Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANTÓNIO JOÃO LATAS | ||
Descritores: | CRIME DE DESOBEDIÊNCIA NORMA PENAL EM BRANCO DESPENALIZAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 12/20/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | I. O Regime jurídico da urbanização e edificação constante do Dec-lei 555/99 de 16 de dezembro - assume natureza penal, enquanto fonte de norma integradora da norma penal em branco contida no art. 348º C.P., pelo que as alterações àquele Dec-lei operadas pela lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 26/2010 de 30 de Março, no sentido da isenção de licença, comunicação prévia ou autorização de utilização para as obras do tipo das aqui em causa, não podem deixar de ter por efeito a despenalização da conduta concreta do arguido, por desobediência a ordem de demolição/reposição. II. Ou seja, a situação jurídico-penal concreta criada na vigência da Lei Antiga (LA) - i.e. antes das alterações de 2007 e 2010 - deixou de ter relevância jurídico-penal após a entrada em vigor daquelas mesmas alterações ao Dec-lei 555/99, pelo que deixa tal facto de ser punido, por força do princípio da imposição retroactiva da lei penal mais favorável acolhido no art. 2º nº2 do C. Penal e no art. 29º nº4 da CRP. | ||
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Decisão Texto Integral: | Em conferência, acordam os Juízes na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I. Relatório 1. – Nos presentes autos que correm seus termos no Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António, foi acusado pelo MP em Processo abreviado, A. nascido em 18.09.1949, natural de Aveiras de Cima, como autor material de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348° n.º 1 al. a) do Código Penal, com referência ao art.º 100° n°1 e 102.º do DL nº 555/99, de 16 de Dezembro. 2- Realizada audiência de julgamento, foi o arguido condenado, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de desobediência simples previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência ao artigo 100.º do Dec-Lei n.º 555/99, de 16.12., na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 25€ num total de 1500€. 3. – Inconformado, veio o arguido recorrer extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem ipsis verbis: « - CONCLUSÕES – 1.- O Recorrente considera incorrectamente julgada a matéria de facto referida nos pontos 1, 3, 5 e 6 da matéria dada como provada, na douta sentença, por isso impugna-a nos termos do disposto no art.º 412º, n.º3 do CPP. 2.- Essa matéria é a seguinte: 1.- “No dia 26 de Outubro de 2004, o Arguido tinha destruído uma pérgola existente na obra de construção da sua residência, sita na Urbanização..., em Castro Marim, nesta comarca, e construiu em sua substituição um telheiro com colocação de telhas assentes em ripas de madeira, sem para tal estar autorizado pala Câmara Municipal de Castro Marim através da emissão de licença de Autorização para Alteração do Projecto. … 3.- No dia 15 de Fevereiro de 2005, o Arguido foi notificado do despacho que ordenou essa demolição e reposição e ficou ciente que se tratava de uma ordem de demolição/reposição do Presidente da Câmara Municipal de Castro Marim para a tutela da legalidade urbanística cujo desrespeito o fazia incorrer em responsabilidade penal. …. 5.- O Arguido tinha consciência que não cumpria a ordem de demolição/reposição proferida pelo Presidente da Câmara Municipal de Castro Marim no uso dos poderes que para o efeito lhe foram conferidos por lei. 6.- Agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida. …” 3.- O Recorrente considera incorrectamente julgada a matéria do ponto 1. porque ao contrário da matéria dado como provado que “NÃO DESTRUIU UMA PÉRGOLA EXISTENTE NA OBRA” nem “CONSTRUIU EM SUA SUBSTITUIÇÃO UM TELHEIRO”. 4.- Tal como resulta do depoimento do Recorrente gravado digitalmente no CD das 11:18 horas às 12:01 horas do dia 27-03-2009, que expressamente diz que o que aconteceu foi que um fiscal passou na obra e disse que não era assim, pois tinha que ser feito em vigas de madeira e não podia ser inclinado. 5.