Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2/05-1
Relator: F. RIBEIRO CARDOSO
Descritores: INDÍCIOS SUFICIENTES
IN DUBIO PRO REO
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
ABUSO DE PODER
DOLO ESPECÍFICO
Data do Acordão: 03/01/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. Por indícios suficientes entendem-se suspeitas, vestígios, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido o responsável por ele.

2. A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.

3. A regra “in dubio pro reo”, enquanto manifestação do princípio da presunção da inocência – princípio estruturante do processo penal -, tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, mas também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação. E, evidentemente, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra“in dubio pro reo”, no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas. Com efeito, o estigma que uma acusação naturalmente já comporta não pode fundar-se numa base indiciária duvidosa que equivaleria a afirmar que o arguido é uma pessoa “duvidosamente” respeitadora das leis penais”, na expressão de Jaime Vegas Torres, citado por Cruz Bucho.

4. É essencial que os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia tenham sido objecto do inquérito, sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287.º, n.º 3), em razão da nulidade prevista no artigo 119.º, alínea d), do Código de Processo Penal.

5. Abusar dos poderes é fazer deles uso para um fim diferente daquele para que a lei os concedeu ao funcionário. Em sentido lato, ainda dentro de uma interpretação declarativa, também abusa dos poderes o funcionário que excede os poderes que lhe são legalmente conferidos ou que desrespeita formalidades essenciais na sua actuação.

6. O tipo penal do art. 382 do Código Penal, sendo como é, um crime de intenção determinada, reclama um dolo específico, pois que os seus fins ou motivos (a intenção de o agente obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa) fazem parte integrante do tipo legal.

7. A ideia de um «dolus in re ipsa», que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção, é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo – cf. Prof. Figueiredo Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência, 105, p. 142.

FRC
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo conferência, na Relação de Évora:
I
1. E.V. apresentou queixa-crime contra S.G. e P.B. imputando-lhes a prática de factos que na sua perspectiva integravam um crime de ameaças, um crime de injúrias, um crime de ofensa à integridade física qualificada e um crime de abuso de poder, p. e p, respectivamente, pelos art. 153 n.º2, 181 n.º1 e 184, 146 e 382, todos do Código Penal.

2. Posteriormente veio a constituir-se assistente.

3. Findo o inquérito, o Digno Magistrado do M.º P.º, por entender que não existiam indícios nos autos que permitissem afirmar com um grau de certeza razoável que os denunciados praticaram os factos constantes da queixa apresentada, determinou o arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto no art. 277 n.º2 do CPP.

4. O assistente veio, então, requerer a abertura da instrução imputando desta feita aos arguidos, a prática, em co-autoria material, de um crime de ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 143 n.º1, com referência aos art. 146 e 132 n.º2, alin. l) do C.Penal, um crime de ameaças, p. e p. pelo art. 153.º do C. Penal, um crime de coacção grave, p. e p. pelos art. 154 n.º1 e 155 n.º1, alin. d) do C. Penal, e de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382 do C. Penal, referindo que os autos indiciavam com suficiência os seguintes factos:

“ No dia 15 de Março de 2003, por volta das 15,10 horas o assistente dirigia-se para um local chamado " …" que dista aproximadamente …Km do ….

Nesse local encontrava-se um grupo de amigos seus ali reunidos para um lanche, planeado havia já algumas semanas.

Utilizava, como meio de transporte, um ciclomotor de matrícula …

Ao chegar próximo do local e junto à vedação que delimita o "…" e o "…", a cerca de 500 metros do "…" o assistente apercebeu-se de um ruído que lhe pareceu ser o de uma sirene.

Estranhando o facto, por se encontrar em pleno campo, o assistente estacionou o veículo para se inteirar do que estava a acontecer.

Nessa altura avistou um jipe da G. N. R.., que se aproximou do local onde se encontrava parado e ali estacionou.

Dele saíram os arguidos e sem qualquer explicação empurraram-no, fazendo-o cair no chão.

De seguida, os arguidos agrediram voluntariamente o assistente com vários pontapés nas costas e nas pernas.

0s arguidos, muito exaltados e aos gritos, perguntavam ao assistente porque tinha fugido.

Ainda durante a agressão o arguido S. disse-lhe também: "Ah!... Tu não me conheces!.. Só me conheces sem farda!"

Depois de o terem agredido repetidas vezes, os arguidos levantaram-no do solo e colocaram-lhe as algemas.

Só então o informaram que iria ser multado por não ter capacete, e por ter desobedecido a uma ordem de parar.

