Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
53/11.6TAEZ.E2
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DIFAMAÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
HONRA E CONSIDERAÇÃO
Data do Acordão: 07/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - A expressão “texto da decisão recorrida”, ínsita no n.º 2 do art. 410.º do C.P.P., deve entender-se como toda a parte da decisão que diga respeito a matéria factual, aqui se incluindo a matéria de facto provada, a não provada e a fundamentação de facto.
II - A Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vulgarmente designada como Convenção Europeia dos Direitos do Homem) vigora na ordem jurídica portuguesa com valor infra-constitucional, isto é, com valor superior ao direito ordinário português.
III - Considerando a adesão de Portugal à Convenção e o teor do art. 8.º da Constituição da República Portuguesa, a não aplicação da Convenção, enquanto direito interno português de origem convencional, é um claro erro de direito.
IV- A apreciação valorativa do confronto entre a liberdade de expressão e a honra é feita em sede infra-constitucional pela Convenção e pelo ordenamento penal português, e não no patamar constitucional, o que torna a Convenção um pilar essencial de onde se deve partir para a análise criminal em casos que exijam a sua aplicação.
V- A Convenção faz uma clara opção na definição da maior relevância do valor “liberdade de expressão” sobre o valor “honra”. Ou seja, a “ponderação de valores” é normativa, já foi feita pela Convenção com uma clara preferência pelo valor “liberdade de expressão”.
VI - A liberdade de expressão só pode ser sujeita a restrições nos termos claros e restritivos do n.º 2 do art. 10.º da Convenção, pelo que as “formalidades, condições, restrições e sanções” à liberdade de expressão devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade imperiosa e interpretadas restritivamente (Decisão Sunday Times, 26-04-1979, § 65).
VII - A tutela da honra deve situar-se na análise dos tipos penais de difamação no momento lógico de análise do n.º 2 desse art. 10.º.
VIII – Esse art. 10.º é um pilar, não apenas de reconhecimento de direitos individuais, mas muito mais relevantemente de reconhecer que há direitos individuais que são o cimento de um determinado tipo de sociedade, a sociedade democrática, juridicamente Estado de Direito.
IX - Se no geral prevalece como direito maior a liberdade de expressão pela sua essencialidade democrática, no campo da luta politica e questões de “interesse geral” a tutela da honra é residual. É jurisprudência convencional constante a afirmação de que no campo da luta e discurso político ou em questões de interesse geral “pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão”.
X - Na análise do n.º 2 do art. 10º da Convenção é necessário saber se existem os requisitos de punibilidade ali contidos: se a restrição à liberdade de expressão está “prevista na lei” (aqui através do tipo penal de difamação) e prossegue um “objectivo legítimo” (aqui a tutela da honra) e se a condenação do arguido se justifica, se é uma “providência necessária numa sociedade democrática”.
XI - A expressão “providência necessária numa sociedade democrática” tem sido interpretada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem como a exigência de uma “necessidade social imperiosa” que justifique uma condenação.
XII – A natureza e a medida das penas infligidas pela prática de crimes de difamação são elementos a ter em consideração quando se trata de medir a proporcionalidade da ingerência na liberdade de expressão.
XIII – Neste sentido, a aplicação de penas de prisão não se justifica nos crimes de difamação, excepto em circunstâncias excepcionais, designadamente se outros direitos fundamentais foram gravemente atingidos, como nos casos de incitamento à violência, de discurso de violência contra pessoas ou grupos, de incitamento ao ódio e de apelo à intolerância.
XIV - O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem na recente decisão Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal (3 de Abril 2014, § 36) é claro em considerar que o ordenamento jurídico português contém um remédio específico para a protecção da honra e da reputação no art. 70.º do Código Civil, pelo que a penalização por difamação se deve entender hoje como residual.
Decisão Texto Integral:






Recurso 53/11.6TAEZ.E2



Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


A - Relatório:
No Tribunal Judicial de Estremoz correu termos o processo comum singular supra numerado no qual o assistente A (fls. 21), deduziu acusação particular contra o arguido B, (…), imputando-lhe a prática de dois crimes de difamação, na forma de publicidade e calúnia, p. e p. pelo disposto nos artigos 180º, nº 1 e 183º, nºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal (fls. 140 a 142).
Deduziu, ainda, pedido de indemnização civil, peticionando a condenação do demandado B no pagamento da quantia de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), devida a título de danos não patrimoniais por si sofridos em virtude da conduta do demandado (fls. 142 a 144).
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O Ministério Público acompanhou integralmente a acusação particular (fls. 155/156).
O arguido requereu a abertura de instrução na qual foi lavrado despacho de não pronúncia (fls. 258 a 271).
O assistente recorreu do despacho de não pronúncia e este Tribunal da Relação de Évora lavrou acórdão a revogar parcialmente o despacho recorrido e a determinar a sua substituição por um despacho que pronunciasse o arguido pela prática de um crime de difamação, na forma de publicidade e calúnia, p. e p. pelo disposto nos artigos 180º, nº 1 e 183º, nºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal (fls. 376 a 396).
Na sequência a Mma. Juíza de Instrução proferiu despacho - remetendo para as razões de facto enunciadas nos artigos 9º a 17º da acusação particular - a pronunciar o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, na forma de publicidade e calúnia, p. e p. pelo disposto nos artigos 180º, nº 1 e 183º, nºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal (fls. 403/404).
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A final - por sentença lavrada a 10 de Janeiro de 2014 - veio o Tribunal recorrido a decidir:
A) Condenar o arguido B pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, na forma de publicidade, p. e p. pelo disposto no artigo 180º, nº 1 e 183º, nºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito euros), perfazendo o montante de € 1.280,00 (mil duzentos e oitenta euros);
B) Condenar o demandado civil B a pagar ao demandante A a quantia de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), absolvendo-o no demais peticionado;
C) O mais legal.
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O arguido, não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

DECISÃO RECORRIDA
A. Vem o presente recurso da sentença do Tribunal Judicial de Estremoz, datada de 10 de Janeiro de 2014, que decidiu “A) Condenar o arguido B pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, na forma de publicidade, p. e p. pelo disposto no artigo 180º, nº 1 e 183º, nºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito euros), perfazendo o montante de € 1.280,00 (mil duzentos e oitenta euros). B) Condeno o demandado civil B a pagar ao demandante A a quantia de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), absolvendo-o no demais peticionado. C) Condeno o arguido a pagar as custas criminais, fixando a taxa de justiça no seu limite mínimo (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais) ”.
RECURSO EM MATÉRIA DE DIREITO
DA IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAR A IMPUTAÇÃO OBJECTIVA DA CONDUTA DO AGENTE AO RESULTADO: CONSIDERAÇÕES GERAIS E O CASO DOS AUTOS
B. Nos termos do artigo 10.º, n.º 1, do Código Penal, “Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”.
C. Se o crime é de resultado – como é o caso do crime em apreço nos presentes autos –, a tipicidade objectiva depende cumulativamente da verificação efectiva do resultado e da imputação objectiva do resultado ao comportamento.
D. Ao nível da imputação objectiva, convém ter sempre presente que no quadro da teoria do risco se distinguem grupos de casos em que a imputação objectiva é excluída apesar de o resultado ser consequência previsível da acção.
E. A imputação deverá ter-se por excluída quando o resultado tenha sido produzido por uma acção que não ultrapassou o limite do risco juridicamente permitido.
F. Daí resulta que não pode o direito penal, dada sua natureza de ultima ratio, sancionar comportamentos que tenham produzido a lesão bens jurídicos em virtude da materialização de riscos que são tolerados de forma geral.
G. Os factos em causa nos presentes autos traduzem o tipo de situações identificadas pela mais aclamada Doutrina como factor de impossibilidade de imputação de determinado resultado ao comportamento assacado ao Arguido, aqui Recorrente.
H. O Tribunal a quo dispôs de todos os dados e elementos que lhe permitiam constatar, à evidência, que os dois intervenientes dos factos em apreço neste processo se colocaram, livremente, ao longo de largo período temporal, no âmbito circunstancial de risco amplamente permitido por ambos.
I. A aceitar-se que o Recorrente se dirigiu a terceiro, imputando ao Assistente, mesmo que sob a forma de suspeita, determinado facto, o que é certo, também, é que a imputação dessa conduta, ao resultado previsto na lei (ofensa à honra ou consideração do Assistente), deverá ter-se por excluída por ter esse resultado – a ter ocorrido, e o Tribunal a quo considerou que sim – sido produzido por uma acção que não ultrapassou o limite do risco juridicamente permitido.
J. O Tribunal a quo considerou provado, afirmando-o repetidas vezes, a normalidade do conflito existente entre Recorrente e Assistente – porque persistente e visível a toda a comunidade estremocense, a mesma onde se insere o Tribunal a quo.
K. Para além de todo o comportamento imputado ao Recorrente se encontrar dentro do risco juridicamente permitido, foi, além do mais, o mesmo risco potenciado com a conduta anterior do Assistente.
L. Nessas situações de potenciação do risco de ameaça do bem jurídico, o resultado não será imputável ao agente do crime quando a potenciação desse mesmo risco não decorre do seu comportamento, antes do comportamento da vítima do putativo crime.
M. Resulta de forma notória não só do texto da Decisão recorrida como da análise perfunctória do processo, sobretudo desde que o Recorrente foi reempossado como Presidente da Câmara de (…), que o – perdoe-se a expressão – azedume do Assistente para com ele piorou de tom.
N. Por força da conduta do Assistente, reiterada e constante, há que dizer, de forma aberta e frontal, que a potenciação do risco de ofensa ao bem jurídico honra ou consideração do mesmo é, neste caso, a expressão máxima do exemplo popular de que o Assistente “pôs-se a jeito”.
O. O Assistente insinuou que o Recorrente havia praticado crimes de participação económica em negócio e de abuso de poder, que são manifestamente mais graves e desonrosos do que o crime de que o Recorrente foi acusado e condenado.
P. Na verdade, o Assistente proferiu afirmações como “Muito mais ilegal, e passível de perca de mandato, é a encomenda de pareceres técnicos aos serviços da autarquia e B fê-lo, como foi vinculado por um ex-quadro superior da Câmara na imprensa local! Muito mais ilegal é sustentar um empréstimo bancário da autarquia com uma “carta de conforto” assinada pelo Presidente da Câmara, que nunca passou pela Câmara Municipal e muito menos pela Assembleia Municipal, como é de Lei, e B fê-lo!”.
Q. O Assistente também afirmou que “A forma apressada como B tratou deste assunto, primeiro inviabilizando as obras já previstas a pretexto de uma renegociação que nunca assumiu e depois desfraldando a bandeira da nulidade dos contratos com base numa pouco fundamentada informação jurídica, e a sua ligação anterior à referida empresa espanhola permitem-nos, pelo menos, conjecturar se todo este processo terá alguma coisa a ver com os interesses dos estremocenses”. Aliás, quando o Assistente, perguntado se os textos que escreveu (e que assume que imputam a prática de crimes gravíssimos ao Recorrente) podem ofender a dignidade pessoal do Presidente da Câmara de (…), respondeu que “É óbvio que não. São opiniões políticas” – cfr. gravação da sessão de 13/11/2013, entre os 36m56s e 36m58s –, mais acrescentando que “São questões, são opiniões na minha função de director de um jornal regional, sobre as políticas da Câmara e do Senhor Presidente da Câmara. Não são mais do que isso. E no uso dos meus direitos e liberdades constitucionais” – cfr. entre os 37m20s e os 37m36s da mesma gravação.
R. Situações objectivamente mais gravosas que aquelas que aqui nos trazem já mereceram, ao nível da jurisprudência dos Tribunais da Relação, a assunção clara de que este tipo de situações não constitui a prática de qualquer crime – sobretudo neste contexto próprio do debate político mais fervoroso.
S. No âmbito do Processo n.º 1469/06.5TAGMR, o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, por Acórdão datado de 12 de Março de 2012, referiu expressamente que “A liberdade de opinião não é absoluta. Porém, havendo o referido “interesse público”, tais juízos só atentarão ilicitamente contra a honra se nada tiverem a ver com o exercício do direito de opinião, isto é, se forem exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar. Acontecerá isso naquelas situações em que os juízos negativos sobre o visado se desprendem de qualquer conexão com a matéria em discussão, quando se exercita uma pura agressão pessoal. Ora, no texto em análise não é possível detectar esse exclusivo fito de agressão pessoal. Como já se referiu estava em causa uma questão de interesse público e o texto em nenhum momento se descentra da apresentação de argumentos para a alteração do nome da pista de atletismo, argumentos esses cuja conexão com a vida desportiva é evidente”.
