Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
9558/12.0TDLSB.E1
Relator: ANA BARATA DE BRITO
Descritores: RECURSO
NATUREZA JURÍDICA
IMPUTAÇÃO OBJECTIVA
CAUSALIDADE ADEQUADA
HOSPITAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 11/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. Os recursos são remédios jurídicos destinados a reparar erros de julgamento. Não visam e não satisfazem o mero aprimoramento das decisões.
2. No recurso da matéria de facto, a Relação não conhece de questões relativas a alterações de factualidade que se traduzam num mero aprimoramento da sentença e não relevem na aplicação do direito.
3. É de afirmar a imputação objectiva, em caso de morte por broncopneumonia e em caso de infecção pulmonar por bactéria contraídas em meio hospitalar cerca de mês e meio após o acidente.
4. Dentro do quadro de riscos criado pelo arguido, que assume alcoolizado a condução do veículo, encontra-se tanto a consequência da lesão directamente provocada por ele, como as lesões sobrevindas tardiamente por insuficiência dos tratamentos para curar definitivamente a lesão directamente provocada,
5. Também a debilitada condição física da vítima, prévia ao acidente, pessoa amiga do arguido e de mais de 70 anos de idade, não configura uma situação incomum, anormal ou imprevisível, pois não é exclusiva daquela vítima em concreto mas ainda comum a um certo tipo ou grupo de pessoas.
6. O aditamento de regras de conduta à suspensão da prisão pressupõe que a suspensão não garante, por si só e na ausência da regra imposta, as finalidades da punição.
Decisão Texto Integral:


Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo nº 9558/12.0TDLSB, do Tribunal Judicial de M, foi proferida sentença em que se decidiu:
“a) Absolver o arguido AVBM, da prática de uma contra-ordenação grave dos artigos 24° nº 1 e 3, 145° al. e), 138° nº 1 e 147°, todos do CE;
b) Condená-lo como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, dos artigos 13°, 14° nº 1, 26° e 292°, n° 1, do CP, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, o que perfaz o montante global de € 600,00 e na pena acessória de proibição de conduzir qualquer veículo motorizado pelo período de 4 meses e 15 dias, nos termos do disposto no art. 69°, nº 1, aI a) e nº 2, do CP;
c) Condená-lo como autor de um crime de homicídio por negligência grosseira dos artigos 13°, in fine, 15°, al. b) e 137° nºs 1 e 2 do CP na pena de 3 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, com a condição de o arguido: frequentar um curso no âmbito do programa STOP, efectuar pelo menos, uma visita a um Hospital e/ou Centro de Saúde com serviço de politraumatizados e serviço de doente/acidentado em resultado de acidentes rodoviários a indicar pela D.O.R.S.P., entregar no prazo de 1 ano a quantia de € 500,00 aos Bombeiros Voluntários de M, de acordo com o disposto nos arts 50°, 51° nº 1 al. c), 52° nº 1 alíneas b) e c), 53° e 54° do CP;
d) Condená-lo como autor de uma contra-ordenação muito grave, do art. 60.° nº 1 e 65° al. a), ambos do Decreto-Regulamentar n° 22-A/98 de 1110 e art. 146.° al. o) do CE, na coima de € 75,00 e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 2 meses e 15 dias, de acordo com o disposto nos artigos 138°, nº 1, 139° nº 1, 146° al. o) e 147° do Código da Estrada.”
Inconformado, recorreu o arguido AVBM, concluindo:
“01 – A prova produzida em audiência de discussão e julgamento é livremente apreciada pelo Juiz mas deve ser interpretada e valorada à luz das regras da lógica e da experiência comum e não pode ignorar e postergar o teor dos documentos juntos aos autos, sempre numa perspectiva de segurança e certeza jurídicas fundamentadoras da condenação do arguido, já que qualquer dúvida lhe aproveitará, fazendo funcionar o princípio “in dúbio pro reo” que, na maioria dos casos, conduzirá à sua absolvição.
02 – Assim, constando dos autos análise clínica efectuada ao sangue do arguido, que deu o resultado de 1,91 g/l, não pode a douta sentença recorrida dar como provado que tal taxa seria seguramente superior, muito menos daí retirar quaisquer ilações em prejuízo do mesmo, no que ao agravamento dos seus actos ou à sua condenação diz respeito, sob pena de ofensa dos mais elementares princípios da certeza e segurança jurídicas diz respeito e do princípio, constitucional e legalmente consagrado, da sua presunção de inocência.
03 – Deverá, por isso, ser retirada a última parte do facto 1, dado como provado na douta decisão recorrida, subsistindo, apenas e a este respeito, o facto 4, da mesma constante, bem como qualquer outra menção ou qualificação que seja consequência ou dependência da consideração eliminada, designadamente o advérbio “particularmente”, constante do facto 15, dado como provado.
04 – Sendo certo que a idade e o estado de saúde, particularmente a morbilidade acentuada do sinistrado, muito contribuíram para a contracção da infecção hospitalar, que acabou por vitimá-lo, importante se mostra que todas as suas doenças, as referenciadas aquando do internamento e as despistadas pela autópsia, devam ser dadas como provadas.
05- Logo, aos factos constantes do ponto 18º, deverá ser acrescentado que a vítima sofria ainda de nefrotomia do rim esquerdo, fractura antiga da coluna vertebral, displidémia, HBP e hiperuricémia, pela quais estava a ser polimedicado e, ainda, problemas vários no rim restante, vestígios de enfartes pulmonares, aterosclerose múltipla e hipertrofia do ventrículo esquerdo, tudo doenças e problemas documentalmente comprovadas pela documentação clinica junta aos autos e pelo próprio relatório da autópsia.
06 – Quanto à causa da morte do sinistrado, certo é que o mesmo faleceu em consequência de broncopneumonia, contraída no hospital, mês e meio após ter sido internado e já depois de apresentar sensíveis melhorias das lesões traumáticas, sofridas no acidente e por essa razão ter sido transferido para a enfermaria, tudo conforme melhor consta dos autos.
07 – Tal infecção pulmonar foi provocada por bactérias hospitalares multirresistentes, devidamente identificadas pelo médico, não existentes em meio ambiente normal, exterior e só encontradas em ambiente restrito e hospitalar, por isso, tratadas com antibióticos próprios e específicos hospitalares, tal como com todo o conhecimento de causa, especificada, abundante e claramente explicou e demonstrou em julgamento o Dr. JPR, fazendo-o, aliás, sob juramento, o que não aconteceu com o médico do IML, autor da autópsia e respectivo relatório.
08 – Terá, por isso de ser modificado o facto sétimo, dado como provado, em consonância com o quarto, não provado, que passará a sê-lo, uma vez que, não fora a existência das faladas bactérias e a infecção, que provocaram na vítima, (situação infelizmente mais comum do que seria desejável) esta não teria falecido, já que as lesões traumáticas por si sofridas não eram aptas a provocar-lhe a morte e das mesmas, aliás, já estava a restabelecer-se.
09 – É o que resulta evidente da conjugação do próprio relatório da autópsia e do certificado de óbito, conjugados com o relatório e o depoimento do médico acima mencionado, neste aspecto muito mais credível, circunstanciado e claro do que o do IML.
10 – A prova do facto mencionado, ou seja, de que as lesões traumáticas sofridas pelo sinistrado não foram a causa directa, necessária e adequada da sua morte, antes o foi a broncopneumonia provocada por múltiplas bactérias hospitalares resistentes, potenciada pelos seus problemas respiratórios prévios e pelo grave estado de morbilidade do doente, terá necessariamente consequências jurídicas, com a absolvição do arguido do crime de homicídio por negligência, de que veio acusado e com todas as demais legais consequências.
11 – Para o caso de V. Exas assim não virem a doutamente entender, dadas as especiais circunstâncias em que ocorreu o acidente, donde se destacam o encandeamento pelo sol, as características da via, o facto de o arguido ser completamente primário, conduzir a uma velocidade absolutamente dentro dos limites legais para o local e ainda a sua especial relação com a vítima e as consequências, que isso trouxe para si, deverá entender-se que o arguido não actuou com negligência grosseira e ser condenado, se o for, em função pelo disposto no artigo 137º, nº 1, do CP, em pena consentânea com o exposto e sempre abaixo do termo médio da moldura penal prevista.
12 – Neste caso, suspendendo-se-lhe a execução da pena ou, mesmo, substituindo-se-lha por multa, conforme V. Exas melhor adequado considerarem.
13 – Em qualquer caso, deverá ser retirado do regime de prova decretado a visita hospitalar, bem como a doação aos bombeiros, a primeira porque mais do que cumprida com o internamento do arguido, a segunda porque não consentânea com as possibilidades económicas do arguido, provadas em audiência de discussão e julgamento.
14 – Finalmente, no que ao montante das coimas e ao tempo da inibição de conduzir, aplicadas ao arguido, diz respeito, deverão todas ser reduzidas atento o facto de o arguido ser absolutamente primário neste tipo de situações.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:
“1.º Todos os elementos de prova carreados para os autos, produzidos e analisados em audiência de discussão e julgamento foram apreciados e analisados conjuntamente de modo a que do encontro dos vários elementos se obteve a verdade sobre como os factos terão ocorrido ou, pelo menos, a noção tão próxima quanto o possível dessa mesma verdade material.
2.º No que concerne à análise clínica a que o arguido foi sujeito de pesquisa de álcool no sangue temos que a mesma deu como resultado que o arguido apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,91g/l (fls. 28).