O assistente respondeu-lhes que, muito embora fosse verdade o facto de não trazer capacete de segurança, era falso que tivesse recebido uma ordem de parar.

Exaltados com a resposta, os arguidos ameaçaram-no com a frase seguinte: "Não digas mais nada, senão, no Posto da G.N.R vai ser muito pior, vais apanhar mais tareia!".

De seguida, os dois arguidos conduziram-no para o jipe e colocaram-no no banco de trás.

Muito assustado, o assistente perguntou aos soldados que crime tinha cometido para ser algemado e tratado dessa forma ao que estes responderam:"No posto já vais ver".

Encetaram, então uma viagem a alta velocidade, supostamente a caminho de …, conduzidos pelo soldado S., que lhe dizia: " Com a mesma velocidade a que viemos atrás de ti assim vais para lá ".

Durante a viagem, o soldado P., disse ao soldado S.: "Vá a ver se ele bate com os cornos no vidro", ao que este respondeu: "Nos … têm muita mania mas nós vamos tirar-lha!".

E dirigindo-se ao denunciante ainda lhe disse: "Sabes? Eu conheço este sítio como a palma da minha mão! Não te safas, nem tu nem os outros!"

Durante o trajecto, o banco do jipe, desencaixou-se do lugar, porque não se encontrava fixo, tendo o assistente batido com a cabeça no vidro.

O assistente ainda tentou colocar o cinto de segurança, mas não encontrou nenhum no local onde estava sentado, tendo sido projectado sucessivas vezes contra as paredes e vidros do jipe.

Durante o trajecto, o assistente disse aos soldados que não trazia consigo os seus documentos de identificação e pediu para fazer um telefonema para casa.

Os arguidos mudaram, então, de ideias e conduziram o assistente a sua casa, no "…”
De seguida e obtidos os documentos os arguidos, notificaram o assistente das infracções alegadamente cometidas e foram-se embora.

Como consequência das agressões e da queda o assistente sofreu várias lesões várias, que lhe provocaram fortes dores e grande perturbação psicológica, tendo recebido tratamento médico no Centro de Saúde de ….

Os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente.

Sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal”.

5. Realizada a instrução e efectuado o debate instrutório, a Senhora Juiz de Instrução lavrou despacho de não pronúncia, com os seguintes fundamentos:

“Iniciaram-se os presentes autos de instrução a requerimento do assistente, inconformado com o despacho de arquivamento deduzido contra os arguidos P.B. e S.G., alegando, em síntese que:

1. O MP fez uma errada apreciação dos factos e desconsiderou meios de prova apresentados no inquérito;

2. A testemunha L.I. não foi inquirida, por o MP ter considerado desnecessário, atendendo a que a mesma não presenciou os factos descritos na queixa-crime apresentada.

Requereu a inquirição da médica que o observou no Centro de Saúde, de D.S., que lhe tratou das dores e de L.I..

Foi inquirida a médica, conforme se apura de fls. 194 -195, o assistente acabou por prescindir da inquirição do mencionado J.S., na sequência de atestado em que se declarava que o mesmo não estava em condições físicas para se deslocar ao Tribunal e, atendendo a que a testemunha L.I. se encontra na …, não se prevendo quando volta, por motivos de saúde mental (fls. 187 a 189), bem como ao facto do mesmo não ter presenciado as alegadas agressões (fls. 203, 33 e 159), foi indeferido o requerimento para a sua inquirição a fls. 211 a 213.

Foi realizado o debate instrutório, com observância do formalismo legal.

Há que ter presente que o JIC estará limitado, à partida, pela factualidade relativamente à qual se pediu a instrução (cfr. art. 287, n.º l e 2 e 288, n.º4 do CPP), sendo orientado no seu procedimento e decisão pelas razões de facto e de direito invocadas.

Por outro lado, dispõe o art. 283°, n.º2, aplicável à fase de instrução ex vi do n.º 2 do art. 308°, ambos do CPP, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.

Preceitua, por sua banda, o art. 308°, n.º1 do CPP que se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.


Fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem indícios suficientes para efeitos de prolação do despacho de pronúncia (tal qual para a acusação), quando:

- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior, e

- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou

- quando se pressinta que da ampla discussão em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação futura.

O assistente imputa aos arguidos factos que integrariam a prática, em concurso efectivo de um crime de ofensas à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 143, n.º1, 146° e 132°, n.º2, aI. l) do CP, de um crime de ameaças p.e p. pelo art. 153° do CP, de um crime de coacção grave p.e p. pelos art. 154°, n.º l e 155°, n.º1, aI. d) do CP e de um crime de abuso de poder p. e p. 382° do CP.

