Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
88/11.9EASTR.E1
Relator: MARIA ISABEL DUARTE
Descritores: ESTADO DE NECESSIDADE
Data do Acordão: 10/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Age em estado de necessidade a arguida que, perante a apreensão de produtos efectuada pela ASAE, que ficaram acondicionados em arcas de congelação seladas, tendo assumido a qualidade de fiel depositária dos mesmos, veio, por três vezes e no espaço de cerca de seis meses desde a apreensão, requerer autorização para desselar as arcas e sem que obtivesse resposta, se constatou, passado mais de um ano da apreensão, que os havia deitado ao lixo.
II – Sendo que os selos entretanto se haviam deslocado por acção do frio e que tais produtos eram perecíveis, a arguida, com tal conduta, segundo as regras da experiência, visou acautelar o direito à saúde e à integridade física dos utentes do seu estabelecimento comercial.
Decisão Texto Integral:
Proc. N.º 88/11.9EASTR.E1
Reg. N.º 616

Acordam, em conferência, os juízes que compõem a 1.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Évora

I - Relatório
1 - No processo comum, com intervenção do tribunal singular, n.º 88/11.9EASTR, do 1.º Juízo Criminal, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, foi julgado a arguida:

A, (…)

tendo sido proferida decisão, nos termos seguintes:
“i)Condenar a arguida (…) na pena de seis meses de prisão pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de descaminho, previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal.
ii)Suspender a execução da pena de prisão, pelo período de um ano, subordinada ao dever de entregar à APAV a quantia de €500,00 (quinhentos euros) no prazo de 3 (três) meses fazendo prova desse pagamento nos autos.
(…)”.

2 - A arguida, inconformada, interpôs recurso dessa decisão, tendo apresentado as seguintes conclusões:
A. “A Recorrente discorda e não se conforma com a sentença recorrida, que sindica.