- O Recorrente assim procedeu tirou a inclinação e pôs vigas de madeira. 6.- O Recorrente obteve assim a licença de utilização. 7.- Mais tarde, o Recorrente colocou telhas sobre as vigas de madeira. 8.- Os seus vizinhos têm telhas também colocadas, conforme três documentos juntos aos autos pelo Recorrente, o depoimento do Recorrente gravado digitalmente no CD das 11:18 horas às 12:01 horas do dia 27-03-2009, por si impõem decisão sobre a matéria de facto diversa e que devem ser renovadas nos termos das al. b) e c) do nº3 do art.º412º do CPP. 9.- Está também incorrectamente julgada a matéria de facto do ponto 3 concretamente: No dia 15 de Fevereiro de 2005, o Arguido foi notificado do despacho que ordenou essa demolição e reposição e ficou ciente que se tratava de uma ordem de demolição/reposição do Presidente da Câmara Municipal de Castro Marim para a tutela da legalidade urbanística cujo desrespeito o fazia incorrer em responsabilidade penal; 10.- O Recorrente declarou em Tribunal que não reside na morada “Sítio dos Poços, ...Aveiras de Cima, para onde foi endereçada a carta da Câmara Municipal de Castro Marim conforme consta do seu depoimento, gravado digitalmente no CD das 11:18 horas às 12:01 horas do dia 27-03-2009 tendo o mesmo afirmado que separou-se da sua mulher nos finais de 2004, e foi residir para a Rua..., em Aveiras de Cima. 12.- Nos autos consta que a carta foi recebida no Sítio dos Poços conforme consta na assinatura do aviso de recepção, por AM. 13.- A referida Ana Marques não é o ora Recorrente. 14.- O Recorrente goza do beneficio da presunção de inocência pelo que competia ao Ministério Público a prova de que ele recebeu a carta. 15.- Na douta sentença o tribunal a quo presumiu que o Recorrente recebeu a carta e presumiu também que recebeu outras como por exemplo da repartição de finanças. 16.- O tribunal a quo não pode condenar o Recorrente com base em convicção que como sabemos estão quase sempre erradas, isto é, todos nós nos enganamos na análise do carácter das pessoas. 17.- Por outro lado, a carta endereçada pela Câmara Municipal que consta do processo é assinada pela Sr.ª Chefe de Secção da Divisão de Administração Urbanística que não é Presidente da Câmara. 18.- A referida comunicação a ser válida (criminalmente válida) teria de ser assinada pelo Sr. Presidente da Câmara. 19.- A referida comunicação consiste no envio do despacho do Sr. Presidente da Câmara para cumprimento, em 45 dias, da cópia do parecer emitido pela divisão de administração urbanística. 20.- A comunicação não é clara, em nenhum momento foi dada ordem CLARA de demolição/reposição no prazo de 45 dias. 21.- Aliás, no primeiro parágrafo do parecer consta que a obra pode eventualmente ser legalizada. 22.- Se a obra pode ser legalizada, nunca o Recorrente poderia cometer o crime de desobediência p. e p. no art.º 348º, n.º 1, al. a) do Código Penal, não cumprindo a ordem de demolição, uma vez que a ordem é ilegal. 23.- para além de que a diferença entre pérgola e telheiro é apenas não ter ou ter telhas, CLARAMENTE o Sr. Sr. Presidente da Câmara deveria ter dito para o Recorrente retirar as telhas. 24.- A colocação de telhas não está actualmente sujeita a apresentação de projecto de alterações pelo que não se verifica o elemento objectivo do tipo de crime “ a falta de obediência”. 25.- No seu depoimento a Dr.ª E disse que o seu pai se havia separado da sua mãe em Dezembro de 2004, tendo abandonado a casa de morada de família, conforme consta do seu depoimento, gravado digitalmente no CD das 12:14 horas às 12:21 horas do dia 05-05-2009 e cujo depoimentos impõem decisão sobre a matéria de facto diversa e que devem ser renovadas nos termos das al. b) e c) do nº3 do art.º412º do CPP. 26.- A prova documental, assinatura do aviso de recepção, quer a prova testemunhal referida e o depoimento do Recorrente permitem concluir que o mesmo não foi notificado pelo Sr. Presidente da Câmara para a reposição/demolição do telheiro. 27.- Em conformidade com o disposto no art.º 348º, n.º 1 do Código Penal, comete o crime de desobediência aquele que faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente. 28.