Com efeito, o assistente veio dizer que no dia 15 de Março de 2003, cerca das 15 h e 10 m, conduzia o seu ciclomotor junto do …, quando estacionou por se aperceber de um ruído atrás de si que parecia ser o de uma sirene. De dentro de um jipe saíram os arguidos que o empurraram para o chão, atingiram com pontapés nas costas e nas pernas, o algemaram e o informaram que iria ser multado por não ter capacete e por ter desobedecido a uma ordem de parar. Foi então ameaçado e levado para o posto da GNR.

Cotejada a prova produzida em sede de inquérito com a realizada em instrução, apura-se que:
- a médica que se encontrava de serviço no Centro de Saúde depôs no sentido de confirmar que elaborou o relatório de fls. 48, confirmando tudo o que dele consta por ter resultado da sua observação directa da pessoa do assistente. Mais disse que a lesão que se observa na fotografia de fls. 40, a existir, não é indiciária de qualquer lesão traumática de relevo e que não se afigura verosímil, na sequência do que na altura constatou, a possibilidade de qualquer lesão traumática que se relacione com as alegadas agressões consubstanciadas em pontapés nas costas e nas pernas.

- a testemunha H.J. (fls. 54) apenas viu passar o ciclomotor conduzido pelo assistente e alguns minutos depois o jipe da GNR.

- a testemunha J.P. (55) viu o assistente passar e um minuto depois passar o jipe da GNR com as sirenes ligadas. Reparou que um dos soldados ia a conduzir e outro ia atrás com o assistente.

- a testemunha D.R. (fls. 60) referiu que viu passar o assistente tendo um ou dois minutos depois passado o jipe da GNR.

- a testemunha B.V., mãe do assistente (fls. 99), disse que não se vislumbravam marcas no corpo do assistente, mas que o mesmo sentiu muitas dores. Mais disse que o assistente nos dias seguintes deitou sangue pela boca, motivo pelo qual o levou a um endireita.

- o assistente (fls. 63-64) referiu que as lesões constantes das fotografias de fls. 40 surgiram na sequência da queda sobre uma pedra que se encontrava no local.

- O arguido S.G. referiu que o assistente, ao aperceber-se do toque da sirene, acelerou a sua marcha, tendo sido seguido cerca de 15 minutos, por fim a pé, momento em que foi interceptado. Mais disse que lhe pediu os documentos de identificação, tendo este dito que os tinha em casa, motivo pelo qual o conduziu no jipe até à sua residência.

- as declarações do arguido P.B. (fls. 83-84) coincidiram, no essencial, com as proferidas pelo arguido S….

- também em sede de instrução a inquirição da testemunha L.I. não foi viável, pelos motivos constantes do despacho de fls.211 a 213, nomeadamente, por a mesma não trazer qualquer mais-valia ao já indiciariamente apurado.

- foi junta aos autos a ficha clínica relativa à pessoa do assistente, e relativa ao exame que lhe foi efectuado na data dos factos, constando do mesmo que se não verificavam marcas de agressão.

- no relatório do exame médico-legal efectuado (fls. 69 a 71) concluiu-se que "na ausência de lesões traumáticas ou seus vestígios, não é possível formular conclusões médico-legais".

Em face desta prova, entende-se, desde logo que não está minimamente indiciado que os arguidos tenham ofendido fisicamente o arguido. Com efeito, o exame médico feito à pessoa do arguido cerca de uma hora após a ocorrência do factos conclui pela inexistência de lesões, o que torna inverosímil a alegação de pontapés no corpo.

Inexiste igualmente qualquer prova, por mais ténue que seja, consubstanciadora do crime de ameaça.

No que tange ao crime de coacção grave, exige-se o constrangimento por meio de violência ou de ameaça. Quanto a esta, já acima nos referimos, no sentido da sua ausência. Quanto à violência, o conceito exige a intervenção da força física (violência física) ou da violência psíquica - através de palavras ou condutas, ainda que omissivas, que condicionam a livre vontade do coagido. Ora, também nesta matéria inexistem factos que possam conduzir à imputação do mencionado crime aos arguidos, ainda que de forma indiciária.

Por fim, a prática do crime de abuso de poder exige como elementos objectivos do seu tipo o abuso de poder ou a violação dos deveres inerentes às suas funções. Entende-se por abuso de poder o exceder os limites da competência, quanto à natureza dos assuntos que lhe são confiados.