T. Em 1993, C, na qualidade de director do Jornal (…), publicou um artigo nesse jornal em que, referindo-se à pessoa de D, alegado candidato do (…) às eleições autárquicas, encabeçando a lista desse partido à (…), proferiu as seguintes expressões em relação ao segundo: “Nem nas arcas mais arqueológicas e bafientas do salazarismo seria possível desencantar um candidato ideologicamente mais grotesco e boçal, uma mistura tão inacreditável de reaccionarismo alarve, sacristanismo fascista e anti-semitismo ordinário. Qualquer figura destacada do Estado Novo ou qualquer presidente da (…) durante o anterior regime passariam por insignes progressistas em comparação com este brilhante achado”; “direcção do (…) recorreu a uma figura que representa o que há de mais beato, bolorento e ridículo na direita portuguesa”.
U. Revogando a sentença absolutória proferida em primeira instância, o Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão datado de 29 de Novembro de 1995, condenou C, pela prática de um crime de difamação, na pena de multa de cento e cinquenta mil escudos.
V. Posteriormente, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por Acórdão transitado em julgado a 28 de Dezembro de 2000, condenou o Estado português a indemnizar C em 2.238.297$00, por, entre o mais, considerar que: “A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e realização de cada um. Sem prejuízo do n.º 2, ela é válida não apenas para as «informações» ou «ideias» acolhidas favoravelmente ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para as que ferem, chocam ou causam inquietação. Assim o exigem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática». Como especifica o artigo 10.º, o exercício desta liberdade está sujeito a formalidades, condições, restrições e sanções que todavia devem ser estritamente interpretadas, devendo a sua necessidade ser estabelecida de maneira convincente (ver, entre outras, as seguintes sentenças: Janowski c. Po1ónia [GC], n.º 25716/94, § 30, CEDH 1999-I; Nilsen et Johnsen c. Noruega [GC], n.º 23118/93, § 43, CEDH 1999- VIII).” (…) “O homem político expõe-se inevitável e conscientemente a um controlo atento dos seus factos e gestos, tanto pelos jornalistas como pela generalidade dos cidadãos, e deve revelar uma maior tolerância sobretudo quando ele próprio profere declarações públicas susceptíveis de crítica. Sem dúvida tem direito a protecção da sua reputação, mesmo fora do âmbito da sua vida privada, mas os imperativos de tal protecção devem ser comparados com os interesses da livre discussão das questões políticas, exigindo as excepções à liberdade de expressão uma interpretação restritiva (ver, nomeadamente, a sentença Oberschlick c. Áustria (n.º 2), de 1 de Julho de 1997, Recueil des arrêts et décisions 1997-IV, pp. 1274-1275, § 29).” (…) “Decerto que os escritos do requerente, e em particular as expressões utilizadas, podem passar por polémicos. Apesar disso, estes não contêm um ataque pessoal gratuito, porque o autor dá neles uma explicação objectiva. O Tribunal considera a esse respeito que, neste domínio, a invectiva política extravasa, por vezes, para o plano pessoal: são estas os riscos do jogo político e do debate livre de ideias, garantes de uma sociedade democrática”.
W. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, assente na salvaguarda da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – instrumento de Direito Internacional Público que vincula o Estado português – deve assumir-se como um verdadeiro paradigma interpretativo em matéria de colisão de direitos fundamentais.
DA IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAR A IMPUTAÇÃO OBJECTIVA DA CONDUTA DO AGENTE AO RESULTADO: CONSEQUÊNCIA
X. Nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP, “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova”.
Y. O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Z. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito
AA. Verifica-se no texto da decisão recorrida que se dá por provado que “17) À data da entrevista que o arguido deu ao jornal “(…)”, existia uma querela entre o arguido e o assistente acerca da atribuição de subsídios por parte da Câmara Municipal de (…) àquela Instituição. 18) Outras querelas de natureza política existiam entre o arguido e o assistente. 19) O assistente, através de um blog e do jornal “(…)”, publicava diversos artigos onde expressava a sua opinião acerca do modo como o arguido exerce o cargo de Presidente da Câmara Municipal de (…)”.
BB. Estes factos, identificados em 17) a 19) dos factos considerados provados pelo Tribunal a quo, contrariam com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, os factos, designadamente os identificados em 6) a 8), essenciais à imputação objectiva do resultado previsto no crime de difamação ao comportamento também imputado ao Arguido.
CC. Não é possível imputar o resultado do crime em apreço destes autos ao comportamento do Recorrente, na medida em que esse mesmo comportamento integra uma actuação dentro do risco juridicamente permitido, ao mesmo tempo que esse mesmo risco de ofensa foi potenciado pela actuação anterior e reiterada do Assistente.
DD. Quer se entenda a questão como um erro notório na apreciação da prova, quer se entenda a mesma questão como uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, certo é que por não ser possível a imputação do resultado ofensa à honra ao comportamento praticado pelo Recorrente, inexiste comissão (por acção) do crime pelo qual o Arguido foi condenado.
EE. Integrando a presente situação na previsão do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP, não deixa o Recorrente de, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 2, do CPP, sintomaticamente frisar que o Tribunal a quo errou na determinação da norma aplicável, por ter aplicado os artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, no sentido de condenar o Arguido, quando, por força do supra exposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, do Código Penal, o comportamento do Arguido não pode ser objectivamente imputado ao resultado de que a lei faz depender a emergência da responsabilidade penal, razão pela qual se impunha, e se impõe, a sua absolvição.
Se assim não se entender, sem conceder, sempre se dirá que ocorre
A JUSTIFICAÇÃO DO TIPO ILÍCITO
FF. A ilicitude da conduta criminosa aprecia-se negativamente, perguntando-se se se verifica no caso alguma causa de justificação do facto típico. Se se verificar, o facto é lícito; se não, é ilícito.
GG. A justificação de um facto típico dependerá da verificação cumulativa de elementos objectivos e de elementos subjectivos dessa causa de justificação.
HH. Nos termos do artigo 38.º, n.º 1, do CP, “o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes”, determinando o n.º 2 que, relativamente ao formalismo associado ao consentimento, “o consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, e pode ser livremente revogado até à execução do facto”.
II. É necessário que o consentimento signifique um assentimento real e persistente no momento do facto, porque só assim se pode afirmar que o facto típico corresponde à vontade e à autodeterminação do atingido.
JJ. Em razão dos factos dados como provados na decisão recorrida, e dos que decorrem dos mesmos, tendo sido conhecidos pelo Tribunal a quo e expressos na mesma decisão, também em sede de fundamentação, entende o Recorrente que, caso não se aceite que o comportamento que lhe foi imputado integra o risco juridicamente permitido que exclui a possibilidade de imputação objectiva do resultado do tipo àquele comportamento, sempre se terá de aceitar que o Assistente consentiu na “lesão” – se é que a houve – da sua honra e consideração, nunca o tendo revogado – o seu consentimento – em momento anterior à apresentação da Queixa-crime que está na génese deste processo.
KK. O Assistente sabia, e queria, que ao ingressar no ringue do debate político com o Arguido, anuía na potencialidade de se colocar numa situação em que os riscos de lesão de determinados bens jurídicos pessoais que titula serem ofendidos – designadamente, a sua honra ou consideração.
LL. É uma manifestação evidente das regras da pura lógica e da experiência comum que, quando dois opositores políticos, enveredam por um trilho de debate aceso persistente, em que “protagonizam o espectáculo” decorrente da actividade dos órgãos administrativos em que desempenham cargos, colocam-se, natural e invariavelmente, numa situação em que, abstractamente, as ofensas àqueles bens jurídicos pessoais se permitem – e se aceitam mutuamente.
MM. É também uma manifestação evidente das regras da pura lógica e da experiência comum que, quando o Assistente, de forma reiterada, acusa o Recorrente indevidamente da prática de crimes que sabe que este não praticou, apenas para apimentar esse confronto e diálogo político, ou para elevar o “protagonismo” que praticamente todas as testemunhas inquiridas em audiência de julgamento reputaram aos dois, esperará, necessariamente, uma resposta passível de significar, também em abstracto, o espelho dos seus actos – mesmo que um espelho fosco, já que a resposta do Recorrente às ofensas do Assistente nunca atingiram o patamar de danosidade que atingiram as perpetradas por este último.
NN. O Assistente consentiu – renovando o seu consentimento, sucessivamente, cada vez que “protagonizava” novo debate com o Arguido – na lesão de bens jurídicos pessoais de que é titular, tendo-se traduzido esse consentimento numa vontade séria, livre e esclarecida daquele.
OO. Porém, admitindo-se – por mera hipótese de raciocínio, e por dever de patrocínio que nos cumpre sempre acautelar – que o consentimento do Assistente não é real ou efectivo, sempre se terá de admitir a legitimidade do ora Recorrente presumir esse consentimento, pelas mesmíssimas circunstâncias factuais que fundamentam a consideração anterior de que há consentimento real e efectivo.
PP. Assim são as coisas quando, como prevê o artigo 39.º, n.º 2, do CP, “a situação em que o agente actua permitir razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado”, resultando daí os mesmos efeitos que o legislador atribuiu ao consentimento real, por via do estatuído no n.º 1 do artigo 39.º.
QQ. Até ao momento em que o Assistente se queixou, nunca sequer passaria pela cabeça do Arguido – o de qualquer homem médio colocado na mesma situação que este – que o primeiro havia revogado o seu consentimento anterior, ou muito menos, que nem houvesse consentido o comportamento do Arguido.
RR. A haver-se quer uma quer outra situação, restará senão concluir que o Arguido, no momento em que praticou os factos pelos quais ora responde criminalmente, estava em erro em relação aos factos que legitimam o surgimento de uma causa de justificação do tipo ilícito por que responde, e não poderá o Arguido ser sancionado, dolosamente, por esse erro, ou por não ter tido um especial zelo na aferição dos pressupostos factuais de que dependeria a justificação da sua conduta, tipicamente ilícita.
SS. Em matéria de consentimento presumido não há lugar para considerar que uma “cuidadosa comprovação” constitua pressuposto da justificação, pelo que devem aqui valer as regras da doutrina geral das causas justificativas: quem age supondo, com cuidadosa comprovação ou sem ela, verificados os pressupostos da justificação, actua justificadamente se tais pressupostos na realidade se verificam; se ele supõe erroneamente a sua verificação não actua dolosamente, só podendo ser punível, se disso for caso, por negligência.
TT. Se não se reunirem os elementos subjectivos de uma causa de justificação, o facto será, necessariamente ilícito e, por essa razão, a análise da verificação dos diversos elementos do crime avançará para o patamar da culpa.
UU. É também no “estádio” da discussão da culpa do agente que se coloca a questão de saber que relevância se deverá dar à circunstância de o agente ter erradamente suposto a verificação de alguma causa de justificação.
VV. Nos termos do artigo 16.º, n.º 2, do Código Penal, é necessário que se possa afirmar que o “estado de coisas” falsamente suposto pelo agente, se tivesse existido, excluiria ou a ilicitude do facto praticado (casos de “justificação putativa”) ou a culpa do agente (casos de “exclusão da culpa putativa”).
WW. Nos termos do artigo 13.º, do Código Penal, “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
XX. O Arguido, aqui Recorrente, foi acusado, e condenado pela Decisão recorrida, por um crime de difamação, p. p. nos termos do artigo 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal.
YY. O crime em causa é necessariamente doloso, afastando qualquer hipótese de punibilidade a título de negligência.
ZZ. Os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, assim como toda a fundamentação expendida na Decisão recorrida, levam, salvo melhor opinião, a considerar qualquer uma das hipóteses acima indicadas, isto é, (1) que havia consentimento real e efectivo do Assistente para a lesão dos bens jurídicos pessoais que titula de que, em data posterior à prática dos factos, veio reclamar da respectiva ofensa, estando impossibilitada a responsabilidade criminal do Arguido, por força do disposto no artigo 38.º, n.º 1, do Código Penal; ou (2) que era legítimo ao Arguido presumir o consentimento do Assistente, estando, assim, também vedada a sua responsabilidade criminal, por força do disposto no artigo 39.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal; ou (3) que o Arguido estava em erro em relação aos factos que, objectivamente, desencadeariam o surgimento de uma causa de justificação do tipo de ilícito que, também, conduz à impossibilidade natural, e legal, de ser o mesmo sancionado penalmente pelo seu comportamento, por força da norma resultante da aplicação conjugada dos artigos 16.º, n.º 2, 13.º e 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, todos do Código Penal.