- Nos caso dos autos, o Recorrente não recebeu a referida ordem para obedecer no prazo de 45 dias. 29.- O princípio IN DUBIO PRO REO, tem aqui aplicação e estabelece que, nas decisões de factos incertos, a dúvida favorece o Réu, este princípio identifica-se com a presunção de inocência do arguido, e impõe que o tribunal a quo valore sempre em favor do arguido e em caso de dúvida o absolva. 30.- Tanto mais que na perspectiva da defesa, o tribunal a quo agiu com parcialidade nos autos, no sentido desvalorar as declarações do Recorrente considerando-as sem qualquer credibilidade. 31.- A douta sentença entrou em contradição porque considerou as condições socioeconómicas referidas pelo Recorrente como credíveis, isto é, quando é para condenar as declarações são credíveis, quando é para absolver não são credíveis. 32.- Na douta sentença foi violado o princípio Constitucional da igualdade, que se encontra pasmado no art.º 13º da Constituição da República Portuguesa. 33.- Por mera cautela se dirá também que a pena de 60 dias de multa, à razão diária de 25,00 €, o que perfaz a quantia de 1.5000,00 €, em que o Recorrente foi condenado, é manifestamente excessiva, do ponto de vista do Recorrente a qual não deveria exceder o valor de 10,00 € de multa diária, tendo em conta as condições socioeconómicas do Recorrente. Termos em que deve ser revogada a douta sentença recorrida e assim se fará JUSTIÇA.» 4. – Notificado para o efeito, o MP junto do tribunal a quo respondeu no sentido da total improcedência do recurso. 5. - Nesta Relação, a senhora magistrada do MP emitiu parecer no sentido da descriminalização da conduta pela qual o arguido vem condenado, pelo que entende deve o mesmo ser absolvido. 6. - Transcrição (parcial) da sentença recorrida. A) Factos provados: Observado o legal formalismo procedeu-se a julgamento, na presença do arguido e, com relevo para a decisão da causa (excluindo-se os factos inócuos, conclusivos e de direito), provaram-se os seguintes factos: 1 - No dia 26 de Outubro de 2004, o Arguido tinha destruído uma pérgola existente na obra de construção da sua residência, sita na Urbanização..., em Castro Marim, nesta comarca, e construiu em sua substituição um telheiro com colocação de telhas assentes em ripas de madeira, sem para tal estar autorizado pela Câmara Municipal de Castro Marim através da emissão de Licença de Autorização para Alteração do Projecto. 2 - No dia 01 de Fevereiro de 2005, o Presidente da Câmara Municipal de Castro Marim ordenou a demolição do telheiro e a reposição da obra em conformidade com o projecto aprovado. 3 - No dia 15 de Fevereiro de 2005, o Arguido foi notificado do despacho que ordenou essa demolição e reposição e ficou ciente que se tratava de uma ordem de demolição/reposição do Presidente da Câmara de Castro Marim para a tutela da legalidade urbanística cujo desrespeito o fazia incorrer em responsabilidade penal. 4 - Porém, no dia 28 de Setembro de 2005, os Fiscais Municipais no exercício das suas funções de fiscalização, verificaram que o Arguido não tinha demolido o telheiro, nem tinha construído a pérgola existente, em sua substituição. 5 - O Arguido tinha consciência que não cumpria a ordem de demolição/reposição proferida pelo Presidente da Câmara Municipal de Castro Marim no uso dos poderes que para o efeito lhe foram conferidos por lei. 6 - Agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida. Mais se provou, 7 – O arguido foi condenado em 14 de Novembro de 2007, no tribunal do Cartaxo, pela prática em 19.04.2000, de crime de falsificação ou contrafacção de documento, p. e p. pelo artigo 256.º do Código Penal, transitada em julgado a 14.12.2007. 