B. Houve violação clara do de n.º 2 e 6 do art.º 94, alínea e) do nº 3 do art.º 374 e nº 3 do art.º 372, e nº 1 do art.º 358 todos do CPP, na medida em que o Douto Tribunal a quo assinou a sentença condenatória com data anterior (dia 7 de Novembro de 2012) ao encerramento da audiência e prolação da sentença (dia 9 de Novembro de 2012). Tal facto, viola grosseiramente os dispositivos legais supra aludidos já que os mesmos obrigam à menção do dia, mês, ano, assinatura e lugar do acto, sendo que o nº 2 do art.º 94 obriga à revisão antes da assinatura e de quem o elaborou. O facto de a sentença estar assinada pela Meritíssima Juiz de Direito no dia 7 de Novembro, data da penúltima sessão de audiência, torna-se evidente que o documento não foi revisto, ou então revisado no dia 7. Por outro lado, é o próprio despacho de designação de data e hora de audiência que refere “…leitura de sentença”. Só se conclui que a sentença estava elaborada a dia 7 e não no dia 9 de Novembro. Por outro lado, a comunicação na audiência de 7 de Novembro de 2012, da alteração não substancial dos factos, partindo do pressuposto estar já elaborada a sentença (aliás é o que se retira do seu texto) é inconstitucional à luz da interpretação feita pelo Tribunal a quo, por violação do disposto no art.º 32 da Constituição da Republica Portuguesa, na medida em que dúvidas sempre subsistirão à ora recorrente se o direito ao contraditório não estaria a priori antecipadamente comprometido em prol duma sentença já composta.
C. As notificações do arguido podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado, ressalvando-se, no entanto, as notificações de acusação as quais devem igualmente ser notificadas ao advogado nomeado, nos termos do nº 9 do art.º 113 do CPP. Significa que a acusação ou (entendemos nós) a alteração não substancial dos factos da audiência do dia 7 de Novembro de 2012 foi feita sem a presença da arguida, conforme se constata na acta. Tal comunicação conclui-se por ser uma nulidade insanável prevista na alínea c) do art.º 119 do CPP, visto ser indispensável a presença do arguido em acto em que a Lei exija a sua presença.
D. O Douto Tribunal a quo despersonalizou por completo a importância primordial dada pela Lei Fundamental ao órgão judiciário MP. Com efeito, a não observância e a falta de relevo na sentença, de que se recorre, do precoce despacho de 29 de Julho de 2010 por parte do MP dirigido à ASAE, pugnando pela destruição do produto e não acatado pela ASAE, sem que se olvide o outro datado de 13 de Setembro de 2010, nos mesmo moldes, insistindo, acompanhado dos diversos requerimentos da ora requerente manifestando vontade na destruição do produto, cujo desfecho prejudicou um cidadão imputando-lhe um crime de descaminho, em completo direito de necessidade, por violação completa do nº 53, 55, 56 e 263 do CPP, viola ostensivamente a competência e funções instituídos do MP nos termos da Lei Fundamental, sendo uma interpretação inconstitucional das funções deste organismo primordial num Estado de Direito.
E. A prova adjunta ao processo em causa, cuja cominação teve o desfecho de crime de descaminho, foi enferma pela perturbação da liberdade da ora recorrente, sendo certo que, por um lado, a Administração impunha uma regra de conduta (não dar descaminho aos produtos), por outro forçou-a, contra vontade a tomar uma posição em claro estado de necessidade. Nestes termos, por via do excessivo tempo decorrido, pela fraca consistência dos selos apostos e pelo facto das máquinas congeladoras horizontais não estarem tecnicamente preparadas para aguentar tanto tempo sem serem abertas, obrigaram a ora recorrente, num claro direito de necessidade na limpeza do equipamento avariado. Quanto às outras duas máquinas, evidentemente que o produto já lá não estava porque os selos rebentaram por via do excesso de gelo acumulado. Foi esta a prova recolhida que incriminou a ora recorrente: o produto não se encontrava dentro das máquinas, porém o produto apodreceu e transformou-se num perigo público. Este é um método proibido de prova, nos termos da alínea a) do nº 2 do art.º 126 do CPP, cuja nulidade é insanável e deve ser declarada oficiosamente, nos termos do parte inicial do art.º 119 do C.
F. Por último, o Tribunal a quo não deu a devida relevância ao direito de necessidade da ora recorrente, nem tão pouco aos produtos deterioráveis em causa, olvidando por completo o disposto nº 1 do art.185 do CPP.
Nestes termos e nos mais de Direito que Vexas não deixarão de suprir, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que:
a) Declare o vicio relativamente à aposição da errada data aposta na sentença com base nos n.º 2 e 6 do art.º 94, alínea e) do nº 3 do art.º 374 e nº 3 do art.º 372 todos CPP. Sendo certo que caso a sentença venha ser considerada ter sido elaborada na penúltima audiência, subentende-se ter sido feita a comunicação da alteração não substancial dos factos, nos termos nº 1 do art.º 358 do CPP, com clara violação do disposto no art.º 32 da CRP.
b) Declare a nulidade insanável nos termos do alínea c) do art.º 119 do CPP, visto ter sido comunicado a alteração não substancial dos factos sem a presença da arguida, considerando-se que esta é uma forma de acusação que carece da comparência do arguido nos termos do nº 9 do art.º 119 do CPP.
c) Declare a interpretação inconstitucional pelo Tribunal a quo sendo certo que desconsiderou o papel do MP, ínsito nas normas da alínea b) do art.º 53, 55, 56 e 263 todos do CPP, sendo certo que todos os despachos desta entidade (MP) não foram considerados e, logo não cumpridos, pela ASAE.
d) Declare o prova nula do crime de descaminho, sendo certo que, foi obtida mediante a perturbação da liberdade de vontade da ora recorrente, nos termos do nº 1, e alínea a) do nº 2 do art.º 126 do CPP.
e) Por fim, pelos vícios arguidos, que se altere a decisão sobre a factualidade provada e não provada, proferindo-se Acórdão absolutório à ora recorrente.
Assim decidindo, farão V. Exas., Venerandos Desembargadores, JUSTIÇA!”