3.º Ora, conforme consta da sentença proferida pelo tribunal a quo, a recolhe para a realização da referida análise clínica ocorreu às 19:50 do dia 10.08.2012, sendo que o acidente de viação terá ocorrido às 16:00h desse mesmo dia, ou seja, quando foi realizada a colheita, já haviam passado sensivelmente 4 horas desde o último momento em que o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas.
4.º Desta feita, conclui-se que às 19:50h daquele dia o arguido tinha uma taxa de álcool no sangue de 1,91g/l, tendo concluído o tribunal a quo, usando das regras da experiência e conhecimentos técnicos, que no momento em que o acidente ocorreu, o arguido teria, necessariamente, de ter um teor de álcool no sangue superior.
5.º Contudo e não obstante constatar que o arguido conduzia com uma taxa seguramente superior a 1,91g/l, o tribunal a quo não retira dessa conclusão qualquer consequência para o arguido, precisamente porque, e não obstante o mesmo estar a conduzir com uma taxa superior, não foi objecto de prova em que medida a taxa seria mais elevada.
6.º De facto, e de acordo com o relatório de autópsia médico-legal de fls. 65 a 73, o perito médico que examinou o cadáver do ofendido tinha conhecimento da condição física do mesmo, e teve-a em consideração, tendo concluído que:
“1. A morte de JJM foi de causa não natural, traumática – devida às graves lesões da face – esfacelo, que se agravaram com broncopneumonia. 2. Estas lesões traumáticas foram produzidas por acções de natureza contundente, podendo ter sido resultado de acidente de viação. 3. Estas lesões traumáticas acima descritas foram causa adequada da morte.”
7.º O arguido, ora recorrente, veio a juntar aos autos um relatório médico (fls. 183 a 184) elaborado pelo Sr. Dr. JPR, que vem a concluir que “A causa da morte foi Broncopneumonia (conforme consta no processo), e esta patologia não é consequência directa do traumatismo da face, mas de infecção a bactérias (múltiplas), resistentes, potenciada pela sua patologia respiratória prévia.”.
8.º Contudo, e ouvido o perito médico que elaborou o referido relatório de fls. 65 a 73, o mesmo veio a explicar que a broncopneumonia é uma complicação frequente em situações decorrentes de acidentes de viação e que ocorre também em pessoas saudáveis, não tendo a situação clínica preexistente do ofendido causa concorrente para a mesma.
9.º Mas mais, ainda que mais dúvidas houvesse, facto é que o referido perito médico expressamente concluiu que não ocorreu qualquer infecção devida a bactérias hospitalares ou ao internamento do ofendido.
10.º A testemunha indicada pelo arguido e autora do referido relatório, não tinha o conhecimento prévio da situação clínica do ofendido, nunca viu a vítima ou acompanhou o seu internamento, nunca foi seu médico de clínica geral, nem sequer havia consultado a documentação clínica do Hospital Santa Maria junta aos autos.
11.º Assim, não se pode, pois, ter por certa as conclusões a que chegou a referida testemunha, conclusões essas que não mais são que mera conjecturas sem conhecimento de causa e que, por esse motivo, não têm credibilidade para abalar a confiança depositada nas conclusões a que chegou o perito que realizou a autópsia médico-legal, não havendo nos autos elementos que possam contrair a mesma.
12.º Assim temos por certo que a causa da morte do ofendido se ficou a dever a graves lesões traumáticas da face que se agravaram com broncopneumonia, sendo que tais lesões foram resultado de acidente de viação.
13.º No que concerne à escolha e medida da pena, o tribunal a quo teve em linha de conta as finalidades adjacentes às penas conduzindo à interiorização pelo arguido e para sociedade do desvalor da conduta em questão de modo a que o bem jurídico violado por tal conduta seja reafirmado evitando-se a reincidência e a reintegração do agente na comunidade.
14.º Na ponderação de tais exigências de prevenção geral e especial, aliadas à reintegração do agente na sociedade, deverá o tribunal, na decisão a proferir avaliar se a pena concreta a aplicar ao agente satisfaz de forma adequada e necessária aquelas, devendo dar preferência por pena não privativas da liberdade em detrimento da pena de prisão.
15.º Ora, o arguido nos presentes autos e no que concerne à responsabilidade criminal foi condenado na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo, pela prática de um crime de homicídio negligente (negligência grosseira), previsto e punido nos termos do disposto no art. 137.º, n.º 1 e 2 CP, a que corresponde uma moldura penal de pena de prisão até 5 anos, tendo a pena aplicada ao arguido ficado mediada no último terço da moldura penal.
16.º Dos factos dados como provados temos que o arguido ao decidir conduzir aquele veículo, para mais transportando consigo outra pessoa, após ingerir bebidas alcoólicas em volume suficiente para 4 horas depois do acidente apresentar uma taxa de álcool no sangue de 1,91g/l, violou de forma clara e evidente as regras e normas estradais a que estava obrigado, colocando em perigo a vida e integridade física do próprio e de terceiros, perigo esse que veio efectivamente a concretizar-se visto o que o arguido veio a provocar o acidente de viação do qual resultaram para o ofendido as lesões constantes dos autos e que vieram a ser causa da morte deste.
17.º O arguido tinha, pois, obrigação de saber que não reunia as condições necessárias para iniciar a prática da condução de veículos a motor e devia (o que podia ter feito) ter-se abstido de o fazer. Ao prosseguir com os seus intentos o mesmo violou de forma grosseira as normas estradais e, dessa forma veio a ocasionar a morte do ofendido.
18.º Na realidade e, como de resto, decorre das regras da experiência comum, a ingestão de bebida alcoólicas tem efeitos sobre a condução e sobre a capacidade e tempo de reacção do condutor, capacidade e tempo de reacção esse importantes para o mais que está em causa uma actividade dinâmica como a condução em que a atenção do condutor tem de estar focalizada para a sua conduta e para a conduta dos demais veículos e transeuntes da via pública, factos que não podiam ser desconhecidos do arguido.
19.º Nestes termos, entendeu o tribunal a quo, e de forma correcta, que a culpa do arguido é intensa, tendo o mesmo actuado com negligência na sua forma consciente e grosseira, sendo que quanto à ilicitude do facto a mesma é elevada não só pela taxa de álcool apresentada (1,91g/l) mas também porque o desvalor do resultado da sua conduta é grave tendo atingido o bem jurídico vida, o bem jurídico de maior importância no ordenamento jurídico português.
20.º Não obstante, e atento a ausência de antecedentes criminais, a circunstância de o arguido se encontrar social e familiarmente inserido e de o próprio ter interiorizado o desvalor da sua conduta, entendeu o tribunal a quo suspender na sua execução a pena de multa a que foi condenado
21.º Assim, nenhuma censura merece a sentença recorrida, devendo improceder o recurso interposto pelo arguido.”
Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer também no sentido da improcedência.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:
“1. Pelas 16h00m do dia 10 de Outubro de 2012, tripulava o arguido, pela EN 267, lugar das F, freguesia de A, concelho de M, no sentido de marcha São Marcos da Serra - A, a uma velocidade não concretamente apurada mas que se situava entre os 30 e os 40 Km/hora, o veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo L200, matrícula 00-00-YY, sua propriedade, com uma taxa de álcool no sangue (TAS) não concretamente apurada, mas seguramente superior a 1,91 g/l,
2. Como passageiro, a seu lado, transportava o JJM.
3. Ao km 43 daquela estrada, porque foi encandeado pelo sol e tinha os movimentos toldados pelo álcool, por referência ao seu sentido de marcha, o arguido perdeu o domínio da direcção do veículo, transpôs a linha longitudinal contínua que separava as vias de trânsito e invadiu a via de trânsito e a berma de sentido contrário, o que fez que com o veículo capotasse.
4. O arguido veio então a ser transportado para o Hospital do Barlavento Algarvio, porque padecia, de ferimentos graves, tendo ali sido submetido no dia 10/08/2012, pelas 19h50m, a colheita de sangue, verificando-se que aquele era portador de uma taxa de á1cool no sangue (TAS) de 1,91 g/l.
5. Em consequência do capotamento referido em 3, o João Martins sofreu, directa e necessariamente, ferida contusa ao longo do sulco naso-labial, medindo 4cm de comprimento, ferida contusa, parcialmente cicatrizada, com áreas de infecção, como perda de substância e com exposição do osso frontal, situada na região frontal média, medindo 12x5cm (eixo maior vertical), deformação da pirâmide nasal, com afundamento e com perda de substancia de grande parte da ponta, com ferida contusa, ferida contusa no hemi-lábio superior esquerdo, com perda de substância, medindo 2xl,8cm, infiltração sanguínea do couro cabeludo nas regiões fronto-parietais e fractura dos ossos próprios do nariz e do osso etmoidal, com traços de fractura que se estendem aos pavimentos das órbitas
6. Esteve internado desde 10/08/2012 no Hospital Santa Maria, em Lisboa, sendo que de 12/08 a 21/08 esteve na Unidade dos Queimados, Serviço de Cirurgia Plástica, de 21/08 a 26109 no Serviço de Medicina Intensiva e de 26/09 a 30/09 no Serviço de Doenças Infecciosas, ali tendo falecido pelas 8h30m do dia 30 de Setembro de 2012.
7. A morte ficou a dever-se a broncopneumonia que foi provocada pelas lesões traumáticas que o ofendido sofreu, descritas em 5, as quais, por sua vez foram causadas pelo acidente de viação atrás descrito.
8. Na hora inicialmente apontada era dia, fazia bom tempo e o sol apresentava-se de frente, a provocar encandeamento e a impedir quem seguisse no sentido de marcha São Marcos da Serra - A, nalguns troços, de avistar a faixa de rodagem em toda a sua extensão e de divisar com nitidez quem nela se movimentasse.
