 255.º, alínea a), e 256.º, n.ºs 1, alíneas a), c), e e), e 3, do Código Penal (CP).

Realizado o julgamento e por sentença proferida em 21.12.2011, decidiu-se:

- absolver a arguida da prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), e 3, do CP;

- condená-la pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), e 3, do CP, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão suspensa na execução por igual período.

Inconformada com a decisão, a arguida interpôs recurso, formulando as conclusões:

1. A alínea J) dos Factos Provados não deveria ter sido dada como assente;

2. Isto porque, como consta da própria Sentença recorrida, o negócio em causa não exigia a obtenção de Parecer favorável por parte da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo (documento que foi fabricado pela Arguida);

3. Deve, assim, tal alínea ser eliminada dos factos dados por provados;

4. Em virtude do exposto, deve igualmente eliminar-se a alínea R) dos factos provados, já que a escritura mencionada em M) – que nada mais foi do que a formalização do referido negócio de fraccionamento - podia ser realizada sem o documento em causa (parecer da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo);

5. E eliminadas as alíneas J) e R) dos factos provados, não é possível concluir que a Arguida actuou com dolo específico, ou seja, com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou obter, para si ou para outrem, benefício ilegítimo;

6. Mesmo que se entenda não ser de eliminar as supra-mencionadas alíneas J) e R), sempre se dirá que dos autos, e nomeadamente da acusação, não constam elementos que permitam concluir pela existência de dolo específico;

7. Os factos constantes da acusação são manifestamente insuficientes para permitir a conclusão de que a Arguida, ao agir pelo modo aí descrito, pretendesse obter um benefício ilegítimo;

8. E não cabe ao Julgador “completar” a acusação por forma a poder imputar-se à Arguida o dolo específico exigido para o preenchimento do crime de falsificação;

9. Deve, assim, a Arguida ser absolvida por falta do elemento subjectivo do tipo de ilícito;

10. Igualmente não se encontra preenchido o elemento objectivo do tipo de ilícito;

11. Tal como se retira da alínea M) dos factos provados, o documento “fabricado” pela Arguida foi um “Parecer da Divisão de Propriedade Rústica nº ---/186 – CS2007, com o timbre do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas – Direcção Regional de Agricultura do Alentejo, aparentemente assinada por F, Director de Serviços de Desenvolvimento Rural, documento esse que autorizaria a pretendida divisão do prédio” (cfr al M);

12. Porém, tal certidão não integra o conceito de documento para efeitos do crime de falsificação, por não atestar facto juridicamente relevante, dado que não constitui, modifica ou extingue qualquer relação jurídica;

13. Assim, deverá a Arguida, também por este motivo, ser absolvida da prática do crime de falsificação de documento;

14. Acresce que a pena que foi aplicada à Arguida foi agravada em virtude de o documento falsificado, no entender da Sentença recorrida, ser um documento autêntico;

15. Contudo, deveria constar da Acusação e, consequentemente, dos factos dados como provados, que a emissão de pareceres idênticos ao fabricado pela Arguida se encontra nos limites da competência da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo, ou dentro do círculo de actividades que lhe é atribuída, para se poder concluir que estava em causa um documento autêntico;

16. Nada constando a esse respeito dos Factos Provados, não poderia a Arguida ter sido condenada pela prática do crime previsto no nº 3 do artº 256º do C. Penal;

17. Para além disso, a Sentença recorrida valorou indevidamente a circunstância de a Arguida se encontrar condenada por Acórdão, não transitado em julgado, por factos da mesma natureza na pena de 3 anos de prisão e de se encontrarem pendentes no mesmo Tribunal outros processos crime (igualmente por factos da mesma natureza);

18. Efectivamente, apesar de invocar expressamente o princípio da presunção da inocência, o Tribunal a quo acaba por desrespeitar tal princípio, ao considerar que as necessidades de prevenção especial (sopesadas para efeitos de medida da pena) eram mais intensas em virtude de tal condenação e processos pendentes;

19. Assim sendo, a aplicar-se uma pena à Arguida deve sempre sofrer uma redução que permita “compensar” essa inadmissível valoração efectuada na Sentença recorrida;

20. Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo recorrido violou os artºs 255 e 256 do C. Penal.

Termos em que, com os mais de Direito, deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada a Sentença recorrida, como é de Justiça.

