Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANA BARATA DE BRITO | ||
Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO VEÍCULO | ||
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Data do Acordão: | 10/20/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | Incorre no crime (tentado) de ofensa à integridade física qualificada (arts. 143º/ 1, 145º/1-a)/2 e 132º/ 2- h) do CP – utilização de meio particularmente perigoso) o arguido que ordena ao condutor de um veículo pesado porta-camiões que “passe por cima” do veículo em que a assistente se encontrava, que, perante a recusa daquele, repete “passa por cima dessa cabra”, e que depois assume a condução do veículo pesado avançando com ele na direcção da assistente, que se desvia, evitando o atropelamento. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Criminal: 1. No Processo nº 89/11.7TARMR da Comarca de Santarém foi proferida sentença em que se decidiu: condenar o arguido BDS, como autor de um crime de injúria do art. 181º, nº 1, do CP, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros), perfazendo um total de 420 € (quatrocentos e vinte euros); absolver o mesmo arguido da prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada dos artigos 22º, 23º, 72º, 143º, nº 1 e 145º, nº 1, al. a) e nº 2, todos do CP, com referência ao disposto no artigo 132º, nº 2, al. h) do mesmo diploma legal; julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente ECVC, e em consequência condenar o arguido a pagar-lhe a quantia de € 400 (quatrocentos euros) a título de indemnização civil fundada em responsabilidade por danos não patrimoniais, a que acrescerão juros de mora à taxa de 4%, contados sobre essa quantia, desde a data da notificação ao arguido do pedido cível. Inconformado com o decidido, recorreu o MP, concluindo: “1. Nos presentes autos de processo comum o arguido BDS foi absolvido da prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previstos e puníveis pelos artigos 22.º, 23.º, 72.º, 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, todos do Código Penal, com referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, alínea h), do mesmo diploma legal, e condenado pela prática, em autoria material, de um crime de injúria, previsto e punível pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, perfazendo um total de € 420,00. 2. Discordamos da sentença na parte em que absolveu o arguido dos dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, que lhe vinham imputados em sede de acusação pública. 3. No nosso entender, face à factualidade dada como provada não poderia o Tribunal ter absolvido o arguido da prática de tais ilícitos, tendo sido feita uma incorrecta subsunção da factualidade dada como provada ao direito, uma vez que se imponha ao Tribunal que tivesse condenado o arguido também por estes ilícitos. 4. Como bem refere a Meritíssima Juiz a quo o artigo 145.º, do Código Penal prevê a punibilidade do crime de ofensa à integridade física na forma qualificada, estatuindo o seguinte: “1. – Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º; b) Com pena de prisão de três a doze anos no caso do artigo 144.º. 2. – São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º”. 5. No caso em apreço, em sede de acusação, concluiu-se que a conduta do arguido integrava a prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, por referência ao previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º, do Código Penal que estabelece que é susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente o facto de “Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”. 6. Da subsunção dos factos dados como provados na sentença ora recorrida às normas que prevêem e punem o ilícito criminal pelo qual o arguido foi absolvido, dever-se-ia ter concluído que a utilização de um veículo pesado porta-camiões, pelo arguido, para concretizar os seus intentos – causar ofensa à integridade física à assistente e ao ofendido LS – consubstanciava um “meio particularmente perigoso”. 7. Não aceitamos que a Meritíssima Juiz a quo tivesse considerado que “Ora, atentando no caso concreto, compulsada a acusação deduzida, verifica-se, desde logo que, não só não foram alegados, como não resultaram provados quaisquer factos que permitam concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do arguido”, uma vez que os factos que se acham descritos na acusação são suficientes para se concluir pela condenação do arguido. 8. Como refere Jorge Figueiredo Dias, em anotação ao artigo 132.º, do Código Penal, no Comentário Conimbricense, pág. 25, “O legislador português de 1982 seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método muito particular e até certo ponto, neste domínio, original (…): a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada exemplos-padrão (…). Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade e perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2.”. 9. A jurisprudência tem considerado que a qualificação deriva sempre da comprovação de um tipo de culpa agravado – a título de exemplo citam-se os acórdãos do STJ de 27/05/2010 e 09/06/2011, publicados no site www.dgsi.pt. 10. Deste modo, a especial censurabilidade e perversidade da conduta do arguido está associada ao meio que o mesmo escolheu para atingir o fim e, tendo conta que agiu com dolo directo de ofender a integridade física da assistente e do ofendido LS e de que o veículo por si utilizado era apto a causar lesões nos mesmos, o facto de ter utilizado um veículo pesado porta-camiões é determinante para se concluir que agiu com culpa agravada, que a sua conduta é susceptível de revelar uma maior censurabilidade e perversidade do que se tivesse escolhido outro meio mais comumente utilizado para agredir outra pessoa. 