3 - Antes de admitido o recurso, foi cumprido o art. 411º n.º 6, do C.P.P., tendo sido apresentada resposta, pelo M.º P.º, concluindo:
“1. Examinada a motivação de recurso da arguida, apenas se descortina um pedido absolutamente enxuto e inconsequente – por não ter qualquer concretização no desenvolvimento da motivação – no sentido da reapreciação da prova gravada.
2. Assim, ao interpor o recurso no 34.º dia subsequente ao do depósito da sentença, a arguida fê-lo já para além do prazo legalmente previsto – in casu, o do citado artigo 411.º, n.º 1, alínea b) do CPPenal – não devendo, por conseguinte, esse recurso ser admitido, nos termos do artigo 414.º, n.º 2 do CPPenal.
3. Tendo marcado a leitura da sentença para o dia 7 de Novembro, impunha-se à Mma. Juíza que, nessa data, estivesse pronta a lê-la.
4. Se acaso a arguida não tivesse pedido prazo para defesa e, portanto, não houvesse outros elementos de prova a analisar, a sentença devia ser lida no dia 7 de Novembro.
5. O facto de não ter alterado a data anteriormente aposta na sentença aquando da respectiva leitura, em 9 de Novembro de 2012, resulta de manifesto lapso de escrita – corrigível nos termos previstos no artigo 249.º do CCivil –, o qual, por sua vez, derivou da circunstância da arguida não ter requerido a produção de meios de prova suplementares e, portanto, da desnecessidade de introduzir quaisquer modificações à sentença já elaborada.
6. A comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação não equivale à notificação da acusação.
7. A ausência da arguida na sessão de julgamento na qual foi comunicada a alteração não substancial dos factos descritos na acusação não afectou minimamente a validade dessa comunicação.
8. A já havia sido interrogada e o dia 7 de Novembro de 2012 foi fixado para a leitura da sentença, a qual podia ocorrer na ausência da arguida, o que só não sucedeu, porque o seu Ilustre Defensor, exercendo um direito que a lei reconhece à arguida, sem o reservar pessoalmente a esta, pediu prazo para preparação da defesa.
9. Estando a arguida devidamente representada por defensor, a comunicação apenas a este da alteração não substancial dos factos descritos na acusação não padece de qualquer invalidade.
10. A sentença recorrida não enferma de qualquer vício, nem está ferida de qualquer nulidade.
Termos em que, rejeitando o recurso por extemporaneidade ou, subsidiariamente, por manifesta improcedência, farão Vossas Excelências, como sempre, JUSTIÇA.. ”

4 - Neste Tribunal o Exmo. Sr. Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer, concluindo:
“Devendo a destruição deste tipo de produtos ser feita por entidades especializadas e devidamente credenciadas pelas entidades estatais competentes, e sendo da competência da entidade apreensora (ASAE) as diligências para tal operação, afigura-se-nos não ser de atribuir à arguida a responsabilidade criminal pelos factos constantes da acusação, tanto mais que a arguida referiu já não se encontrarem nas arcas frigoríficas os produtos apreendidos, devido ao facto de uma delas se ter avariado, o que motivou a que os produtos tivessem que ser eliminados, sem os condicionalismos previstos na lei, sendo certo que esta explicação não foi desmentida por outros factos trazidos a julgamento.
Sendo o crime por que a arguida foi acusada, e condenada, de natureza dolosa, entendemos que resulta da audiência de julgamento que a atuação da arguida se deveu a um conflito de interesses ou seja, entre a obrigação de manter os produtos alimentares apreendidos até que as autoridades competentes lhe dessem destino, e o direito à sua integridade física e dos clientes do seu estabelecimento comercial, decorrente dos perigos imanentes de produtos alimentares estragados, devido á avaria da arca congeladora.
Verifica-se, assim, e em nosso entender. a existência de um direito de necessidade, cujos requisitos constam do artigo 34° do Código Penal.
Pelo exposto, somos de parecer de que deverá ser julgado procedente o recurso interposto, não pelos motivos invocados naquele, mas por se considerar não ser ilícito o ato praticado pela arguida, por existência de um direito de necessidade, nos termos do citado artigo 34° do Código Penal.”.

5 - Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º n.º 2, do C.P.P..

6 - Foram colhidos os vistos legais.