O Ministério Público, apresentou resposta, concluindo:

1. O negócio que a arguida foi mandatada para realizar não podia ser realizado, nos moldes em que o foi, sem um parecer prévio como aquele que a arguida forjou;

2. A factualidade impugnada foi correctamente julgada pelo tribunal a quo;

3. A matéria de facto julgada provada integra todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito do crime em causa.

4. Os factos foram correctamente qualificados, designadamente no que respeita à integração do tipo agravado previsto pelo n.º 3 do artigo 256.º do Código Penal.

5. O tribunal recorrido não valorou contra a arguida, em sede de determinação da pena, processos pendentes ou condenações não transitadas, antes sublinhando diversas vezes que a arguida não tinha antecedentes criminais.

6. Assim, mantendo na íntegra a sentença recorrida farão Vossas Excelências justiça.

O recurso foi admitido.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), a arguida nada acrescentou.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação, de harmonia com o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem embargo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas nos arts. 379.º, n.º 1, e 410º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in DR I-A Série de 28.12.1995.

Delimitando-o, sem prejuízo de que a decisão de qualquer questão possa redundar em ficar prejudicado o conhecimento de outra(s), reside em apreciar:

A) – se a matéria de facto provada em J) e R) foi indevidamente dada como provada;

B) – se a matéria de facto provada não integra objectivamente falsificação incidindo em documento;

C) – se é insuficiente para configurar o dolo específico do crime por que foi condenada;

D) – se é insuficiente para integrar a agravação do n.º 3 do art. 256.º do CP;

E) – se, ao nível da medida da pena, se procedeu a valoração indevida de anterior condenação não transitada em julgado.

Consta da sentença recorrida:

Matéria de facto provada:

«A) A arguida é advogada, titular da cédula profissional nº ---E, emitida pela respectiva Ordem profissional, e tem escritório na rua ..., em Mértola, usando como nome profissional ---.

B) Nessa qualidade, em data que não foi possível apurar concretamente, foi mandatada por JR para reunir a documentação e desenvolver os procedimentos necessários à realização de uma escritura pública.

C) Consistia a escritura pretendida no fraccionamento do prédio misto denominado ---, propriedade de MC, RC, JC, FC, PC, CB, IC, e HC, sito em Alçaria Ruiva, descrito na conservatória do Registo Predial de Mértola, sob o número ---, desanexando uma parte com a área de 75000 metros quadrados, a qual seria vendida ao mencionado JR.

D) A escritura em causa veio a ser celebrada a 10 de Março de 2006, no Cartório do notário LB, em Cascais.

E) Aquando da celebração, foi entregue e arquivada naquele Cartório uma fotocópia, certificada pela própria arguida, e datada de 8 de Fevereiro de 2006, de um documento intitulado “Parecer Divisão Propriedade Rústica nº ---/186-C 2004”, com o timbre do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas – Direcção Regional da Agricultura do Alentejo, e pretensamente assinado por F, Director de Serviços de Desenvolvimento Rural, documento esse que autorizaria a pretendida desanexação.

F) Sucede que a Direcção Regional da Agricultura do Alentejo nunca emitiu tal documento, e F nunca o assinou.

G) Na verdade, em data que não foi possível apurar concretamente, mas não posterior a 10 de Março de 2006, a arguida fabricou o documento em questão, em Mértola, certificando de seguida, na qualidade de advogada, uma cópia do mesmo, a fim de ser entregue para celebração da escritura.

H) Nos mesmos termos já descritos em 2, JR mandatou a arguida para que obtivesse os documentos e empreendesse os procedimentos necessários para a realização de uma segunda escritura pública.

I) Desta feita, pretendia fraccionar o prédio que havia adquirido através da escritura mencionada supra, desanexando do mesmo uma parte com a área de 37500 metros quadrados, e vendê-la a FP.

J) Tal negócio exigia a obtenção de parecer favorável por parte da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo.

L) A respectiva escritura pública veio efectivamente a ser realizada a 31 de Julho de 2007, no Cartório Notarial de Serpa.

M) Aquando da celebração desta segunda escritura, foi entregue e arquivada naquele Cartório uma fotocópia, certificada pela própria arguida, e datada de 30 de Julho de 2007, de um documento intitulado “Parecer de Divisão Rústica nº. ---/186-CS 2007”, com o timbre do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das pescas – direcção Regional de Agricultura do Alentejo, e pretensamente assinado por F, Director de Serviços de Desenvolvimento Rural, documento esse que autorizaria a pretendida divisão do prédio.