9. No local do acidente o limite máximo de velocidade é de 50 km/h e a faixa de rodagem, com cerca de 7,65m, é constituída por duas vias de trânsito, uma em cada sentido de circulação, separadas por uma linha longitudinal contínua e ladeadas, em ambos os sentidos, por berma.
10. O capotamento ocorreu na via de trânsito do sentido de marcha A - São Marcos da Serra, na berma, sendo que entre o local onde o arguido perdeu o controlo do veículo e o local onde o mesmo se imobilizou distam cerca de 18 metros.
11. Após o capotamento, não existiam na faixa de rodagem quaisquer marcas de travagem.
12. Atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, o traçado da via de trânsito e local do despiste, confugira uma apertada curva à direita com grande inclinação descendente.
13. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, ingerindo bebidas alcoólicas no período anterior à condução, as quais foram causa directa daquela taxa de álcool no sangue e com intenção concretizada de tripular aquele veículo na via pública influenciado pelo álcool, ciente de que não o podia fazer naquele estado de embriaguez e que tal ingestão lhe havia retirado a atenção, discernimento e reflexos indispensáveis a uma condução de automóveis com o mínimo de segurança.
14. O arguido agiu com incúria e imprudência na condução do veículo, ao seguir com os reflexos toldados pelo álcool, e, por esse motivo, fez com que não detivesse a marcha do seu veículo, transpusesse a linha longitudinal contínua que separava as vias de trânsito, invadisse a via de trânsito e a berma de sentido contrário e capotasse.
15. Ao actuar da forma descrita, o arguido violou de modo particularmente grave e leviano os mais elementares deveres objectivos de cuidado exigíveis na condução de veículos automóveis, designadamente os deveres jurídicos de abstenção de condução de veículos automóveis sob o efeito de álcool e representou e previu como possível que poderia dar origem a um acidente e, por via disso, causar lesões ou até a morte a outros utentes da via ou a quem consigo seguisse, embora tenha actuado sem se conformar com essa possibilidade, confiante que tal resultado não ocorreria.
16. O arguido bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Mais se provou que:
17. A vítima JJM tinha à data dos factos, 72 anos e era reformado.
18. Sofria de hipertensão arterial, obesidade mórbida, doença pulmonar crónica obstrutiva e apneia do sono.
19. A vítima e o arguido eram amigos de longa data e na altura vinham de urna restaurante sito em São Marcos da Serra onde tinham estado a almoçar e a beber e dirigiam-se para casa do arguido, em M.
20. O arguido nasceu em 17/0611945 e é reformado há cerca de 3 anos, tendo tido como profissão motorista/tractorista de máquinas na Câmara Municipal de M durante cerca de 14 anos.
21. Aufere uma reforma mensal de cerca de € 390,00.
22. É casado e a sua esposa efectua, a tempo parcial, serviços de limpeza em casas particulares.
23. O arguido tem uma filha maior e independente, sendo que com o arguido e a esposa residem dois idosos, mãe e tio do arguido de quem aqueles cuidam, auferindo as correspondentes pensões de reforma dos mesmos.
24. A partir de 2000 o arguido viu a sua condição física debilitada para o trabalho devido a problemas cardíacos, tendo sido submetido a uma intervenção cirúrgica e mantendo acompanhamento médico regular.
25. Vivem em casa arrendada, pela qual pagam uma renda mensal de € 150,00.
26. Não têm empréstimos bancários.
27. Têm encargos significativos com consultas, medicação e deslocações do arguido para tratamento.
28. O arguido tem como habilitações literárias a 43 classe.
29. Possui carta de condução desde 1969.
30. A morte da vítima tem tido sobre o arguido um efeito perturbador angustiante, com sintomas depressivos que têm vindo a ser tratados com o apoio da família e amigos.
31. O arguido mantém um percurso de vida marcado pela estabilidade laboral sociofamiliar, sem questões de relevo quanto ao cumprimento das regras da vida em sociedade e responsabilidades cívicas.
32. É considerado pelos amigos e vizinhos corno urna pessoa pacífica, respeitadora e sociável.
33. Não consta averbado do registo individual de condutor do arguido.
34. Nada consta do certificado de registo criminal do arguido.”
Foram considerados os seguintes factos como não provados:
“1. No local do acidente, o limite máximo de velocidade era de 90 Kms/h,
2. O acidente descrito em 3 dos factos provados se tenha ficado a dever ao facto de o arguido ter imprimido velocidade ao veículo não adequada à visibilidade ali existente.
3. O arguido não tenha adequado a velocidade às condições ambientais naquele local, como podia ter adequado.
4. A morte de JJM se tenha ficado a dever à contracção pelo mesmo de infecções a bactérias existentes em meio hospitalar.”
A motivação da decisão sobre a matéria de facto foi a seguinte:
“A convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de julgamento e na prova documental cristalina e evidente constante dos autos, devidamente conjugada com as regras da experiência comum.
Relativamente às circunstâncias em que ocorreu o acidente, descritas em I a 4 considerou o Tribunal as declarações do arguido prestadas em audiência de julgamento bem como no depoimento das testemunha CMC que se deslocou ao local posteriormente à ocorrência do mesmo, devidamente conjugados com as regras da experiencia comum e da normalidade do acontecer.
O facto descrito em 4 resulta da análise do exame toxicológico de fls, 46, não tendo o mesmo sido contestado pelo arguido.
Em julgamento, o arguido confirmou as circunstâncias do acidente, tendo contudo referido que o mesmo se ficou a dever apenas ao facto de ter sido encandeado pelo sol, quando iniciava a curva, tendo perdido o controlo do veículo e seguido em frente. A velocidade a que seguia o veículo e bem assim o encandeamento provocado pelo sol foi considerada tendo em conta as declarações do arguido, que se consideraram, já que nenhuma outra prova se fez em sentido diverso. Também o militar da GNR confirmou ao Tribunal que na hora em que chegou ao local, o sol estava baixo e poderia de facto, na hora do acidente, estar a bater de frente para o arguido.
Os factos relativos ao local do acidente, características da via, condições atmosféricas que se faziam sentir na altura, velocidade máxima permitida, ausência de marcas de travagem, descritos em 3 e 8 a 12, resultaram das declarações do militar da GNR, CMC que se dirigiu ao local e análise da participação de acidente de viação de fls, 39 a 42, auto de inspecção ao local e fotografias de fls .... e ofício da Câmara Municipal de M de fls. 233 e 234 dos autos.
Claro está que atentas as circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente, tem o Tribunal de concluir que o mesmo se ficou a dever não apenas ao encadeamento do arguido pelo sol mas também e sobretudo ao facto de aquele conduzir sendo portador de uma TAS de 1,91 gr/l, Note-se que o exame foi realizado ao arguido no dia 10/0812012 pelas 19h50m, ou seja, cerca de 4 horas após o acidente (cfr. fls. 46). Como é sabido, os efeitos de ingestão de bebidas alcoólicas começam a produzir-se imediatamente a seguir à sua ingestão e o processo de absorção do álcool demora aproximadamente uma hora, atingindo um valor máximo num período de tempo que varia entre 30 minutos a duas horas, consoante as características pessoais de quem o ingere e as condições em que a absorção se processa (maior ou menor desidratação, ingestão isolada ou acompanhando alimentos, fadiga, consumo de café, tabaco, etc.), sendo que o organismo inicia de imediato o processo de eliminação do álcool, diminuindo a TAS a uma média de 0,1 a 0,2 por hora 1• Ora em face destes factos, não é difícil alcançar que no momento do acidente o arguido teria, sem margem para dúvidas, uma TAS superior à que veio a acusar no exame que lhe foi efectuado (1,91 gr/l).
Os estudos mais recentes sobre o tema revelam que o álcool, sendo um depressor do sistema nervoso central, afecta a capacidade de condução, e os seus efeitos são tanto mais perniciosos quanto maior é a quantidade ingerida. Apenas uma percentagem marginal é directamente eliminada através da urina. A parcela não eliminada entra na corrente sanguínea e é transportada para os diversos órgãos do corpo, afectando progressivamente as capacidades físicas e psíquicas - e logo, o exercício da condução - à medida que vai atingindo o cérebro. Os efeitos provocados pelo consumo do álcool no exercício da condução são os mais diversos e ainda que variem de condutor para condutor, assumem essencialmente as seguintes características:
- Diminuição da capacidade de reacção, nomeadamente, perante eventos inesperados; entorpecimento;
- Descoordenação psicomotora, perceptível em travagens bruscas, golpes de volante, etc;
- Redução da capacidade de análise de eventos exteriores (diminuição da capacidade de avaliar a velocidade do próprio veículo, diminuição da capacidade de avaliar a distância de obstáculos e a velocidade de aproximação de outros veículos);
- Redução da capacidade de seguir linearmente uma trajectória;
- Instala-se o excesso de confiança, indutor de comportamentos imprudentes e muitas vezes aumenta a agressividade (tanto a agressividade social como a agressividade da própria condução); sensação de bem-estar e ilusória sensação de aumento das suas capacidades, que na verdade se encontram diminuídas;
- Redução do campo de visão e da visão periférica.
Por outro lado, em função dos estudos que vêm sendo feitos sobre a matéria, a comunidade científica está tendencialmente de acordo relativamente à influência e relação entre o exercício da condução após consumo de álcool e o risco de envolvimento em acidente mortal, que aumenta exponencialmente à medida que cresce a concentração de álcool no sangue. Vem sendo considerado em diversos artigos publicados sobre o tema o seguinte rácio:
TAS aumento do risco de acidente mortal
O,Süg/l 0 risco aumenta 2 vezes
O,80g/1 .4 vezes
O,90g/1 5 vezes
1,2üg/l 16 vezes
É claro que o estabelecimento da relação causal entre uma taxa de álcool no sangue e um evento estradal civil ou criminalmente relevante não opera automaticamente, tendo antes de ser afirmado através da prova concretamente produzida.