11. Foi entendido no Acórdão da Relação de Évora, datado de 27/06/2006, publicado no site www.dgsi.pt, que “o veículo automóvel, apesar de ser um instrumento indispensável no mundo de hoje, é, já por si e ainda que usado com normal diligência e perícia, um meio particularmente perigoso. Basta lembrarmo-nos que, de entre os instrumentos utilizados pelo homem e tirando o recurso intensivo a armas em situação de guerra ou conflito armado, o veículo automóvel é o instrumento ou máquina que mais fere e mata nas sociedades modernas”. 12. Acontece que, tal como resultou provado na sentença, o arguido utilizou um veículo pesado porta-camiões que, de acordo com as regras da experiência comum, caso tivesse atingido a assistente e o ofendido, os mesmos possivelmente não sairiam vivos, e ao arguido seriam certamente imputados outros ilícitos criminais mais gravosos. 13. Acresce que o facto da assistente e do ofendido se terem desviado de forma a evitar os seus atropelamentos não pode atenuar a culpa do arguido. 14. Ora, por os ofendidos terem conseguido evitar os seus atropelamentos, é que crime de ofensa à integridade física qualificado foi imputado ao arguido na forma tentada e não na forma consumada. 15. O arguido deu início a actos de execução do crime que decidiu cometer, porém, não se chegou a consumar, tal como exigido na descrição de tentativa consagrada no artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal, por razões alheias à sua vontade. 16. Acrescenta a alínea b) do n.º 2 do citado artigo 22.º que são actos de execução os que forem idóneos a produzir resultado típico. 17. Com efeito, dado o circunstancialismo que envolveu a actuação do arguido, o meio por este escolhido para alcançar o seu propósito e o desvalor da sua conduta, verificando-se todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22.º, 23.º, 143.º, n.º 1 e 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, ambos do Código Penal, com referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, alínea h), do mesmo diploma legal, não poderia o arguido ser absolvido da prática de tais ilícitos. 18. Destarte, a sentença recorrida violou as disposições legais contidas nos artigos 22.º, 23.º, 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 e 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal. 19. Pelo exposto, a sentença recorrida deverá ser revogada na parte absolutória e, consequentemente, substituída por outra que condene o arguido pela prática dos dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, previstos e puníveis pelos artigos 22.º, 23.º, 143.º, n.º 1 e 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, ambos do Código Penal, com referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, alínea h), do mesmo diploma legal.” O arguido respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno: “1. Vem a presente resposta do recurso interposto pelo Ministério Público porquanto não pode o Arguido concordar com todo o seu teor. 2. Vejamos, se por um lado o objecto do recurso, em face das conclusões apresentadas, se cinge à decisão de absolvição do crime de ofensas à integridade física. Por outro lado, as razões de fundo apresentadas para o efeito, limitam-se à conclusão da recorrente de que o Tribunal deveria “ter concluído que a utilização de um veículo pesado porta-camiões pelo arguido, para concretizar os seus intentos – causar ofensa à integridade física à assistente e ao ofendido LS – consubstanciava um meio particularmente perigoso”. 3. Conforme resulta da douta sentença a quo, as razões que fundamentam a decisão de absolvição prendem-se com a circunstância de que não houve alegação nem prova da especial censurabilidade ou perversidade do arguido. E quanto às considerações de direito não merece a sentença qualquer reparo. 4. Em primeiro lugar, foi preocupação da defesa em sede de julgamento demonstrar que é manifestamente contrário às regras básicas da experiência e do senso comum, tentar atropelar duas pessoas recorrendo a um porta – camiões carregado com outro camião. 5. De facto, é do conhecimento geral que um camião (o tractor somente) tem um peso bruto aproximado de 20 toneladas, havendo alguns a pesar mais de 25 toneladas e que, nesse sentido, um porta-camiões, pela sua própria natureza, pesará ainda mais em virtude da estrutura de reboque que está integrada no seu chassis. 6. De onde resulta ser, de certa forma surreal, imaginar uma viatura como esta, carregada com outra, em regime totalmente estacionário, arrancar para tentar atropelar duas pessoas. 7. Mais que, a nosso ver, ninguém no uso das suas capacidades, pretenderia ultrapassar alguém nestas condições, por este ser um modo totalmente inábil para o efeito. 8. Em segundo lugar, assistente e ofendido sabiam perfeitamente que do camião em questão não resultava qualquer perigo para a sua integridade física ou propriedade. 9. Para o efeito, consideremos o sentido do facto provado n.º 18, nos termos do qual “Por forma a evitar que o motorista abandonasse aquelas instalações, conforme lhe indicara o arguido, LS entrou dentro do carro em que se fazia deslocar e colocou o mesmo à frente do porta-camiões, para que este não pudesse sair do local, enquanto não chegassem as autoridades policiais cuja presença fora, entretanto solicitada pela assistente.” 10. Aqui fica demonstrada a realidade dos factos, isto porque, é notório que a assistente e o ofendido tomaram a questão pelas suas próprias mãos, tendo adoptado comportamentos – no mínimo – provocatórios e temerários. Situação agravada pelo facto de a assistente ser advogada. 11. Em terceiro lugar, importa referir que, trabalhando a assistente com camiões (factos provados n.º 8 e 9), tinha plena noção dos reais riscos e aptidão da viatura em causa para a atropelar. 12. De notar ainda que, conforme consta da alegação da acusação pública e particular (e dos factos dados como provados) em momento algum a assistente e o ofendido sentiram receio, ficando apenas mencionado que sentiram humilhação devido a expressões alegadamente proferidas. 