7 - Cumpre decidir

II - Fundamentação
2.1 - O teor da decisão, na parte que importa, é o seguinte:
“Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:
DA ACUSAÇÃO PÚBLICA
1) Em 23 de Julho de 2010, cerca das 02h15m, elementos da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica deslocaram-se ao estabelecimento “(…)”, sito na (…), e aí depararam com a existência, numa sala de almoço, e no interior de três arcas frigoríficas, do seguinte:
-10 sacos, contendo, cada um, 11,5 quilogramas de carne;
-8 peças de picanha, com cerca de 1,2 quilogramas cada;
-2 tabuleiros de bacalhau com natas, com cerca de 1,2 quilogramas cada;
-2 caixas de patas e bocas de caranguejo;
-2 quilogramas de pescada;
-1 quilograma de amêijoa;
-1 quilograma de sapateira;
-4 quilogramas de patas de lagosta;
-1,3 quilogramas de camarão;
-2,5 quilogramas de red fish;
-5 quilogramas de pernil;
-134 empadas sem rótulo;
-154 rissóis de pescada sem rótulo;
-3 barras de 3 quilogramas de queijo “Edamer”;
-3 barras de fiambre tradicional, com cerca de 2,7 quilogramas;
-8 farinheiras, 5 chouriços, 2 morcelas, 14 pacotes de chouriço corrente, os quais, por suspeita de anormalidade, e na presença da arguida, foram apreendidos, ficando acondicionados em três arcas de conservação, seladas com as inscrições n.º 48273-A, 48274-A e 48275-A.
2) A arguida assumiu, na altura, a qualidade de fiel depositária.
3) Tal apreensão deu origem ao inquérito n.º 83/10.5EASTR e foi validada, na mesma data, por despacho de magistrado do Ministério Público.
4) Porém, em 2 de Dezembro de 2011, ao pretender diligenciar-se pela destruição de tais produtos alimentares, no cumprimento da decisão de magistrado do Ministério Público, proferida no referido inquérito, verificou-se que, no “(…)”, apenas se encontravam duas arcas de conservação, contendo produtos diferentes dos apreendidos e com os selos nela apostos descolados.
5) A arguida deitou os produtos alimentares supra descritos no lixo.
6) Como consequência necessária da conduta supra descrita, a arguida subtraiu os referidos produtos alimentares ao poder público a que estavam sujeitos, não obstante ter conhecimento que os mesmos estavam apreendidos, por despacho de autoridade competente, à ordem de processo criminal.
7) A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, ciente que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
M A I S S E P R O V O U Q U E :
8) Por requerimento enviado à Direcção Regional de Lisboa e Vale do Tejo – Delegação de Santarém, da ASAE, e recebido em 23 de Março de 2011, veio a arguida, além do mais solicitar a autorização, com urgência, para desselar as arcas frigoríficas.
9) Por requerimento enviada aos Serviços do Ministério Público, e recebida em 20 de Abril de 2011, veio a arguida solicitar autorização para desselar, com urgência, as arcas frigoríficas.
10) Por requerimento enviado à Direcção Regional de Lisboa e Vale do Tejo – Delegação de Santarém, da ASAE, e recebido em 7 de Junho de 2011, veio a arguida solicitar a autorização, com urgência, para desselar as arcas frigoríficas.
11) A arguida é empresária e aufere, em média, por mês, entre €1500,00 e €2000,00.
12) Vive sozinha, em casa própria, da qual paga, ao Banco, €600,00 por mês.
13) Tem o 12.º ano de escolaridade.
14) Não se verificam quaisquer antecedentes criminais no Certificado de Registo Criminal da arguida A.

8. D O S F A C T O S N Ã O P R O V A D O S
Não se logrou provar nenhum outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados. Designadamente, não se provaram os seguintes factos:
a)Que os selos apostos nas arcas foram rasgados.

