Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
929/08-2
Relator: MARIA ALEXANDRA SANTOS
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CHEQUE
ENDOSSO
Data do Acordão: 11/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário:
I – A omissão de pronúncia, causa da nulidade da sentença, resulta da abstenção de conhecimento de questões suscitadas pelas partes ou de pedidos por elas formulados. Tal nulidade traduz-se no incumprimento, por parte do julgador do dever prescrito no n° 2 do art° 660° do CPC que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

II – Os cheques são títulos literais, formais e abstractos.
A obrigação incorporada no cheque é independente da causa que motiva a emissão e determina-se pela sua análise, sem recurso a elementos estranhos ao título.

III - O endosso é uma declaração expressa ou implicitamente exarada no título pelo transmitente, chamado endossante, e pela qual este transfere ao transmitendo, chamado endossado, os direitos emergentes do mesmo título.
Decisão Texto Integral:
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PROCESSO Nº 929/08 - 2
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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Por apenso aos autos de execução que “A” lhe moveu, veio a executada “B”, deduzir oposição alegando em síntese que:
A sociedade “C” forneceu combustíveis a diversas sociedades onde exerce actividade profissional “D”, que se encontra separado de pessoas e bens da ora executada, precisamente pelas dívidas que contraiu, gerando mal-estar familiar e colocando em causa a subsistência da executada e do filho.
Aquele pediu à executada um cheque para proceder ao pagamento de uma reforma de letra pessoal que passou a circular entre a sociedade “C” e ele próprio.
A executada entregou, então, ao “D” um cheque em branco, por si assinado, para que este o preenchesse com o valor da reforma da letra, que se situaria na ordem dos € 300,00.
O “D”, porém, veio a proceder à entrega do referido cheque, em branco, à sociedade “C”, e esta sociedade, através do próprio “E”, ou a seu mando, preencheu na integralidade as menções apostas num cheque inicial, tendo aí inscrito a quantia de € 85.000,00.
O cheque foi devolvido por falta de provisão e endossado à exequente.
Comunicada à executada a devolução do cheque, interpelou o “D” o qual admitiu ter entregue o cheque em branco com a promessa da sociedade referida de que o mesmo seria apenas preenchido pelo valor da reforma da letra. O “D” veio a proceder à devolução do cheque mediante a exigência de receber um outro em branco, ao que a executada acedeu voltando a entregar-lhe um cheque simplesmente assinado, na expectativa e no convencimento de que desta feita, tal cheque seria descontado por quantia na ordem dos € 300,00.
A executada não teve qualquer negócio com a sociedade ou com a exequente, sendo totalmente alheia à relação comercial existente entre os restantes intervenientes e que afinal foi a sociedade que abusivamente preencheu o cheque e que a exequente será cônjuge do “E”.
Em Junho de 2006 comunicou o seu extravio.
Mais alegou que a data aposta no cheque - 18/09 - encontra-se rasurada pois o dia anteriormente ali existente era muito anterior a 18, o mesmo sucedendo com a inclusão do mês correspondente a Setembro porque também o anteriormente ali aposto era anterior a Setembro.
Por isso o cheque não foi apresentado a pagamento no prazo de oito dias como refere a exequente no seu requerimento executivo.
Concluiu pela procedência da oposição e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido exequendo.
Contestando, veio a exequente dizer que é portadora de boa fé do cheque dos autos, por lhe ter sido endossado pela sociedade “E”, no exacto estado em que se encontra no processo, para pagamento de um débito que esta sociedade tinha para com ela.
Concluiu pela improcedência da oposição.

Entendendo que os autos continham já todos os elementos necessários, o Exmº Juiz proferiu a sentença de fls. 63 e segs., que julgando a oposição improcedente, ordenou o prosseguimento da execução.