13. Resulta ainda do senso comum que, caso não houvesse efectivo perigo de atropelamento por um camião a rebocar outro, com certeza que assistente e ofendido se teriam atravessado em frente ao mesmo. 14. Em quarto lugar, note-se a menção feita no recurso que antecede sobre douto acórdão proferido por esta Relação relativamente à perigosidade de um automóvel. Sem desconsiderar tudo quanto é mencionado no referenciado acórdão, a verdade é que um automóvel e um porta-camiões com um camião em cima são realidades substancialmente diferentes. 15. Ao contrário do que foi considerado, era importante alegar e demonstrar, entre outros, por que razão concreta aquele deve ser considerado um meio particularmente perigoso, qual forma de utilização concreta do mesmo, qual a distância a que esteve dos visados e quais foram os obstáculos que estes precisaram de ultrapassar para sobreviver. 16. Acontece que nada disto ficou alegado e/ou demonstrado, isto porque, como bem sabem a assistente e o ofendido, não se verificou. 17. O que ocorreu e foi dado como provado é que a própria assistente e o ofendido não hesitaram em interpor-se em frente a uma viatura em marcha com o propósito de a imobilizar, conscientes de que não incorriam em qualquer risco, quer pela natureza da situação quer pelas intenções de quem estava por detrás do volante. 18. Atentemos para o efeito às palavras do Sr. Professor Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense I (página 37), “Utilizar meio particularmente perigoso é … servir-se para matar, de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de um crime de perigo comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes. (...) deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio utilizado revele uma perigosidade superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado - e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. 19. Em face do supra exposto, salvo o devido respeito pelas alegações do Ministério Público, diga-se que se revela manifestamente impossível um porta camiões, com um outro camião em cima, arrancar, perseguir e atropelar uma pessoa e depois outra. Tal cenário não possível! 20. Mais que, nunca tal foi intenção de quem quer que seja. Tampouco esta situação foi alguma vez preocupação para a assistente e ofendido. O que nunca foi alegado ou sequer provado.” Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer também no sentido da improcedência. Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência. 2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados: “1) No dia 10 de Fevereiro de 2011, cerca das 18 horas e 30 minutos, nas instalações da sociedade Mm – Comércio e Reparação (...), Lda, sita no CF, em RM, o arguido ordenou a JMCS que passasse com o veículo pesado porta-camiões, de matrícula que não se logrou apurar e que transportava o veículo de matrícula 00-XX-00, por cima do veículo em que a assistente ECVC se fazia transportar. 2) Porém, JMCS não o fez e o arguido voltou a dizer-lhe “passa por cima dessa cabra”, frase ouvida pela referida assistente, que se sentiu ofendida na sua honra e consideração pessoal. 3) De seguida, o arguido assumiu a condução do dito veículo pesado porta-camiões e, sem nada que o fizesse prever, avançou com o mesmo na direcção da assistente e de LS, que se desviaram, evitando, desta forma, o seu atropelamento. 4) O arguido quis agir como agiu, ao proferir as expressões acima mencionadas, bem sabendo que a assistente as ouvira e que se sentira ofendida na sua honra, dignidade e consideração pessoal, o que aconteceu. 5) O arguido admitiu ainda como possível atropelar a assistente e LS como acima descrito, só não o conseguindo por razões alheias à sua vontade, com conhecimento de que o veículo por si conduzido era apto a provocar-lhe lesões corporais. 6) O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e punida criminalmente. Da Acusação Particular 7) No dia 10 de Fevereiro de 2011, pelas 18:30h, a assistente, quando seguia no IC2, sentido Sul/Norte, acompanhada de LS e da mãe deste, MLFL, avistou uma viatura pesada, com a matrícula 00-XX-00, em cima de um porta-camiões pertencente à sociedade Mm, Lda. 8) Tal viatura era propriedade da sociedade Ar – TAV, Ldª, da qual a assistente é, e era à data dos factos, sócia-gerente. 9) Tendo a assistente verificado que a viatura que seguia em cima do porta-camiões era da Ar, Lda, decidiu seguir ambas as viaturas até ao local onde a viatura de matrícula 00-XX-00 iria ser descarregada. 10) A viatura em causa entrou nas instalações da sociedade Mm, Lda, sitas em EN1, CF, 0000-000 RM, a fim de aí ser descarregada. 11) Local onde a assistente abordou MJRS, sócio e gerente da referida Mm, Lda, informando-o que aquela viatura era propriedade da sociedade Ar, Lda. 12) Tendo-lhe por aquele sido respondido que a referida viatura, juntamente com outra ali parqueada, tinham sido adquiridas pelo arguido a JPOT, sócio e/ou gerente da sociedade Transportes M, Lda. 13) Tendo, de imediato o referido MS telefonado ao arguido para que o mesmo comparecesse no local. 14) O arguido compareceu no local identificado em 1), e informou a assistente que havia comprado as duas viaturas a JPOT, da sociedade Transportes M, Lda, a quem telefonou relatando-lhe o que se estava a passar. 15) A assistente constatou que a segunda viatura, com a matricula 11-YY-11, objecto do referido negócio encontrava-se também ela parqueada nas instalações da sociedade Mm, Lda e que a mesma era propriedade da Ar, Lda. 16) O arguido deu ordens ao motorista do porta-camiões da Mm, Lda e que transportava o veículo com a matrícula 00-XX-00, para retirar a mesma viatura para fora do parque. 