Ora, o facto que o assistente sublinha - que o assistente foi trazido no carro da GNR, sentado no banco de trás - é manifestamente irrelevante para que dele se possa retirar a conclusão de que o assistente foi forçado a entrar na jipe em violação grosseira das competências inerentes ao exercício das funções. Confrontados com esta situação, os arguidos referiram que iam buscar os documentos do assistente à sua residência. Ademais, exige o tipo de crime que haja a intenção de obter benefício ilegítimo ou causar prejuízo a terceiro. Inexiste qualquer prova neste sentido.

Face a todo o exposto, tem o Tribunal a convicção seguríssima de que os arguidos, submetidos a julgamento, seriam absolvidos da prática dos crimes pelos quais o assistente pretende que sejam pronunciados, quer por falta dos elementos objectivos dos respectivos tipos, quer dos elementos subjectivos. Destarte, ao abrigo do preceituado no art. 3080 do CPP, decide-se não pronunciar os arguidos S.G. e P.B.,determinando-se o arquivamento dos autos. Cessam as medidas de coacção aplicadas.

Custas pelo assistente cuja taxa de justiça se fixa em 2 UC (art. 83, n.º2 do CCJ), devendo ter-se em consideração, na liquidação, o disposto no art. 519, n.º1 do CPP.

6. Inconformado com tal despacho, o assistente interpôs o presente recurso, pugnando pela pronúncia dos arguidos pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada, ameaças, coacção grave e abuso de poder, de harmonia com a acusação por si deduzida, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - O debate instrutório não é um julgamento, nem o Tribunal de Instrução se terá que mover por juízos de certeza.

2.ª - O Tribunal de Instrução actua e o debate instrutório rege-se por juízos de probabilidade;

3.ª - Não sendo aqui aplicável o princípio "in dubio pro reo".

4.ª - São muitos os indícios trazidos a este processo pela prova que foi possível produzir.

5.ª - Devendo, por isso, o tribunal de Instrução, relegar a decisão final para o tribunal do Julgamento.

6.ª - Abrindo desta forma uma possibilidade que só ao Juiz de Julgamento competiria resolver.

7.ª - O que, nos termos do art. 283.° n.ºs 1 e 2 do C.P.P, impunha o dever de acusar e/ou de pronunciar.

8.ª - Em qualquer caso, a M.ª Juiz a quo, abstendo-se de pronunciar com base na inexistência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de segurança, exorbitou a sua competência.

9.º - E exorbitou dos limites do seu campo de apreciação.

10.ª - Pois deveria ter tido em conta que lhe competia analisar todas as provas.

11.ª - Sob o aspecto de aos factos corresponder "uma possibilidade razoável de condenação".

12.ª - Que até (por definição) efectivamente existia.

13.ª - Consequentemente, o douto despacho recorrido violou os art°s 286.° n.º 1 e 283.º n.ºs 1 e 2 do C.P.P.

14.ª - Por outro lado, não se tendo esgotado todas as provas possíveis, e/ou sugeridas, foi violado o art. 290.º n.º 1 do C.P.P.

15.º - Deste modo, o acórdão recorrido, na parte que concerne à não pronúncia arguidos pelos crimes de ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.° n.º1, 146.° e 132.º n.º 2, al. l) do C.P., pelo crime de ameaças p. e p. pelo art. 153.° n.º 1, do C.P. pelo crime de coacção grave p. e p. pelos arts. 154.° n.o 1 e 155.° n.º 1, d), do C.P. e pelo crime de abuso de poder p. e pelo art. 382 do C.P., aplicou erradamente o direito.

16.ª - O douto despacho recorrido violou também o disposto nos artigos 17.º, 18.º e 27.° da Constituição da Republica Portuguesa, bem como do art. 9.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do art. ° 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

7. O recurso foi admitido por despacho de fls. 258.

8. Não houve qualquer resposta por parte dos arguidos.

9. O Ministério Público no tribunal “a quo” respondeu sustentando o não provimento do recurso, por, em seu entender, não existirem provas, ainda que indiciárias, da prática, por parte dos arguidos, dos crimes que o recorrente lhes imputa.

10. A Senhora Juiz de Instrução limitou-se a mandar subir os autos a esta Relação (fls.275):

11. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, subscrevendo os fundamentos aduzidos na decisão recorrida e na resposta do Ministério Público, conclui que o recurso não merece provimento.