AAA. De todo o ora exposto resulta – resultando também do texto da decisão recorrida – uma contradição manifesta, e insanável, entre a fundamentação da Decisão recorrida, e a própria Decisão, por da mesma (fundamentação) emergir uma Decisão diametralmente oposta à que foi, efectivamente tomada.
BBB. A justificação do tipo de ilícito, ou o comportamento negligente num tipo em que a negligência não é punida criminalmente, obstam, necessária e invariavelmente, à aplicação de uma pena ao Arguido, porquanto não ser o seu comportamento, para efeitos da lei, penalmente sancionável.
CCC. Assim, integrando a presente situação na previsão do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP, não deixa o Recorrente de, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 2, do CPP, sintomaticamente frisar que o Tribunal a quo errou na determinação da norma aplicável, por ter aplicado os artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, no sentido de condenar o Arguido, quando, por força do supra exposto, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 38.º, n.º1, 39.º, n.ºs 1 e 2, 16.º, n.º 2 e 13.º, todos do Código Penal, o comportamento do Arguido não corresponde à prática de um crime, razão pela qual se impunha, e se impõe, a sua absolvição.
Se assim não se entender, sem conceder, sempre se dirá que houve
ERRO NA DETERMINAÇÃO DA PENA APLICÁVEL
DDD. Nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 186.º, n.º 2, do Código Penal, “O tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido”.
EEE. É assumido na Decisão recorrida o ambiente tenso, conflituoso, gerador de situações “de limite” entre Recorrente e Assistente; que à data da entrevista, existiam várias querelas entre o arguido e o assistente; que estes discordavam de muitas questões; que arguido e assistente eram frequentes “protagonistas” nas reuniões da Assembleia Municipal; que os documentos juntos aos autos a fls. 87 a 115, 202 a 221 e 252/253 evidenciam bem a existência de um conflito; que os documentos juntos a fls. 196 a 201 também demonstram o conflito e as querelas políticos, que perpassava para os jornais e blogs; que o arguido e o assistente eram, usualmente, “protagonistas” nas reuniões da Assembleia Municipal e que eram frequentes as trocas de acusações entre ambos; e que o conflito político e a troca de acusações em jornais por parte do arguido e do assistente e ainda nas reuniões da Assembleia Municipal pode, em certa medida, melhor ajudar a compreender o clima envolvente.
FFF. Entendeu, porém, o Tribunal a quo “que as exigências de prevenção geral e especial positivas ainda se bastam com a aplicação, ao arguido de uma pena de multa”.
GGG. Nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 412.º, n.º 2, alínea c), do CPP, conclui-se que houve da parte do Tribunal a quo erro na determinação da norma aplicável, por se ter aplicado a norma resultante da aplicação conjugada dos artigos 14.º, n.º 1, 40.º, n.ºs 1 e 2, 47.º, n.º 2, 71.º e 183.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, para condenar o Arguido nos termos já aduzidos supra quando, na verdade, se reclamava – e reclama – a aplicação do artigo 186.º, n.º 2, do mesmo código, conjunta ou separadamente dos artigos anteriormente referenciados.
HHH. É mais ou menos unânime na doutrina que a provocação consiste em uma ofensa, consubstanciada em uma conduta ilícita ou repreensível, que determina um estado psicológico de ira ou descontrolo emotivo que se centra, impulsivamente, em uma imediata reacção àquela precisa ofensa primitiva
III. A ilicitude da conduta, é óbvio, não tem de ser uma ilicitude penal e o sentido da repreensibilidade deve ser visto em termos de um mínimo de objectividade.
JJJ. A ofensa ilícita ou repreensível tem que desencadear um estado psicológico de ira ou de descontrolo emocional. Sustenta-se, deste jeito, o carácter inequívoco da existência de um nexo causal entre a agressão e o estado de ira ou furor. Estado este que faz desencadear o contra-ataque. Daí que se deva defender um duplo nexo de causalidade entre a ofensa repreensível e a conduta penalmente relevante de violação do bem jurídico da honra.
KKK. O Tribunal a quo reconheceu um estado psicológico de ira ou de descontrolo emocional, motivado pelas anteriores declarações do Assistente, no momento em que o Arguido proferiu as declarações sobre o Assistente que aqui nos trazem.
LLL. O mesmo Tribunal assume que esse estado é passível de desencadear um contra-ataque da banda do Arguido para o Assistente, havendo, por isso, um inequívoco nexo causal entre as declarações do primeiro e as do segundo, e um inequívoco nexo causal entre o estado anímico desencadeado pelas declarações do Assistente e aquelas pelas quais foi o Arguido condenado.
MMM. O Tribunal a quo deveria ter lançado mão da faculdade que o legislador lhe conferiu por via daquela norma, aplicando-a, o que se absteve de fazer.
NNN. Sem prejuízo de todas as considerações anteriormente reveladas – designadamente, de considerar o Recorrente, por inúmeras razões, de que não estão reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a sua responsabilidade criminal, inexistindo a prática de qualquer crime –, a admitir-se que o arguido praticou o ilícito de que foi condenado – o que se faz por cautela e dever de patrocínio que sempre nos cumpre salvaguardar – e com dolo, poderá e deverá ser aplicada a dispensa de pena prevista no artigo 186.º, n.º 2, do Código Penal, não se aplicando, por isso, os artigos 14.º, n.º 1, 40.º, n.ºs 1 e 2, 47.º, n.º 2, 71.º e 183.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, nos termos aplicados pelo Tribunal a quo, no sentido de condenar o Arguido pela pena de multa por que foi condenado.
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
OOO. Nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do CPP, considera o Recorrente que foram incorrectamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto da Decisão Recorrida: Pontos 6, 7 e 8 dos Factos provados, e ainda as seguintes referências constantes da Motivação, de que “A prova dos factos enunciados nos pontos 6) a 8) assentou, desde logo, no próprio teor das afirmações que o arguido proferiu junto deste jornal” – Motivação da Decisão recorrida, página 9 – e que “conjugado com o próprio teor das afirmações que o arguido proferiu naquela entrevista, lançando ainda mão das regras da lógica e da experiência comum, nos levam a concluir que o arguido visou com tais declarações ofender a honra e a imagem do assistente” – Motivação da Decisão recorrida, página 9.
PPP. A prova produzida em sede de audiência de julgamento não permite chegar à mesma conclusão que a chegada pelo Tribunal a quo, e não permite que se considerem provados os factos ora indicados e que o mesmo Tribunal assim considerou.
QQQ. Em cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do CPP, são as seguintes as provas que impõem decisão diversa da recorrida, por abalarem as provas incorrectamente julgadas pelo Tribunal a quo:
RRR. Declarações do Arguido na sessão do dia 13/11/2013, entre os 4m40s e os 5m29s, entre os 10m5s e os 10m8s, entre os 15m53s e os 16m36s, entre os 21m48s a 22m08s e entre os 26m15s a 26m54s;
SSS. Declarações do Assistente no dia 13/11/2013, entre os 8m41s a 9m25s, entre os 9m33s e 9m35s, ente os 9m46s a 10m23s, a partir dos 15m13s a 16m20s, entre os 16m23s a 16m30s, entre os 18m00s e 18m24s, entre os 19m37s a 19m50s, entre os 21m49s a 21m59s, entre os 36m56s e os 36m58s, entre os 37m20s e os 37m36s, aos 45m30s, aos 46m00s e aos 49m36s das suas declarações;
TTT. Na mesma sessão de 13/11/2013, as declarações da Testemunha E, aos 10m31s da gravação;
UUU. Na sessão de 26/11/2013, as declarações da Testemunha F aos 9m53s a 10m29s da gravação, aos 13m18s a 13m22s, aos 14m18s a 14m26s e aos 15m20s da gravação;
VVV. Ainda na mesma sessão de julgamento – a 26/11/2013 –, as declarações da Testemunha G, aos 9m55s do seu depoimento, aos 11m16s e aos16m46s da gravação;
WWW. Também na sessão de 26/11/2013, as declarações da Testemunha H, aos 5m25s, entre os 6m17s e os 6m57s da gravação e aos 10m12s a 10m40s da gravação;
XXX. Na sessão de 26/11/2013, as declarações da Testemunha I aos 5m36s, entre os 11m01s e os 11m14s e entre os 11m26s e os 11m31s;
YYY. Na sessão de 26/11/2013, as declarações da Testemunha J aos 22m40s e seguintes da gravação;
ZZZ. Na última sessão de julgamento, de 17/12/2013, declarações da Testemunha K aos 9m22s a 9m48s e entre os 20m57s a 21m10s;
AAAA. Na mesma sessão de julgamento de 17/12/2013, as declarações da Testemunha L aos 3m01s e seguintes, 3m31s e seguintes, 3m49s, 9m04s a 9m12s, 10m01s, 11m17s, 11m45s e seguintes e 21m16s e seguintes;
BBBB. No mesmo dia 17/12/2013, as declarações da Testemunha M aos 3m37s e seguintes.
(Constando da Motivação do presente recurso a transcrição da prova ora indicada)
CCCC. Das declarações do Arguido prestadas em sede de audiência de julgamento, aqui referenciadas e em sede de Motivação, resulta de forma manifesta que ao proferir as afirmações que o Tribunal a quo lhe imputa, nunca o Arguido quis ofender quem quer que seja, muito menos o Assistente.
DDDD. Essas afirmações foram produzidas, única e exclusivamente, no contexto de diálogo e de debate político havido entre o Recorrente e o Assistente, resultando das mesmas a inexistência de qualquer dolo eventual pelo Arguido – quando mais dolo directo ou necessário.
EEEE. Existe evidente contradição entre diversos depoimentos prestados em sede de julgamento que, salvo melhor opinião, não permitem que se julguem provados os factos que o Tribunal a quo julgou e que estão aqui em cheque.
FFFF. O Assistente, em sede de audiência de julgamento, negou qualquer conflito passado com o Arguido, chegando ao ponto de referir que as sessões da Assembleia Municipal de (…) decorriam com toda a normalidade; porém, essa tensão e conflito a que o Assistente agora “foge” e que o Recorrente assume sem qualquer hesitação, veio depois a ser confirmado por testemunhas como F, I, L e M.
GGGG. Referiu também o Assistente, ainda em sede de julgamento, que se sentiu “chocado”, “indignado”, “perturbado”, “sem força anímica” e “vilipendiado na honra”; porém, mesmo “sem forças”, qual pobre coitado, continuou a levar a vida como sempre levou, designadamente naquilo em que precisa de força, contrariando frontalmente o que diz em primeiro lugar.
HHHH. Provou-se que não perdeu nenhum amigo, que não se reformou por força dos factos aqui em apreço, que continuou a ser eleito para a (…), e que as mais diversas Testemunhas inquiridas em julgamento não perderam o respeito que guardavam ao mesmo, nem mudaram “um milímetro” a opinião que tinham sobre o Assistente.
IIII. Manifestamente, inexiste qualquer ofensa consumada à honra do Assistente – já dizia o outro, “só não vê, quem não quer”.
JJJJ. Quando em julgamento se pretendeu apurar a repercussão, directa e indirecta, do comportamento imputado ao Arguido, na pessoa do Assistente, é, no mínimo, assustadora a tamanha vagueza com se concretizou essa repercussão.
KKKK. Nem o teor das afirmações que o arguido proferiu nem as regras da lógica e da experiência comum permitem afirmar, para lá de qualquer dúvida razoável, que o Recorrente tenha querido e tenho ofendido o Assistente, que essas afirmações tenham qualquer repercussão directa, ou indirecta, na honra ou consideração do mesmo, e que a sua imagem tenham sido afectada pelas mesmas, porquanto ter sido produzido prova de que inexistiu qualquer ofensa do Arguido para com o Assistente, e de que inexistiu qualquer espécie de dolo do Arguido ao agir como se lhe imputa que agiu, tudo se tratando do mero diálogo político (aceso) que sempre reinou entre estes dois intervenientes, mas que a agora o Assistente, mentindo, nega!
LLLL. Se assim não se atender, o que não se concede, há que pelo menos admitir que, por força das contradições apontadas que resultou da prova produzida em sede de audiência e julgamento, não é possível julgar-se provado, como julgou o Tribunal a quo, os factos pelo mesmo Tribunal indicados em 6) a 8) dos “Factos Provados”.
RECURSO DA MATÉRIA CIVIL
MMMM. Julgou o Tribunal a quo, em matéria de danos, que o “demandado alegou (e logrou) provar, ou seja, que se sentiu ofendido na sua honra, reputação e consideração, sobretudo estando em causa uma figura conhecida na região pela sua ligação, quer à política, quer à fundação de uma rádio, de uma empresa noticiosa, à direcção de um jornal e da Associação (…) e de uma Associação europeia com membros em vários países na Europa. E estes comentários assumiram uma maior gravidade se tivermos em conta que foram proferidos junto de um órgão de comunicação social, aumentando a vergonha e vexame sentidos” – cfr. paginas 27 e 28.