Temos de analisar as concretas circunstâncias em que se deu o acidente, designadamente: o veículo tripulado pelo arguido invadiu a faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário; estava dia, fazendo bom tempo e o local configurava uma curva apertada curva à direita com grande inclinação descendente; não existiam no pavimento marcas de travagem; desde o local onde o arguido perdeu o controlo do veículo e o local onde o mesmo se imobilizou distam cerca de 18 metros; imediatamente antes, o arguido e a vítima, ocupante da viatura, tinham ingerido bebidas alcoólicas num restaurante onde tinham estado a almoçar; cerca de 4 horas após o acidente, o arguido ainda apresentava uma TAS de 1,91 gr/l,
Ora considerando todos estes factos, tem necessariamente o Tribunal de presumir que o acidente se deveu à ingestão de bebidas alcoólicas pelo arguido. É que, circulando o arguido a uma velocidade de 30 ou 40 Kms/h, e por isso respeitando a velocidade máxima permitida no local (50 Kms/h), mesmo sendo aquele encandeado pelo sol, caso não estivesse influenciado pelo álcool, ainda que perdesse o controlo da viatura, poderia perfeitamente ter imobilizado o veículo ou reduzindo ainda mais a velocidade de forma a evitar o acidente. Cremos que o arguido só não o fez, precisamente por não ter capacidade de reacção suficiente e ter os seus movimentos toldados pela elevada quantidade de álcool que havia ingerido.
Conhecidas as consequências do exercício da condução sob o efeito do álcool nos termos em que as expusemos supra, negar a influência do álcool na causalidade subjacente ao acidente a que se reportam os autos equivale a negar o óbvio. A conclusão de que assim sucedeu atinge-se por presunção judicial assente nos factos objectivamente provados e amparada no conhecimento científico sobre o tema, sem que se verifique qualquer "salto" lógico e sem que existam premissas indemonstradas.
Os factos descritos em 5 a 7, resultaram da análise da documentação clínica do Hospital de Santa Maria (apenso I destes autos), do relatório de autópsia de fls, 65 a 73, do certificado de óbito de fls, 87 e da certidão de óbito de fls. 135 e 136 dos autos. Mais considerou o Tribunal as declarações prestadas em audiência de julgamento pelo perito médico, Dr. OS, que elaborou o relatório de autópsia e declarou que a vítima veio a padecer de broncopneumonia pós-traumática, a qual surgiu em consequência das complicações nas lesões traumáticas que sofreu derivadas do acidente. Referiu o perito que a broncopneumonia pós-traumática é uma complicação frequente em situações decorrentes de acidentes de viação, e que ocorre muitas vezes em pessoas completamente saudáveis que sofrem este tipo de lesões, mesmo não tendo aquelas quaisquer problemas de saúde anteriores ao acidente. Salientou o perito que não ocorreu qualquer infecção devida a bactérias hospitalares ou ao internamento da vítima.
Não mereceu por isso qualquer credibilidade o depoimento prestado pela testemunha JPR e nem o parecer médico por aquele elaborado e junto aos autos pelo arguido a fls. 183 e 184, desde logo porque tal parecer e declarações foram emitidas pelo médico sem qualquer conhecimento prévio da situação clínica da vítima, tendo apenas por base a simples análise do relatório de autópsia junto aos autos. O referido médico nunca viu ou acompanhou a vítima, não tendo sido sequer seu médico de medicina geral e nem consultou sequer a documentação clínica do Hospital de Santa Maria junta ao apenso L Ademais, a testemunha é médico de medicina geral, e apesar de ter sido durante muitos anos perito do INML, não foi nessa qualidade que prestou declarações nos autos, não tendo as suas declarações sido minimamente suficientes para abalar o juízo pericial realizado nos autos pelo perito OS.
As declarações do perito, prestadas como esclarecimento de prova pericial efectuada, não podem ser equiparadas às declarações ou depoimentos de uma testemunha, pois não têm em vista transmitir ao tribunal a percepção de factos acessíveis a qualquer um mas, como refere o art. 151, do CPP, de factos cuja percepção exija especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. Esses conhecimentos podem dizer respeito a ciências não exactas, em que opiniões divergentes sobre determinada situação sejam aceitáveis e não supríveis através de um confronto cara a cara em audiência. Considerando as especificidades da prova pericial e o valor que lhe é reconhecido, o legislador previu formas específicas de pôr em causa o respectivo resultado, através de esclarecimentos e nova perícia (art. 158º CPP) não se previndo, naturalmente, a possibilidade de simples acareação/confronto entre as declarações do perito e de uma testemunha, ainda que esta, corno se disse, disponha de conhecimentos médicos.
Assim, cumpre referir que o falecido só precisou de ser internado e operado na sequência das lesões que lhe foram provocadas pelo acidente causado pelo arguido. É certo que o ofendido tinha já 72 anos, sofria de hipertensão arterial, obesidade mórbida, doença pulmonar crónica obstrutiva e apneia do sono que outrossim são factores de risco da ocorrência da broncopneumonia que lhe causou a morte, mas factores de risco secundários, e menores, e não primários e maiores, como ocorre com as cirurgias e a imobilização prolongada. Cremos que um doente, devidamente medicado e assim, controlado, não está tão sujeito ao risco da dita broncopneumonia, como o estará na sequência de intervenções cirúrgicas e de uma inelutável imobilidade.
Assim, não poderemos concluir que a morte da vítima tenha ocorrido de forma anómala ou imprevisível ou que se tenha quebrado o nexo de causalidade. Com efeito, a conduta do arguido causadora do acidente - invasão da faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha - provocou na vítima lesões diversas que exigiram diversas intervenções cirúrgicas. Estas, ainda associadas à imobilização que lhes é inerente, provocaram a broncopneumonia que causou a morte do ofendido. Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/02/2010, proc. n° 3/08.7GDFND.Cl, disponível em www.dgsi.pt. o qual prevê um caso semelhante ao nosso, sendo que ali o decesso se deu um dia após a alta hospitalar e refere: «A vítima já possuía factores de risco próprios, quer pela idade, quer pela patologia que apresentava. Mas com toda a probabilidade (aquela que nos é bastante para este efeito) existiram 3 factores de risco acrescido: - o acidente (o trauma de ter ficado encarcerado num carro, tendo havido uma perfuração dos intestinos); - a operação cirúrgica a que foi submetido - a circunstância de ter estado acamado no hospital (mesmo a serem administrados anti coagulantes)».
Assim, não pode afirmar-se, no caso, a verificação de qualquer quebra no nexo de causalidade entre as lesões causadas ao JJ e a sua subsequente morte - aquelas foram a causa directa e necessária desta; o resultado produzido (morte) mostra-se, pois, causalmente ligado à conduta negligente do arguido, não consubstanciando aquela morte uma consequência imprevisível ou de verificação rara nem para a mesma tendo contribuído qualquer factor imprevisível ou raro, estes juridicamente irrelevantes. Em suma, entre o comportamento do arguido e a morte da vítima existe uma relação de causalidade, directa e necessária, nos termos constantes da matéria de facto considerada provada, englobando o requisito da previsibílidade - o agente da conduta poderia prever que da mesma resultaria a ofensa na vida de uma pessoa, nenhum factor estranho, imprevisível ou raro (designadamente a aludida broncopneumonia) se tendo intrometido no decurso do nexo causal que se iniciou com a conduta ilícita e culminou na referida morte.
No que se refere ao elemento subjectivo descrito em 13 a 16, convém referir que, pertencendo as intenções à esfera íntima de cada pessoa, o Tribunal só as pode apreender de forma indirecta, através da submissão de actos de natureza externa, empiricamente observáveis, ao crivo das regras da experiência e da ordem natural das coisas. Assim, do comportamento do arguido e do seu modus operandi, considerando que aquele foi durante 14 anos motorista, possuindo a sua carta de condução desde 1969 e por isso bem sabendo das eventuais consequências de uma condução com a taxa de álcool de que era portador, é possível, com o auxílio das regras de experiência comum, inferir a intencionalidade que lhe esteve subjacente, bem como o conhecimento pelo arguido do carácter ilícito e censurável das suas condutas. Negou o arguido em julgamento que tivesse previsto a possibilidade de dar origem a um acidente. Não cremos que tal tenha sucedido. Atendendo à elevada taxa de álcool de que o arguido era portador e as características pessoais e sociais já referidas, aquele não poderia deixar de ter previsto tal resultado, simplesmente acreditou que o mesmo não viria a suceder.
Para prova dos factos descritos em 17 e 18, considerou-se o teor do relatório de autópsia e a demais documentação clínica junta aos autos e a certidão de nascimento do ofendido de fls. 85 dos autos.
No que concerne aos factos descritos em 19 a 32 teve-se em atenção as declarações do arguido produzidas em sede de audiência de julgamento, que nessa parte mereceram credibilidade, sendo certo que nenhuma prova em contrário foi produzida. Tais declarações foram também depois corroboradas pelo relatório social realizado pela DGRSP supra referido e também neste ponto considerado. As características associadas à reputação do arguido decorreram dos depoimentos das testemunhas (…), amigos do arguido há largos anos e que privaram com o mesmo.
Para prova dos factos descritos em 33 e 34, considerou o Tribunal o certificado de registo criminal do arguido junto a fls. 166 e ainda a informação relativa ao cadastro rodoviário daquele, constante de fls. 97.