12. Cumprido o disposto no art. 417 n.º2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

13. Demarcado o objecto do recurso pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da respectiva minuta, o que importa saber é:

a) Se o tribunal recorrido violou o disposto no art. 290 n.º1 do CPP, por não ter esgotado todas as provas possíveis e/ou sugeridas?

b) Se resultam dos autos, designadamente dos interrogatórios, depoimentos colhidos e prova pericial, suficientes indícios da prática, pelos arguidos S.G. e P.B., em co-autoria material de um crime de ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 143 n.º1, com referência aos art. 146 e 132 n.º2, alin. l) do C.Penal, um crime de ameaças, p. e p. pelo art. 153.º do C. Penal, um crime de coacção grave, p. e p. pelos art. 154 n.º1 e 155 n.º1, alin. d) do C. Penal, e de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382 do C. Penal, como sustenta o assistente;

c) Se o tribunal recorrido ao não pronunciar os arguidos violou também o disposto nos art. 17.º, 18.º e 27.º da CRP, bem como o art. 9.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do art. 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem?

Vejamos.

II

14. Importa começar por sublinhar que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286 n.º 1, do CPP -, no sentido de que não se está perante um novo inquérito, mas apenas perante um momento processual de comprovação.

Substancialmente, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente contém uma verdadeira acusação - Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pg. 141.

Dado que o despacho de pronúncia se deve quedar pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura da instrução, as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia dos arguidos.

Quanto a este ponto, é pertinente chamar à colação o que expenderam os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, 3.ª edição, pg. 206: a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação. Daqui resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da abertura da instrução.

Ora, um dos fundamentos do despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência dos indícios da verificação dos crimes (art. 308 n.º 1, do CPP).

A pronúncia só deve ter lugar quando tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente (art. 283 e 308 n.º 1, do CPP) [1] .

Na decisão instrutória de não pronúncia, o juiz decide que os autos não estão em condições de prosseguir para a fase de julgamento por não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança criminais.

O que seja a suficiência dos indícios, di-lo o art. 283 n.º 2: “Os indícios são suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Tal fórmula acolheu a orientação da doutrina e jurisprudência seguidas no domínio do C.P.P. de 1929 que não definia o que era indícios suficientes para a acusação.

Trata-se da “...probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal... Esta possibilidade razoável é uma probabilidade mais positiva do que negativa (...)” [2] .

Na fase da instrução, porque não se tem por objectivo alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas tão só um juízo sobre a existência de indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, as provas recolhidas não constituem pressuposto da decisão de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo, até à fase do julgamento [3]

Como refere o Prof. Figueiredo Dias [4] , «... os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.»

E adianta: «tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.»

Já Luís Osório [5] afirmava que «devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado».

Considerava-se que eram bastantes os indícios quando existia um conjunto de elementos convincentes de que o arguido tinha praticado os factos incrimináveis que lhe eram imputados; por indícios suficientes entendem-se suspeitas, vestígios, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido o responsável por ele.

A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais quer jurídicas.

Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.

A este respeito escreve o Prof. Figueiredo Dias [Direito Processual Penal, I Volume, 1981, pág. 133] que, "O Ministério Público (e/ou o assistente) (...) tem de considerar que já a simples dedução de acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. (..) A alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de aferir-se no plano fáctico e não no plano jurídico (..)".

Daí que no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deva estar presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, designadamente as salvaguardadas no art. 30.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós mereceram consagração constitucional art. 20.º da D.U.D.H. e art. 27.º da C.R. P. [Ac. da Relação do Porto de 20 de Outubro de 1993, C.J. Ano XVIII, Tomo IV, pág. 261].

Consequentemente, o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido [Germano Marques da Silva in ob. cit. pág. 179].

Temos assim que, haverá fortes indícios da prática de uma infracção quando se encontre comprovada a sua consumação, e existam elementos suficientemente sérios, credíveis e bastantes, que permitam a sua imputação a determinado agente, de tal modo que, num juízo de prognose, com a “antecipação” do julgamento, e ante os elementos probatórios disponíveis, ele não deixará de ser condenado [6] .

A regra “in dubio pro reo”, enquanto manifestação do princípio da presunção da inocência – princípio estruturante do processo penal -, tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, mas também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação. E, evidentemente, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra “in dubio pro reo”, no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas.

Com efeito, o estigma que uma acusação naturalmente já comporta não pode fundar-se numa base indiciária duvidosa que equivaleria a afirmar que o arguido é uma pessoa “duvidosamente” respeitadora das leis penais”, na expressão de Jaime Vegas Torres, citado por Cruz Bucho.

Não tem, por isso, qualquer razão o recorrente no que afirma nas suas conclusões a respeito da aplicação do princípio “in dubio pro reo”.

15. No caso sub iuditio.

A clareza da situação desmerece abundantes considerações.

Vejamos.

Diz o recorrente nas suas conclusões que foi violado o art. 290 n.º1 do CPP, por não se terem esgotado todas as provas possíveis, e/ou sugeridas.