17) O referido motorista acatou tais ordens preparando-se para sair do local com a viatura que trazia carregada no porta-camiões, e propriedade da Ar, Lda. 18) Por forma a evitar que o motorista abandonasse aquelas instalações, conforme lhe indicara o arguido, LS entrou dentro do carro em que se fazia deslocar e colocou o mesmo à frente do porta-camiões, para que este não pudesse sair do local, enquanto não chegassem as autoridades policiais cuja presença fora, entretanto solicitada pela assistente. 19) Tendo, então, o arguido gritado, por diversas vezes, ao motorista do porta-camiões ordenando-lhe “passa por cima do carro” e ainda, empregando um tom agressivo e ameaçador, “passa por cima dessa cabra”. 20) O arguido proferiu tal ordem dirigindo-se ao motorista do porta-camiões, referindo-se à assistente. 21) As expressões referidas em 19) foram proferidas pelo arguido em voz alta, junto às instalações da Mm, Lda, e da estrada nacional, tendo sido ouvidas pelas pessoas que se encontravam dentro do carro em que a assistente seguia, Luis Miguel da Conceição dos Santos e MLFL, bem como das demais pessoas que ali se encontravam. 22) Como o motorista se recusou a cumprir as ordens que lhe foram dirigidas pelo arguido Brilhantino, este ordenou-lhe que saísse do porta-camiões, e entrou para dentro do mesmo, para o lugar de condutor, e arrancou com o porta-camiões no sentido da assistente e da testemunha LS. 23) Seguidamente, o arguido saiu das instalações com direcção ao IC2, seguindo viagem sentido Norte/Sul, tendo depois invertido a marcha e voltado às instalações da Mm, Lda, onde parqueou a viatura. 24) A assistente é Advogada, sendo as pessoas que a acompanhavam, seus clientes. 25) A situação descrita causou à assistente profunda humilhação em virtude de ter ocorrido em público, e na presença de funcionário e clientes da assistente, 26) Em local onde a assistente é conhecida, e com quem trabalha com frequência dado que existem na zona várias empresas com relações comerciais e conhecimentos entre si. 27) Ademais, a localidade em causa é e pequena dimensão, o que, tal como é habitual permite e facilita a sua divulgação. Da Contestação 28) O pai da assistente e o arguido são conhecidos de longa data, fazendo negócios juntos há mais de trinta anos. 29) Existe entre o arguido e o pai da assistente uma relação de confiança mútua. 30) Entre o pai da assistente, o arguido e JPOT, foram encetadas negociações com vista à compra e venda de dois camiões, cujos termos e condições concretas não foi possível apurar. 31) O arguido, na companhia de João Santos foi buscar dois camiões às instalações da sociedade transportes M, Lda, a fim de os trazer para as suas instalações. 32) A assistente exigiu ao arguido a entrega dos camiões. 33) A assistente tem diversos processos judiciais a correr contra si. Do Pedido de Indemnização Civil 34) Na sequência dos factos praticados pelo arguido e descritos em 2) e 19) a assistente ficou vexada ao ser alvo de tais afirmações, tanto mais que foram ouvidas por funcionário da empresa da qual é gerente, e na presença de quem ali se encontrava e com quem priva diária e socialmente. 35) E na presença de clientes da sua actividade de advocacia. 36) A assistente ficou, ainda se encontrando, abalada e afectada com as expressões proferidas pelo arguido, pondo em causa a sua credibilidade enquanto advogada e respeitabilidade que se impõe face à profissão que exerce. 37) A assistente ficou inibida ao frequentar o seu local de trabalho, e viu afectada a sua boa disposição e socialização afectadas em virtude do sucedido. 38) A assistente é uma pessoa respeitada quer no meio social quer no profissional em que se insere. 39) Razão pela qual a assistente sentiu vergonha e humilhação. Antecedentes criminais e condições sócio-económicas 40) O arguido encontra-se reformado, recebendo uma pensão de cerca de € 700,00 mensais. 41) O arguido tem como rendimento mensal, para além da pensão supra referida, o montante de cerca de € 4.800,00 mensais, de rendas. 42) O arguido reside sozinho, em casa própria. 43) Tem dois filhos, de 13 e 30 anos, respectivamente, os quais residem com a mãe, sendo que o primeiro é estudante. 44) O arguido tem uma dívida no valor de € 200.000,00, que deveria liquidar mensalmente em prestações de € 4.000,00, que não se encontra a cumprir. 45) O arguido tem a 4ª classe. 46) Em 22.09.2014 nada consta do CRC do arguido..” Foram também consignados os factos não provados. 3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), a questão a apreciar respeita ao erro de subsunção. Esse erro consistiria no não enquadramento jurídico dos factos provados no tipo de crime agravado de que o recorrido vinha acusado. Refere o MP que os factos provados integram os crimes públicos imputados ao arguido na acusação, ou seja, os dois crimes de ofensa à integridade física qualificada dos arts 22º, 23º, 72º, 143º, nº 1 e 145º, nº 1, al. a) e nº 2, com referência ao disposto no art. 132º, nº 2, al. h), todos do CP. Vejamos primeiramente como se justificou na sentença a absolvição: “Do crime de Ofensas à Integridade Física Qualificadas, na Forma Tentada Dispõe o art.143º do Código Penal: “1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 2.O procedimento criminal depende de queixa, salvo quando a ofensa for cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas. 3.O tribunal pode dispensar de pena quando: a) tiver havido agressões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou b) o agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.” Dispõe, por sua vez o art.145º do Código Penal que: “1. Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até 4 anos no caso do art.143º; b) com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do art.144º; 2. São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do art.132º.” A aplicação desta norma e o funcionamento da qualificação pressupõe a existência de uma lesão da integridade física simples. O tipo legal previsto no art.º 145.