NNNN. Mais julgou o Tribunal a quo “que se encontram preenchidos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual relativamente ao demandado civil, constituindo-o na obrigação de indemnizar” – cfr. página 28 da Decisão recorrida.
OOOO. Nos termos do artigo 403.º, n.º 3, do CPP, “A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida”.
PPPP. O Tribunal a quo, em termos factuais, assenta a Decisão nos factos juridicamente relevantes para efeitos de decisão penal.
QQQQ. Inexistem fundamentos que permitam a aplicação ao Recorrente de uma pena criminal.
RRRR. Por essa razão, preclude a possibilidade de, in casu, o condenar a título de responsabilidade civil.
SSSS. Pelas mesmas razões invocadas supra quanto à matéria penal – de Direito e de Facto –, inexiste qualquer ilicitude na conduta do Recorrente; nunca o Recorrente actuou com dolo contra a honra ou consideração do Assistente; e, ao contrário do julgado pelo Tribunal a quo, inexistiram danos por força da conduta imputada ao Recorrente, não se tendo logrado qualquer prova nesse sentido – de que o Assistente sofreu danos por força de uma conduta (que sempre permitiu).
TTTT. Assim, por força dos argumentos, de Direito e de Facto, aduzidos quanto à matéria penal, e por força dos ora apresentados, requer-se a V.Ex.as, nos termos e para os efeitos do artigo 403.º, n.º 3, do CPP, que seja revogada a Decisão recorrida, na parte em que condena o Demandado Civil na obrigação de indemnizar, por se não ter provado, nem se verificarem os pressupostos de que depende a génese dessa obrigação de indemnizar.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência:
Nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), e do artigo 412.º, n.º 2, do CPP, deve ser declarado o erro na determinação da norma aplicável, por ter o Tribunal a quo aplicado os artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, no sentido de condenar o Arguido, quando, por força do supra exposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, do Código Penal, o comportamento do Arguido não pode ser objectivamente imputado ao resultado de que a lei faz depender a emergência da responsabilidade penal, razão pela qual se impunha, e se impõe, a sua absolvição;
Se assim não se entender, sem conceder,
Nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), e do artigo 412.º, n.º 2, do CPP, deve ser declarado o erro na determinação da norma aplicável, por ter o Tribunal a quo aplicado os artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, no sentido de condenar o Arguido, quando, por força do supra exposto, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 38.º, n.º1, 39.º, n.ºs 1 e 2, 16.º, n.º 2 e 13.º, todos do Código Penal, o comportamento do Arguido não corresponde à prática de um crime, razão pela qual se impunha, e se impõe, a sua absolvição;
Se assim não se entender, sem conceder,
Poderá e deverá ser aplicada a dispensa de pena prevista no artigo 186.º, n.º 2, do Código Penal, não se aplicando, por isso, os artigos 14.º, n.º 1, 40.º, n.ºs 1 e 2, 47.º, n.º 2, 71.º e 183.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, nos termos aplicados pelo Tribunal a quo, no sentido de condenar o Arguido pela pena de multa por que foi condenado;
Se assim não se entender, sem conceder,
Acresce que nem o teor das afirmações que o Arguido proferiu nem as regras da lógica e da experiência comum permitem afirmar, para lá de qualquer dúvida razoável, que o Recorrente tenha querido e tenho ofendido o Assistente, que essas afirmações tenham qualquer repercussão directa, ou indirecta, na honra ou consideração do mesmo, e que a sua imagem tenham sido afectada pelas mesmas, porquanto ter sido produzido prova de que inexistiu qualquer ofensa do Arguido para com o Assistente, e de que inexistiu qualquer espécie de dolo do Arguido ao agir como se lhe imputa que agiu, tudo se tratando do mero diálogo político (aceso) que sempre reinou entre estes dois intervenientes, mas que a agora o Assistente, mentindo, nega, razão pela qual deve o Recorrente ser absolvido do crime pelo qual foi condenado;
Se assim não se atender, o que não se concede, há que pelo menos admitir que, por força das contradições apontadas que resultou da prova produzida em sede de audiência e julgamento, não é possível julgar-se provado, como julgou o Tribunal a quo, os factos pelo mesmo Tribunal indicados em 6) a 8) dos “Factos Provados”;
Por último, por força dos argumentos, de Direito e de Facto, requer-se a V.Ex.as, nos termos e para os efeitos do artigo 403.º, n.º 3, do CPP, que seja revogada a Decisão recorrida, na parte em que condena o Demandado Civil na obrigação de indemnizar, por se não ter provado, nem se verificarem os pressupostos de que depende a génese dessa obrigação de indemnizar.
*
A Digna Procuradora-adjunta respondeu ao recurso interposto, defendendo a improcedência do mesmo, com conclusões mas sem o ficheiro digital das mesmas.
De igual forma respondeu o assistente com as seguintes conclusões:

a) Pretende o Recorrente convencer o Venerando Tribunal de que a sua condenação é errada, uma vez que o seu comportamento se insere no âmbito do confronto político legítimo com o Recorrido.
b) Assim deveria o Tribunal a quo ter determinado a absolvição, dado que o comportamento do Recorrente não é mais do que confronto político de risco elevado, mas legítimo e aceite por ambos os contendentes, salvaguardado pela liberdade de expressão.
c) Mas uma coisa é o excesso de linguagem ou de má educação, admissível numa situação de confronto aceso e de risco.
d) Outra é a utilização intencional, pensada, de expressões individualmente dirigidas, que incidem sobre aspectos específicos da personalidade ou da honra e consideração de uma pessoa.
e) O que não é admissível em absoluto.
f) Feitas a um jornal (portanto, a um terceiro, que é um órgão de comunicação social), depois de terminar a reunião do órgão autárquico, já fora do lugar normal de confronto, bem sabia o Recorrente que as suas afirmações seriam divulgadas amplamente em Portugal e até no estrangeiro.
g) Bem sabendo igualmente que eram ofensivas do bom nome, da honra e da consideração do Recorrido.
h) Fê-lo com intenção, com consciência, e por forma a que, pelo menos o público leitor do jornal, as conhecesse e ficasse a desconfiar do Recorrido.
i) Assim, não se violou o artigo 10ºdo CP.
j) Pelo que não merece censura a decisão recorrida, ao condenar o ora Recorrente pelo crime previsto e punido pelos artigos 180º, nº 1 e 183º, nºs 1, a1ínea a), e 2, do CP.
k) Vem o Recorrente dizer que o Tribunal a quo devia ter considerado que o Recorrido tinha dado o seu consentimento ao comportamento do Recorrente, jamais revogado (sendo, pelo contrário, sucessivamente reiterado), e isso justificaria as ofensas à honra e consideração (as quais, no entender do Recorrente, são coisas normais no confronto político).
l) Ainda que não houvesse consentimento expresso do Recorrido, sempre se teria que presumir o consentimento tácito, em resultado da situação de confronto.
m) Em qualquer dos casos, isso seria legitimador do comportamento do Recorrente.
n) Mais: ainda que não houvesse consentimento (real ou presumido), devia considerar-se relevante o erro do Recorrente relativo à (in)existência do consentimento;
o) O que igualmente levaria necessariamente à impossibilidade de aplicação de qualquer sanção penal, até porque o crime em causa não admite a negligência.
p) Não resulta da experiência comum que os actores políticos dêem o seu consentimento à prática de crimes, por parte dos seus adversários.
q) Quando muito, é de admitir que se tolerem excessos de linguagem ou de má educação.
r) Sendo um político experiente e conhecedor de longa data dos meandros e das regras do combate político autárquico, não pode o Recorrente vir agora invocar a existência de consentimento, ou que errou, ao pressupor que existia.
s) Inexiste, assim, a alegada causa justificativa, sustentada nos artigos 38º e 39º do CP.
t) Pelo que também nesta parte é inatacável a douta decisão recorrida.
u) Alega o Recorrente que houve provocação do Recorrido e que o Tribunal a quo, ainda que o declarando culpado, devia ter, por isso, lançado mão da faculdade de dispensa de pena.
v) Não o tendo feito, entende o Recorrente que houve erro do Tribunal a quo.
w) O Tribunal a quo aplicou a pena de multa que, no seu fundamentado entendimento, se adequava ao caso (aliás, bem próximo dos mínimos previstos na lei).
x) Ainda que se tenha admitido a existência de um conflito de ordem política entre ambos, não ficou demonstrada qualquer provocação relevante por parte do Recorrido.
y) Não pode proceder, pois, o alegado pelo Recorrente, não havendo da parte do Tribunal a quo, qualquer erro na determinação da pena aplicada.
z) O Recorrente ataca os nºs 6 a 8 dos "Factos provados", invocando que das declarações do Recorrido, do Recorrente, e das testemunhas inquiridas não podia o Tribunal a quo retirar a sua convicção no sentido de tais factos estarem provados.
aa) O Tribunal de recurso não se deve pronunciar sobre a matéria de facto.
bb) Contudo, caso o venha a fazer, não deve dar provimento ao alegado pelo Recorrente.
cc) A prova deve ser valorizada pelo tribunal, sobretudo se produzida verbalmente, num dado momento e num dado contexto, com recurso ao seu prudente arbítrio.
dd) Mas sempre com esteio nas declarações, bem como na forma como são proferidas, em que os esgares, hesitações, silêncios e demais circunstâncias pessoais dos declarantes, como a sua postura e linguagem corporais, também são relevantes para a formação da convicção do juiz.
ee) Não pode o Tribunal de recurso, como é óbvio, conhecer de todos estes aspectos essenciais.
ff) A convicção do Tribunal sustentou-se sobretudo nas declarações do ora Recorrente e do ora Recorrido e das testemunhas referidas na motivação, as quais, objectivamente, são aptas, de acordo com a experiência comum, a sustentar a existência do crime.
gg) No circunstancialismo da audiência de julgamento entendeu fundamentadamente o Tribunal a quo valorar essa prova no sentido de ficar provada a existência do crime.
hh) Também nesta parte não há erro do Tribunal a quo.
ii) Bem andou, assim, a bem fundamentada decisão recorrida, não merecendo, pois, provimento o alegado pelo Recorrente a este respeito.
jj) Insurge-se o Recorrente contra a sua condenação por danos morais provocados pela sua conduta criminosa, o que faz com fundamento na inexistência, na sua opinião, de crime.
kk) Chamando aqui à colação a argumentação que utilizou no âmbito do recurso da matéria penal.
ll) O Recorrente não tem razão, sendo inatacável a decisão recorrida, pelo que, existindo conduta criminosa e tendo-se provado a existência de danos indemnizáveis, justifica-se a condenação do ora Recorrente no pagamento da indemnização civil ao ora Recorrido.
Termos em que deve o recurso ser considerado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida.
*
O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
*
B - Fundamentação:
B.1.a - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1) No dia 03 de Novembro de 2010, após o termo de uma reunião da Câmara Municipal de (…), o arguido deu uma entrevista ao Jornal “(…)”, de (…), onde proferiu as seguintes afirmações: “…é que eu não devo, tal como A, enquanto cidadão, 95 mil euros às finanças. E isso é um caso que temos que averiguar porque uma pessoa que deve às finanças, não sei se o dinheiro que nós damos à instituição vai parar às finanças ou não”.
2) A entrevista foi publicada na edição nº 748, do dia 11 de Novembro de 2010, do Jornal “(…)” de (…), p. 10, e ainda no site da internet deste jornal, cujo endereço electrónico é (…)”.
3) Ao proferir tais expressões, o arguido, por si e na qualidade de Presidente da Câmara de (…), insinuou que o subsídio que a Câmara Municipal de (…) atribuía à Associação “(…)” seria utilizado em proveito do assistente, para pagar dívidas às Finanças.
4) Tais afirmações chegaram ao conhecimento de um número indeterminado de pessoas, em Portugal e no Estrangeiro.
5) O Jornal “(…)” edita cerca de 2500 exemplares por número, dos quais 1600 são para assinantes (40% na Grande Lisboa, 55% em Estremoz, concelhos limítrofes e 5% no resto da Europa e América), 200 são distribuídos como oferta para Instituições de Estremoz e dos Concelhos limítrofes e os restantes são vendidos em bancas nas cidades e vilas de Estremoz, Borba, Vila Viçosa, Redondo e Évora.