Lendo a motivação do recurso, fica-se sem saber a que provas se refere o assistente, pelo que tal conclusão não tem suporte na motivação do recurso.

Admitindo que se está a referir à não inquirição da testemunha L.I., o tribunal justificou as razões porque indeferiu a sua inquirição (v.fls.211 a 213): a ausência dela na Suiça, por motivos de saúde mental, não se prevendo quando regressava (fls. 187 a 189), bem como ao facto da testemunha não ter presenciado as alegadas agressões (fls. 203, 33 e 159). E tal indeferimento tem apoio legal no art. 291 n.º1 do CPP.

Por outro lado, em sede de debate instrutório, foi dada ao assistente a possibilidade de requerer a produção de provas indiciárias suplementares, nos termos do art. 302 n.º2 do CPP, o qual nada requereu (v.fls.228).

Assim, não se vê, com o devido respeito, que outras diligências probatórias se impunha realizar, se o recorrente, como parte interessada, não as sugeriu.

Improcede, pelo exposto, a invocada violação.

Passando à 2.ª questão:

Aqui chegados, importa então saber se os elementos carreados para os autos permitem concluir pela possibilidade de a condenação dos arguidos ser maior que a da absolvição.

Assim entendidos, poder-se-á concluir, como pretende o assistente, que, no caso dos autos, se verificam os necessários indícios da prática dos imputados crimes, ou de outros?

Tal como o entenderam a Meritíssima Juiz do tribunal recorrido e o Ministério Público, também nós entendemos que não.

Os indícios existentes nos autos, se assim houverem de ser entendidos, são tão frágeis que não permitem prever, como provável, qualquer futura condenação dos arguidos, e tanto era necessário para que pudesse ser imposta a prolação do pretendido despacho de pronúncia.

Vejamos a prova indiciária existente relativamente aos arguidos:

- Dos depoimentos das testemunhas:

Conforme ensina o Prof. Cavaleiro de Ferreira [Curso de Processo Penal, Lisboa, 1981, II, pág. 339], a prova testemunhal é o mais importante, por mais frequente, meio de prova em processo penal.

No requerimento de abertura da instrução o assistente indicou como prova dos factos indiciários que imputa aos arguidos, seis testemunhas.

No decurso do inquérito foram ouvidas como testemunhas H.F., A.P., D.R. e B.V., bem como os arguidos e o assistente (este também como arguido, pois os arguidos também haviam apresentado queixa contra o assistente por difamação).

No âmbito da instrução apenas foi ouvida M.D., médica, que assistiu o queixoso no Centro de Saúde de … no dia da alegada agressão.

O assistente foi submetido a exame pericial de avaliação de dano corporal no Gabinete Médico-Legal de … que concluiu pela ausência de lesões traumáticas ou seus vestígios.

Cotejada a prova produzida em sede de inquérito com a realizada em instrução, poderá dizer-se que não existe prova, para além das declarações do assistente, no sentido dos factos terem ocorrido, tal como os descreve no requerimento de instrução, e da sua imputação aos arguidos.

Apenas está suficientemente indiciado que:

- No dia 15 de Março de 2003, cerca das 15, 10 horas, o assistente conduzia um ciclomotor em direcção à localidade dos …, sem fazer uso de capacete de protecção;

- Os arguidos são soldados da GNR e encontravam-se, naquele dia e hora, em missão de patrulha na zona, transportando-se num Jeep.

- Ao avistarem o assistente seguiram no seu encalce, tendo accionado, pelo menos a sirene, vindo a interceptá-lo próximo do ….

- Não possuindo quaisquer documentos, o assistente foi conduzido pelos ditos soldados da GNR à sua residência, sita no … .
- De seguida, obtidos os documentos, lavraram os autos de contra-ordenação de que estão juntas cópias a fls. 38 e 39, notificando o assistente, e foram-se embora.

- O assistente, cerca das 16,37 horas, foi examinado no Centro de Saúde de …, alegando ter sido agredido, cerca das 16h00, no tronco e na perna direita, constando da ficha de consulta que no exame objectivo não se visualizam marcas de agressão.

Quanto ao mais, as versões dos arguidos e dos assistentes são inconciliáveis e outra prova não existe.

No que se refere ao crime de ofensa à integridade física qualificado:

Foi efectuado exame médico-legal na pessoa do assistente e concluiu-se que "na ausência de lesões traumáticas ou seus vestígios, não é possível formular conclusões médico-legais".