8 – O arguido tem uma empresa de exploração de novilhos, auferindo 1500€ mensais, a actual companheira é doméstica e tem uma filha de 12 anos a seu cargo. INEXISTEM FACTOS NÃO PROVADOS B) Motivação da Matéria de Facto: Para formação da sua convicção o tribunal analisou as declarações do arguido, considerando-as sem qualquer credibilidade face às contradições e incoerências em que lavrou. Na verdade, o arguido começou por afirmar em audiência que não teve conhecimento da notificação que lhe impunha a demolição, acrescentando que caso recebesse tal intimação teria procedido às obras. Justificou que a notificação foi enviada para o Sítio dos Poços, e o mesmo já não ali reside desde finais de 2004, quando se separou. Ora, tal relato é de tal forma inconsistente com o que depois foi declarado em audiência pelo próprio e pelos documentos juntos aos autos, que o tribunal ficou plenamente convencido do contrário, ou seja, de que o arguido conhecia perfeitamente a ordem que lhe foi dada. Na realidade, como referiu o arguido, as cartas iam para o Sítio do Poços e eram recebidas pela funcionária do stand que ali laborava, A, pessoa que como relatou é de sua inteira confiança. Para além disso referiu, que na localidade é conhecido como residindo no Sítio do Poços, não tendo, por exemplo, alterado a residência das finanças que continua a ser enviada para aquele local, o que não o impede de receber tais cartas. Por outro lado, foi notificado por prova de depósito para aquela morada (a que consta no TIR a fls 47 de Abril de 2007), e teve conhecimento da mesma, uma notificação pessoal da GNR foi efectuado naquele local, a procuração foi outorgada pelo arguido, ali escrevendo como residência o Sítio do Poços e a morada que consta do CRC na última condenação é justamente aquele residência, como aliás, o TIR prestado nos autos. O exposto descredibilizou totalmente todas as declarações do arguido, afigurando-se que demonstram que toda a correspondência enviada para aquele local, tal como foi enviada a notificação da Câmara e recebida pela funcionária A (fls 12), eram e são do conhecimento do arguido e que este teve perfeito conhecimento, ao contrário do que disse, da mesma. De igual as testemunhas apresentadas pela defesa não permitem infirmar esta conclusão do tribunal, já que J nada sabia quanto à notificação, e E, apenas acrescentou que naquela data apenas ia ao fim de semana a casa, que não teve conhecimento da notificação, o que é justificável, atendendo a que também acrescentou que pouco falava com o pai devido ao divórcio com a sua mãe. Os factos dados como provados, resultaram justamente, da análise crítica das declarações do arguido, dos testemunhos de I e L, que atestaram o incumprimento de que o arguido vem acusado, sendo que I referiu que procedeu à elaboração da participação de fls 18, situação também atestada por N, tendo sido ordenada a demolição do telheiro, por não estar em conformidade, e que decorrido o prazo para a realização da obra ordenada, atestou que a mesma não tinha sido feita, conforme informação de fls 9. Assim, as declarações destes testemunhos, que pela forma firme como depuseram, mereceram a credibilidade do tribunal, conjugada com os documentos 9 a 14, 18 e análise crítica das declarações do arguido, convenceram o tribunal no sentido dos factos dados como provados. Para prova das condições pessoais e socioeconómicas atendeu-se às declarações do arguido e para prova dos antecedentes o tribunal fundou-se no certificado junto aos autos. C) Motivação de Direito: Encontra-se o arguido acusado da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art.348º, n.º1, al. a) do Cód. Penal, com referência ao preceituado no art. 100.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16.12. Em conformidade com o disposto no art. 348º, n.º1 do Cód. Penal, comete o crime de desobediência aquele que faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples ou, na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente comissão. Qualquer que seja a modalidade que o delito concretamente revista, para que a factualidade típica se tenha por objectivamente preenchida é necessário a existência de uma ordem ou mandado legítimos, a sua regular comunicação, a emanação da mesma de autoridade ou funcionário competente e a falta à obediência devida. No sentido que interessa ao preenchimento do tipo legal em análise, por ordem há-de ser entendida toda a imposição da obrigação de praticar ou deixar de praticar certo facto: a ordem contém necessariamente uma norma de conduta, positiva ou negativa, embora de natureza necessariamente pessoal