Os factos não provados resultam de não se ter produzido em julgamento prova cabal, suficiente e convincente dos mesmos, bem como a prova de factualidade diversa, já devidamente fundamentada.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são (a) a impugnação da matéria de facto (e a sua relevância no problema da imputação objectiva) e (b) a determinação das penas e das coimas.

(a) Da impugnação da matéria de facto e da imputação objectiva
O recorrente cinge-se à impugnação da sentença em matéria de facto, pedindo a alteração do juízo sobre a factualidade formulado na sentença e pugnando, nessa estrita medida, pela absolvição. Suscita depois, subsidiariamente, a reapreciação das penas (principal e acessória) e das coimas.
Na impugnação da matéria de facto, identifica dois “pontos de facto” cuja reapreciação requer.
O tratamento da questão de facto no julgamento e na sentença precede necessariamente a resolução da questão de direito. Assim sucederá, em regra, na decisão do recurso.
A dialéctica entre facto e norma é, no entanto, uma constante. Facto e norma unem-se num “insolúvel círculo lógico” (na expressão de Castanheira Neves), que condiciona o julgamento da matéria de facto, exigindo a pré-compreensão do direito do caso.
Direito do caso no sentido da abrangência de todas as hipóteses pertinentes e juridicamente admissíveis. Na decisão da causa interessa, por isso, toda a factualidade relevante de acordo com todas as soluções juridicamente admissíveis. E apenas essa.
Situando-nos agora na fase de recurso, importa considerar também que os recursos são remédios jurídicos, destinados a reparar erros de julgamento. Não visam e não satisfazem o mero aprimoramento de decisões.
Prosseguem a reparação de erros, de facto e de direito.
No plano da factualidade, tem de estar em causa um erro de facto cuja reparação influirá na decisão de direito. À ambicionada alteração da factualidade terá de corresponder, assim, uma consequência, ou seja, a alteração terá de se repercutir, positivamente e de algum modo, na decisão de direito (no juízo subsuntivo ou na medida da pena).
O recurso não opera como procedimento de satisfação da “alteração pela alteração”.
A alteração da matéria de facto, no recurso, não deve, pois, ser equacionada no campo da pura abstracção. Ela tem de ser encarada numa perspectiva do efeito potencial concreto sobre o direito a aplicar. E se esse efeito é clara e inquestionavelmente nulo, não deve então o tribunal a quo conhecer de questão que, no limite e a proceder, se traduziria tão só num aprimoramento da sentença.
Assim sucede, no presente caso, relativamente ao primeiro “ponto de facto” especificado no recurso, pelo que não se conhecerá da impugnação nessa parte.
Na verdade, pretendia o recorrente que o facto provado relativo à taxa de alcoolémia a que o arguido conduzia o veículo aquando do acidente sofresse uma alteração: de “uma taxa de álcool no sangue (TAS) não concretamente apurada, mas seguramente superior a 1,91 g/l”, para “uma taxa de álcool no sangue (TAS) igual a 1,91 g/l.
De que diferença na taxa de alcoolemia se trataria então? Essa diferença (de 0,01g/l?), mesmo a reconhecer-se em recurso, mostrar-se-ia sempre juridicamente inconsequente.
Tratar-se-ia de uma diferença ínfima no valor de concentração de álcool no sangue, com nula ou reduzidíssima repercussão na afectação da capacidade de condução. Essa discrepância revelar-se-ia absolutamente indiferente na avaliação da dinâmica do acidente e seria inócua na ponderação sobre o incremento do risco.
Ou seja, trata-se de uma pretensão recursiva que, por si, nada altera.
Já o segundo “ponto de facto” especificado vem a traduzir-se no punctum do recurso.
Respeita a factualidade referente à problemática da imputação objectiva, concretamente, à temática da conexão do risco.
Como se disse de início, o juízo sobre a definição da factualidade precede o juízo subsuntivo dessa factualidade ao direito. Mas, para o direito, concretamente no processo, os factos não interessam como “puros factos”. Relevam apenas como factos com conteúdo normativo.
Nem o “puro facto” nem o “puro direito” se encontram na vida jurídica pois “o facto não tem existência senão a partir do momento em que se torna matéria de aplicação do direito, e o direito não tem interesse senão no momento em que se trata de aplicar ao facto”. Quando o juiz “pensa o facto, pensa-o como matéria de direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao facto” (Castanheira Neves, A Distinção entre a Questão-de-facto e a Questão-de-direito e a Competência do Supremo Tribunal de Justiça como Tribunal de «Revista», Digesta, 1995, pp. 483s).
No presente caso, o “círculo lógico” surge particularmente intrincado, pelo que a análise da factualidade impugnada em recurso deve ser relacionada com o seu sentido normativo. A fronteira entre “facto” / “facto conclusivo” / “direito” nem sempre é fácil de traçar com a nitidez ambicionável e assim sucede relativamente ao “ponto de facto” em crise.
Os factos da sentença são “enunciados linguísticos descritivos de acções” (Perfecto Ibañez, Sobre a Formação Racional da Convicção Judicial, Rev. Julgar nº 13, pp. 155-173). Contudo, o facto ora impugnado, na sua formulação conclusiva, contém já uma determinada assimilação do direito do caso.
Poder-se-ia ter procedido ao seu “desdobramento” em mais factos intermédios do processo causal, que terão estado também em discussão na audiência de julgamento. Esses factos ou circunstâncias (mais secundários ou instrumentais), encontram-se ainda dispersos na sentença, designadamente no exame crítico das provas, sendo devidamente perceptível todo o episódio de vida em apreciação.
E sendo embora, formalmente, na “descrição dos factos provados e não provados” que se devem especificar todos factos essenciais juridicamente relevantes para a decisão (de acordo com todas as soluções de direito possíveis), reservando-se a motivação da matéria de facto para a justificação da factualidade provada e não provada, não está o tribunal de recurso impedido de considerar as referências a factos instrumentais que muitas vezes se encontram na motivação da matéria de facto.
Se da globalidade da sentença transparecer que o julgador atentou em todos os factos e ponderou todas as provas que devia e podia, as insuficiências aparentes da sentença não a comprometerão ao nível da detecção de erros de julgamento. E será também nessa perspectiva de globalidade que se sindicará a decisão recorrida, no confronto das razões do arguido.
O segundo ponto de facto impugnado centraliza-se, então, no facto provado 7. e no facto não provado 4., pretendendo o recorrente a respectiva inversão.
São os seguintes: “7. A morte ficou a dever-se a broncopneumonia que foi provocada pelas lesões traumáticas que o ofendido sofreu, descritas em 5, as quais, por sua vez foram causadas pelo acidente de viação atrás descrito” e “4. A morte de JJM se tenha ficado a dever à contracção pelo mesmo de infecções a bactérias existentes em meio hospitalar”.
Outros factos com relevância para a imputação objectiva encontram-se ainda nos provados da sentença: “17. A vítima JJM tinha à data dos factos, 72 anos e era reformado. 18. Sofria de hipertensão arterial, obesidade mórbida, doença pulmonar crónica obstrutiva e apneia do sono. 19. A vítima e o arguido eram amigos de longa data e na altura vinham de um restaurante sito em São Marcos da Serra onde tinham estado a almoçar e a beber e dirigiam-se para casa do arguido, em M.”
Defende o recorrente “quanto à causa da morte do sinistrado, certo é que o mesmo faleceu em consequência de broncopneumonia, contraída no hospital, mês e meio após ter sido internado e já depois de apresentar sensíveis melhorias das lesões traumáticas, sofridas no acidente e por essa razão ter sido transferido para a enfermaria, tudo conforme melhor consta dos autos.
Tal infecção pulmonar foi provocada por bactérias hospitalares multirresistentes, devidamente identificadas pelo médico, não existentes em meio ambiente normal, exterior e só encontradas em ambiente restrito e hospitalar, por isso, tratadas com antibióticos próprios e específicos hospitalares, tal como com todo o conhecimento de causa, especificada, abundante e claramente explicou e demonstrou em julgamento o Dr. JPR, fazendo-o, aliás, sob juramento, o que não aconteceu com o médico do IML, autor da autópsia e respectivo relatório.”
Pugna por isso no sentido da “modificação do facto sétimo, dado como provado, em consonância com o quarto, não provado, que passará a sê-lo, uma vez que, não fora a existência das faladas bactérias e a infecção, que provocaram na vítima, (situação infelizmente mais comum do que seria desejável) esta não teria falecido, já que as lesões traumáticas por si sofridas não eram aptas a provocar-lhe a morte e das mesmas, aliás, já estava a restabelecer-se.”
Insiste que esta circunstância resultará “evidente da conjugação do próprio relatório da autópsia e do certificado de óbito, conjugados com o relatório e o depoimento do médico acima mencionado, neste aspecto muito mais credível, circunstanciado e claro do que o do IML.” E que “a prova do facto mencionado, ou seja, de que as lesões traumáticas sofridas pelo sinistrado não foram a causa directa, necessária e adequada da sua morte, antes o foi a broncopneumonia provocada por múltiplas bactérias hospitalares resistentes, potenciada pelos seus problemas respiratórios prévios e pelo grave estado de morbilidade do doente, terá necessariamente consequências jurídicas, com a absolvição do arguido do crime de homicídio por negligência, de que veio acusado e com todas as demais legais consequências.”