O assistente foi examinado, como se referiu, no Centro de Saúde de …, cerca de uma hora depois da alegada agressão, e a médica que se encontrava de serviço no Centro de Saúde depôs no sentido de confirmar que elaborou o relatório de fls. 48, confirmando tudo o que dele consta, por ter resultado da sua observação directa da pessoa do queixoso. Mais disse que a lesão que se observa na fotografia de fls. 40, a existir, não é indiciária de qualquer lesão traumática de relevo e que não se afigura verosímil, na sequência do que na altura constatou, a possibilidade de qualquer lesão traumática que se relacione com as alegadas agressões consubstanciadas em pontapés nas costas e nas pernas.

Das fotografias constantes dos autos não constam lesões visíveis consonantes com as declarações do assistente.

Os arguidos na queixa que formularam contra o ora recorrente negam que tenham empurrado este, bem como lhe tenham dado algum pontapé, ou sequer que alguma vez lhe tenham gritado (v. fls.3 e 11).

No que se refere ao crime de ameaças, p. e p. pelo art. 153 n.º1 do C. Penal, os arguidos negaram ter proferido as expressões constantes da queixa (e que foram vertidas no requerimento de abertura da instrução) e nenhuma outra prova existe de tal ter acontecido, para além do que afirma o assistente).

No que respeita ao crime de coacção grave, p. e p. pelo art. 154 n.º1 e 155 n.º1, alin. d) do C. Penal, trazido «ex novo» à instrução, o que não é legalmente admissível, é patente que os factos vertidos pelo recorrente no requerimento de abertura de instrução não permitiam imputar aos arguidos esse crime.

Na verdade, como expende o Prof. Germano Marques da Silva, obra citada, vol. III, pag.140, é essencial que os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia tenham sido objecto do inquérito, sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287.º, n.º 3), em razão da nulidade prevista no artigo 119.º, alínea d), do Código de Processo Penal.

Estabelece este preceito que constitui nulidade insanável, que deve ser declarada em qualquer fase do procedimento, a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.

Deste modo, verifica-se, neste conspecto, a inadmissibilidade legal da instrução, por falta de inquérito.

Por último, no que respeita ao crime de abuso de poder, p. e p. pelo art.382 do C. Penal, não há elementos indiciários da prática de factos que integrem a prática deste crime.


Na verdade, dispõe o citado preceito, que “o funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Abusar dos poderes é fazer deles uso para um fim diferente daquele para que a lei os concedeu ao funcionário. Em sentido lato, ainda dentro de uma interpretação declarativa, também abusa dos poderes o funcionário que excede os poderes que lhe são legalmente conferidos ou que desrespeita formalidades essenciais na sua actuação.

O tipo penal do art. 382 do Código Penal, sendo como é, um crime de intenção determinada, reclama um dolo específico, pois que os seus fins ou motivos (a intenção de o agente obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa) fazem parte integrante do tipo legal.

E esse dolo específico não consta sequer da acusação deduzida pelo assistente no requerimento de abertura de instrução, que acima se transcreveu.

No que respeita ao elemento subjectivo do crime, embora se possa controverter se o dolo é inerente à prática do facto, temos por certo que o mesmo devia ser expressamente invocado, para poder ser relevado.

A ideia de um «dolus in re ipsa», que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção, é hoje indefensável no direito penal.

A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo – cf. Prof. Figueiredo Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência, 105, pg. 142.

Por outro lado, também não há prova indiciária suficiente quanto aos demais requisitos do ilícito típico em presença.

É um facto que o assistente, como ele próprio reconhece, conduzia um ciclomotor, numa via pública, sem fazer uso do capacete de protecção, ou seja, em infracção ao disposto no art. 82 n.º2 do Código da Estrada, punível com uma coima de 60 a 300 Euros.

Foi perseguido pelos arguidos, soldados da GNR, que se encontravam em missão de patrulha, que alegaram ter feito sinais sonoros (sirene) e luminosos (pirilampos) desde a viatura em que seguiam, tendo o assistente, nesse momento, olhado para trás e, ao avistar a patrulha, aumentou a velocidade, vindo apenas a ser interceptado próximo do ….

É certo que o assistente veio dar uma versão diferente dos factos e até questiona a legalidade dos sinais que foram feitos.

Porém, qualquer utente da via pública, deve obedecer às ordens legítimas das autoridades com competência para regular e fiscalizar o trânsito, ou dos seus agentes, desde que devidamente identificados como tal (art. 4.º do C. Estrada).

As ordens dos agentes reguladores do trânsito prevalecem sobre as prescrições resultantes dos sinais e sobre as regras de trânsito (art. 7.º n.º3 do C. Estrada).

A questão que se podia colocar, em sede de processo contra-ordenacional, era se a ordem foi regularmente transmitida e se ora recorrente a entendeu.