6) Ao proferir tais afirmações, o arguido quis rebaixar, humilhar, achincalhar a imagem do assistente.
7) O que conseguiu, colocando em causa a sua honra, bom nome, integridade moral e a reputação do assistente.
8) O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.
9) O assistente é socio e fundador da Associação (…), exercendo o cargo de presidente da associação desde 2004.
10) O assistente é Director do jornal “(…)” e da edição electrónica do jornal “(…)”.
11) O assistente foi o criador e o 1º Presidente da Associação (…), que tem membros em Portugal, Espanha, Holanda, Alemanha, Eslováquia, Bulgária, Hungria, Turquia e Croácia, com encontros europeus.
12) O assistente foi fundador e Director da primeira estação de rádio privada a funcionar em Évora – (…) – actualmente conhecida por (…), e fundador e sócio gerente da empresa “(…)”, de Évora, que, entre 1992 e 2002, assegurou a correspondência noticiosa em todo o Alentejo para a SIC e para a TVI, tendo produzido mais de 3500 conteúdos jornalísticos.
13) No período de Novembro de 2005 a Fevereiro de 2011, o assistente foi deputado municipal na Assembleia Municipal de (…) pelo Partido (…).
14) O assistente é conhecido e reconhecido publicamente.
15) Os seus amigos vêem-no como uma pessoa de elevada educação e cultura e de elevada reputação e consideração social.
16) A (…) é uma associação que tem por objecto a intervenção cívica, cultural e social para proporcionar a defesa, dinamização e valorização do património arquitectónico, histórico e cultural relacionado com o Castelo de (…).
17) À data da entrevista que o arguido deu ao jornal “(…)”, existia uma querela entre o arguido e o assistente acerca da atribuição de subsídios por parte da Câmara Municipal de (…) àquela Instituição.
18) Outras querelas de natureza política existiam entre o arguido e o assistente.
19) O assistente, através de um blog e do jornal “(…)”, publicava diversos artigos onde expressava a sua opinião acerca do modo como o arguido exerce o cargo de Presidente da Câmara de Municipal de (…).
20) À data da entrevista, o assistente tinha uma dívida junto da Fazenda Nacional.
21) O assistente continua a desempenhar o cargo de Presidente da Direcção da Associação (…).
22) O arguido não tem antecedentes criminais.
23) O arguido exerce o cargo de Presidente da Câmara Municipal de (…), auferindo um vencimento de € 2.400,00.
24) Vive com a sua mulher, em casa própria.
25) Tem dois filhos, maiores de idade.
26) A sua mulher trabalha.
27) Encontra-se a amortizar um empréstimo que contraiu para a aquisição de habitação, pagando todos os meses a quantia de € 700,00.
28) Amortiza, ainda, um outro empréstimo que contraiu para painéis solares, pagando todos os meses a quantia de € 177,00. Esta quantia é integralmente ressarcida ao arguido, através da exploração, que faz, de painéis solares.
*
B.1.b - E como não provados os seguintes factos:
29) O arguido não tinha conhecimento dos termos em que a entrevista seria escrita.
30) A dívida referia em 20) perfazia, à data da entrevista, € 95.000,00.
31) O arguido sabia que as suas afirmações, que constam do ponto 1), eram falsas.
32) O assistente utilizou os subsídios que a (…) recebeu da Câmara Municipal para pagar as suas próprias dívidas fiscais.
*
B.1.c - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:
«A convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados foi adquirida a partir da análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento e com recurso a juízos de experiência comum e à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
No que respeita aos factos descritos nos pontos 1) e 2), o Tribunal teve em atenção o documento junto aos autos a fls. 7 (jornal “(…)”, onde foi publicada uma entrevista que o arguido, no dia 03.11.2010 deu a este jornal e onde proferiu as declarações e os comentários em apreço) e, bem ainda, as declarações que o arguido prestou em audiência de discussão e julgamento, que reconheceu ter proferido tais afirmações.
Teve-se, ainda, em atenção os depoimentos das testemunhas F e G, jornalistas que efectuaram a entrevista e a gravação e que, depois de terem confirmado que o arguido proferiu tais declarações, contaram ainda que o jornal em causa tem uma edição electrónica.
No que respeita ao ponto 3), o Tribunal atendeu ao teor das afirmações que o arguido prestou, tendo questionado (e levantado a suspeita) para o facto de o subsídio que a Câmara Municipal de (…) atribuiu à Associação (…) poder estar a ser (ou ter sido) utilizado em proveito próprio de A, para pagamento de uma dívida pessoal à Fazenda Nacional. Ou seja, lançando mão das regras de interpretação (artigo 236º do Código Civil), é por demais evidente que o arguido criou a dúvida acerca da utilização, por parte do assistente, de tais subsídios em prol do pagamento de dívidas pessoais, de natureza fiscal (“eu não devo, tal como A, enquanto cidadão, 95 mil euros às finanças. (…) Uma pessoa que deve às finanças, não sei se o dinheiro que nós damos à instituição vai parar às finanças ou não.”).
Relativamente aos pontos 4) e 5), o Tribunal teve em atenção, desde logo, o documento junto aos autos a fls. 147 (documento ilustrativo do número de leitores do jornal “(…)”, do número de exemplares e da localização geográfica dos assinantes deste jornal). Estes dados foram confirmados pela testemunha F, jornalista que exerce funções junto deste Jornal.
Por conseguinte, tendo ainda, em atenção que este jornal, para além da edição em formato papel, tem ainda uma edição electrónica, resulta das regras da lógica e da experiência comum que a entrevista que o arguido deu àquele jornal foi lida e chegou ao conhecimento de um número indeterminado de pessoas, em Portugal e no Estrangeiro.
A título de exemplo, repare-se que as testemunhas H, I, J, K, L e M afirmaram que, ou leram a notícia, ou ouviram comentários acerca da mesma, demonstrando dela ter tido conhecimento.
A prova dos factos enunciados nos pontos 6) a 8) assentou, desde logo, no próprio teor das afirmações que o arguido proferiu junto deste jornal, onde este insinua que o assistente poderia estar a utilizar o subsídio que a Câmara Municipal de (…) chegou a atribuir à Associação (…) para pagamento de dívidas de carácter pessoal.
Ora, esta insinuação, logo após uma reunião camarária que foi descrita pela testemunha F como tendo sido marcada por uma “troca de palavras” entre o arguido e o assistente, demonstra bem que o arguido proferiu tais expressões, em si em mesmas idóneas a lesar a honra do assistente, numa altura em que se encontrava de cabeça quente.
Ademais, o próprio arguido tentou justificar estas expressões com o facto de o assistente ter publicado um conjunto de comentários acerca do modo como exercia o cargo de Presidente da Câmara de (…), qualificando-os de “afirmações caluniosas” e dizendo que o assistente “se dirigiu a si e chamou-lhe todos os nomes” e que o fez “de forma caluniosa”. Referiu, ainda, o arguido que as pessoas devem ser tratadas tal como se comportam, numa clara alusão e comparação entre os comentários que o assistente publicou no jornal “(…)” e em blogs (e que qualificou de “afirmações caluniosas…”) e aqueles que o arguido teceu e que se encontram em discussão nestes autos.
Ora, todo este contexto evidencia um ambiente de agressões que culminou com a entrevista dada pelo arguido. Estamos, pois, perante um ambiente tenso, conflituoso, gerador de situações “de limite” e que, conjugado com o próprio teor das afirmações que arguido proferiu naquela entrevista, lançando ainda mão das regras da lógica e da experiência comum, nos levam a concluir que o arguido visou com tais declarações ofender a honra e a imagem do assistente.
É certo que as testemunhas E, F, G, L e M referiram que, não obstante esta entrevista, não perderam o respeito pelo assistente e que não alteraram a imagem que tinham do mesmo. Todavia, tal não equivale a dizer que estas afirmações do arguido não são idóneas e não lesaram a honra do assistente, tratando-se de coisas diferentes.
De facto, não só o assistente contou ao Tribunal que se sentou bastante “ofendido”, “chocado” e “indignado” com tais afirmações do arguido, como também as testemunhas H (A ficou “preocupado, nervoso, angustiado”, “mudou de cor”, “já mostrou por diversas vezes uma declaração das finanças a dizer que não deve nada”) e K (A ficou “abatido”, “desejoso de repor a situação no seu devido lugar”), pessoas próximas do assistente e que o conhecem bem, confirmaram que o assistente se sentiu indignado quando teve conhecimento desta entrevista e, bem assim, lesado na sua honra.
De facto, como já se teve oportunidade de referir, resulta das regras da lógica e da experiência comum que qualquer cidadão médio colocado no lugar do assistente, vendo-se confrontado com o facto de alguém insinuar que está a utilizar dinheiro público em proveito pessoal se sente efectivamente lesado na honra e consideração.
Ademais, ao ter proferido tais comentários e declarações perante um órgão de comunicação, não poderia o arguido desconhecer e ignorar que as mesmas iriam ser lidas e comentadas por um número indeterminado de pessoas.
Destarte, resta concluir que, ciente de tudo isto e de que tais comentários lesariam a honra e a consideração de A, o arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente da ilicitude da sua conduta.
No que respeita aos pontos 9) a 14), resultou provado que o assistente é uma pessoa conhecida e reconhecida publicamente, desde logo, em face dos papéis que desempenhou e, nalguns deles, que continua a desempenhar junto desta região do Alentejo (sócio fundador e presidente da (…) desde 2004, director do jornal “(…)”, criador e 1º Presidente da (…), fundador e director comercial de uma rádio e de uma empresa que efectuou a correspondência noticiosa entre o Alentejo e a SIC/TVI, deputado municipal na Assembleia Municipal de (…)) – cfr. docs. Juntos a fls. 151 a 154 e declarações do arguido e do assistente e depoimento da generalidade das testemunhas ouvidas em audiência de discussão e julgamento que confirmaram que o arguido exerceu e continua a exercer alguns destes cargos e papéis, participando activamente na vida política e cultural desta região alentejana.
A prova do facto descrito no ponto 15) teve em atenção os depoimentos das testemunhas E, H, J e K, amigos do assistente, que o descreveram como sendo uma pessoa séria e honesta, bastante participativo e dinâmico.
Relativamente aos pontos 16) e 21), teve-se em atenção as declarações do arguido e do assistente e o depoimento da testemunha K.
Resultou provado em audiência de discussão e julgamento que, à data da entrevista, existiam várias querelas entre o arguido e o assistente, tratando-se de querelas políticas e de querelas que envolviam a atribuição de subsídios, por parte da Câmara Municipal de (…), à Associação (…), presidida pelo assistente (pontos 17 e 18).
Resultou, ainda, provado que assistente, através de um blog e do jornal “(…)”, publicava diversos artigos onde expressava a sua opinião acerca do modo como o arguido exerce o cargo de Presidente da Câmara de Municipal de (…) (ponto 19).
De facto, basta analisar as declarações que o arguido e o assistente prestaram em audiência de discussão e julgamento para se concluir que estes discordavam de muitas questões, algumas de natureza política (arguido e assistente eram frequentes “protagonistas” nas reuniões da Assembleia Municipal, desempenhando o arguido o cargo de Presidente da Câmara e o assistente o cargo de deputado municipal eleito pelo (…), antigo partido que detinha a Câmara antes da eleição do arguido) e, bem assim, a questão da atribuição de subsídios por parte da Câmara Municipal à Associação (…).
Os documentos juntos aos autos a fls. 87 a 115, 202 a 221 e 252/253 evidenciam bem a existência de um conflito a propósito da atribuição e suspensão de tais subsídios à (…).
Por outro lado, os documentos juntos a fls. 196 a 201 também demonstram o conflito e as querelas políticas, que perpassava para os jornais e blogs.
No que respeita à prova testemunhal, resulta dos depoimentos das testemunhas F, G, I, K, L e M que o arguido e o assistente eram, usualmente, “protagonistas” nas reuniões da Assembleia Municipal e que eram frequentes as trocas de acusações entre ambos. Tais discussões envolviam, ainda, a atribuição de subsídios à Associação (…).
A propósito dos pontos 20) e 30), apenas se apurou que o assistente, à data da entrevista, tinha uma dívida junto da Fazenda Nacional, não se tendo, contudo, demonstrado o seu montante.
Assim, da leitura dos docs. de fls. 52 a 58, apenas de pode constatar que no ano de 2006 existiu uma ordem de penhora de € 86.234,71, no ano de 2007, existiu uma ordem de penhora de € 1.266,35 e, por fim, no dia 13.01.2010, a ordem de penhora era de € 7.500,00.