9. E X A M E C R í T I C O D A S P R O V A S
O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto provada com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com o princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, tendo desconsiderado todas as afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito, analisando dialecticamente os meios de prova ao seu alcance, procurando harmonizá-los entre si de acordo com os princípios da experiência comum, sem critérios pré-definidores de valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei diversamente o disponha.
Desde logo, o Tribunal atendeu às declarações prestadas pela arguida A que, no geral, confirmou as circunstâncias fácticas vertidas na acusação, mas procurou esclarecer que entre o período que mediou a primeira ida da ASAE ao seu estabelecimento e a segunda inspecção decorreram quase dois anos, pelo que seria virtualmente impossível conservar produtos alimentícios durante tanto tempo. Acrescentou ainda que ao fim de 24 horas os selos autocolantes apostos nas arcas já se encontravam descolados pelo frio e pela humidade, e que uma das três arcas frigoríficas se estragou entretanto. Que comunicou todas estas situações à ASAE e que esta entidade em nada diligenciou para resolver a situação. Quando questionada quanto ao destino que deu aos bens referiu que os colocou em sacos e os deitou ao lixo.
Conjugando o depoimento da arguida com as declarações de B e C, inspectoras da ASAE, cuja intervenção nos factos se reporta em exclusivo à segunda ida desta autoridade ao “(…)” em 2 de Dezembro de 2011, permanece connosco uma dúvida quanto às intenções da arguida. Ou seja, a arguida não nega que se desfez dos bens. Apresenta, aliás, justificações para o efeito: desde logo, e em primeiro lugar, o facto de as arcas estarem a deitar líquidos, sendo que não é explicado pelas Sras. Inspectoras a razão pela qual são acometidas da função de os destruir em Novembro de 2010, como afirmam, e decorre um ano até que se deslocam ao local. Em segundo lugar, a avaria de uma das arcas frigoríficas e, por fim, a fraca resistência dos selos usados para vedar as arcas; a arguida prontamente referiu que os selos se começaram a desfazer ao fim de vinte e quatro horas, atento o contacto com o frio e humidade próprios das arcas frigoríficas, não podendo o Tribunal deixar de valorar as suas declarações como credíveis nesta medida, porquanto nenhuma das Senhoras Inspectoras foi capaz de esclarecer a consistência, durabilidade e fiabilidade dos referidos selos. Nem sequer é descabido dizer que selos autocolantes compostos designadamente por papel e uma película aderente, quando em contacto com água e humidade terão certamente tendência a deteriorar-se. Nesta medida, e porque a justificação da arguida se apresenta como plausível e não existe qualquer outro meio de prova que o contradiga, foram as mesmas valoradas favoravelmente pelo Tribunal.
Acresce que dos depoimentos das testemunhas se retira efectivamente o que presenciaram e atestaram mercê, não só do seu conhecimento directo dos factos, como também daquilo que foram capazes de verificar pelo exercício das funções que cumpriam. Assim, o depoimento da arguida foi, em grande medida corroborado pelas mesmas, desde logo pelo facto de terem encontrado apenas duas arcas frigoríficas, cujo conteúdo era diverso do que originariamente havia sido apreendido – o que a arguida não negou.
No que concerne à verificação do elemento subjectivo do crime em questão, e na ausência de elementos que nos apontem em sentido contrário, o Tribunal deverá auxiliar-se das regras da experiência comum. Ora, impõe-se começar por referir que embora não seja comum preservar alimentos, ainda que em arcas frigoríficas, por um ano e meio, e sem demais conhecimentos no que diz respeito à capacidade de conservação de uma arca frigorífica, afigura-se-nos que se impunha à arguida a preservação dos mesmos, desde logo, porque sobre si impendia uma ordem nesse sentido, a qual a arguida bem sabia que deveria acatar. Aliás, o envio de requerimentos tanto à ASAE como ao Ministério Público a solicitar autorização para o desselamento leva à conclusão de que a arguida sabia o conteúdo do comando que lhe foi dado, bem como as consequências da sua violação. Pelo que, atenta a própria confissão da arguida, no sentido de que se desfez dos produtos, não nos é possível chegar a outra conclusão. Do próprio teor dos requerimentos apresentados não se extrai qualquer situação de estado de necessidade: a arguida resume a sua defesa a questões de espaço e consumos de energia o que, apesar de, em nosso ver, configurar justificação plausível para peticionar a imediata autorização para a destruição dos mesmos, não lhe confere o poder de, por auto recreação, e sem a autorização que bem sabia necessitar e que peticionou, desfazer-se dos mesmos. Deste modo, e apesar de não se provar que a arguida tinha intenção de subtrair os produtos ao poder público, sabia que a destruição dos mesmos teria como consequência necessária a imputação à mesma de um facto ilícito, e ciente do mesmo, ainda assim, prosseguiu na destruição.
Para além das declarações produzidas em audiência de discussão em julgamento, o Tribunal atendeu ainda à prova documental que consta dos autos, porque inequívoca e pertinente para a decisão, e porque quer a autenticidade, quer a veracidade do seu conteúdo, de nenhum modo foram postas em causa pelos sujeitos processuais, designadamente a informação de fls. 2 a 4 e as fotografias às arcas frigoríficas de fls. 5 e 6 e ainda os documentos dirigidos pela arguida à ASAE de fls.129, ao Ministério Público de fls. 131 e novamente à ASAE a fls. 133.
Relativamente aos antecedentes criminais da arguida, o Tribunal formou a sua convicção com base no teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos de fls. 105.
No que concerne à matéria de facto dada como não provada da acusação, a mesma decorreu, desde logo, dos moldes supra explanados em que foi valorada a prova, porquanto nenhuma prova credível, esclarecedora e suficiente se produziu a respeito dos mesmos.
Assim sendo, foi possível ao Tribunal atribuir à arguida a autoria dos factos de que vem acusada, pelo que pelos mesmos deverá ser condenada.”