N) Mais uma vez, a Direcção Regional do Alentejo nunca emitiu tal documento e F nunca o assinou.

O) De facto, em data que não foi possível apurar concretamente, mas não posterior a 30 de Julho de 2007, a arguida fabricou o documento em questão, em Mértola, certificando de seguida, na qualidade de advogada, uma cópia do mesmo, a fim de ser entregue para celebração de escritura.

P) Em ambos os casos, a arguida produziu os documentos em causa com recurso a meios informáticos, utilizando os timbres dos referidos serviços da administração pública, e assinatura idêntica à de F.

Q) A arguida bem sabia que, ao produzir os documentos em questão, certificando cópias, e entregando as mesmas em Cartório Notarial, fazendo crer que se tratavam de pareceres emitidos por organismo público, punha em causa a fé pública que aquele género de documentos dos serviços oficiais do Estado Português devem merecer.

R) Contudo, actuou de forma descrita, com o propósito logrado de produzir documentos cujo conteúdo sabia falso, utilizando a assinatura de terceiros sem o consentimento e contra a vontade destes, a fim de possibilitar a celebração, ilegitimamente, da escritura mencionada em M) que sabia não poder ser realizada sem o documento em causa.

S) Em tudo agiu livre, voluntária, e conscientemente, ciente de que a sua conduta era proibida por lei.

T) A arguida confessou de forma integral e sem reservas, mostrou arrependimento e manifestou vontade de ressarcir os lesados pela sua conduta.

U) Não tem antecedentes criminais.

V) É casada, tem duas filhas de 7 e 4 anos e o seu agregado familiar aufere rendimentos na ordem dos € 144.000 anuais, sendo os rendimentos do cônjuge superiores ao da arguida, suportando mensalmente o valor de € 1.500 em créditos bancários.».

Factos não provados:
«Não se provou que:

1) Que a realização do negócio jurídico identificado em C) exigia, entre outros requisitos, a obtenção de um parecer favorável, emitido pela Direcção Regional de Agricultura do Alentejo.

2) Que a arguida tenha actuado da forma descrita, com o propósito logrado de produzir documento cujo conteúdo sabia falso, a fim de possibilitar a celebração, ilegitimamente, da escritura mencionada em E) que sabia não poder ser realizada sem o documento em causa».

Motivação da decisão de facto:

«A convicção do Tribunal alicerçou-se nas declarações da arguida que confessou de forma integral e sem reservas os factos que lhe vinham imputados e bem assim que esclareceu as suas condições pessoais, familiares e económicas.

A matéria de facto não provada resultou, deste modo, das declarações da arguida que uma vez que esclareceu que o Senhor Notário do Cartório de Cascais não lhe exigia a apresentação dos documentos que fabricou, uma vez que a divisão do prédio a vender respeitava – nas duas partes – a unidade mínima de cultura, declarações corroboradas pelo regime legal previsto para o fraccionamento de prédios rústicos que apenas impede o fraccionamento em áreas inferiores à Unidade Mínima de Cultura, que para o Distrito de Beja, é de 7,5 hectares (portaria nº. 202/70).

A ausência de antecedentes criminais resulta do Certificado de Registo Criminal de fls. 59.».

Apreciando, conforme ficou definido:

A) –
A recorrente, ainda que não tendo impugnado a decisão proferida em matéria de facto nos termos e para os efeitos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, pretende que seja eliminada a factualidade dada como provada em J) e R), pelo que cumprirá saber se os elementos que constam do processo permitem sustentar a sua posição e/ou se a sentença padece de vício que possa ser enquadrável no art. 410.º, n.º 2, do CPP (cfr. art. 431.º, n.º 1 e alínea a), do CPP).

Por comodidade de leitura e exposição, aqui se transcrevem esses factos:

J) Tal negócio exigia a obtenção de parecer favorável por parte da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo.

R) Contudo, actuou de forma descrita, com o propósito logrado de produzir documentos cujo conteúdo sabia falso, utilizando a assinatura de terceiros sem o consentimento e contra a vontade destes, a fim de possibilitar a celebração, ilegitimamente, da escritura mencionada em M) que sabia não poder ser realizada sem o documento em causa.