Ora, datando a entrevista de 03.11.2010, se é certo que ainda existiam montantes em dívida, fica-se sem saber qual o valor destes montantes. O arguido referiu que teve conhecimento desta dívida em conversa com o Vice-presidente da Câmara, desconhecendo se, de facto, aqueles exactos montantes, naquela data, ainda estavam por pagar à Fazenda Nacional. Já o assistente referiu que, naquela data, deveriam estar em dívida cerca de € 47.000,00, não tendo, contudo, logrado quantificar o valor exacto.
Posto isto, se é certo que o assistente tinha uma dívida à Fazenda Nacional, desconhece-se, contudo, qual o valor em dívida à data de 03.11.2010.
A prova da ausência de antecedentes criminais (ponto 22) assentou no CRC junto a fls. 433 e os factos atinentes à concreta situação de vida do arguido (condições pessoais, familiares e profissionais – pontos 22 a 28) assentou nas declarações que o arguido prestou em audiência de discussão e julgamento.
No que respeita ao ponto 29), o arguido não logrou provar que não tinha conhecimento dos termos em que a entrevista foi redigida e publicada. Na verdade, o arguido reconheceu em audiência de discussão e julgamento que a entrevista que foi publicada no jornal “(…)” corresponde efectivamente às declarações que prestou àquele jornal. Por outro lado, os jornalistas F e G confirmaram que aquilo que foi efectivamente publicado traduz, na íntegra e sem quaisquer alterações, as declarações que o arguido prestou.
Por fim, não se apurou que o arguido sabia que as afirmações que proferiu perante o jornal “(…)” eram falsas (ponto 31).
Sobre este facto não incidiu qualquer prova, documental ou testemunhal.
Na verdade, quanto à primeira parte da afirmação (existência de uma dívida no montante de € 95.000,00), até se chegou a apurar que, de facto, o assistente tinha uma dívida junto da Fazenda Nacional; contudo, não se demonstrou qual o montante à data em que o arguido deu a entrevista. No que respeita à segunda parte da afirmação (eventual utilização do subsídio da (…) para pagar uma dívida pessoal do assistente), nada se apurou, mais concretamente se o arguido sabia ou não que era falso, até porque o arguido não fez uma afirmação peremptória, limitando-se a levantar a suspeita, ainda que de forma insinuosa.
Por fim, no que tange ao ponto 32), não foi feita qualquer prova de que o arguido utilizou o subsídio que a (…) recebeu para pagar as suas dívidas pessoais. Sobre este facto não incidiu qualquer prova documental ou testemunhal».
***

Cumpre conhecer.
B.2.1 – É sabido que o recurso de facto nos apresenta duas vias de pedido: (1) invocação dos vícios – de conhecimento oficiosos - da revista alargada (410º, nº 2 do Código de Processo Penal) por simples referência ao texto da decisão recorrida; (2) alegação de erros de julgamento por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação.
O recorrente segue as duas vias invocando o erro na apreciação da prova e a contradição da fundamentação e entre esta e a decisão enquanto vícios do artigo 410º do Código de Processo Penal (conclusões X a CCC [1]) e impugna de facto nos termos do artigo 412º, n. 3 e 4 do mesmo diploma (conclusões OOO a LLLL).
Quanto à primeira afirma-se que entendemos a expressão “texto da decisão recorrida” como toda a parte da decisão que diga respeito a matéria factual, aqui se incluindo a matéria de facto provada, a não provada e a fundamentação de facto já que, bastas vezes, só a análise conjugada do conjunto da decisão de facto permite surpreender e compreender os vícios de facto previstos no artigo 410º, n. 2 do Código de Processo Penal, principalmente o “erro notório na apreciação da prova” e a contradição, que pode ser entre factos provados e não provados e entre qualquer destes e a fundamentação que a eles conduziu.
Por outro lado é muitas vezes na fundamentação de facto que se observa a insuficiência da matéria factual dada como apurada ao observar, por exemplo, que o tribunal fundamenta com um facto normativamente relevante que não levou à matéria dada como provada.
Por isso que, estando nós a tratar de “vícios de facto”, não faça sentido excluir qualquer excerto da decisão que diga respeito à factologia.
Em sede de direito suscita variadas questões, desde a imputação objectiva do resultado à conduta, o risco juridicamente permitido, o consentimento do lesado, passando pelo erro na determinação da pena e a terminar na inexistência de responsabilidade civil.
*
B.2.2 – Como é sabido, o objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação, sem prejuízo da obrigação de exaurir as questões de conhecimento oficioso.
O recurso do arguido suscita várias questões em sede de facto.
Para além disso impõe-se ao tribunal apurar do esgotamento dos factos que sejam normativamente relevantes isto é, assegurar-se de que não há insuficiência factual (sem esquecer que os factos que apenas constam das motivações de recurso não são cognoscíveis). E é facto que esta insuficiência espreita entre a fundamentação factual e a matéria de facto considerada pelo tribunal recorrido.
E isto porque hoje não é possível – e enquanto vigorar a vinculação internacional do Estado português – fazer uma análise seca e positivista dos tipos penais de difamação com apelo exclusivo aos tipos de ilícito contidos na legislação penal portuguesa sem considerar os factos necessários à inclusão na previsão do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, de muita relevância, na sua jurisprudência sobre a matéria.
Ou seja, a metodologia na análise factual sofreu uma alteração de relevo e, em casos como o dos autos, haverá que apurar se eles se verificam em concreto.
Mas o recurso do arguido faz apelo directo aos dois outros vícios de conhecimento oficioso, o erro na apreciação da prova e a contradição da fundamentação e entre esta e a decisão, o que nos permite concluir que se impõe esgotar – no concreto – o conhecimento do acervo total dos vícios de conhecimento oficioso.
*
B.2.3 – Da insuficiência.
Desde logo a matéria dos subsídios tem relevo apesar de estar deficientemente determinada, designadamente pelo valor implicado que se não concretizou. Assim, se os factos provados 3 e 17 referem subsídio ou subsídios, estes não ficaram devidamente balizados: natureza, fim, importâncias, datas de atribuição.
Não obstante isso consideramos não haver insuficiência de apuramento factual que seja relevante e justifique um reenvio processual pois que relevante é a existência de subsídio público, qualquer que seja o seu montante.
De outra banda o tribunal recorrido não explanou em facto provado o montante da dívida e, civilisticamente, deu como não provado que tal dívida fosse no montante de 95.000 € (facto não provado 30).
Mas ao fundamentar de facto a existência de uma dívida e referi-la como sendo de “quase 47.000 €” com base em declarações do próprio assistente (fls. 518 dos autos, 12 da sentença recorrida), restava-lhe dar como provada essa, ou outra, realidade apurada.
Aqui ocorre clara insuficiência da matéria factual relevante, sendo permitido a esta Relação suprir tal insuficiência na medida em que o tribunal recorrido é claro na afirmação do facto e na fonte do seu conhecimento, para além de documentação constante dos autos – declaração fiscal de fls. 134 – o confirmar com maior precisão, assim como a própria posição assumida pelo assistente no seu recurso da decisão instrutória de não pronúncia (conclusão kkk a fls. 291).
Ou seja, torna-se desnecessário o reenvio dos autos para suprir o vício na medida em que esta Relação o pode suprir, nos termos dos artigos 426º, n. 1 e 431º, al. a) do Código de Processo Penal.
Assim, o facto provado sob 20) passa a ter a seguinte redacção: «À data da entrevista, o assistente tinha uma dívida junto da Fazenda Nacional de 388,75 € como contribuinte principal e 44.712,56 € como revertido».
Esta realidade factual serve para dar uma ideia – bastante clara - da situação tributária do assistente, matéria que é essencial apurar dada a afirmação provada no facto 1). Não se trata apenas da exceptio veritatis, também o inserir da dívida e sua dimensão no conjunto dos factos provados para uma melhor apreciação do “interesse geral” em discussão.
*
B.2.4 – Da contradição e do erro na apreciação da prova.
A alegação – de ambos os vícios - assenta na contraposição entre os factos provados de 17 a 19 e nos factos provados 6 a 8.
Como se disse já, a oficiosidade do conhecimento implica o atermo-nos ao texto da decisão recorrida e às regras de experiência comum. E divisar esses dois vícios no texto da decisão recorrida – e apenas – é de extrema dificuldade pois que eles só surgem porque analisados outros elementos, designadamente e prima facie a prova documental.
Poderíamos afirmar que as “outras querelas políticas” e as publicações no blogue e no jornal colocariam as disputas entre assistente e arguido no campo da luta politica e, portanto, a excluir o animus diffamandi do arguido e do próprio assistente.
Se tal conclusão se pode encarar indubitavelmente com apelo a outros elementos probatórios não é fácil aceitá-la com exclusivo apelo ao texto da decisão recorrida já que nenhum dos vícios alegados é evidente com recurso, apenas, ao texto dos factos provados e não provados na medida em que destes não constam os textos constantes dos documentos.
Mas, apesar disso, no texto da fundamentação factual o tribunal recorrido parte do teor da declaração do arguido, dada como provado em 1), para a afirmação do dolo. E isso, não bastando, já dá azo à dúvida. É certo que na maior parte dos casos o dolo se infere da factualidade exteriorizada, mas aqui esse elemento isolado sem a análise do interagir politico e social entre personagens políticas e sociais surge como insuficiente para a afirmação do dolo, do dano e da consciência da ilicitude. Mas, tendo o arguido recorrido de facto por impugnação nos termos do artigo 412º do C.P.P. já o recurso a outros meios de prova é justificado pelo que o possível problema metodológico fica ultrapassado. [2]
E com esse substracto de análise torna-se evidente que a luta politica e as “outras querelas” que já constam do acervo dos factos provados atingem níveis de confronto em que nenhum dos contendores se pode apresentar como isento de algum excesso de linguagem no apresentar de suspeitas da prática de actos, no mínimo eticamente censuráveis mas onde espreita a apresentação de suspeições passíveis de enquadrar ilícitos vários.
Isso é patente desde logo no facto provado sob 1) mas também nos editoriais do jornal (…) que constam de fls. 196-197 onde o nível de suspeitas lançadas se equipara. E se é legítimo que o assistente declare que está a opinar politicamente, igual faculdade deve ser reconhecida ao arguido, já que ambos se imputam a prática de actos criminalmente puníveis e ambos se colocam no cerne da luta política e de confronto em questões de interesse geral.
E se, ambos, colocam o grau de luta política ao nível da suspeição (da prática de factos) tem razão o recorrente quando afirma a existência de um consentimento presumido de que a linguagem possa atingir uma intensidade maior do que a sentida noutros campos do interagir social. E o dolo é esse mesmo, o de usar linguagem, imagens e, mesmo, a criação de suspeições à volta de um agente politico que é adversário com o intuito de o derrotar ou seja, um animus aemulandi, a intenção de competir politicamente, que não o animus infringendi, a intenção de infringir a lei.
Neste sentido há erro na apreciação da prova ao dar-se como provado o saber e querer difamar, o dano resultante e a consciência da ilicitude, pelo que os factos 6 a 8 devem ser dados como não provados.
A não ser assim também existiria a contradição entre factos provados apontada pelo recorrente com a mesma consequência.
Mas mesmo que assim não fosse e saindo da habitual e já ultrapassada metodologia de análise jurídico-penal assente em alguma doutrina habitualmente citada a propósito da liberdade de expressão e da honra [3] - logo seguida de alguma jurisprudência restritiva da liberdade de expressão - que reduz a interpretação ao eventual preenchimento do tipo penal de difamação, resta afirmar que os critérios do nº 2 do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem seriam de observar mesmo que preenchidos todos os elementos do tipo penal e inexistente o consentimento presumido, o que não é o caso.
Questão a apreciar após breve apreciação sobre o enquadramento jurídico da questão sub judicio.
*
B.3 – Convém fazer ressaltar que nos encontramos a abordar, de novo, matérias já por nós tratadas nos acórdãos desta Relação de 13-12-2011 (proc. 99/08.1TAGLG.E1) e de 28-05-2013 (proc. 552/09.0GCSTB.E1). [4]
Neste, de 28-05-2013, afirmámos:
«I - A análise do artigo 180º (Difamação) do Código Penal português só pode fazer-se (e está dependente da leitura que se faça) à luz prevalecente do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
II - A interpretação do equilíbrio entre liberdade de expressão e defesa da honra deve orientar-se para uma interpretação restritiva da defesa da honra e maximizadora da liberdade de expressão, realidade que é a expressa na ordem jurídica enformada pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, como o é a portuguesa.