Note-se que os sinais dos agentes reguladores de trânsito prevenidos no art. 103 do Regulamento de Sinalização de Trânsito, só são aplicáveis quando o agente está apeado e a regular a circulação do trânsito, e não, como no caso dos autos, quando os agentes se deslocavam em viatura que circulava atrás do velocípede do assistente.

As autoridades policiais e fiscalizadoras deverão tomar conta de todos os eventos ou circunstâncias susceptíveis de implicar responsabilidade por contra-ordenação e tomar medidas necessárias para impedir o desaparecimento de provas (art. 48 n.º1 do RGCO).

Devem levantar ou mandar levantar auto de notícia, de harmonia com o disposto no art. 151 do Código da Estrada.

E podem exigir ao agente de uma contra-ordenação a respectiva identificação (cf. art. 49 do RGCO). E para este efeito devem adoptar o procedimento previsto no art. 250 do CPP, aplicável “ut” art. 48 n.º2 do RGCO, sem embargo do que preceitua o art.4.º da Lei n.º 5/95, de 21 de Fevereiro, quanto aos meios de identificação, caso o identificando não seja portador de bilhete de identidade.

O assistente foi autuado, não por não ser portador dos documentos previstos no art. 85 n.º1 e 2 do Código da Estrada, mas por conduzir um velocípede sem capacete de protecção e ter alegadamente desobedecido a uma ordem de parar.

O art. 85 n.º4 do C. Estrada, invocado pelo recorrente na motivação do recurso, apenas tem aplicação aos casos ali previstos e não dispensa a identificação do condutor por qualquer meio prevenido no art. 250 n.º 3 a 5 do CPP.

Por isso que, o facto do assistente ter sido conduzido contra a sua vontade à sua residência para efeitos de identificação não infringe o disposto no art. 27 da CRP, pois este preceito, prevê na alin. g) do n.º3 a detenção de suspeitos para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários.

Mesmo admitindo, por mera hipótese de raciocínio, que não foram seguidos todos os procedimentos legais, os factos constantes da “acusação” do assistente nunca consubstanciariam por parte dos arguidos a prática do crime em apreço.

Por isso que bem andou a Senhora Juiz de Instrução ao não pronunciar os arguidos.

E, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, a Meritíssima Juiz não exorbitou a sua competência, pois impunha-lhe apreciar a prova carreada para os autos e agir em conformidade com o disposto no art. 308 do CPP, sendo certo que também a prova indiciária deve ser sujeita a uma análise racional e objectiva, de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos e técnicos necessários ao caso.

Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito.

Também não se vê em que conspecto o despacho recorrido violou o art.9.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e o art. 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

É que o assistente não o esclarece nem nas conclusões do recurso, nem na motivação, sendo certo que não está demonstrado suficientemente que ele tenha sido arbitrariamente detido.

Também por esta via, portanto, o recurso não merece provimento.

Do exposto se resulta que a decisão recorrida fez uma correcta interpretação e aplicação da lei, não a violando em qualquer ponto, não merecendo qualquer reparo ou censura.

16. Improcedente o recurso, incumbe ao assistente recorrente o pagamento das custas, nos termos prevenidos nos art. 515.º n.º 1 alin. b) e 518.º, do CPP, com a taxa de justiça fixada nos termos e com os critérios estabelecidos nos art. 82.º n.º 1 e 87.º nºs 1 alin. b) e 3, estes do Código das Custas Judiciais.

III

DECISÃO:

17. Termos em que acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente E.V., mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 (cinco) Ucs, a taxa de justiça da sua responsabilidade, sem embargo do apoio judiciário que lhe foi concedido.


(Processado por computador e revisto pelo relator).


Évora, 2005.03.01

F. Ribeiro Cardoso/Gilberto Cunha e Martinho Cardoso




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[1] Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», III, 2.ª edição, Verbo, 2000, pp. 182 e segs.
[2] Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, 2.ª edição, Verbo 1999, pp. 99 e 100.
[3] [Germano Marques da Silva in ob. cit., III, pág. 178].
[4] «Direito Processual Penal», 1.º vol., 1974, pág. 133.
[5] No «Comentário ao CPP Português» (IV, 441).
[6] Sobre o conceito de «indícios suficientes, vd., também, com especial interesse, Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», II, 2.ª edição, Verbo, 1999, pp. 99 e 100, e os Acórdãos, do Tribunal Constitucional, n.º 388/99 (DR, II, 8-11-99, pp. 16.764 e ss., e n.º 583/99, de 20-10-99 (DR, II, 22-2-2000, pp. 3.599 e ss..).