Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | BERNARDO DOMINGOS | ||
Descritores: | SOCIEDADE COMERCIAL PODERES DO GERENTE INEFICÁCIA DO ACTO PRATICADO PELO GERENTE SEM PODERES | ||
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Data do Acordão: | 06/19/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA | ||
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Sumário: | I - O acto em que um gerente da sociedade, sem mandato para tal, dá de arrendamento um imóvel a esta pertencente é ineficaz em relação à sociedade. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora: Proc.º N.º 482/08-3 Apelação 3ª Secção Tribunal Judicial da Comarca de Lagos – 1º Juízo - proc. n.º 77/04.0 Recorrente: A. .......................... Soc. de Comércio Automóvel, lda. Recorrido: Manuel.......................... e La..........................- Indústria e Comércio de Cerâmica, Lda. * La.......................... – Indústria e Comércio de Cerâmica, Ldª, com sede na Rua ............................. em Lagos, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra Manuel.........................., residente na Urbanização do....................., Portimão, e A. .......................... – Sociedade de Comércio de Automóveis, Ldª, com sede em ............., concelho de Aguiar da Beira e delegação no Parque Industrial do ...................., Lagos, pedindo a condenação dos réus a reconhecerem a propriedade da autora sobre prédio que identifica, e que o contrato de arrendamento celebrado entre os réus tendo por objecto esse prédio não lhe é oponível, ordenando-se em consequência a restituição do prédio à autora, bem como a demolição de construção no mesmo edificada pela segunda ré. Mais pede a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de € 510 mensais, desde 6 de Outubro de 2003 e até à entrega do prédio. Subsidiariamente, para o caso de se entender que o primeiro réu podia celebrar tal contrato, pede que o mesmo seja declarado nulo, ordenando-se a restituição, demolição e pagamento já constantes do pedido principal. Ainda a título subsidiário, para o caso de se entender que o contrato de arrendamento é válido, pede que se decrete a resolução desse contrato, condenando-se a segunda ré a despejar o prédio, e ainda a demolir a construção efectuada e a pagar as quantias já referidas no pedido principal. Para o efeito alegou que o réu Manuel.........................., que foi gerente da autora até 3 de Julho de 2003, data em que foi destituído dessas funções, celebrou em 20 de Junho de 2003, com o gerente da segunda ré, contrato de arrendamento relativo a prédio pertencente à autora, pelo prazo de cinco anos renovável por igual período, fixando para o mesmo uma renda de € 150 mensais, e constando ainda desse contrato que, findo o prazo do arrendamento, a segunda ré poderia adquirir o prédio em questão pelo preço de € 75.000. Alegou, ainda, que os seus sócios nunca autorizaram o primeiro réu a celebrar tal contrato, nem essa autorização lhes foi pedida, só tendo tomado conhecimento do mesmo após a ocupação do prédio pela segunda ré. Acresce que a segunda ré efectuou no prédio construções que não foram autorizadas pela autora. Por outro lado, o prédio em questão tem um valor locativo muito superior a € 150 mensais (nunca menos de € 500 mensais); sendo certo que a autora tem necessidade desse prédio, para nele instalar a sua fábrica de produção de cerâmica e local de exposição, já que o local onde a mesma se situa actualmente é de difícil acesso, não satisfazendo as necessidades da autora. Defende, por isso, que o primeiro réu carecia de poderes para celebrar tal contrato, pois que o mesmo carecia de prévia deliberação dos sócios da autora nesse sentido, factos de que foi dado conhecimento à segunda ré; mesmo que assim se não entenda, tal contrato deve considerar-se nulo, por falta de menção da licença de utilização (que, no caso, inexiste) e, ainda que assim se não entenda, assiste à autora o direito de resolver o aludido contrato, com fundamento na necessidade que tem daquelas instalações para o exercício da sua actividade. Regularmente citados os réus, veio contestar a ré A. .........................., Ldª, sustentando a validade do contrato celebrado com o gerente da autora e impugnando o mais alegado por esta. Concluiu, pela improcedência do pedido formulado. Também o réu Manuel.......................... contestou a acção, impugnando os factos alegados pela autora, sustentando ter actuado nesta questão com a mesma legitimidade com que tratou de todos os negócios da autora e pugnando pela validade do contrato celebrado. Pediu, por isso, que a acção seja julgada improcedente. Foi realizada audiência preliminar, na qual se proferiu despacho saneador, tendo-se em seguida procedido à selecção da matéria de facto assente e da que deveria integrar a base instrutória, a qual não foi objecto de qualquer reclamação. Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com observância de todas as formalidades legais, tendo-se julgado a matéria de facto controvertida pela forma constante de fls. 308-311, a qual também não sofreu qualquer reclamação. De seguida foi proferida sentença onde se decidiu o seguinte: «…. julga-se a presente acção procedente, porque provada, e em consequência declara-se reconhecido à autora La.......................... – Indústria e Comércio de Cerâmica, Ldª o direito de propriedade sobre o prédio urbano sito em Vale de Coitos, freguesia de Odiáxere, concelho de Lagos, inscrito na matriz sob o artigo 774 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n° 00765/100790 e, em consequência, condena-se a ré A. .......................... – Sociedade de Comércio Automóvel, Ldª a, no reconhecimento de tal direito, restituir tal prédio à autora, no estado em que se encontrava quando dele tomou conta, demolindo as construções que aí efectuou (ampliação do armazém existente, paredes de levantadas e cobertura de todo o quintal das traseiras). Mais se condena os réus Manuel.......................... e A. .........................., Ldª, solidariamente, a pagar à autora La.........................., Ldª, a título de indemnização por danos de natureza patrimonial o montante que vier a apurar-se em liquidação nos termos do art. 47º, nº 5 do Código de Processo Civil». * Inconformada, veio a R. interpor recurso de apelação, tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões: «01 - Estando a Ré na posse do imóvel por virtude de contrato de arrendamento celebrado com a A., a sua condenação na restituição do mesmo pressupõe como condição, lógica e prévia, que a validade e eficácia do referido contrato seja posta em crise e, consequentemente, judicialmente reconhecido e declarado que o mesmo sofre de algum vicio que o invalida, no caso e concretamente a ineficácia em relação à A., sua proprietária. 02 - Não tendo ocorrido tais reconhecimento e declaração judiciais na decisão final, entendida esta com o sentido restrito que lhe é atribuído pelo disposto no artigo 659, n.º 2, in fine, do CPC, a douta sentença recorrida não poderá condenar a Ré na restituição do arrendado, por persistir valido e eficaz o contrato em causa. 03 - Aliás, pese embora a alegada ineficácia ter sido constatada no relatório, não se concluindo pelo seu decretamento na decisão final, a douta sentença recorrida enferma de nulidade, por contradição entre os fundamentos e a referida decisão, vicio que deverá ser reconhecido e decretado com todas as legais consequências para a Ré, nomeadamente obstando à sua condenação nos restantes pedidos. Ainda que assim se não entenda, 04 - Publicamente identificado com a sociedade, reconhecido e reputado como a sua face visível, o gerente obriga-a validamente perante terceiros ainda que pratique actos fora do seu objecto social, desde que a sociedade não prove, como foi o caso, que a outra contraente sabia ou tinha obrigação de conhecer tal facto, para tanto não bastando a mera publicidade do seu pacto social. 05 - Logo, o contrato de arrendamento e promessa de compra e venda celebrado entre a A. e a Ré é perfeitamente valido e eficaz para esta, uma vez que actuou na melhor boa-fé, desconhecendo e não tendo qualquer obrigação de saber se o Sr. Manuel .......................... tinha ou não poderes para obrigar a A. tanto mais que a sua destituição da gerência e a oposição da sociedade ocorreram apenas depois da celebração do contrato e de a Ré já se encontrar na posse do imóvel. Nestes termos E nos demais que V. Exas mui doutamente suprirão, deverá a douta sentença recorrida ser declarada nula, com todas as legais consequências no que à recorrente diz respeito. Ou, caso assim não venha a ser doutamente entendido por esse Venerando Tribunal, deverá a mesma ser revogada e substituída por outra que absolva a Ré dos pedidos de restituição, demolição e indemnização, igualmente com todas as consequências legais». * Contra-alegou a recorrida pedindo a improcedência da apelação.* Na perspectiva da delimitação pelo recorrente [1] , os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil) [2] salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).Destas parece decorrer que as questões a decidir consistem em saber : - se ocorre nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão e se o recorrente pretende impugnar certos pontos da matéria de facto; - e se não ocorrendo haverá erro na aplicação do direito em virtude do acto praticado pelo gerente (sem poderes) vincular a sociedade e consequentemente a acção deveria ser julgada improcedente. Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir. Comecemos pela primeira questão. Nos termos do art.º 668º, n.º 1 al. c) a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Trata-se de um vício lógico. No processo lógico, as premissas de direito e de facto apuradas pelo julgador conduziriam, não ao resultado expresso na decisão, mas ao oposto. Mas uma coisa é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica, o erro na interpretação da norma jurídica ou até mesmo a contradição que possa existir entre os factos que a sentença dá como provados e outros já apurados no processo, designadamente por já haverem sido incluídos nos factos assentes, e outra, muito diferente, é a oposição referida na al. c) do n.