Acrescenta que “a idade e o estado de saúde, particularmente a morbilidade acentuada do sinistrado, muito contribuíram para a contracção da infecção hospitalar, que acabou por vitimá-lo, importante se mostra que todas as suas doenças, as referenciadas aquando do internamento e as despistadas pela autópsia, devam ser dadas como provadas”
Pretende também a adição de factos novos à matéria de facto provada, ou seja, “que aos factos constantes do ponto 18º, deverá ser acrescentado que a vítima sofria ainda de nefrotomia do rim esquerdo, fractura antiga da coluna vertebral, displidémia, HBP e hiperuricémia, pela quais estava a ser polimedicado e, ainda, problemas vários no rim restante, vestígios de enfartes pulmonares, aterosclerose múltipla e hipertrofia do ventrículo esquerdo, tudo doenças e problemas documentalmente comprovadas pela documentação clinica junta aos autos e pelo próprio relatório da autópsia”.
É de considerar que o recorrente cumpriu minimamente os ónus de impugnação previstos no art. 412º, nº 3 do CPP, sendo perceptível quais as concretas provas especificadas, consistentes na prova documental que indica, contendo informação médica, e no depoimento da testemunha JPR, médico (a propósito deste, referiu o recorrente que depôs “ sob juramento, o que não aconteceu com o médico do IML, autor da autópsia e respectivo relatório”, observação que se mostra absolutamente despropositada, atendendo ao regime legal da perícia e ao compromisso legal assumido pelo perito, matéria também correctamente tratada no exame crítico da sentença).
Com a ambicionada alteração na factualidade, visa o recorrente demonstrar a interrupção do nexo causal estabelecido entre o acidente, as lesões causadas pelo acidente, e a morte. Demonstrar no sentido de fragilizar a prova da acusação, pois seria apenas isso que lhe seria exigível, atentos os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Nada mais traz à discussão na impugnação sobre a factualidade, e sendo o seu recurso essencialmente em matéria de facto, a problematização da imputação objectiva centrar-se-á na interrupção do nexo causal.
A sentença forneceu resposta adequada às objecções apresentadas em recurso, quanto à maior credibilidade que mereceu a perícia e os esclarecimentos complementares do perito médico subscritor dela, por contraposição à menor verosimilhança do depoimento do médico-testemunha.
E fê-lo de modo esgotante e irrepreensível.
Atente-se na passagem seguinte: “Os factos descritos em 5 a 7, resultaram da análise da documentação clínica do Hospital de Santa Maria (apenso I destes autos), do relatório de autópsia de fls, 65 a 73, do certificado de óbito de fls, 87 e da certidão de óbito de fls. 135 e 136 dos autos. Mais considerou o Tribunal as declarações prestadas em audiência de julgamento pelo perito médico, Dr. OS, que elaborou o relatório de autópsia e declarou que a vítima veio a padecer de broncopneumonia pós-traumática, a qual surgiu em consequência das complicações nas lesões traumáticas que sofreu derivadas do acidente. Referiu o perito que a broncopneumonia pós-traumática é uma complicação frequente em situações decorrentes de acidentes de viação, e que ocorre muitas vezes em pessoas completamente saudáveis que sofrem este tipo de lesões, mesmo não tendo aquelas quaisquer problemas de saúde anteriores ao acidente. Salientou o perito que não ocorreu qualquer infecção devida a bactérias hospitalares ou ao internamento da vítima.
Não mereceu por isso qualquer credibilidade o depoimento prestado pela testemunha JPR e nem o parecer médico por aquele elaborado e junto aos autos pelo arguido a fls. 183 e 184, desde logo porque tal parecer e declarações foram emitidas pelo médico sem qualquer conhecimento prévio da situação clínica da vítima, tendo apenas por base a simples análise do relatório de autópsia junto aos autos. O referido médico nunca viu ou acompanhou a vítima, não tendo sido sequer seu médico de medicina geral e nem consultou sequer a documentação clínica do Hospital de Santa Maria junta ao apenso L Ademais, a testemunha é médico de medicina geral, e apesar de ter sido durante muitos anos perito do INML, não foi nessa qualidade que prestou declarações nos autos, não tendo as suas declarações sido minimamente suficientes para abalar o juízo pericial realizado nos autos pelo perito OS.
As declarações do perito, prestadas como esclarecimento de prova pericial efectuada, não podem ser equiparadas às declarações ou depoimentos de uma testemunha, pois não têm em vista transmitir ao tribunal a percepção de factos acessíveis a qualquer um mas, como refere o art. 151º, do CPP, de factos cuja percepção exija especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. Esses conhecimentos podem dizer respeito a ciências não exactas, em que opiniões divergentes sobre determinada situação sejam aceitáveis e não supríveis através de um confronto cara a cara em audiência. Considerando as especificidades da prova pericial e o valor que lhe é reconhecido, o legislador previu formas específicas de pôr em causa o respectivo resultado, através de esclarecimentos e nova perícia (art. 158º CPP) não se prevendo, naturalmente, a possibilidade de simples acareação/confronto entre as declarações do perito e de uma testemunha, ainda que esta, corno se disse, disponha de conhecimentos médicos.”
Sublinhe-se o acerto e a concreta relevância do último período transcrito. Dispensa reiteração ou desenvolvimentos.
Não se vê, assim, motivo para concluir que o tribunal tenha incorrido em erro de julgamento no que respeita ao facto provado 7. e ao não provado 4.. Pois a sentença revela que o tribunal atentou em todas as provas, incluindo as especificadas em recurso, sopesou-as devidamente, apreciou-as de acordo com as normas legais e os princípios de prova, segundo regras de lógica e de experiência comum, e atribuindo à perícia a relevância que legal e concretamente devia merecer, no conjunto de todas as restantes.
Falha a pretendida interrupção do nexo causal, no plano da factualidade e, consequentemente, do direito.
A imputação objectiva seria também concretamente de manter, mesmo na procedência do recurso na parte do eventual aditamento dos alegados factos relativos ao estado de saúde da vítima anterior ao acidente. Por essa razão, o recurso da matéria de facto perde utilidade igualmente nessa parte.
Na verdade, pressupostos da afirmação da tipicidade nos crimes negligentes materiais ou de resultado são a violação de um dever objectivo de cuidado, a produção de um resultado típico e a imputação objectiva desse mesmo resultado típico.
A imputação objectiva do resultado implica causalidade conforme as leis científico-naturais e previsibilidade objectiva, de acordo com um critério de “causalidade adequada” (art. 10º do CP).
Na formulação de Roxin, à causalidade e previsibilidade (que revelam que foi criado um risco) deve acrescer o carácter proibido do risco criado e a concretização desse risco proibido no resultado.
A discordância apresentada em recurso situa-se, não na criação do risco, mas na conexão do risco.
Contudo, dentro do quadro de riscos que o arguido criou, encontra-se tanto a consequência da lesão directamente provocada, como as lesões que tenham sobrevindo mais tardiamente, por insuficiência do tratamento para curar definitivamente a lesão directamente provocada.
Também relativamente a infecção por bactéria eventualmente contraída em meio hospitalar, seria possível estabelecer e manter a relação básica de causalidade.
Na verdade, não se trataria de uma situação imprevisível. As bactérias multirresistentes existem em meio hospitalar (com uma relativa “normalidade”, no sentido que releva aqui), e essa ocorrência ainda estaria dentro do quadro de riscos criado pelo arguido.
Também o concreto quadro do estado geral da vítima (estado de saúde da vítima), pessoa de idade superior a 70 anos (e por sinal até bem conhecida do arguido, pois está provado que eram amigos), não consubstancia circunstância imprevisível.
As suas maleitas (as provadas e aquelas cuja adição se requeria) integram-se num quadro não privativo ou exclusivo daquela vítima em concreto, mas num quadro ainda comum a um certo tipo ou grupo de pessoas.
Não se apresentaria, assim, como algo absolutamente anormal e imprevisto, atendendo ao grupo etário em que a vítima se inseria. E assim estas circunstâncias, mesmo a provarem-se, permitiriam sempre afirmar que o resultado, como se deu, ainda seria uma concretização do risco criado pelo arguido e pelo qual ele deve ser, por isso, responsável.
Também Jescheck e Weigend afirmam a imputação objectiva nos casos de ocorrência da morte em meio hospitalar “por uma infecção que é consequência do debilitamento do estado de saúde do paciente causado pelo acidente” (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 2002, p. 308)
E ainda a propósito do período de tempo que medeia entre o acidente e a morte (no caso, cerca de um mês e meio), recorda-se a afirmação de Roxin, feita em sede de problematização de morte ocorrida muito tempo depois do acidente (Roxin problematiza-a com uma dilação temporal de vinte anos): “não se poderá fixar um limite rígido no tempo, mas haverá que tomar o decurso da doença como critério divisor. Quando o dano causado num acidente se desenvolve com continuidade (seja num prazo mais breve ou mais longo) até à morte, haverá homicídio negligente sempre que concorram os restantes requisitos” (Problemas Fundamentais de Direito Penal, 3ª ed., p. 288/9).
Por tudo, improcede a impugnação da matéria de facto, sendo de manter a factualidade provada e não provada da sentença, bem como o juízo subsuntivo nela efectuado.

(b) Da determinação da pena e da coima
O recorrente pugna, depois, pela alteração da sentença na parte da decisão sobre a pena e a coima, afirmando que “as medidas concretas das penas aplicadas deveriam ser consideravelmente reduzidas” pois é “absolutamente primário”, e devido ainda “às demais especiais circunstâncias em que os factos ocorreram”.
Considera “o regime de prova manifestamente desadequado, vexatório mesmo, excepto no que à frequência do programa da DGRSP diz respeito. De facto, não nos parece necessário e curial obrigar o recorrente à visita hospitalar imposta, quando ele já teve tal experiência, pois esteve internado em serviço idêntico vários dias em consequência do acidente e teve o óbvio contacto com politraumatizados rodoviários.”