º mais não é, pois, que uma forma agravada, neste caso, do tipo de ofensas à integridade física simples, surgindo a qualificação da verificação em concreto de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados – especial censurabilidade ou perversidade do agente –, verificação esta indiciada por circunstâncias ou elementos, exemplificativamente descritos, uns relativos ao facto, outros relativos ao autor, em ordem a poder concluir-se por uma imagem global do facto agravada (cfr. “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 249 e 25). O bem jurídico tutelado é ainda a integridade física da pessoa humana. Nos termos do art.143º do Código Penal o tipo legal do crime de ofensas à integridade física pode ser realizado de duas formas diferentes: ofensa ao corpo ou ofensa à saúde. A primeira é entendida como toda a perturbação da integridade corporal, do bem estar físico ou da morfologia do organismo, enquanto que a segunda abrange toda a alteração ou perturbação do normal funcionamento do organismo. A ofensa ao corpo ou a ofensa à saúde podem ser realizados mediante uma qualquer acção ou omissão que consubstancie um ataque à integridade física. No caso dos autos está em causa a condução, pelo arguido, de um veículo pesado porta-camiões, cuja condução aquele assumiu, avançando na direcção da assistente e do ofendido LS, o que, sem dúvida, é meio apto a colocar em perigo o bem-estar físico e a integridade corporal dos ofendidos, o que só não ocorreu porque aqueles se desviaram, evitando o atropelamento, pelo que se trata de conduta susceptível de produzir uma ofensa ao corpo de outra pessoa. Por outro lado, a conduta do arguido não pode deixar de ser considerada dolosa, já que bem sabia o resultado que iria alcançar com a sua conduta e, não obstante, agiu com o propósito de atingir cada um dos ofendidos na sua integridade física, o que só não sucedeu porque aqueles se desviaram. Uma vez que a lesão não chegou a produzir-se, verifica-se que a conduta do arguido se subsume à previsão legal vertida no artigo 22º do Código Penal, já que “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.”. Estando-se perante actos de execução, nomeadamente, quando aqueles preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou forem idóneos a produzir o resultado típico, tal como sucede nos autos. Em face de tais disposições legais, verifica-se que a tentativa deste crime é punível sempre que o agente pratica actos de execução do crime de ofensa à integridade física, sem que este chegue a consumar-se, em circunstâncias integráveis ou análogas às referidas nos exemplos-padrão do artigo 132º, nº 2, susceptíveis de revelar especial censurabilidade. Vejamos então se se mostram preenchidos os elementos objectivos do tipo qualificado. A “especial censurabilidade” refere-se a «condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e a “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação do facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (“Comentário Conimbrincense”, tomo I, pág. 29). Ao arguido são imputadas as circunstâncias constantes do art.º 132.º, n.º 2, alíneas h) – praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum. Ora, atentando no caso concreto, compulsada a acusação deduzida, verifica-se, desde logo que, não só não foram alegados, como não resultaram provados quaisquer factos que permitam concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do arguido. Com efeito, não foram alegados factos, nenhuns tendo resultado provados, repita-se, que permitam concluir que a actuação do arguido correspondeu a uma especial atitude ou conduta especialmente desvaliosa, pese embora a eventual verificação do disposto na al. h) do nº 2 do artigo 132º do CP, isto é, “praticar o facto juntamente, com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de um crime comum”. Nos presentes autos estará em causa a segunda parte desta norma – a utilização de meio particularmente perigoso. Como afirma Jorge de Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense, vol.I, pg.37, utilizar meio particularmente perigoso é servir-se, “de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de um crime comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes” «(…) deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente nos exemplos-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes), em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se a natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes – resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma – aqui, sim! -, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso.» - cfr. Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, pp. 37 (realces no original). Também aqui, atendendo ao antes explanado quanto à correcta interpretação deste segmento legal e aos factos praticados pelo arguido, não é possível entender que a condução, pelo arguido, nas circunstâncias de modo e lugar descritas na acusação, do veículo pesado porta-camiões na direcção da assistente e do ofendido LS, constitui meio particularmente perigoso. Como é sabido, e resulta das regras de experiência comum, um veículo pesado porta-camiões, é um veículo que não tem grande agilidade. No caso concreto, o referido veículo encontrava-se parado, implicando o início da respectiva marcha a consumição de alguns segundos (pese embora a força do respectivo motor), e carregado com uma auto-betoneira. Por outro lado, a assistente e o ofendido LS, por sua vez, encontravam-se apeados, junto ao referido veículo, em campo aberto (num parque de estacionamento), não sendo conhecidos factores que façam concluir pela dificuldade de locomoção dos mesmos, nomeadamente pela existência de obstáculos, não se podendo, pois, concluir que as vítimas não se encontravam em condições de não poder resistir ou que vissem significativamente dificultada a sua defesa pela utilização do aludido veículo. Assim, em face dos factos demonstrados entende-se não ser caso de preenchimento da circunstância prevista na alínea h) do n.