Inconformada, apelou a executada/embargante, alegando e formulando as seguintes conclusões:
1 - Foi alegado no articulado de oposição à execução que a data de vencimento do cheque tinha sido rasurada, tendo sido aposta uma data em substituição da inicialmente colocada, que punha em crise o prazo de apresentação do cheque a pagamento, por não terem sido respeitados os 8 dias de apresentação do mesmo.
2 - O tribunal deixou de se pronunciar acerca desta matéria, não conhecendo da mesma, não a apreciando e não decidindo a causa considerando essa alegação.
3 - Essa matéria é importante à decisão da causa, razão pela qual a sentença proferida é nula, por via do art° 668° nº 1 al. d) do CPC.
4 - Foi alegada matéria de 6° a 28° no requerimento de oposição, com interesse para a causa.
5 - Todavia, o tribunal não conheceu dessa matéria, não apreciou nem considerou.
6 - Parte dessa matéria é fulcral para a decisão da causa.
7 - Razão pela qual a sentença proferida é nula, nos termos do preceito acima indicado.
8 - Assim sendo, deve a sentença proferida na instância ser anulada e ser determinado o reenvio do processo para elaboração da especificação e base instrutória, seguindo o processo os ulteriores termos até final, uma vez que não é possível ao Tribunal da Relação apreciar na exacta latitude os factos controvertidos com interesse para a causa.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente abrangendo apenas as questões aí contidas (art°s 684° nº 3 e 690 nº 1 do CPC), verifica-se que a única questão é decidir é saber se a sentença é nula por omissão de pronúncia nos termos do art° 668° n° 1 al. d) do CPC, devendo, em
consequência os autos serem remetidos à 1ª instância para o seu prosseguimento com vista à averiguação de matéria controvertida alegada relevante para a decisão da causa.
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Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
A - A exequente deu à execução um cheque do qual consta que foi emitido por “B” a favor de “C”, datado de 18-09-2006 no montante de € 77.686,31 e sacado sobre a “F”.
B - No verso do mesmo, consta que a beneficiária o endossou à exequente.
C - Do mesmo verso consta ainda a seguinte menção: "devolvido na compensação em 26-09-2006 motivo extravio".