2.2 - Houve registo áudio da prova, mostrando-se junta a sua gravação. Nestes casos, normalmente, o recurso além de sindicar a matéria de facto (desde que o recorrente o pretenda e dê cumprimento ao disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do C.P.P.) aprecia as questões de direito avançadas pelo recorrente (Cfr. art. 428º n.º 1, do mencionado compêndio adjectivo) e faz a apreciação de eventuais vícios do art. 410°, n.º 2 CPP ou de nulidades que não devam considerar-se sanadas. E, dentro destes parâmetros, são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso (art. 412°, n.º 1 CPP), uma vez que as questões submetidas à apreciação da instância de recurso são as definidas pelo recorrente.
São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.
Como se viu, a lei exige conclusões em que o recorrente sintetize os fundamentos e diga o que pretenda que o juiz decida, certamente porque são elas que delimitam o objecto do recurso.
Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão.
As conclusões nada têm de inútil ou de meramente formal.
Constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.

2.3 - Feita esta introdução de âmbito geral e analisadas as conclusões de recurso, o recorrente alega, no caso em análise, como fundamento do recurso, o seguinte:
1) Em primeiro lugar, a arguida considera ter havido violação dos artigos 94.º, n.º 2 e 6, 374.º, n.º 3, alínea e), 372.º, n.º 3 e 358.º, n.º 1 do CPPenal, porque a Mma. Juíza a quo fez constar na sentença a data de 7 de Novembro de 2012, quando na realidade a leu a 9 de Novembro 2012.
2) Depois, a arguida sustenta que ao comunicar a alteração não substancial dos factos apenas ao seu Ilustre Defensor, porque a arguida faltou na data agendada para a leitura da sentença, o tribunal a quo violou os artigos 358.º, n.º 1 e 113.º, n.º 9 do CPPenal;
3) .
4) Invocação do estado de necessidade subjacentes nos requerimentos apresentados, pela ora recorrente, cuja resposta não foi obtida, estruturando a vontade da mesma no sentido de resolver o problema, dado o manifesto direito de necessidade.

2.4 - Das questões do recurso
2.4.1 - Primeira questão suscitada
A arguida/recorrente alega que o tribunal “a quo” havia designado, para leitura da sentença o dia 7 de Novembro de 2012, todavia, nesta data, foi transmitida a existência de uma alteração não substancial dos factos abrangidos na acusação. A arguida/recorrente não prescindiu de prazo para preparar a sua defesa, razão pela qual o Tribunal designou, para a leitura da sentença, o dia 9 do mesmo mês, isto é, dois dias depois.
A sentença foi, efectivamente, proferida no indicado dia 9, e depositada na mesma data.
Contudo, a data nela aposta é a de 7 de Novembro de 2012.
Por essa razão, a recorrente entende que houve violação do estatuído nos artigos 94°, n.° 2 e 6, 374°, n.º 3, alínea e), 372°, n.º 3 e 358°, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Vejamos!
É inquestionável que a data aposta na sentença não é a da leitura da mesma.
Em nosso entender, tal desconformidade de aposição da data deve-se a um mero erro ou lapso de escrita que pode ser corrigido, nos termos do art. 380º n.º 1, al. b) e n.º 2, do CPP. O que se ordena.
Contudo, ainda que assim se não entendesse, como se refere no Parecer do MP “tal erro não passa de uma mera irregularidade que teria que ser arguida no próprio ato, uma vez que arguida e seu mandatário estavam presentes - v. arts. 119°, 120° e 123°, do CPP e ata de fls. 162.”
Esse lapso é, perfeitamente, percebível, pois que, à data da primeira marcação da leitura da sentença, esta deveria estar redigida.
A comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, não afastava essa a obrigação, pois que, tal alteração só é detectada, após a produção de prova e no momento da elaboração da sentença.
Caso se tivesse prescindido de prazo para a defesa, como, constantemente, ocorre, a sentença teria de ser lida no aludido dia 7 de Novembro.
A recorrente, carece, nesta parte, de razão.