Insurge-se ainda contra a imposição da entrega dos 500,00 € aos bombeiros, por se traduzir num “sacrifício exagerado, sobretudo depois das várias coimas em que foi condenado (e nas custas do processo) e atentas as possibilidades económicas do recorrente, tal como resultam da douta sentença recorrida.”
Por último, considera que “no que ao montante das coimas e ao tempo da inibição de conduzir, aplicadas ao arguido, diz respeito, deverão todas ser reduzidas atento o facto de o arguido ser absolutamente primário neste tipo de situações”.
Os recursos (em matéria de facto e em matéria de direito) não são novos julgamentos da causa, mas sempre remédios jurídicos.
Também em matéria de pena, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
Daqui resulta que o tribunal da Relação intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação ou aplicação das normas e princípios legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse decisão de primeira instância.
O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal a quo enquanto componente individual do acto de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção desse desrespeito aos princípios que norteiam a pena ou desse desvio nas operações de determinação impostas por lei. Não abrange, insiste-se, a fiscalização do quantum exacto de pena que, decorrendo da correcta aplicação do direito, ainda se revele proporcionado.
Mutatis mutandis no que respeita à decisão sobre a fixação da coima.
Na sentença, fundamenta-se as penas e as coimas como se segue:
“O crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137° nºs 1 e 2 do Código Penal é punido em abstracto com uma pena de prisão até 5 anos.
O crime de condução de veículo em estado de embriaguez é punido com uma pena de prisão a fixar entre 1 (um) mês e 1 (um) ano ou, em alternativa, entre 10 (dez) e 120 (cento e vinte) dias de multa (cfr, arts. 41°, n° 1,47°, n" 1 e 292°, n" 1, do C.P.).
Imposta por lei a pena de prisão para o crime de homicídio por negligência, cumpre então num primeiro momento escolher a espécie da pena a aplicar ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
A escolha da espécie da pena deve ser orientada pelo critério previsto no art. 70° do Código Penal o qual estipula que "Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição". Este critério geral ancora-se num princípio de necessidade, de proporcionalidade e de subsidiariedade da pena de prisão, tendo em vista, as finalidades das penas. O referido artigo 70° deve ser conjugado com o artigo 40° nº 1 do Código Penal o qual estipula que "A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade", De acordo com FIGUEIREDO DIAS, o legislador tomou posição sobre a problemática dos fins das penas: "são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa .
No presente caso, as exigências de prevenção geral são bastante elevadas atenta a elevada frequência com que as infracções relacionadas com a condução sob o efeito do álcool são praticadas e a sua forte influência na elevada taxa de sinistrai idade rodoviária com centenas de vítimas e elevados danos patrimoniais. É pois um tipo de crime que clama por uma acentuada tutela da ordem jurídica e da paz social.
Já as exigências de prevenção especial são reduzidas. O arguido não tem qualquer antecedente criminal, nunca tendo sido condenado pela prática de crime desta natureza ou qualquer outra. Por outro lado, encontra-se bem inserido na sociedade e na família e é considerado pelos amigos e vizinhos como uma pessoa pacífica, respeitadora e sociável.
Nestes termos, e de acordo com o critério contido no artigo 70° do Código Penal e com a doutrina exposta, ponderando as circunstâncias referidas e apesar de TAS de que o arguido era portador ser elevada, o Tribunal entende que apesar das elevadas exigências de prevenção geral, no caso vertente e em relação ao crime praticado, é suficiente a aplicação ao arguido de uma pena de multa, sendo que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Determinada então a espécie das penas a aplicar a cada um dos crimes, importa agora proceder à determinação da concreta medida da pena de prisão a aplicar ao crime de homicídio por negligência e de multa a aplicar ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
E aqui regem uma vez mais os critérios contidos nos artigos 47° e 71°, ambos do Código Penal.
(…) Para tanto, atender-se-á, nos termos do artigo 71°, nº 2, do Código Penal, a "todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele".
A culpa do arguido é intensa, tendo actuado, no que ao homicídio se refere, com negligência na sua forma consciente e grosseira e com dolo no que se refere ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
No que se refere à ilicitude do facto esta é elevada, atendendo à elevada taxa de álcool de que o arguido era portador, à hora e local dos factos, tratando-se de hora e local onde existe ainda grande afluência de tráfico. Violou, pois o arguido, normas essenciais relativas à condução rodoviária, sem qualquer causa justificativa. O desvalor do resultado é intenso, atentas as gravíssimas consequências do seu acto, que determinou a perda de uma vida. Em seu desabono o facto ter carta de condução desde 1969, tendo tido corno profissão motorista/tractorista de máquinas na Câmara Municipal de M durante cerca de 14 anos, não sendo pois compreensível a sua leviana atitude de conduzir embriagado ainda para mais transportando consigo outras pessoas dentro da viatura.
Abona em seu favor, o facto de se encontrar inserido na sociedade e na família e ser considerado pelos amigos e vizinhos como uma pessoa pacífica, respeitadora e sociável.
O arguido não tem antecedentes criminais, podendo o crime praticado ser considerado um facto isolado numa vida em geral conforme ao dever - ser jurídico - penal, não tendo também averbada qualquer contra-ordenação no seu registo individual de condutor. Em seu favor a postura processual assumida em audiência de julgamento, colaborando na descoberta da verdade material, mostrando-se triste com a morte de JJ, seu amigo, demonstrando que interiorizou o mal cometido, sendo que carregar a morte de uma pessoa na sua consciência é já uma em si uma pena bastante pesada que, não temos dúvidas, o arguido já há muito se encontra a cumprir.
Tudo ponderado, considera-se adequado e justo aplicar ao arguido uma pena de 100 dias de multa em relação ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez e uma pena de prisão de 3 anos em relação ao crime de homicídio por negligência.
Quanto ao quantitativo diário da pena de multa, impõe-se a ponderação acerca da situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais, nos termos da norma contida no nº 2 do artigo 47° do Código Penal. Arredadas aqui, pois, considerações de prevenção geral e especial, bem como o grau de culpa do arguido - vectores essenciais à determinação da medida da pena -, a única indagação exigível é sobre a situação económica e financeira do condenado, bem como os seus encargos pessoais. Pena que sem implicar para o condenado um sacrifício insuportável em detrimento das obrigações e encargos a que ele tem que fazer face, sempre deve traduzir-se na imposição de um real sacrifício para o mesmo, única forma de sentir o desvalor da sua conduta.
Quanto às condições pessoais do arguido e à sua situação económica, apurou-se que aquele, à data dos factos, tinha 72 anos. Actualmente é reformado, auferindo uma pensão mensal de cerca de € 390,00. É casado e a sua esposa efectua a tempo parcial, serviços de limpeza em casas particulares. Tem uma filha maior e independente, sendo que com o arguido e a esposa residem dois idosos, mãe e tio do arguido de quem aqueles cuidam, auferindo as correspondentes pensões de reforma dos mesmos. Vive em casa arrendada, pela qual paga uma renda mensal de € 150,00. Não tem empréstimos bancários. Tem encargos significativos com consultas, medicação e deslocações do arguido para tratamento, uma vez que aquele padece de problemas cardíacos.
Assim, sendo o quantitativo diário da pena de multa balizado entre €5 e €500 (nos termos do disposto no artigo 47° nº 2 do Código Penal) entende o tribunal ser adequado fixar em € 6,00 (seis euros) o quantitativo diário da pena de multa a impor ao arguido.
Neste contexto, afigura-se justo aplicar ao arguido, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a pena de multa de 100 (cem) dias, à referida taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de € 600,00 (seiscentos euros), sendo certo que se a referida multa não for paga, poderá converter-se em prisão subsidiária, ao abrigo do disposto no art. 49° n° 1 do C. Penal.
Da Substituição da Pena de Prisão aplicada ao crime de homicídio por negligência
De acordo com o já citado art. 70° do Código Penal, o Tribunal deve preferir a pena não detentiva à pena privativa de liberdade sempre que aquela realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Desta forma o Tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penai.
Ora no caso em apreço, não pode o Tribunal ponderar a substituição da pena de prisão aplicada por pena de multa, uma vez que a referida pena de prisão aplicada é bem superior a um ano (art. 43° nº 1 do C. P).
Resta pois ao Tribunal ponderar a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido, de acordo com o disposto no art. 50° do C. Penal. A suspensão da execução da pena não pode deixar de ser entendida como uma medida pedagógica e reeducativa (cf. Ac. do STJ de 30¬09-1999, Proc, n." 578/99 - s.a, CJSTJ, VII, torno 1, pág. 213) com vista à realização - de forma adequada - das finalidades da punição, isto é, da protecção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade (art. 40.°, n." 1, do CP).
(…) E tem de ter na sua base um juízo de prognose social favorável ao arguido, isto é, que a respectiva condenação constitua uma séria advertência e um forte alerta para que não volte a delinquir, a praticar crimes: para aquele juízo de prognose deve ter-se a esperança de que o arguido, em liberdade, adira, sem quaisquer reservas, a um processo de socialização. Tal juízo de prognose tem de reportar-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime (cf. Ac, do STJ de 11-05-1995, Proc. n." 47577 - 3.11), e deve assentar «em bases de facto capazes de o suportarem com alguma firmeza, sem que todavia se exija uma certeza quanto ao desenrolar futuro do comportamento do arguido» (cf. Ac. do STJ de 14-12-2000, Proc. n." 2769/00 - S.", in SASTJ n.? 46, pág. 54).