III - Este sentido de análise normativo – artigo 180.º do Código Penal - restritivo da honra e expansivo da liberdade de expressão tem outras manifestações de cariz mais actual, a tendência para a extinção do tipo penal “difamação”, já assumida na vertente “media” ou jornalística, através da Resolução 1003 (1993) sobre ética em jornalismo, da Recomendação 1589 (2003) sobre liberdade de expressão nos media na Europa, retomadas pela Resolução 1535 (2007) sobre ameaças à liberdade de expressão de jornalistas e Resolução 1577 (2007), para a descriminalização da difamação (“Towards decriminalisation of defamation”).
IV - Este movimento teve, recentemente, um acréscimo de autoridade através da publicação do “Coroners and Justice Act (2009) ”, que na sua parte 2ª, capítulo 3, Secção 73 aboliu a difamação (“libel”) na “commom law”.
V - Pretende-se evitar os efeitos nefastos da existência de um vasto tipo penal de “difamação” que provoque o conhecido efeito de arrefecimento de condutas (“chilling effect”), surgindo as ameaças de prossecução por difamação como uma “particularmente insidiosa forma de intimidação”[Resolução CE 1577 (2007)], que tem sido utilizada na sociedade portuguesa de forma abundante, seja por pessoas, seja por empresas e organismos públicos ou privados, como forma de calar a oposição, impedir o exercício de direitos e impor formas mais ou menos subtis de censura ou de dominância.
VI - Estes não são argumentos de interpretação do direito positivado em Portugal, mas são alertas confirmatórios no sentido da compreensão de uma interpretação restritiva do tipo penal “difamação” contido no artigo 180º do Código Penal à luz do artigo 10º da Convenção.»

No segundo, de 13-12-2011, declarámos:
«1 - É tarefa do tribunal assegurar que a liberdade de expressão é garantida através de um justo equilíbrio entre a liberdade de expressão consagrada como princípio no artigo 10.º e a reputação da pessoa em causa, enquanto direito decorrente da protecção da vida privada consagrado no artigo 8.º da Convenção.
2 - No seu número 2 o referido artigo 10.º da Convenção prevê, no entanto, condições, restrições ou sanções ou, genericamente, ingerências no direito de liberdade de expressão.
3 - Estas devem, no entanto, estar previstas na lei e mostrar-se necessárias numa sociedade democrática, entendidas estas como uma ingerência por necessidade social imperiosa, para, por referência ao caso concreto, a protecção da honra e dos direitos de outrem.
4 - Quando o dissídio entre o assistente e os arguidos se situa em questões de interesse geral da vida do município – questão de interesse geral no âmbito territorial daquele município – e com laivos de se inserir certamente na vida política do mesmo município, “pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão”, conforme resulta do acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Wingrove c. Reino Unido, §58.
…….»

Há que dizer explicitamente que, considerando a adesão de Portugal à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vulgarmente designada Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e ao teor do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, a não aplicação da dita Convenção enquanto direito interno português de origem convencional é um claro erro de direito.
Ou seja, para devidamente balizar em sede de direito o caso concreto não basta fazer apelo à Constituição da República Portuguesa e ao Código Penal português pois que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem vigora na ordem jurídica com valor infra-constitucional, é dizer, no mínimo e como é doutrina maioritária, com valor superior ao direito ordinário português. [5] Ou seja, uma hierarquia encimada pela Constituição da República Portuguesa, Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, por fim, legislação ordinária.
A Convenção foi adoptada em Roma, a 4 de Novembro de 1950, entrou em vigor na ordem internacional a 3 de Setembro de 1953, foi assinada por Portugal em 22 de Setembro de 1976, aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, [6] e entrou em vigor na ordem jurídica portuguesa a 9 de Novembro de 1978.
Mas é um erro de direito de ocorrência muito comum. A sua frequente existência e a ligeireza como é encarado apenas se explica por razões culturais, por uma mais ou menos declarada resistência passiva a encarar a ordem jurídica tal como ela se nos apresenta. E no caso concreto, a sentença recorrida cometeu erro de direito ao não fazer aplicação da referida Convenção, aqui o seu artigo 10º.
Por isso que a questão última que se coloca é, então, a de saber se a condenação do arguido se justificava, se era uma “providência necessária numa sociedade democrática”, mesmo na hipótese de não haver consentimento presumido e do não preenchimento de todos os elementos do tipo penal.
Assim, para além da previsão da Liberdade de Expressão reconhecida pela C.R.P. no seu artigo 37º (e que corresponde normativamente ao artigo 10º nº 1 da C.E.D.H.), o confronto valorativo estabelece-se no caso com o artigo 26º da C.R.P. enquanto norma de protecção da identidade pessoal, bom nome e reputação (que corresponde grosso modo à tutela da “honra ou dos direitos de outrém” consagrados no n. 2 do referido artigo 10º da Convenção).
Mas é indubitável – e o parecer junto aos autos e subscrito por insigne lente refere – que essa apreciação valorativa (a habitual “ponderação de valores”) é feita em sede infra-constitucional, é dizer, pela Convenção e pelo ordenamento penal português, que não no patamar constitucional.
O que torna a Convenção Europeia dos Direitos do Homem um pilar essencial de onde se deve partir para a análise criminal em casos como o dos autos. E a ser assim, como é, importa situar os artigos 180º e 183º do Código Penal – normas que ora nos interessam – no jogo interpretativo que se deve estabelecer com a Convenção.
Ou seja, a forma como os dois grupos valorativos (liberdade de expressão versus defesa da honra e reputação) se entrecruzam apresenta diversa coloração consoante nos deparamos com a metodologia continental europeia, ainda preponderante na nossa doutrina e jurisprudência (que se basta – claramente contra-legem - com a C.R.P. e o Código Penal) [7] ou, ao invés, a resultante do acréscimo normativo que é a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e sua jurisprudência. [8]
Na metodologia continental europeia – de que gostamos de ser tributários por gaulesa herança jacobina e, hoje, por juridicidade germanófila – a ponderação de valores surge como a almofada que acomoda a subsistência dos dois valores em conflito, com a pretensão de um equilíbrio em “partes” tendencialmente iguais, isto é, com os dois valores a equivalerem-se, passando ao caso concreto através de uma ferramenta jurídica de proporcionalidade de valores determinados necessariamente pela subjectividade valorativa de quem decide, o que permite que se decida, doutamente, com pré juízos de valor que substituem as opções valorativas feitas pela ordem jurídica. [9]
E assim seria se considerássemos apenas a C.R.P e o Código Penal, já que nenhum critério normativo nos é dado para diferenciar os valores, com a agravante de a mentalidade sul-europeia ainda atribuir na nossa cultura peso excessivo à honra e manifestar um quase pavor à liberdade de expressão.
Mas a Convenção Europeia dos Direitos do Homem surge na ordem jurídica europeia no pós guerra como forma de obviar, precisamente, à continentalidade conflituosa centro europeia, com o que ela tradicionalmente tinha (tem?) de centralismo estatal e de abusos de direitos do cidadão frente a estados excessivamente fortes e com uma “natural” (histórica) incapacidade de reconhecer a importância de uma sociedade civil forte e não esmagada pela raison d´Etat ou grupos de interesses. Em suma, pretende-se mais Locke que Rousseau.
Portanto, a Convenção surge como instrumento legislativo de inspiração e desejável prática de cariz marcadamente anglo-saxónica, no que isso implica (e foi desejado pelas potências atlânticas vencedoras do conflito e assumido pelos europeus) de diferente hierarquia de valores e seriação de direitos, diversa prática judicial, com o que inovou ao introduzir a relevância do precedente judicial e com a notável capacidade de adaptar um texto datado às novas realidades. [10]
Certo é que temos que reconhecer dois patamares judiciais, orgânico e jurisprudencial, compatíveis ou compatibilizáveis, mesmo que se reconheça a desejável autonomia entre tribunais nacionais e a corte de Estrasburgo, o que levou a Justice Brenda Hale a afirmar conclusivamente, referindo-se ao seu tribunal e àquela corte: «I am intrigued and encouraged indeed to know that Argentoratum locutum, iudicium finitum is not in fact how the President and his fellow judges (do T.E.D.H.) view the respective roles of our two courts. I think that there is room for us to develop a distinctively British human rights jurisprudence without overstepping the boundaries which Parliament has set for us. It is just as likely to lead to our respecting the recent judgments of Parliament as it is to our declaring them incompatible. We may look forward to an even more lively dialogue with Strasbourg in future». [11]
Ora, o que a nossa doutrina e jurisprudência têm conseguido na prática – é ver as condenações do Estado português por sucessivas violações do artigo 10º da Convenção – é precisamente o contrário, o afastamento de uma desejável convergência substancial com Estrasburgo e com a própria letra e espírito da Convenção. Aliás, a própria existência da Convenção parece por vezes facto em dúvida na prática jurídica portuguesa.
Isto porque se tem olvidado – alguns não olvidam porque se opõem com concepções, não declaradas, sub-reptícias, de sociedades iliberais ou de prevalência de interesses - que o artigo 10º da Convenção é, precisamente, um pilar não apenas de reconhecimento de direitos individuais, muito mais relevantemente o reconhecer que há direitos individuais que são o cimento essencial de um determinado tipo de sociedade, a sociedade democrática de cariz político liberal, juridicamente Estado de Direito, sociedade esta que se tem revelado resiliente e eficaz e a única capaz de efectivamente reconhecer e tutelar direitos.
Falamos, é claro, da liberdade de expressão, direito multifacetado mas charneira na organização social, tal como previsto no nº 1 do preceito. E a Convenção faz uma clara opção na definição da relevância deste direito.
De tal relevância que a jurisprudência convencional é clara na atribuição de uma valoração de peso a esse direito que só pode ser sujeito a restrições nos termos bastante claros e restritivos do nº 2 do mesmo preceito, ao reconhecer que esse direito “pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.
Repetimos, as formalidades, condições, restrições e sanções à liberdade de expressão previstas no nº 2 do artigo 10º devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade imperiosa e interpretadas restritivamente – Decisão Sunday Times, 26-04-1979, § 65.
Repisamos, numa sociedade actual moderna e saudavelmente respeitadora de direitos a liberdade de expressão não está ao mesmo nível da defesa da honra. Esta é um direito de cariz marcadamente individual. Aquele é um direito charneira na organização de uma sociedade que se auto-limita por direitos.
E até a sistemática do artigo 10º da C.E.D.H. o demonstra, com a liberdade de expressão a encimar o nº 1 do preceito e a defesa da honra a ser confinada – no nº 2 do preceito - a uma excepção sujeita a duras condições. O exercício da liberdade de expressão «pode ser submetido a …, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para …. a protecção da honra …».
A tutela da honra deve situar-se então – e apenas neste momento lógico de análise do nº 2 do artigo 10º da C.E.D.H. - na análise dos tipos penais em presença. Mas a base de partida será sempre a prevalência da liberdade de expressão, na medida em que nela se reconhece um pilar de uma sociedade democrática.
Ou seja, a “ponderação de valores”, já foi feita pela Convenção.
Só numa sociedade com tradição e resquícios autoritários, de supremacia de elites que se pretendem incontestadas, com conceitos de honra inchados por conveniência de controle e dominância se pode tão facilmente – como é costume – atribuir aos dois direitos o mesmo valor ou, mesmo, fazer prevalecer a honra à liberdade de expressão. [12]
Quanto à honra individual, naturalmente atendível, será sempre um interesse particular mesmo que se lhe reconheça a pertença à identidade pessoal, à concretização de um direito mais amplo, o direito geral de personalidade – artigo 70º do Código Civil.
Mas tais conceitos, honra e consideração social, há que reconhecer, têm uma marcada natureza cultural, determinada regional ou nacionalmente, variável de cultura para cultura, [13] estando nós inseridos, precisamente, numa cultura que atribui aos conceitos uma amplitude que a Convenção dificilmente reconhece, ao menos em certas áreas do agir social.
Desde logo é jurisprudência convencional constante a afirmação de que no campo da luta e discurso político ou em questões de interesse geral “pouco espaço há para as restrições à liberdade de expressão”, conforme resulta do acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Wingrove c. Reino Unido (1957, §58). Ou seja, aqui estamos muito longe de qualquer “ponderação” (equilibrada) de valores ou interesses.
Se, no geral, prevalece como direito maior a liberdade de expressão pela sua essencialidade democrática, neste campo da luta politica e questões de “interesse geral” a tutela da honra é residual. E, no caso dos autos, devemos recordar que o arguido era à data da prática dos factos Presidente da Câmara Municipal de (…) e o assistente era (foi de 2005 a 2011) deputado à Assembleia Municipal de (…) (factos provados 3 e 13).