2.4.2 - Segunda questão
No que concerne à alegada nulidade, decorrente da comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, na ausência da arguida, a mesma carece de fundamento.
A arguida/recorrente, conforme resulta da tramitação processual dos autos, não se encontrar presente, no citado dia 7, quando foi comunicada a alteração não substancial dos factos.
Todavia, contrariamente, à sua pretensão, tal situação não acarreta qualquer nulidade, pois que, tendo estado presente e prestado declarações no decurso da sessão de audiência de discussão e julgamento, no dia designado para leitura da sentença, a arguida foi representada pelo seu mandatário que se encontrava presente e a falta da arguida foi considerada injustificada.
O afastamento da verificação da nulidade invocada resulta da análise conjugada de preceitos legais do CPP - arts. 63.º, n.º 1, 113.º, n.º 9, 332.º, n.sº 1, 4 e 5, e 373.º -.
Vejamos o que tais normas legais preceituam.
O citado art.º 63.º, n.º 1: “O defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar pessoalmente a este.”.
O artigo 332.º, n.º 1 - “É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 333.º e nos n.os 1 e 2 do artigo 334.º.”. (…) n.º 4 - “O arguido que tiver comparecido à audiência não pode afastar-se dela até ao seu termo. O presidente toma as medidas necessárias e adequadas para evitar o afastamento, incluída a detenção durante as interrupções da audiência, se isso parecer indispensável.”. n.º 5 - “Se, não obstante o disposto no número anterior, o arguido se afastar da sala de audiência, pode esta prosseguir até final se o arguido já tiver sido interrogado e o tribunal não considerar indispensável à sua presença, sendo para todos os efeitos representado pelo defensor.”.
O artigo 373.º, sob a epígrafe “Leitura da sentença”, prescreve, no seu n.º 2: “Na data fixada procede-se publicamente à leitura da sentença e ao seu depósito na secretaria, nos termos do artigo anterior.”. N.º 3 - O arguido que não estiver presente considera-se notificado da sentença depois de esta ter sido lida perante o defensor nomeado ou constituído.”
Atendendo a que, como já referido, a arguida, no decurso da audiência de discussão e julgamento, já havia prestado declarações, tendo o dia, 7 de Novembro de 2012, sido designado para a leitura da sentença, a qual podia ocorrer na sua ausência, o que só não sucedeu, porque o seu Ilustre mandatário, exercendo um direito que lhe assiste, requereu prazo para preparação da defesa. È óbvio, que a decisão de requerer prazo para defesa é de natureza técnica, a qual competia ao defensor.
A análise conjugada do estabelecido nestes preceitos legais com o do art.º 358.º, n.º 1 do CPPenal, comprova que a ausência da arguida, na sessão de julgamento na qual foi comunicada a alteração não substancial dos factos descritos na acusação não afectou minimamente a validade dessa comunicação.
Não esquecer que a comunicação da alteração não substancial dos factos descritos na acusação não equivale à notificação da acusação, sendo, portanto, injustificada a chamada à colação do artigo 113.º, n.º 9 do C.P. Penal
Concluindo, a arguida estava, devidamente, representada por defensor, pelo que a comunicação, tão só ao mesmo, da alteração não substancial dos factos descritos na acusação não padece de qualquer nulidade ou invalidade, carecendo de qualquer fundamento legal.