Deste modo para determinar a suspensão da execução da pena, o tribunal deve considerar os elementos referidos no art. 50.° nº 1 do CP (…)
Atendendo ao caso sub judicie, o arguido tem já 72 anos de idade. O crime é objectivamente muito grave, tendo sido cometido com negligência consciente e grosseira. O arguido encontra-se perfeitamente inserido social e familiarmente, estando já reformado. Mantém um percurso de vida marcado pela estabilidade laboral e sociofamiliar, sem questões de relevo quanto ao cumprimento das regras da vida em sociedade e responsabilidades cívicas. É considerado pelos amigos e vizinhos como uma pessoa pacífica, respeitadora e sociável A morte da vítima tem tido sobre o arguido um efeito perturbador angustiante, com sintomas depressivos que têm vindo a ser tratados com o apoio da família e amigos.
Não tem o arguido quaisquer antecedentes contra-ordenacionais ou criminais, assumindo o ilícito agora julgado como um acto ocasional e isolado no seu percurso vivencial. Por último, a sua postura processual, o arrependimento que manifestou e o abalo psicológico que sofreu com a morte da vítima, levam a efectuar um juízo de prognose social favorável ao arguido em termos que permitem suspender-lhe a execução da pena de prisão em que foi condenado.
Assim, decide o Tribunal aplicar ao arguido uma pena de prisão de 3 anos, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, com a condição de o arguido
- frequentar um curso no âmbito do programa STOP - Responsabilidade e Segurança a organizar pela DGRSP ;
- efectuar pelo menos, uma visita a um Hospital e/ou Centro de Saúde com serviço de politraumatizados e serviço de doente/acidentado em resultado de acidentes rodoviários a indicar pela D.G.R.S.P.,
- entregar, no prazo de 1 ano a quantia de € 500,00 aos Bombeiros Voluntários de M;
de acordo com o disposto nos artigos 50°, 51° n° 1 alínea c), 52° n" 1 alíneas b) e c), 53° e 540 do C. Penal, não podendo o arguido cometer qualquer crime durante o referido período, sob pena de a suspensão poder ser revogada e o arguido ter de cumprir prisão efectiva durante o referido período (art. 56° n° 1 alínea b) e n° 2 do C.P.).
Da Medida da Coima e da Sanção Acessória
Praticou então o arguido a contra-ordenação muito grave prevista no artigo 60° n° 1 e 65° alínea a) do Decreto Regulamentar n° 22-A/98 de 1110 e 146º alínea o) do C.E.
De acordo com o art. 139° nº 1 a medida e o regime de execução da sanção determinam-se em função da gravidade da contra-ordenação e da culpa, tendo ainda em conta os antecedentes do infractor relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos» .
E refere também o nº 2 que "Quanto à fixação do montante da coima, seu pagamento em prestações e .fixação da caução de boa conduta, além das circunstâncias referidas no número anterior deve ainda ser tida em conta a situação económica do infractor, quando for conhecida" .
Provou-se que o arguido tem carta de condução desde 1969, sendo por isso um condutor experiente. À data dos factos e bem assim actualmente, o arguido não tinha qualquer antecedente contra-ordenacional. No que se refere à culpa do arguido esta é reduzida, moldando-se na negligência. A ilicitude é elevada atendendo as circunstâncias em que foi cometida a contra-ordenação. Esta assume uma natureza muito grave, sendo como tal classificada pelo artigo 146º alínea o) do CE. No que se refere à situação económica e social do arguido, verifica-se que este se mostra social e familiarmente inserido, tendo o agregado familiar como rendimentos a pensão de reforma do arguido no valor de € 390,00, os rendimentos da sua esposa derivados dos serviços de limpeza em casas particulares e as pensões de reforma de dois idosos que vivem com o arguido e a esposa. As despesas são as habituais com alimentação, despesas domésticas, € 150,00 mensais de renda de casa, despesas com os idosos e despesas médicas do arguido.
A contra-ordenação em causa é punível com coima de 10 000$ a 50 000$ (cfr. artigo 65° alínea a) do Decreto regulamentar n° 22-A/98 de 1110).
Pelo que, tendo em conta a gravidade da infracção, a intensidade da culpa do arguido, a inexistência de antecedentes estradais e a sua situação económica, afigura-se-nos que a condenação deste último numa coima de € 75,00, situada próximo do mínimo legal nos parece adequada.
Por sua vez refere o artigo 147° do C.E.:
"1 - A sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contra-ordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir.
2 - A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às contraordenações graves ou muito graves, respectivamente, e refere-se a todos os veículos a motor. (. .. ) ".
Assim e considerando o disposto nos artigos 138°, nº 1, 139° n" 1, 146° alínea o) e 147°, do C.E., tendo em conta a inexistência de antecedentes estradais do arguido, o facto de aquele ter carta de condução há bastante tempo (tendo em conta a data dos factos), ter sido motorista durante 14 anos e ser por isso um condutor experiente e acima de tudo a gravidade dos factos praticados, entende o Tribunal adequado aplicar-lhe a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de dois meses e quinze dias.
Não podemos sequer equacionar a possibilidade de suspensão da execução da sanção acessória, na medida em que a contra-ordenação em causa reveste natureza muito grave e o artigo 141.°, nº 1, do Código da Estrada apenas prevê tal suspensão para as contra-ordenações graves.
4.4: Da Pena Acessória pela Condução de veículo em estado de embriaguez.
(…) No que se refere à pena acessória de 4 meses e 15 dias de proibição de condução de veículos motorizados devida pela condução de veículo em estado de embriaguez e à sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 2 meses e 15 dias devida pela contraordenação muito grave, cumpre referir que, considerado a sua diferente natureza jurídica, as mesmas não são passíveis de cumulo jurídico entre si, pelo que são cumpridas autonomamente. Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12/02/2008, Proc. n" 2287/07-1, disponível na base de dados do ITIJ, em www.dgsi.pt..”
Dentro da margem de actuação da Relação, no uso dos poderes de cognição sobre a pena exercidos do modo supra referido, cumpre reconhecer o acerto no processo aplicativo das penas principais e acessórias desenvolvido em 1ª instância, à excepção dos dois pontos.
Assim, à parte a imposição de duas das condições que acompanharam a suspensão da prisão e que merecem revogação, não só o recorrente não invocou, em recurso, argumentos que, em concreto, se mostrassem aptos a prosseguir o resultado pretendido (pois todas as circunstâncias que referiu entraram já no processo de ponderação), como a fundamentação das penas e das coimas se revela correcta, tendo conduzido a resultados (a penas e a coimas) necessários, proporcionados e respeitadores do limite da culpa.
O tribunal suspendeu a pena de prisão, reforçando-a com um regime de prova e com as condições de o arguido frequentar um curso no âmbito do programa STOP, de efectuar pelo menos, uma visita a um Hospital e/ou Centro de Saúde com serviço de politraumatizados e serviço de doente/acidentado em resultado de acidentes rodoviários a indicar pela D.O.R.S.P., e de entregar no prazo de 1 ano a quantia de € 500,00 aos Bombeiros Voluntários de M, de acordo com o disposto nos arts 50°, 51° nº 1 al. c), 52° nº 1 alíneas b) e c), 53° e 54° do CP.
O arguido não questiona o regime de prova nem a primeira das condições impostas. Declara mesmo aceitá-los. Alega, no entanto, a desnecessidade da segunda condição e não dispor de condições financeiras para cumprir a última.
Assiste-lhe razão.
O tribunal fez uso do instituto de suspensão da execução da pena, assim concretizando acertadamente os princípios da intervenção mínima do direito penal e da restrição máxima das sanções criminais, e reforçou essa suspensão, correctamente também na parte não impugnada.
Mas ao condicionar a suspensão da prisão ainda à entrega de uma pequena quantia em dinheiro a instituição pública, não terá ponderado devidamente a situação financeira do condenado. Ponderação esta em que terá de entrar, como o próprio refere, não apenas a sua situação económica (modesta) mas também o cômputo (patrimonial) global que terá de satisfazer e que resultará já da presente condenação, na sua globalidade.
A suspensão condicionada é um “meio razoável e flexível para exercer uma influência ressocializadora sobre o agente, sem privação da liberdade” (JeschecK, Weigend, Tratado de Derecho Penal, 2002, p. 898) mas para que se cumpra esse desiderato, o condenado tem que se encontrar em condições de pagar a indemnização que integra a condição. E apresenta-se como razoável a sua alegação de que se apresentará como desproporcionado no caso presente.
Também a visita a Hospital ou Centro de Saúde com serviço de politraumatizados e serviço de doente/acidentado em resultado de acidentes rodoviários se revela, concretamente, desnecessária.
Na verdade, ficou provado que o arguido, de 72 anos de idade e sem passado criminal, era amigo da vítima, que sofreu bastante com a morte dela e com as circunstâncias em que esta ocorreu. Acresce que ele próprio esteve internado na sequência do acidente, ou seja, como que “cumpriu” já por antecipação a “condição” que lhe é agora imposta.
Acresce que o aditamento de regras de conduta à suspensão da prisão deve pressupor que a suspensão, na ausência da regra imposta, não garanta já as finalidades da punição.
Os princípios constitucionais da proporcionalidade e da proibição do excesso mantêm-se como referentes em todo o processo de decisão sobre as consequências do crime.
No presente caso, ficaria por demonstrar a necessidade do robustecimento da suspensão da prisão (que o está já com o regime de prova e a frequência de programa Stop) ainda com os dois deveres a cuja revogação se procede.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar parcialmente procedente o recurso, revogando-se a sentença na parte em que se condicionou a suspensão da pena de prisão ao dever de visita a Hospital ou Centro de Saúde e à entrega de € 500,00 aos Bombeiros Voluntários, mantendo-se toda a sentença na parte restante.
Sem custas.
Évora, 03.11.2015
(Ana Maria Barata de Brito)
(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)