Ora, da motivação da decisão de facto, tão-só se colhe que alicerçou-se nas declarações da arguida que confessou de forma integral e sem reservas os factos que lhe vinham imputados e bem assim que esclareceu as suas condições pessoais, familiares e económicas, pelo que, inequivocamente, através do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, se conclui que o tribunal recorrido não deixou de apreciar os factos aportados à acusação e suficientes para atingir solução de direito e não se detecta qualquer incompatibilidade entre os factos em causa e outros provados e não provados ou entre essa motivação e aqueles indicados pelo recorrente, bem como qualquer falha ostensiva na análise da prova decorrente de juízo ilógico ou arbitrário.

Pese embora a existência de vício da decisão se imponha oficiosamente conhecer, inserindo-se no modelo de revista ampliada (ou alargada) adoptado pelo CPP de 1987, com que, segundo Figueiredo Dias, em “Para Uma Reforma Global do Processo Penal Português”, in “Para uma Nova Justiça Penal”, Almedina, 1983, se pretendeu instituir um recurso que (…) se não restringisse à tradicionalmente chamada «questão de direito», mas devesse ser admissível face a contradições insanáveis entre as comprovações constantes da sentença e a prova registada, a erros notórios ocorridos na apreciação da prova ou, em geral, a dúvidas sérias suscitadas contra os factos tidos como provados na sentença recorrida, a sua presença tem de resultar do texto da decisão sem recurso a elementos que à mesma não sejam endógenos ou da conjugação respectiva com as máximas da experiência, isto é, definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico que todo o homem de formação média conhece.

Sem prejuízo, pois, que, da referida motivação, não resulte qualquer vício, transparece da posição da recorrente que, sustentada na fundamentação de direito da sentença, vê nesta contradição, ou erro, ao se ter consignado que:

Ora, tal acto jurídico – o fraccionamento do prédio rústico de 75000 m2 em dois prédios com 37.500 m2 cada um, é um acto anulável por violação da Unidade Mínima de Cultura, nos termos do artigo 1379º do Código Civil, a não ser que a divisão seja autorizada pela entidade competente, que pode atestar que o terreno não é apto para cultura.

E não desconhecemos que os actos anuláveis podem ser praticados: os Senhores Notários não podem recusar praticar um acto anulável, que fica contudo sujeito à sanção prevista na lei, sendo que tal advertência fica a constar do acto praticado;

perante o que ficou vertido no facto provado em J), de que o negócio exigia a obtenção de parecer favorável por parte da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo, bem como, identicamente, quanto à circunstância referida no facto provado em R), de que a recorrente sabia não poder ser realizada (a escritura) sem o documento em causa.

Sem razão, porém.

Na verdade, não se pondo em causa a necessidade desse parecer para o efeito da celebração válida da escritura, relativa ao negócio em apreço e por forma a que este produzisse os seus efeitos normais, nem que a recorrente disso tivesse conhecimento, a mera susceptibilidade de prática de acto anulável não contende com a factualidade sob censura, atentando em que o que importa é efectivamente que a recorrente tenha actuado como tal e para o efeito pretendido e não que, por mera hipótese, a sua acção perdesse relevância porque alicerçada em acto anulável.

Isso mesmo ficou plenamente fundamentado na sentença, ao ter acrescentado que Daqui decorre que o documento fabricado e utilizado pela arguida para instruir a escritura outorgada em 31 de Julho de 2007 permitiu a realização, ilegítima, daquela escritura. Ou seja, sem o documento em causa, até podia suceder que a arguida lograsse realizar o negócio jurídico que a escritura pública titulou: contudo, a arguida, na qualidade de mandatária dos outorgantes, nunca realizaria aquela escritura específica com a aparência de negócio jurídico formalmente válido e sem qualquer vício (in casu, anulável).

Outras considerações são desnecessárias, já que é manifesto que a pretensão da recorrente de eliminação (ou modificação) dos referidos factos provados não pode proceder.

B) -
Sendo o documento, definido nos termos legais no art. 255.º do CP, o objecto da acção do crime por que a recorrente foi condenada, suscita, contudo, que a fotocópia por si certificada não constitui documento, fundamentando que não atesta facto juridicamente relevante, dado que, autonomamente, não constitui, modifica ou extingue qualquer relação jurídica.

A noção de documento implica, na verdade, que se traduza em declaração idónea para provar facto juridicamente relevante, devendo esta aptidão ser entendida numa ampla dimensão, enquanto se compadeça com a segurança no tráfico jurídico que se pretende proteger com a incriminação.