º 2 do art.º 132.º ou de qualquer outra das previstas neste normativo legal. Volvemos, pois, ao tipo simples do art.º 143.º. Na situação concreta de que nos ocupamos, vem imputada ao arguido a prática do tipo de ilícito supra enunciado na forma tentada. Sobre a punibilidade da tentativa dispõe o artigo 23º do Código Penal, nos termos do qual, salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a três anos de prisão. Ora, em face do que acima se expôs, e atendendo à moldura penal do tipo simples – prisão até três anos -, é forçoso concluir que a tentativa, no caso concreto, não é punível. Motivo pelo qual não pode o arguido ser condenado pelos crimes imputados.” Sinalizou-se na sentença, como sendo o único efeito de indício elegível (e bem, nesta parte), a “utilização de meio particularmente perigoso”, indício esse que, no entanto, não se considerou, em concreto, como revelador da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Na visão da Senhora juíza, “não só não foram alegados, como não resultaram provados quaisquer factos que permitam concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do arguido. Com efeito, não foram alegados factos, nenhuns tendo resultado provados, repita-se, que permitam concluir que a actuação do arguido correspondeu a uma especial atitude ou conduta especialmente desvaliosa, pese embora a eventual verificação do disposto na al. h) do nº 2 do artigo 132º do CP, isto é, “praticar o facto juntamente, com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de um crime comum”. Nesta parte, a sentença merece alteração. Na verdade, esses factos (que permitirão concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do arguido) encontram-se nos factos provados da sentença, retiram-se da descrição do episódio de vida em apreciação, todo ele revelador de um comportamento do arguido especialmente censurável. Identificado o efeito de indício, como se reconhece na sentença, a decisão passará depois, não pela identificação de razões que afastem o efeito agravante do “indício” retirado do catálogo (não fechado) do nº 2 do art. 132º do CP uma vez detectado (como considera alguma doutrina e jurisprudência), mas de circunstâncias encontradas nos factos que positivamente integrem a cláusula geral de agravação constante do nº 1. E esta parece ser também a interpretação seguida na sentença. Discorda-se, no entanto, da sua aplicação ao caso concreto. Diverge-se também, neste ponto e com todo o respeito, daquele que cremos ser o entendimento do STJ no acórdão de 10-12-2008 (Rel. Pires da Graça) no sentido de que “a partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, como “efeito de indício”, interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado” (a seguir-se esta interpretação, ainda mais se justificaria a condenação, no presente caso). É também esta a posição de Teresa Serra (Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, 2000, p. 87). Diz a autora que “o efeito dos exemplos-padrão fundamenta como que uma presunção ilidível”, implicando a “contraprova do efeito de indício”. A um pensamento de presunção de qualificação, se bem que elidível, preferimos o do reconhecimento da especial censurabilidade ou perversidade do agente pela positiva, e a par (ou, mais precisamente, aquando) da identificação de qualquer uma das alíneas do n.º 2 do art. 132º. Isto independentemente de se reconhecer que o “efeito padrão” possa “fornecer o indício da existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente” (Teresa Serra, loc. cit., p.67). Ele fornece o indício que, precisamente por ser isso mesmo, carecerá de complementação. Já quanto à questão da imprescindibilidade ou não do efectivo preenchimento de um desses exemplos-padrão-tipo para ocorrência da qualificação, não haverá que tomar posição, por não ser essa a situação no caso sub judice – a agravantes identificada no recurso encontra-se positivada. Regista-se apenas o sentido uniforme da jurisprudência – o de que esta qualificação pode resultar também de um circunstancialismo equivalente e igualmente revelador da especial censurabilidade ou perversidade – assim: STJ 09-06-2011, Rel. Pais Martins; STJ 14-10-2010, Rel. Manuel Braz; STJ 27-05-2010, Rel. Souto Moura; STJ de 10-12-2008, Rel. Pires da Graça; STJ 16-09-2008, Rel. Henriques Gaspar, entre muitos; mas contra, no sentido do princípio da legalidade/tipicidade impedir o alargamento a circunstâncias diferentes das referidas na lei, doutrina relevante, como Fernanda Palma, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 1983, pp. 49-50: “a função do nº 2 só pode ser vista como uma correcção descritiva do conteúdo normativo do nº 1, uma função de precisão do nº 1 (…) a inclusão de circunstâncias análogas é difícil, já que a sua não referência pelo legislador faz pressentir uma rejeição dessas circunstâncias”. Permanece controverso, também, o saber se o fundamento da revelação da especial censurabilidade ou perversidade assenta no tipo de culpa ou no desvalor da acção. Ou, no enunciado de Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2ª ed., pp. 48s), o “saber se os exemplos-padrão constantes do art. 132º, nº2 constituem em definitivo elementos do tipo de ilícito, elementos do tipo de culpa, elementos uns do tipo de ilícito e outros do tipo de culpa, ou simples circunstâncias determinantes da medida da pena”. Responde este autor que “face ao art. 132º não parece que possa defender-se outra doutrina que não seja a de ver ali elementos do tipo de culpa”, mas concluindo não haver “objecções de princípio a que se defenda que a agravação da culpa é em todos os casos suportada por (ou se reflecte necessariamente em) uma correspondente agravação (gradual-quantitativa) do conteúdo de ilícito.” Fernanda Palma começa por distinguir nas circunstâncias do nº 2 do art. 132º duas espécies: “circunstâncias relativas ao modo de ser objectivo da acção