e concreta, posto que obrigatoriamente dirigida a um particular cidadão, individualmente considerado. A ordem ou mandado cujo não acatamento se reprime há-de ser substancialmente legítima, ou seja, há-de necessariamente surgir em presença de uma disposição legal que autorize a sua emissão nos exactos termos em que foi realizada ou, na ausência de disposição legal, na sequência e no âmbito do exercício dos poderes para um tal efeito discricionariamente reconhecidos ao funcionário emitente ou autoridade expedidora. Para além de legitimidade substantiva, a ordem ou o mandado têm que ter validade formal. Com efeito, apenas quando as ordens ou mandados em causa são emitidos e comunicados em conformidade com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão e comunicação se poderá configurar um crime de desobediência. Em todos os outros casos, a ordem ou o mandado não terá sido regularmente emitido ou comunicado, razão pela qual a obediência não será devida nem criminalmente sancionado aquele que a não atendeu. A ordem terá que ser emanada por autoridade ou funcionário competente, ou seja, o comando imposto deverá caber no âmbito das suas atribuições funcionais próprias ou delegadas. Por fim, mas não por último, é indispensável que o comando, expresso sob a forma de ordem ou mandado, tenha sido desrespeitado por comportamento activo ou omissivo do agente: o agente há-de ter violado o dever que procede do comando emanado, dever esse que tanto pode resultar directamente da lei [n.º1, al. a) se simples, ou n.º2 se qualificada], como da cominação expressa nesse sentido efectuada por autoridade ou funcionário competente (n.º1, al. b)). O que dito fica induz, em primeira constatação, à seguinte conclusão: ao remeter continuamente, a propósito da concretização de cada um dos elementos utilizados para a construção do tipo - legitimidade da ordem emitida, regularidade da sua comunicação, competência da autoridade ou funcionário de que emana e disposição legal cominadora -, para outras disposições legais, o preceito em análise inscreve-se na categoria dos chamados preceitos penais «em branco»: a norma de comportamento é preenchida casuisticamente, através da convocação de outras disposições, ainda que situadas no âmbito de ordenamentos não penais (F. Dias, Crime de Câmbio Ilegal, CJ XII, 1987, 2, 54), com a inevitável consequência de que a hipótese legal se deverá procurar, em cada caso, nas atinentes normas legais, penais ou extra-penais. Na hipótese sub judice, é o disposto nos arts. 4.º, 100.º, 102.º e 103.º, do Dec-Lei n.º 555/99 (na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 177/2001) que particularmente importará considerar: coloca-se na dependência de prévio licenciamento ou autorização administrativa a possibilidade de realização de todas as obras de construção civil, designadamente reconstrução, ampliação, alteração, reparação ou demolição de edificações, e comina-se com o crime de desobediência o não acatamento do embargo que, por falta de inobservância da aludida condição, haja tido eventualmente lugar. Vejamos mais de perto, Nos termos do artigo 4.º, n.º 1 do supra citado diploma a realização de operações urbanísticas depende de prévia licença ou autorização administrativa, com as excepções previstas no artigo 6.º e 7.º, podendo adoptar-se medidas de tutela da legalidade urbanística para zelar pelo respeito de tal normativo, designadamente, e para o que ora interessa, o presidente da câmara municipal é competente para ordenar a demolição total ou parcial da obra (artigo 106.º, n.º 1, alínea a), do Dec-Lei n.º 555/99), cominando o artigo 100.