Por isso, a visão redutora da recorrente não é aceitável, já que implicaria que qualquer documento, só porque não operando de forma autónoma para produzir o efeito do negócio jurídico em que se integrava, não funcionaria como meio de prova da declaração nele corporizada.

Aliás, mesmo que o acto, como referido, viesse a ser anulável, daí nunca se poderia inferir que a fotocópia certificada por si, decorrente do prévio fabrico do original, não tivesse servido para a celebração da escritura e para o efeito de provar a necessária existência do parecer favorável que aí se declarava.

Conforme Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Coimbra, 1999, tomo II, pág. 667, Documento é pois a declaração de um pensamento humano que deverá estar corporizada num objecto que possa constituir meio de prova; só assim se compreendendo que o crime de falsificação de documentos proteja o específico bem jurídico que é a segurança e credibilidade do tráfico jurídico-probatório.

Sendo inegável que o facto a provar terá de ser juridicamente relevante, já não o é, certamente, que tenha de o ser isoladamente, para dar origem a relações jurídicas, as extinga ou altere (neste sentido, também Helena Moniz, in “O Crime de Falsificação de Documentos, da Falsificação Intelectual e da Falsidade em Documento”, Almedina, 1993, pág. 167, citando Von Liszt e Ebermayer).

Acresce que a circunstância de se ter tratado de uma fotocópia certificada pela recorrente não colide com a sua natureza de documento para efeitos penais, dado que teve origem em original fabricado pela recorrente e com aposição, também por si, de assinatura falsa quanto ao suposto subscritor do mesmo.

Assim não seria, se se tivesse tratado apenas de apresentação de mera fotocópia de documento que na realidade não correspondesse ao documento real.

Deste modo, a falsificação em apreço versou em documento e, objectivamente, não existe razão para excluir a sua relevância criminal.

C) -
Entende a recorrente que os factos provados são insuficientes para integrar o dolo específico previsto no tipo legal – a sua intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo.

Sustenta a sua posição em que não vê como suficiente o que ficou a constar do facto provado em R), referindo que, além de conclusivo, não traduz o benefício concreto que pretendia retirar da realização da escritura, tendo sido apenas mandatada para tratar dos documentos relativos à mesma e sem que se saiba se o mandato era oneroso ou gratuito.

A questão prende-se, pois, com a exigência que, do ponto de vista subjectivo, o agente actue, não só com conhecimento e vontade de realização do crime, mas também com esse denominado dolo específico, tipicamente decorrente da previsão do art. 256.º, n.º 1, do CP, e definido como uma particular intenção, que não é mais do que a de realização de um determinado fim.

Conforme Helena Moniz, in “O Crime de Falsificação de Documentos” cit., pág, 37, Estamos, assim, perante aquilo que a doutrina designa como crime intencional – basta a intenção em atingir um determinado resultado não sendo necessária a efectiva verificação para que o agente seja punido e, ainda, citando, em nota de rodapé, Cavaleiro Ferreira (Lições de Direito Penal, I), A exigência de um fim ulterior ao fim realizado com o facto ilícito pode encontrar-se claramente formulado na norma incriminadora ou estar nela implícita.

Dúvida não há de que essa exigência está expressa no tipo legal do crime de falsificação de documento e, como vem sendo entendido pela doutrina, tem de estar tipificada quando fôr caso disso, em vista, além do mais, do princípio “nullum crimen sine lege” (v. Maia Gonçalves, “Código Penal Português Anotado e Comentado”, Almedina, 12.ª edição, 1998, págs. 112 e seg.).

O seu preenchimento terá de decorrer do conjunto dos factos provados, seja traduzido na fórmula legal, seja como resultado implícito do mesmo, já que, como é sabido, as fórmulas usadas pelo legislador nas normas incriminatórias são, por regra, conclusivas e, assim, podem conter elementos de facto, mas, mesmo nesses casos, os factos contidos na norma terão de permitir a sua decomposição em outros que inevitavelmente os demonstrem.

Deste modo, para aferir, em concreto, desse dolo (ou finalidade) específico, não basta saber se dos factos provados consta expressa essa intenção de acordo com a fórmula legal, para, em caso negativo, concluir pela sua inexistência, dado que isso redundaria em fazer corresponder um facto ao juízo que se pretende extrair, em si mesmo, conclusivo.