e circunstâncias relativas à implicação pessoal do agente da acção”, completando: “Nas primeiras, é notória a existência do maior desvalor da acção para a Ordem Jurídica: quer o emprego de tortura, (…) quer a utilização de veneno ou dos outros meios previstos correspondem a acções que encerram uma grande perigosidade objectiva (…). Nas segundas, embora, aparentemente só o interior do agente esteja em causa, (…) elas não se referem a aspectos da personalidade do agente (…) mas só à implicação da pessoa do agente na acção, caracterizadora da própria espécie de acção. Também a finalidade da acção (al. e)) não é algo extrínseco à acção, mas o conteúdo específico da vontade que, ao concretizar-se, constitui a própria acção humana”. Conclui assim que, também nesta segunda espécie de circunstâncias, “embora o íntimo do agente surja em primeiro plano como objecto de valoração, também o desvalor por elas indiciado é directamente desvalor da acção”. Para Fernanda Palma, o conjunto das circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º é, todo ele, definidor de um grau mais grave de ilícito. Mas, no sentido em que essas circunstâncias terão que “pesar na censurabilidade ou perversidade do agente” é que se podem considerar como relativas à culpa, sendo a gravidade da culpa o fundamento da agravação (loc. cit. pp. 43-45). Se bem percebemos, a preocupação de Fernanda Palma é mais a de compatibilizar o art. 132º com o princípio da legalidade – na medida em que de outro modo, para a autora, a culpa deixaria de ser um mero critério de medida da pena (culpa-limite), antes se apresentando como fundamento da própria condenação, o que entraria em contradição com o princípio legitimador do direito penal – acabando também por reconhecer que a intenção do legislador é a de penalizar mais uma culpa acrescida. Figueiredo Dias resolve esta objecção de Fernanda Palma dizendo que a agravação pela culpa é suportada pela agravação especial do ilícito. Augusto Silva Dias considera acertada a posição de Figueiredo Dias que vê a agravação determinada pelo “acentuado desvalor da atitude”, distinguindo entre circunstâncias que assentam num desvalor da acção mais elevado e circunstâncias que se assentam numa culpa especialmente grave, mas regista que “a posição de Figueiredo Dias perde clareza quando logo em seguida afirma não haver objecção a que se defenda que a agravação da culpa é «em todos os casos» suportada por uma correspondente agravação do conteúdo da ilicitude” (Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2007, pp.29s). O enunciado teórico não está ainda completo, já que o preceito legal convocável à decisão do recurso não é só o art. 132º mas também o art. 145º. O que implica decisão sobre o modo de importação do nº 2 do 132º para resolução de caso relativo a crime de ofensa à integridade física. Ou, pondo a questão como a coloca Augusto Silva Dias (loc. cit., p.107-108) cumpre saber se as circunstâncias “desenhadas para o homicídio (…) valem tal qual no âmbito das ofensas corporais, ou se carecem de adaptação”. E concordamos com a resposta dada pelo autor – “o «entre outras» terá no quadro do art. 146º uma dupla função: a que já desempenha no âmbito do art. 132º e que tem a ver com a configuração das diversas circunstâncias do nº2 como exemplos-padrão; e a de permitir a adaptação de circunstâncias desenhadas no art. 132º para o homicídio” (Assim, por exemplo, o prazer de matar, passará a “ser determinado pelo prazer de agredir”). Identificado o quadro legal de referência e o seu enunciado teórico, importa decidir se, em concreto, os factos provados consubstanciam apenas o tipo-base do art. 143º do CP (e então a tentativa não seria punível) ou ainda o tipo qualificado do crime de ofensa à integridade física do art. 145º, nºs 1-a) e 2 do CP. Do art. 132º do CP resulta, como se viu – e em qualquer uma das construções dos autores citados e apesar dos diferentes caminhos –, que qualquer das circunstâncias previstas no nº 2 – sejam elas relativas ao facto ou ao agente – consubstanciam o crime qualificado apenas quando delas se conclua ainda pela presença de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. A jurisprudência converge no sentido de considerar que a qualificação deriva sempre da comprovação de um tipo de culpa agravado (assim, nos mesmos acórdãos STJ 09-06-2011, Pais Martins; STJ 14-10-2010, Manuel Braz; STJ 27-05-2010, Souto Moura; STJ 16-09-2008, Henriques Gaspar). Provou-se (entre outros factos provindos da acusação particular) que o arguido ordenou ao condutor de um veículo pesado porta-camiões que passasse por cima do veículo em que a assistente se fazia transportar; que perante a recusa dele voltou a dizer-lhe “passa por cima dessa cabra”; que assumiu depois a condução do dito veículo pesado e avançou com o mesmo na direcção da assistente e seu acompanhante, que se desviaram, evitando, desta forma, o seu atropelamento; que o arguido admitiu como possível atropelar as duas pessoas, só não o conseguindo por razões alheias à sua vontade, com conhecimento de que o veículo por si conduzido era apto a provocar-lhe lesões corporais. É evidente a particular perigosidade do meio empregado e a consequente maior dificuldade de defesa em que se coloca a vítima. Independentemente da velocidade no arranque que se consiga imprimir ao veículo, trata-se sempre da utilização de um meio com uma perigosidade muito superior à da normalidade dos meios utilizados para agredir (cfr. Figueiredo Dias, loc. cit. p. 68, em que sufraga o entendimento de que integra a qualificativa o uso de um automóvel). Argumenta o recorrido que terá sido “preocupação da defesa em sede de julgamento demonstrar que é manifestamente contrário às regras básicas da experiência e do senso comum, tentar atropelar duas pessoas recorrendo a um porta – camiões carregado com outro camião”, que “é do conhecimento geral que um camião tem