º o desrespeito desta medida de legalidade urbanística com um crime de desobediência. Revertendo ao caso dos autos sem perder de vista o que acima ficou dito, importa começar por verificar que, o arguido sem que todavia obtivesse autorização administrativa por parte da Câmara Municipal de Castro Marim, procedeu à transformação de uma pérgola num telheiro, sendo que na sequência de uma fiscalização efectuada à referida obra, por parte da Câmara Municipal de Castro Marim, foi proferido pelo Presidente da Câmara Municipal, despacho, ordenando que o arguido procedesse à demolição da referida obra, no prazo de 45 dias, despacho este que foi devidamente notificado ao arguido, o que não fez. Perante o que dito fica, dúvidas não subsistem acerca do preenchimento, no caso, da totalidade dos elementos objectivos do tipo de ilícito que vimos de analisar. Desde logo porque, de acordo com o citado diploma, a realização dos trabalhos levados a cabo pelo arguido encontra-se dependente da prévia obtenção do competente licenciamento; em segundo lugar porque, por ordem cuja legitimidade formal e substantiva se não questionará, ao arguido foi comunicado a obrigação de demolir a obra por ele efectuada; finalmente, porque o arguido não acatou o comando que lhe foi dirigido. Uma vez aqui chegados, importará naturalmente aferir da possibilidade de subjectivamente imputar ao arguido a prática do crime de que se encontra acusado. E porque no caso da desobediência, o tipo doloso se preenche sempre que alguém incumpre, de forma consciente e voluntária, uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, dúvidas não existirão em afirmá-lo no caso concreto já que, conforme resulta do que demonstrado ficou, o arguido representou e quis todas as circunstâncias fácticas descritas no tipo objectivo. Inexistindo causas de exclusão da ilicitude e da culpa cometeu o arguido um crime de desobediência simples p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, com referência ao artigo 100.º do Dec-Lei n.º 555/99, de 16.12. III - escolha e medida da pena: Feita a subsunção da factualidade provada ao Direito, importa determinar as consequências jurídicas do crime praticado pelo arguido. Da conjugação do disposto no preceito sancionador com os limites previstos na parte geral do Código Penal, resulta que o crime de desobediência imputado ao arguido é abstractamente punido com pena de prisão de 1 mês a 1 ano de prisão ou com pena de multa de 10 a 120 dias (cfr. artigos 41º, n.º 1, 47º n.º 1 e 348.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal). O artigo 70.º, n.º 1 do Código Penal dispõe o critério que deverá presidir à escolha da pena, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, como sucede in casu. Assim, o tribunal dá preferência à segunda (pena de multa) sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, que são a protecção de bens jurídicos (tutelados por aquela incriminação) e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa (cfr. preceitua o artigo 40.º, n.º 1 e 2 do Código Penal). Dispõe ainda o artigo 71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, que a medida concreta da pena “é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, devendo o Tribunal atender a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.” – artigo 71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal. Como decorre da leitura conjugada dos artigos referidos a pena só pode ter natureza preventiva (prevenir a prática de futuros crimes), visando a tutela necessária dos bens jurídicos no caso concreto. In casu, atento o facto do arguido nunca ter praticado crimes contra a autoridade pública, afigura-se-nos que a aplicação da pena de multa é suficiente para tranquilizar, pacificar e manter a confiança da comunidade na vigência do seu ordenamento jurídico-penal e reforçar os padrões comportamentais impostos pela norma violada (prevenção geral positiva) e para socializar o arguido e prevenir a reincidência, criando as condições necessárias para que no futuro o arguido, perante situação semelhante, oriente a sua conduta para o Direito (prevenção especial positiva). Para a concretização da medida da pena o Tribunal atendeu como circunstâncias agravantes ao facto do arguido ter agido com dolo directo e com consciência da ilicitude, demonstrativo de uma maior desconsideração pelo Direito instituído. Do ponto de vista das exigências de prevenção geral, importará situá-las acima da mediania, atenta a reacção, hoje prementemente reclamada, contra os comportamentos denunciadores de uma certa degradação da autoridade pública instituída na vida comunitária. Porém, no que diz respeito às condições sociais e económicas do arguido e à sua conduta anterior e posterior aos factos, a factualidade provada indicia uma integração social e familiar normal, permitindo antever a eficácia da condenação. Pelo exposto, tem-se por adequada a aplicação de uma pena de 60 dias de multa. Atendendo à situação económica financeira do arguido e tendo em consideração que o montante diário deve ser fixado de modo a constituir um real sacrifício para o condenado (Ac. STJ de 2.10.1997, in CJ/STJ, ano 97, tomo 3, pg 183), entendemos adequado, necessário e não excessivo aplicar uma taxa diária de 25€.» Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso. É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. No caso presente o arguido vem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do art. 412º nº 3 do CPP., pugnando pela sua modificação em resultado do que não se mostrarão preenchidos os elementos típicos do crime de desobediência pelo qual condenado, impondo-se a sua absolvição. A não se entender assim, o arguido entende que a pena concreta aplicada é excessiva no que respeita ao quantitativo diário, o qual não deve ser fixado em montante superior a 10,00 Euros. O MP nesta Relação, desenvolvendo a questão aflorada pelo requerente na conclusão 24ª da sua motivação de recurso, vem suscitar a questão da descriminalização da conduta pelo qual o arguido vem condenado, pelo que se impõe conhecer previamente dessa mesma questão que, a proceder, levará a que fiquem prejudicadas as questões explicitamente suscitadas pelo recorrente. 2. Decidindo. 2.1. – Da descriminalização da conduta. A evolução normativa relevante para a questão encontra-se descrita, no essencial, pelo MP nesta Relação. a) À data dos factos, em 2004 e 2005, a realização da obra – construção de um telheiro onde antes havia uma pérgula – estava sujeita a prévia autorização camarária, como se refere no ponto 1. dos factos provados, uma vez que se encontrava em vigor o Dec-lei 555/99 de 16/12, na redação introduzida pelo Dec.-lei 177/2001 de 4/6 e não se verificava nenhuma das exceções à obrigatoriedade de autorização prévia acolhidas nos arts 6º e 7º daquele Dec-lei 555/99. Porém, a Lei 60/2007 de 4 de setembro veio alterar a redação desse art. 6º e introduziu um novo artigo, com o nº 6º-A, os quais passaram a dispor: Artigo 6º Isenção de licença I. Sem prejuízo do disposto na alínea d) do nº2 do artigo 4º, estão isentas de licença: (…) (i) as obras identificadas no artigo 6º-A. Artigo 6º-A Obras de escassa relevância urbanística I. São obras de escassa relevância urbanística: (…) e) A edificação de equipamento lúdico ou de lazer associado a edificação principal com área inferior a esta. Por sua vez o DL 26/2010 de 30.03 veio alterar de novo a redação do art. 6º do DL 555/99[1], que passou a dispor que as obras de escassa relevância urbanística, definidas em termos idênticos aos da Lei 60/2007, estão agora isentas de controlo prévio, em qualquer das modalidades de controlo prévio previstas no art. 4º do DL 555/99, com a nova redação do DL 26/2010, ou seja, licença, comunicação prévia ou autorização de utilização. b) Significa isto que, contrariamente ao que se verificava à data dos factos (2004), a conduta do arguido descrita sob o nº1 dos factos provados, ou seja, a construção, em substituição da pérgula previamente existente, de um telheiro com colocação de telhas assentes em ripas de madeira, não carece de Licença de Autorização para Alteração do Projecto desde a Lei 60/2007 e, em todo o caso, desde o Dec-lei 26/2010, supracitados. Uma vez que a substituição da pérgula pelo telheiro não carece agora de Licença prévia, não pode o presidente da câmara municipal ordenar a demolição total ou parcial da obra ao abrigo do disposto no artigo 106.º, n.º 1, alínea a), do Dec-Lei n.º 555/99) sob cominação de o desrespeito daquela ordem ser punida como crime de desobediência, nos termos do art. 100º do mesmo Diploma legal. Assim sendo, impõe-se concluir com o MP nesta Relação, que desde as apontadas alterações legislativas teria que qualificar-se de ilegítima a ordem de demolição do telheiro e a reposição da obra em conformidade com o projeto aprovado, a que se reporta o nº2 da factualidade provada, por falta do respetivo fundamento legal. 