º 1 do art.º 668 geradora de nulidade [3] . É entendimento uniforme da jurisprudência que a nulidade da sentença prevista na alínea c) do art.º 668 do CPC só se verificará quando exista vício intrínseco no processo lógico de decisão (Rodrigues Bastos, “Notas ao CPC”, vol. III, p. 246). Ou seja, pressupõe um erro lógico na ponta final da argumentação jurídica – os fundamentos invocados apontam num sentido e, inesperadamente, contra a conclusão decisória que dos mesmos, e dentro da linha de raciocínio adoptada, se esperava, veio a optar-se pela solução adversa (acórdãos do STJ de 26.04.95 Publicado na CJSTJ, ano III, 1995, vol. II, p. 57., 30.10.96, Proc. nº 366/96, 14.5.98, Proc. nº 297/97 e de 23.11.2000, Proc. nº 3080/00). É indispensável, portanto, que os fundamentos invocados pelo juiz devessem logicamente conduzir a resultado oposto ao que vier expresso na sentença. Se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito, e não de nulidade da mesma. Ora no caso dos autos, não é apontado pelo recorrente, não existe e nem se vislumbra qualquer erro no processo lógico que conduziu à decisão jurídica constante da sentença, apenas se invoca como pretenso fundamento da alegada nulidade o facto de o Tribunal não ter decretado expressamente a ineficácia dos contratos celebrados pelo R., enquanto gerente da A. e pela R. A. .......................... Lda e consequentemente faltar uma premissa à decisão de restituição do prédio arrendado no estado em que se encontrava à data do arrendamento. Ora este alegado “vício” é meramente aparente e nem sequer é um vício do processo lógico. Com efeito o Tribunal pronunciou-se claramente no sentido da ineficácia dos ditos contratos e declarou expressamente tal vício como decorre da seguinte passagem da sentença: « Ao agir como agiu, o 1º réu exorbitou claramente os seus poderes, pelo que não pode invocar em seu benefício o disposto no nº 1 do art. 260º do Código das Sociedades Comerciais, e a 2ª ré também não pode prevalecer-se do disposto no nº 2 do referido art. (se interpretado a contrario, evidentemente), já que, uma vez que o gerente exorbitou os seus poderes legalmente conferidos, os actos por ele praticados não vinculam a sociedade perante terceiros, independentemente da boa ou má fé destes. O vício do acto praticado é, pois, a ineficácia, prevista no nº 1 do art. 268º do Código Civil [4] ». Assim a decisão que impôs a restituição do prédio no “status ante ….” É o corolário lógico dos argumentos de facto e de direito que a sustentam, consequentemente não enferma da alegada nulidade. * Vejamos agora a segunda questão.Quanto a esta também a apelação é manifestamente improcedente e poderia simplesmente remeter-se para os fundamentos constantes da sentença., nos termos do disposto no art.º 713º n.º 5 do CPC, já que são suficientes, claros e a decisão acertada. Porém aos argumentos aduzidos na sentença e para que não restem dúvidas quanto ao acerto da decisão sempre acrescentaremos que resultando a imposição obrigatória da necessidade de autorização por parte dos órgãos sociais da sociedade de norma legal constante do Código das Sociedades Comerciais - Art.º 246 n.º 2 al.c)- nunca a R. A. .......................... poderia sequer prevalecer-se, em seu benefício, da alegada ignorância da falta de poderes do gerente da A.. Pois decorrendo da regra legal a necessidade de deliberação da sociedade para a prática deste tipo de actos impunha-se à R. –que não pode invocar em seu proveito o desconhecimento da lei…- providenciar no sentido de se informar se no caso a A. teria mandatado o gerente, aqui R. para a práticas dos ditos actos. Não o fez e por isso conscientemente correu os risco de ver declarada a ineficácia de tais actos , com todas as consequências legais, como bem se decidiu na sentença recorrida. Deste modo e sem necessidade de mais considerações, acorda-se na improcedência da apelação e confirma-se a sentença. Custas pela apelante. Registe e notifique. Évora, em 19 de Junho de 2008. -------------------------------------------------- (Bernardo Domingos – Relator) --------------------------------------------------- ( Silva Rato – 1º Adjunto) --------------------------------------------------- (Sérgio Abrantes Mendes– 2º Adjunto) ______________________________ [1] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa -1997, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra - 2000, págs. 103 e segs. [2] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56. [3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V (reimpressão) – 1981, págs. 131 e 141 a 142; J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 246 nota 4; J. Lebre de Freitas e outros Lebre de Freitas e outros, Cód. Proc. Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, Ld.ª (2001), pág. 670 nota 3. [4] Neste sentido, vd. acs. STJ de 09.10.2003 e 09.03.2004, ambos acessíveis em www.dgsi.pt. |