Na sua alegação imputa a apelante à sentença recorrida o vício da nulidade por omissão de pronúncia, a que se refere o art° 668° nº 1 al. d) do CPC alegando que aduziu no seu requerimento de embargos matéria pertinente para a decisão da causa que a seu ver assumirá eficácia impeditiva da acção executiva cambiária titulada pelo cheque dado à execução, sobre a qual o tribunal não se pronunciou, sendo que os autos deveriam ter seguido para julgamento para apreciação da referida matéria.
Como é sabido, a omissão de pronúncia, causa da nulidade da sentença a que se refere o art° 668° n° 1 al. d) do CPC resulta da abstenção de conhecimento de questões suscitadas pelas partes ou de pedidos por elas formulados.
Tal nulidade traduz-se no incumprimento, por parte do julgador do dever prescrito no n° 2 do art° 660° do CPC que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Ora, conforme resulta da sentença recorrida, o Exmº Juiz não omitiu pronúncia sobre as questões suscitadas pela embargante, designadamente sobre a questão da rasura do cheque, sendo que, expressamente, sobre ela se pronunciou dizendo que tal alegação, além do mais, "... se enquadra na denominada excepção fundada nas relações imediatas que não pode (. . .) servir no âmbito desta execução porque estamos na presença de relações mediatas (. . .)"
Não tendo havido qualquer omissão de pronúncia não se verifica a alegada nulidade da sentença, sendo questão diferente a de saber se a matéria em causa se enquadra (como decidiu a sentença recorrida) ou não no âmbito das relações imediatas.
Isto é, importa apreciar se existe matéria alegada pertinente à procedência dos embargos de que caiba ao tribunal conhecer e que determinem a necessidade de prosseguimento dos autos para julgamento.
Como se sabe, os cheques são títulos literais, formais e abstractos.
A obrigação incorporada no cheque é independente da causa que motiva a emissão, determina-se pela sua análise, sem recurso a elementos estranhos ao título.
O cheque contém uma ordem incondicionada de pagamento à vista, dada pelo sacador ao banqueiro onde aquele tem (ou deve ter) fundos disponíveis para movimentar (art° 28° da LUC)
O cheque estipulado a favor de uma determinada pessoa, com ou sem cláusula expressa "à ordem", é transmissível por via de endosso (art° 14° da LUC)
O endosso é uma declaração expressa ou implicitamente exarada no título pelo transmitente, chamado endossante, e pela qual este transfere ao transmitendo, chamado endossado, os direitos emergentes do mesmo título (art° 17°)
No caso dos autos estamos perante um cheque emitido à ordem de uma sociedade, “C”, pelo que esta podia endossá-lo, como fez, assinando no verso do cheque, ali figurando como endossada a exequente que assim é legítima portadora do cheque (art° 19°)
Conforme resulta dos art°s 40° e 44°, todas as pessoas obrigadas em virtude de um cheque são solidariamente responsáveis para com o portador, que contra elas pode proceder individual ou colectivamente, sem necessidade de observar a ordem por que se obrigaram, desde que tenha sido apresentado a pagamento em tempo útil (prazo de oito dias - art° 29°) e tenha sido verificada a recusa de pagamento nos termos prescritos no referido art° 40°.
Conforme resulta dos autos, in casu, a exequente demandou a sacadora/embargante e a sociedade endossante “C” (cfr. certidão de fls. 113 e segs.)
Assim, o cheque em causa encontra-se aqui no domínio das relações mediatas pois a executada e a exequente não são sujeitos cambiários imediatos na cadeia de transmissão do título nem entre elas se estabeleceu qualquer relação jurídica que haja dado causa à emissão do título.
Alega a executada/embargante a existência de um acordo de preenchimento nos termos do qual terá entregue o cheque a “D”, a seu pedido, pessoa de quem se encontra separada de pessoas e bens, para que este o preenchesse com o valor da reforma de uma letra na ordem dos € 300,00, sendo que aquele o entregou, em branco, apenas por ela assinado, à sociedade “C”, a qual o preencheu abusivamente, sendo ainda que a data nele aposta foi rasurada, para uma data posterior à que nela figurava inicialmente. Defendeu-se, assim, a embargante invocando por um lado o preenchimento abusivo do cheque por parte da sociedade co-executada e por outro, a rasura da data do cheque com a aposição no mesmo de data posterior à que dele constava inicialmente.
Ora, a embargante ao entregar o cheque assinado exprimiu a intenção de contrair uma obrigação cambiária.
Assim sendo, ainda que aquele acordo de preenchimento tivesse sido violado, a inobservância desse acordo não pode ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido o cheque de má fé, ou, adquirindo-o tenha cometido uma falta grave. É o que resulta do art° 13° da LUC nos termos do qual "Se um cheque incompleto no momento de ser passado tiver sido completado contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido o cheque de má fé, ou, adquirindo-o tenha cometido uma falta grave".
E, do mesmo modo, estabelece o art° 22° que "As pessoas accionadas em virtude de um cheque não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador ao adquirir o cheque tiver procedido conscientemente em detrimento de devedor".
Os autores têm interpretado, por um lado, o segmento normativo "tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor" que igualmente consta na parte final do art° 17° da LULL, no sentido de o portador ter agido, ao adquirir a letra, com a consciência de causar por via dessa aquisição prejuízo ao devedor; e, por outro, têm considerado verificar-se a consciência de causar esse prejuízo ao devedor por parte do portador da letra quando ele tenha conhecimento da existência e legitimidade das excepções que o primeiro poderia opor a quem a endossou ao segundo (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Coimbra 1975).
Tendo em conta a letra e o espírito dos mencionados segmentos normativos, dir-se-á em síntese, que ter procedido conscientemente em detrimento do devedor significa ter o adquirente agido, ao adquirir o cheque, com a consciência de causar por via dessa aquisição um prejuízo ao devedor, por exemplo ao sacador, ou seja, se conhecia a verificação das excepções juridicamente relevantes ao seu endossante oponíveis pelo primeiro.
Assim, ao portador mediato do cheque são oponíveis excepções pessoais fundadas em relações extracartulares estabelecidas com o devedor se ao adquiri-lo tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor.
Daqui resulta, como supra se referiu, que a excepção do preenchimento abusivo e as excepções pessoais não podem ser opostas ao terceiro adquirente de boa fé, salvo nos casos ali previstos. Trata-se de razões que se prendem com a necessidade de promover a confiança na utilização deste título.
Ora, in casu, a embargante limita-se a alegar um acordo de preenchimento do cheque com o seu marido a quem o entregou apenas assinado, o qual veio a entregá-lo nesse estado à sociedade “C”.
Nada é aduzido no requerimento de embargos quanto a qualquer conhecimento por parte da embargada de que ao adquirir o cheque estava a causar prejuízo à embargante, bem como não lhe é assacada a violação de qualquer dever de diligência de que permitisse aperceber-se de que semelhante prejuízo estava a ser causado.
Na ausência de tais elementos é inócua a matéria aduzida relativa à violação da convenção de preenchimento pelo que nesta parte assiste razão ao Exmº julgador ao decidir que tal matéria não pode ser oposta à embargada por nos encontrarmos face a relações mediatas.