Resultou ainda provado que:
17) - À data da entrevista que o arguido deu ao jornal “(…)”, existia uma querela entre o arguido e o assistente acerca da atribuição de subsídios por parte da Câmara Municipal de (…) àquela Instituição.
18) - Outras querelas de natureza política existiam entre o arguido e o assistente.
19) - O assistente, através de um blog e do jornal “(…)”, publicava diversos artigos onde expressava a sua opinião acerca do modo como o arguido exerce o cargo de Presidente da Câmara de Municipal de (…).

Ora estes factos (3, 13, 17, 18 e 19) demonstram de forma cabal que nos encontramos em plena luta política. E os artigos jornalísticos subscritos pelo assistente e constantes dos autos confirmam essa luta politica.
Mas não só! Acresce que a atribuição de subsídios a uma associação de que o assistente é dirigente é uma clara questão de interesse geral.
Assim, neste ponto resultou provado que:

3) - …. a Câmara Municipal de (…) atribuía à Associação “(…)” um subsídio ….;
9) - O assistente é sócio e fundador da Associação (…), exercendo o cargo de presidente da associação desde 2004;
16) - A (…) é uma associação que tem por objecto a intervenção cívica, cultural e social para proporcionar a defesa, dinamização e valorização do património arquitectónico, histórico e cultural relacionado com o (…);
17) - À data da entrevista que o arguido deu ao jornal “(…)”, existia uma querela entre o arguido e o assistente acerca da atribuição de subsídios por parte da Câmara Municipal de (…) àquela Instituição;
21) - O assistente continua a desempenhar o cargo de Presidente da Direcção da Associação (…).

Ora, esta matéria é do interesse geral na medida em que interessa a qualquer cidadão, designadamente aos contribuintes, que não apenas aos residentes em (…), tratando-se pois de interesse geral nacional, o fim e a forma como os subsídios públicos são pagos e gastos.
Em suma, trata-se de luta política e de matéria de interesse geral. Assim a prevalência valorativa vai clara e profundamente pender a favor da liberdade de expressão, sendo inviável considerar qualquer “ponderação de interesses” que reduza o âmbito da liberdade de imprensa e atribua um valor desmedido à honra de quem está na luta politica e na luta pela atribuição de subsídios de carácter público.
E, neste campo, existe a obrigação positiva - a onerar os tribunais portugueses - directamente decorrente da letra e do espírito da Convenção (e da sua jurisprudência), de assegurar a plena vigência daquele princípio de liberdade de expressão, que ganha maior realce no âmbito da luta política e de interesses de ordem geral.
Acresce que a nossa história da defesa da honra tem sido tudo menos positiva, pois que ainda na segunda metade do século anterior se tolerava, ao menos socialmente, a “defesa da honra” através de crimes de sangue. Hoje esta defesa da honra em sede de ordenamento penal que indubitavelmente é atendível, até na previsão de vários preceitos do Código Penal, tem vindo a ser utilizada – via tipos penais difamatórios - como forma de obviar à crítica, de silenciar adversários, de atingir objectivos pessoais ou institucionais sem o incómodo da crítica.
Como já afirmámos no supra citado acórdão de 28-06-2013 (Proc. nº 552/09.0GCSTB.E1) o que se pretende é obter o «efeito de arrefecimento de condutas” (“chilling effect”), surgindo as ameaças de prossecução
por difamação como uma “particularmente insidiosa forma de intimidação” - Resolução C. E. 1577 (2007).
E essa “particularmente insidiosa forma de intimidação” tem sido utilizada na sociedade portuguesa de forma abundante, seja por pessoas, seja por empresas e organismos públicos ou privados, como forma de calar a oposição, impedir o exercício de direitos e impor formas mais ou menos subtis de censura ou de dominância».
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B.4.1 – E aqui, no caso concreto, o assistente numa das suas “persona”, o de dirigente de uma associação beneficiada com um subsídio público, acha-se com o direito absoluto à atribuição desse subsídio, entende que não deve ser fiscalizado nos termos definidos pela entidade concedente, queixa-se às entidades administrativas por tal facto, estas levam a questão a sério (!) e até investigam o que faz o Ministério Público da comarca (?) e ninguém se lembra que a Câmara concedente do subsídio e o seu Presidente têm o dever de acautelar os dinheiros públicos, o dever de fiscalizar o seu emprego para o fim declarado e aceite, cuidar da legitimidade de quem o vai receber em nome da pessoa colectiva, assegurar que aquela o recebe. No mínimo.
E, provado no facto 20) que o assistente tinha uma dívida em execução junto da Fazenda Nacional, hoje Autoridade Tributária, esse dever do recorrente evidencia-se, ganha relevo e acentua-se a sua obrigação de acautelar o uso adequado do montante do subsídio.
A simples circunstância de saber existente uma dívida ao fisco em processo de execução fiscal não é suficiente para duvidar, indagar, acautelar, mesmo recusar? E acautelar a prossecução do fim que justificava o subsídio não é crime. É o cumprimento de um dever. Só num país onde a obtenção de subsídios é um fim em si mesmo se poderia pensar o contrário.
Aqui resta acrescentar que ao arguido se não impunha qualquer dever de se informar sobre as dívidas fiscais do assistente na medida em que fora informado de que a Câmara Municipal havia recebido várias notificações para penhora de créditos, conforme se revela bastamente documentado nos autos (fls. 52-58). Nem lhe seria muito fácil obter pessoalmente o que quer que fosse junto da Autoridade Tributária.
Certo é que nos documentos juntos aos autos – fls. 52 e lista de Abril de 2011 - existem referências a dívidas e a notificações para penhora de créditos desde 2006 a Novembro de 2010, ou seja, com pelo menos uma penhora posterior aos factos dos autos e muitas anteriores.
Assim, com este acervo documental recebido nos serviços da (…) o recorrente ficou, naturalmente, desobrigado de se informar sobre matéria que se deveria entender suficientemente esclarecida e onde não lhe seria muito fácil apurar da real situação fiscal de outro cidadão. Ou seja, o arguido tinha fundamento sério para reputar como verdadeira a existência de dívida ao fisco pelo que sobre ele não recaía qualquer dever de informação.
Quanto ao montante da dívida, não correspondendo ao efectivamente dito no facto provado 1), não ganha relevo a diferença constatada pois que proeminente é a existência da dívida em importância apreciável, suficiente para a exceptio veritatis.
*
B.4.2 – Por isso que a questão última que se coloca é a de saber, então, se a condenação do arguido se justificava, se era uma “providência necessária numa sociedade democrática”, mesmo na hipótese de não haver consentimento presumido e do não preenchimento de todos os elementos do tipo penal.
Isto dando já como assente que a restrição à liberdade de expressão está “prevista na lei” (no Código Penal aqui através do tipo penal de difamação) e prossegue um “objectivo legítimo”, a tutela da honra, dois dos requisitos prévios do nº 2 do artigo 10º da Convenção.
Aquela expressão (“providência necessária numa sociedade democrática”), o terceiro requisito, tem sido interpretada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem como a exigência de uma “necessidade social imperiosa” que justifique uma condenação. Cabem neste conceito – de forma não exaustiva dada a construção jurisprudencial - os incitamentos à violência, um discurso de violência contra pessoas ou grupos, o incitamento ao ódio e o apelo à intolerância.
Por tal razão a recente decisão Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal (3 de Abril 2014, § 36) é clara em repisar que a natureza e a medida das penas infligidas são elementos a ter em consideração quando se trata de medir a proporcionalidade da ingerência na liberdade de expressão (Cumpana e Mazare c. Roménia, 2004, §§ 113-115 e Kubaszewski c. Polónia, 2010, § 46) e que a aplicação de penas de prisão se não justifica nos crimes de difamação, excepto em circunstâncias excepcionais, designadamente se outros direitos fundamentais foram gravemente atingidos, como nos casos de difusão de discursos de ódio ou de incitação à violência (Mariapori c. Finlândia, Julho de 2010, § 67 e Cumpana e Mazare c. Roménia, § 115).
Mais considerou aquela decisão que o ordenamento jurídico português contém um remédio específico para a protecção da honra e da reputação no artigo 70º do Código Civil (a que acresce o artigo 484º do mesmo diploma, acrescentamos nós) pelo que a aplicação de multas penais acrescidas de indemnização por danos – como ocorre no caso concreto - é manifestamente desproporcionado pelo que a condenação se não revelava necessária numa sociedade democrática (Amorim Giestas e Jesus Costa Bordalo c. Portugal, § 36 e 37).
E no campo da defesa da honra é aceite que os limites da crítica são mais amplos se estiver em causa uma figura pública, designadamente politica.
Assim o jogo de linguagem entre arguido e assistente insere-se nos campos do agir social em que é maior a tutela da liberdade de expressão, pelo que nem por aqui se justificaria a condenação do arguido, ou seja, mesmo que considerássemos preenchidos todos os elementos do tipo de crime imputado e inexistente o consentimento presumido.
Por isso que o recurso proceda e o arguido deva ser absolvido quer da acusação crime quer do pedido cível deduzido, este por inexistência de pressupostos da responsabilidade civil, dolo, dano, ilicitude e os necessários nexos.
***
C - Dispositivo:
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência:
O facto provado sob 20) passa a ter a seguinte redacção: «À data da entrevista, o assistente tinha uma dívida junto da Fazenda Nacional de 388,75 € como contribuinte principal e 44.712,56 € como revertido» - (ponto B.2.3 da fundamentação);
Dão-se como não provados os factos 6 a 8 - (ponto B.2.4 da fundamentação);
Absolvem o arguido da imputação crime e do pedido cível deduzido.
*
Custas pelo assistente com 5 (cinco) Ucs. de taxa de justiça.
Sem efeito a condenação em custas crime e cíveis do arguido em 1º instância.
Notifique (Processado e revisto pelo relator).
Évora, 1 de Julho de 2014

João Gomes de Sousa
Felisberto Proença da Costa

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[1] - Conclusões que também tratam matéria de direito.
[2] - Entendemos que, mesmo no caso de conhecimento oficioso, detectado o vício de facto passa a ser possível ao tribunal socorrer-se de qualquer elemento probatório existente nos autos.
[3] - Ver a este propósito o certeiro comentário de Teixeira da Mota, in “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e a liberdade de expressão”, pags. 17-20, Coimbra Editora, 2009.
[4] - Desculpar-se-á a auto-citação mas a intenção é a de economizar argumentação.
[5] - “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotada” de Irineu Cabral Barreto, Coimbra Editora, 3ª edição, pags. 31-32 (2), 2005 e 4ª Edição, pag. 42 (6), 2010 e a “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sua posição face ao ordenamento jurídico português”, Rui Manuel Gens de Moura Ramos, in BDDC n. 5, pags. 93-195, 1981.
[6] - Publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78 (rectificada por Declaração da Assembleia da República publicada no Diário da República, I Série, n.º 286/78, de 14 de Dezembro).
[7] - Concorda-se com a crítica de Teixeira da Mota a esta posição, na obra citada, pags. 18-20.
[8] - Esta jurisprudência deve ser entendida como a forma adequada de interpretação convencional a que o estado português está também internacionalmente vinculado.
[9] - Com interesse a declaração de voto concordante mas separada do Juiz András Sajó no aresto Público – Comunicação Social, SA c. Portugal, de Dezembro de 2010, a propósito de raciocínios e fundamentações “proporcionais”.
[10] - Um essencial contributo anglo-saxónico para os “Estados Unidos da Europa” e para o apaziguar de França e Alemanha, referidos por Churchill no seu discurso na Universidade de Zurique, em 19 de Setembro de 1946.
[11] - Vide com interesse e actualidade “Argentoratum Locutum: Is Strasbourg or the Supreme Court Supreme?”, Brenda Hale (“The Right Honourable Baroness Hale of Richmond, Justice of the Supreme Court of the United Kingdom”), in Human Rights Law Review, Volume 12, Issue 1, pp. 65-78, (http://hrlr.oxfordjournals.org/content/12/1/65.full), com acesso para citação em 08-06-2014.
[12] - A este propósito é ver com proveito os “Ensaios da Fundação” «Liberdade e Informação», de José Manuel Fernandes, n. 21, Setembro de 2011 e «A liberdade de expressão em tribunal», de Francisco Teixeira da Mota, n. 34, de Maio de 2013, editados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.
[13] - Afirma o Prof. Costa Andrade in “Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal” (pag. 77, nota 8) que segundo Tenckhoff, só entre os juristas – alemães, presume-se – há mais de sessenta conceitos de honra.