2.2. Considerando que aquele fundamento legal se verificava à data dos factos mas deixou de se verificar desde data anterior à sentença recorrida por via das apontadas alterações legislativas, pode concluir-se com o MP nesta Relação que a conduta do arguido se encontra descriminalizada? – Entendemos que sim, apesar de o art. 348º nº 1 a) do C. Penal, que prevê o crime de desobediência pelo qual o arguido vem condenado, não ter sofrido qualquer alteração na respetiva descrição típica. 2.2.1. - Na verdade, o art. 348º do C. Penal constitui exemplo paradigmático de norma penal em branco ou lei penal aberta (vd, por todos, Lopes da Mota, Crimes contra a autoridade pública in Jornadas de Direito criminal – CEJ II, 1998 pp. 423 e 433-5), na medida em que descreve de forma incompleta os pressupostos da punição, remetendo parte da sua concretização para outras fontes normativas (norma complementar ou integradora[2]), que no caso é representada pelo Dec-lei 555/99 de 16 de dezembro que contem o Regime jurídico da urbanização e edificação. Ora, conforme refere Taipa de Carvalho[3] «…é hoje doutrina assente e pacífica que a norma complementar da lei penal em branco assume, por força da remissão desta e seja qual for a natureza jurídica originária (administrativa, estradal, etc) daquela, natureza penal. Logo a alteração das normas integrantes é verdadeira alteração do tipo legal em sentido estrito e, como tal, está sujeita ao regime de sucessão de leis penais: proibição de retroatividade da norma criminalizadora (penalizadora) e imposição da retroatividade da norma ou disposição descriminalizadora. » Assim, a fonte normativa originariamente extrapenal - o Regime jurídico da urbanização e edificação constante do Dec-lei 555/99 de 16 de dezembro - assume natureza penal enquanto fonte de norma integradora da norma penal em branco contida no art. 348º C.P., pelo que as alterações supra apontadas àquele Dec-lei não podem deixar de ter por efeito a despenalização da conduta concreta do arguido. Ou seja, a situação jurídico-penal concreta criada na vigência da Lei Antiga (LA) - i.e. antes das alterações de 2007 e 2010 - deixou de ter relevância jurídico-penal após a entrada em vigor daquelas mesmas alterações ao Dec-lei 555/99, pelo que deixa tal facto de ser punido, por força do princípio da imposição retroactiva da lei penal mais favorável acolhido no art. 2º nº2 do C. Penal e no art. 29º nº4 da CRP. Impõe-se, assim, revogar a sentença recorrida e decidir, em substituição, a absolvição do arguido do crime de desobediência pelo qual vem condenado, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas na motivação de recurso pelo recorrente. III. Dispositivo Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, A, revogando a sentença recorrida e decidindo, em substituição, absolver o arguido do crime de desobediência p. e p. pelo art. 348° n.º 1 al. a) do Código Penal, com referência ao art.º 100° n°1 e 102.º do DL nº 555/99, de 16 de Dezembro, pelo qual vinha condenado em 1ª instância. Sem custas. Évora, 20.12.2012 (Processado em computador. Revisto pelo relator.) ------------------------------------------------------------- (António João Latas) ---------------------------------------------------------------- (Carlos Jorge Berguete) __________________________________________________ [1] “Artigo 6.º Isenção de controlo prévio 1 — Sem prejuízo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 4.º, estão isentas de controlo prévio: a) As obras de conservação; b) As obras de alteração no interior de edifícios ou suas fracções que não impliquem modificações na estrutura de estabilidade, das cérceas, da forma das fachadas e da forma dos telhados ou coberturas; c) As obras de escassa relevância urbanística; d) Os destaques referidos nos nºs 4 e 5 do presente artigo. (…) “ [2] Cfr Teresa P. Beleza e Frederico Costa Pinto, O regime legal do erro e as normas penais em branco, Almedina-1999 p. 31. [3] Cfr Sucessão de leis penais, 2ª ed., Coimbra Editora-1997 p. 200-1 |