Diferente é a questão da alegada rasura do cheque.
Com efeito, há certas circunstâncias que devem poder ser opostas ao possuidor tais como as excepções de forma, as que resultam da falsidade da subscrição, ou da falta de condições necessárias para o exercício a acção (neste sentido cfr. Vaz Serra, Bol. 60°, 121)
Ora, in casu, alegou a apelante que a data aposta no cheque, requisito de validade do título como cheque, ou de condição para o exercício da acção, se apresentava rasurada com uma data posterior por forma a possibilitar a apresentação a pagamento no prazo legal pela exequente e a sua utilização como título executivo cambiário. E mais alegou que o cheque foi preenchido pela sociedade beneficiária do mesmo e bem assim que a exequente endossada será cônjuge do gerente daquela sociedade, pelo que também foi abusiva a sua apresentação a desconto.
Por sua vez, na contestação aos embargos a exequente alega que é portadora de boa fé e que o cheque lhe foi endossado pela sociedade “C” no estado em que se encontra no processo para pagamento de um débito que esta sociedade tinha para com ela, tendo-o apresentado a pagamento no prazo de oito dias contados da data nele aposta.
Ora, em face da excepção invocada pela embargante de falta de uma condição essencial para o exercício de acção, qual seja a de apresentação do cheque a pagamento e sua verificação no prazo de oito dias, porquanto alega a verificação de rasura na data aposta no cheque, a qual inicialmente teria uma data anterior, não poderia o Exmº Juiz considerar provado o facto descriminado sob a al. a) dos factos provados.
Com efeito, podendo opor à exequente tal excepção porquanto não respeita à obrigação causal mas sim à própria condição de procedibilidade da acção cambiária, trata-se de matéria controvertida que cabe ao tribunal averiguar, pelo que não podia o Exmº juiz decidir, como decidiu, em sede de despacho saneador, havendo que proceder à instrução e julgamento da causa para apuramento da matéria em apreço.
Sendo certo que a data aposta no cheque é de 18/09/2006 e a da declaração da câmara de compensação é de 26/09/2006, provando-se que aquela data foi rasurada e aposta sobre outra anterior por forma a fazer coincidir o prazo de oito dias, faltaria uma condição de propositura de acção cambiária, pois mostrar-se-ia excedido o referido prazo de oito dias.
Tal matéria consubstancia-se, essencialmente, em saber quem apôs a data de 18/09/2006 no cheque em apreço (se a endossante, se a exequente), se o cheque foi inicialmente preenchido com data anterior àquela e se o mesmo foi endossado à embargada com a referida data aposta ou outra anterior.
A factualidade a que respeita tal matéria foi alegada pela embargante no seu requerimento de oposição e bem assim pela embargada na sua contestação, devendo de tais articulados ser retirada e quesitada toda a matéria necessária ao apuramento da questão em apreço.
Procedem, pois, nos termos expostos, as conclusões da alegação da apelante impondo-se a revogação da sentença recorrida, devendo o processo prosseguir os seus ulteriores termos, desde logo, com a selecção dos factos assentes e elaboração da base instrutória.

DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogando o saneador/sentença recorrido, determinam o prosseguimento dos autos com a selecção dos factos assentes e elaboração da base instrutória.
Custas pela parte vencida a final.
Évora, 2008.11.13