um peso bruto aproximado de 20 toneladas, de onde resulta ser surreal imaginar uma viatura como esta, carregada com outra, em regime totalmente estacionário, arrancar para tentar atropelar duas pessoas”, que “assistente e ofendido sabiam perfeitamente que do camião em questão não resultava qualquer perigo para a sua integridade física ou propriedade.” Mas o certo é que ficou provado em julgamento (e a matéria de facto é de considerar como definitivamente estabilizada) que “o arguido ordenou a JMCS que passasse com o veículo pesado porta-camiões, de matrícula que não se logrou apurar e que transportava o veículo de matrícula 00-XX-00, por cima do veículo em que a assistente ECVC se fazia transportar”, que como este “não o fez, o arguido voltou a dizer-lhe “passa por cima dessa cabra”, que “de seguida, o arguido assumiu a condução do dito veículo pesado porta-camiões e, sem nada que o fizesse prever, avançou com o mesmo na direcção da assistente e de LS, que se desviaram, evitando, desta forma, o seu atropelamento”, que “o arguido admitiu como possível atropelar a assistente e LS como acima descrito, só não o conseguindo por razões alheias à sua vontade, com conhecimento de que o veículo por si conduzido era apto a provocar-lhe lesões corporais.” Tudo isto ficou demonstrado, faz parte dos factos provados a subsumir juridicamente e contraria totalmente a tese do recorrido. Tese que seria, afinal, a de que o seu comportamento não só não consubstanciaria uma forma qualificada do crime, como configuraria até uma “tentativa impossível” e, logo, sempre não punível (art. 23º, nº 3 do CP). Por último, também não é de considerar como “provocatória e temerária” a prévia atitude da assistente, como pretende o recorrido. Sem a utilização de qualquer meio violento, a assistente convocou cordatamente a presença da autoridade policial, comportamento socialmente adequado, a tomar num contexto de episódio de vida como o descrito, e procurou manter o veículo no local dos factos até à chegada dessa autoridade, necessariamente por breves momentos. O comportamento do arguido, esse sim, é que se apresenta como manifestamente desproporcionado, não hesitando em acometer com um veículo da envergadura do dos autos (precisamente), na direcção (ou contra) duas pessoas, sabendo ainda que a autoridade policial estaria prestes a chegar àquele local, o que sempre lhe possibilitaria sair dali prontamente, pacificamente e em ordem. A conduta mostra-se agravada ainda pela consistência da sua atitude, externa e interna, tendo começado por ordenar a um motorista que fizesse aquilo que acabou por ultimar por suas próprias mãos. Identifica-se aqui uma persistência na atitude, que se repercute também na culpa, pois é indiciadora de uma personalidade especialmente desvaliosa revelada no facto. A assistente e acompanhante não foram atingidos porque se desviaram. Assim está provado. Não porque o veículo pesado, conduzido pelo arguido, não fosse apto a atingi-los. Este episódio de vida no seu conjunto integra, pois, a previsão da al. h) do nº 2 do art. 132º do Código Penal e, por via dela, o art. 145º, nº1- a) do CP, na forma tentada. Ele é “manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa” do tipo qualificado em causa (STJ 16-09-2008, Henriques Gaspar). E tendo o arguido visado, com a sua acção, a integridade física de duas pessoas, considera-se que cometeu, como autor, na forma tentada e em concurso efectivo, os dois crimes de ofensa à integridade física qualificada do artigo 145º, nº 1, al. a) e nº 2 (art. 132º, nº1-al. h)) do CP de que estava acusado. A sentença deve, pois, ser revogada na parte da absolvição. (c) Da reabertura da audiência para determinação da sanção Mostrando-se preenchido (e por duas vezes) o tipo de ilícito, importa proceder à determinação da sanção. Mas tendo sido o arguido inicialmente absolvido da prática deste crime na primeira instância, e tendo este tribunal da Relação procedido à alteração da matéria de facto de modo a concluir pela condenação, impõe-se assegurar ao condenado o amplo exercício dos seus direitos de defesa. Estes direitos incluem (mas não se esgotam n)o direito ao recurso, com a consequente e oportuna possibilidade de reapreciação da medida da pena por uma instância superior, que compete acautelar. Revestindo também a questão da determinação da sanção uma relativa autonomia (arts 469º n.º 2 e 470º do CPP), mas sobretudo porque assim o impõem a garantia do duplo grau de jurisdição, de tutela constitucional no que respeita ao arguido (art. 32 nº 1 da CRP) bem como o direito a estar perante o juiz e o tribunal que fixa a pena (direitos de presença e de audiência, art 61º, nº 1 – a) e b) do CPP), deverão os autos baixar à primeira instância, para aí ser proferida a decisão sobre a pena. Também na leitura do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (e embora o direito ao recurso não resulte do disposto no art. 6º da Convenção), devem os recursos obedecer às regras mínimas exigíveis a um processo equitativo, encontrando-se o duplo grau de jurisdição em matéria penal consagrado no art. 2º do protocolo nº 8 de 1984. A Relação não pode funcionar, simultaneamente, como tribunal da primeira e da última condenação, ou seja, como tribunal da única condenação, o que desrespeitaria o duplo grau de jurisdição em matéria penal. 4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal da Relação de Évora em: - Julgar procedente o recurso, nos termos expostos; - Julgar o arguido autor de dois crimes tentados de ofensa à integridade física qualificada dos arts 22º, 23º, 72º, 143º, nº 1 e 145º, nº 1, al. a) e nº 2, com referência ao disposto no artigo 132º, nº 2, al. h), todos do CP; - Determinar que os autos regressem à 1ª instância, para reabertura da audiência e prolação da decisão sobre a pena. Sem custas. Évora, 20.10.2015 (Ana Maria Barata de Brito) (Maria Leonor Vasconcelos Esteves) |