Isso não significa que não possa ser utilizada, em termos fácticos, a fórmula legal, mas simplesmente que, duma maneira ou doutra, haverá que ser inferida do conjunto dos factos provados, sem esquecer as regras da experiência pelas quais, sempre, o julgador se deve pautar.

Tanto mais que, pertencendo o dolo específico ao próprio dolo, ainda que como um mais – reportado aos fins e aos motivos do crime -, reside em aspecto que comporta factores psíquicos, que resulta, em geral, de prova indirecta, assentando, substancialmente, em inferências extraídas de factos materiais, analisados à luz da globalidade da prova produzida e das regras de experiência comum, conforme aos limites definidos pela livre apreciação (arts. 124.º a 127.º do CPP).

Já se vê, pois, que a alegação do carácter conclusivo do facto provado em R) não tem razão de ser.

Identicamente, a concretização do benefício retirado pela recorrente, para si ou para outra pessoa, não constitui elemento do tipo legal, sendo indiferente que o mandato fosse, ou não, oneroso.

Quanto ao fundamentado neste âmbito, da sentença consta que:

No que respeita ao dolo específico, ou seja, à intenção de causar prejuízo ou na obtenção de benefício, provou-se que a arguida actuou da forma descrita, a fim de possibilitar a celebração da escritura mencionada em M) que sabia não poder ser realizada sem o documento em causa.

E mais adiante:

Daqui decorre que o documento fabricado e utilizado pela arguida para instruir a escritura outorgada em 31 de Julho de 2007 permitiu a realização, ilegítima, daquela escritura. Ou seja, sem o documento em causa, até podia suceder que a arguida lograsse realizar o negócio jurídico que a escritura pública titulou: contudo, a arguida, na qualidade de mandatária dos outorgantes, nunca realizaria aquela escritura específica com a aparência de negócio jurídico formalmente válido e sem qualquer vício (in casu, anulável).

Daqui, resulta, no nosso entender, a intenção de benefício ilegítimo que a arguida logrou obter ao forjar o documento que exibiu: a aparência, perante a comunidade jurídica e os seus clientes de um negócio jurídico perfeito.

Afigura-se que logrou correcto entendimento.

Com efeito, resultando o dolo genérico, no caso, da factualidade provada em Q), R) e S), acresce que, no facto provado em Q), consta que (…) punha em causa a fé pública que aquele género de documentos (…) devem merecer e, no facto provado em R), que (…) actuou (…) com o propósito logrado de produzir documentos (…) a fim de possibilitar a celebração, ilegitimamente, da escritura (…), ficando, assim, bem patente a finalidade da sua acção, a qual não deixou de consubstanciar prejuízo para o Estado e benefício para quem outorgou na escritura.

Tanto basta para que, a nosso ver, o dolo específico se mostre inferido do conjunto dos indicados factos, sobre os quais o tribunal “a quo” devidamente ponderou e em sentido consonante com as legais exigências na vertente subjectiva do crime.

D) –
A recorrente questiona a agravação do tipo legal a que se reporta o n.º 3 do referido art. 256.º.
Invoca que, dos factos provados, não decorre, de forma expressa, que o parecer em causa se encontrasse nos limites da competência da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo.

Provou-se em R) que Tal negócio exigia a obtenção de parecer favorável por parte da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo, o que, em termos de normal inteligibilidade do sentido aí contido, só pode ser entendido como sendo da competência dessa entidade pública, aliás, reforçado pelo constante do facto provado em Q) quando refere Pareceres emitidos por organismo público, sendo certo que foi a própria recorrente que fabricou o suposto original, que fotocopiou e certificou e, inevitavelmente, no pressuposto de que essa entidade fosse a competente para o efeito.

Por isso, é no mínimo caricato que venha suscitar agora perspectiva de dúvida quanto àquela em que residiu esse seu pressuposto.

Mas, ainda, independentemente desta circunstância e compreendendo-se que a sua posição assenta, afinal, numa alegada insuficiência factual, esta não é minimamente de aceitar, já que a natureza de documento emitido por autoridade pública decorre implícita nos termos que se deixaram definidos.

E, também, a fundamentação da sentença é, aqui, esclarecedora, não se tendo excedido relativamente ao objecto do julgamento e/ou ao elenco dos factos fixados.

Referiu que:

Nos termos do artigo 363º do Código Civil, são documentos autênticos os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído, pelo notório ou outro oficial público provido de fé pública.

Ora, os Pareceres para efeitos de divisão de prédios rústicos, tal como exigidos pelos Decreto-Lei n.º 103790, de 22 de Março e 344/88, de 25 de Outubro, porque exarados por autoridades públicas no limite das suas competências, representam documentos autênticos. No caso vertente, a arguida fabricou tais documentos, conferindo-lhes autenticidade mediante a declaração que comprova a conformidade do documento original (certificação).

Nesta parte, identicamente, a posição da recorrente não é acolher.

E) –

No que concerne à medida da pena aplicada, a recorrente invoca o desrespeito pelo tribunal “a quo” da presunção da inocência, por ter, segundo alega, valorado condenação não transitada em julgado e pendência de outros processos contra si e, por isso, acabando por tornar as necessidades de prevenção especial mais intensas.

Desde logo, não é verdade que, da sentença, resulte a circunstância desses elementos terem sido valorados com o imputado sentido decisivo da apreciação das exigências referidas.

Decorrendo do facto provado em U) que Não tem antecedentes criminais, da sentença resulta, ao nível da escolha da pena, após acentuar que as necessidades de prevenção geral são elevadas, que No que respeita às necessidades de prevenção especial, pese embora a ausência de antecedentes criminais da arguida e a sua integração social, profissional e familiar, atenta a gravidade do facto praticado e a circunstância do mesmo ter ocorrido no exercício da actividade profissional da arguida, afigura-se que só a pena de prisão será adequada a satisfazer as finalidades da punição, no sentido de dissuadir a prática futura de outros ilícitos.

Por seu turno, quanto à determinação da pena concreta, refere que A favor da arguida milita a ausência de antecedentes criminais, a sua inserção familiar e profissional, mas ainda que sendo certo que não podemos olvidar e sem violação do incontornável principio da presunção de inocência, que a arguida se encontra condenada por Acórdão não transitado em julgado, por factos da mesma natureza na pena de 3 anos de prisão e que se mostram pendentes neste mesmo Tribunal outros processos-crime (igualmente por factos da mesma natureza), o que nos remete para especial ponderação nas necessidades de prevenção especial, sendo as necessidades de prevenção geral intensas, como salientámos.

O segmento em crise, não obstante possa merecer algum reparo, tem de ser devidamente contextualizado na globalidade da fundamentação respectiva, inserindo-se, a nosso ver, atendendo à “reserva” colocada na própria sentença quanto à compatibilização com a presunção da inocência, em apreciação da existência de problemas de âmbito profissional da recorrente, susceptíveis de aferir do seu comportamento e de contender com uma real e adequada inserção, e não mais do que isso.

De qualquer modo, as exigências de prevenção especial são efectivamente importantes, perante a ponderação de todos os elementos dados como apurados, o que, aliás, nem sequer a alegação da recorrente põe em causa.

Emergindo do art. 40.º, n.º 1, do CP, as finalidades da punição - de prevenção geral positiva e de integração e de prevenção especial de socialização - conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.

E a protecção de bens jurídicos significa, também, prevenção especial como dissuasão de que o comportamento da recorrente, cuja gravidade é indiscutível e que denota inevitavelmente a premência de resposta consentânea, sem dissociar os contornos de personalidade inerentes e a actividade profissional por si desenvolvida, se venha a repetir.

Por seu lado, a finalidade de reintegração da recorrente não foi esquecida, desde logo, atento o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão da execução da pena que, e bem, lhe foi concedida.

Não se descortina, pois, que a medida da culpa, pressuposto axiológico-normativo de qualquer pena nos termos do n.º 2 do mesmo art. 40.º, tenha sido excedida através da aplicação da pena que ficou decidida.

Afigura-se que o tribunal “a quo” não deixou de ponderar os elementos disponíveis, no estrito cumprimento do art. 71.º, n.º 3, do CP, e que, em sintonia com a previsão do art. 374.º, n.º 2, do CPP, fundamentou a pena fixada, criteriosamente encontrada e, por isso, proporcional e justa.

3. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se:

- negar provimento ao recurso interposto pela arguida e, em consequência,
- manter integralmente a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente, com a taxa de justiça em soma equivalente a
4 UC.

Processado e revisto pelo Relator.

Évora, 5 de Junho de 2012
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(Carlos Berguete Coelho)

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(João Gomes de Sousa)