2.4.3 - No que concerne à terceira e quarta refutações suscitadas, desde já, afirmamos que tivemos dificuldade em entender o seu fundamento, apesar de captarmos a sua ligação e conexão com o invocado direito de necessidade, alegando que houve perturbação da liberdade, da ora recorrente, sendo certo que, por um lado, a Administração impunha uma regra de conduta (não dar descaminho aos produtos), por outro forçou-a, contra vontade a tomar uma posição em claro estado de necessidade. Nestes termos, por via do excessivo tempo decorrido, pela fraca consistência dos selos apostos e pelo facto das máquinas congeladoras horizontais não estarem tecnicamente preparadas para aguentar tanto tempo sem serem abertas, obrigaram a ora recorrente, num claro direito de necessidade na limpeza do equipamento avariado. Quanto às outras duas máquinas, evidentemente que o produto já lá não estava porque os selos rebentaram por via do excesso de gelo acumulado. Foi esta a prova recolhida que incriminou a ora recorrente: o produto não se encontrava dentro das máquinas, porém o produto apodreceu e transformou-se num perigo público
Para análise desta causa de exclusão da ilicitude é fundamental atender, desde logo, à previsão dos arts. 34º e, também do 35º, este referente ao estado de necessidade desculpante, ambos do CP.
O Artigo 34º, sobre a epígrafe “Direito de necessidade”, preceitua:
Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:
a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;
b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e
c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.
O Artigo 35.º - “Estado de necessidade desculpante”, estabelece:
1 - Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
2 - Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena.
A análise destes dois preceitos demonstra que o estado de necessidade abrange duas situações, a primeira, a de um verdadeiro direito de necessidade, previsto no citado artº 34º do C. Penal, funcionando como uma causa de exclusão da ilicitude, a segunda, a de um estado de necessidade desculpante, com previsão no mencionado art.º 35º C. Penal, funcionando, neste caso, como uma causa de exclusão ou de diminuição da culpa.
O direito de necessidade, relativamente ao seu fundamento, assenta na ponderação de interesses entre o bem jurídico ou interesse ameaçado por um perigo e o bem jurídico ou interesse que se sacrifica para afastar esse perigo.
Não olvidar que o interesse ou bem jurídico cujo perigo se afasta tem de ser superior ao interesse sacrificado.
Portanto, o direito de necessidade torna a conduta lícita, dai a imposição feita no art. 34º-b CP quanto à superioridade do bem ou interesse jurídico a salvaguardar.
A jurisprudência tem entendido que, o estado de necessidade surge quando o agente é colocado perante a alternativa de ter de escolher entre cometer o crime ou deixar que, como consequência necessária de o não cometer, ocorra outro mal maior ou pelo menos igual ao do crime.
Depende ainda da verificação de outros requisitos, como a falta de outro meio menos prejudicial do que o facto praticado e probabilidade de eficácia do meio empregado.
Pode-se então concluir que a superioridade que se exige nos termos do art. 34º CP entre o bem jurídico sacrificado e o bem jurídico ameaçado pelo perigo não se mede em termos de quantidade: a quantidade não implica superioridade qualitativa.
O perigo tem que ser um perigo real e efectivo.
Se o perigo for uma mera aparência de perigo, estar-se-á então no âmbito do chamado direito de necessidade putativo, aqui não há um perigo real e efectivo, há tão só um perigo pensado ou suposto.
Acresce que, o perigo que se visa afastar tem que ser um perigo actual, ou seja, tem que ser um perigo que exista naquele momento ou que está iminente, perigo esse que pode advir de factos naturais ou facto humanos.
É necessário, também, que cumulativamente se verifique outro elemento desta causa de justificação previsto no art. 34º-b CP: que exista uma sensível superioridade entre o interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado.
Isto passa pela análise de se verificar qual é o interesse mais valioso, daí que a doutrina por vezes aponte alguns índices para a determinação da sensível superioridade que tem de existir entre o interesse salvaguardado e o interesse sacrificado:
· A medida das sanções penais cominadas para a violação dos bens jurídicos em causa, por referência à axiologia constitucional;
· Deve atender-se também aos princípios ético-sociais vigentes na comunidade em determinado momento;
· À modalidade do facto;
· À reversibilidade ou irreversibilidade das lesões;
· Às medidas de culpa;
· À medida do sacrifício imposto ao próprio lesado.
Por fim, o derradeiro requisito previsto no art. 34º-c CP: a razoabilidade da imposição ao lesado do sacrifício do seu interesse, tendo em atenção o valor e natureza do interessa ameaçado – trata-se de uma limitação ético-social que visa proteger da violação a dignidade e autonomia ética da pessoa de terceiro, pois o direito tem de se conter e de se manter de certos limites, recuando mesmo, se necessário, em face desses valores.
Do ponto de vista subjectivo, o agente tem de conhecer a situação de perigo, actuado precisamente para evitar esse perigo, que é uma probabilidade de lesão.
A questão que se coloca é se poderá integrar os factos concretos, respeitantes ao caso “sub judice”, numa dessas causas de exclusão da ilicitude ou da culpa?
A resolução passa por considerar provado, no caso em análise, que a actuação da arguida constituísse o meio adequado para suprir algum perigo actual e ameaçador de bens juridicamente protegidos e que, em concreto, se perfilasse algum interesse a reclamar salvaguarda que justificasse a não obediência à lei aplicável.
Portanto, o estado de necessidade abrange as situações perigosas em que se encontra significativamente diminuído o desvalor da acção ilícita e que colidem com o processo de formação da vontade de tal forma que não é exigível ao agente comportamento diverso.
A norma do art.º 35º, nº 1 do C. Penal reporta-se unicamente à defesa de bens jurídicos eminentemente pessoais, do agente ou de terceiro, e exige que o perigo que ameaça bens dessa natureza seja actual, que a conduta adoptada pelo agente seja o único modo de o remover, e que, segundo as circunstâncias do caso, não seja razoável exigir-lhe comportamento diferente.
Perante estas explanações jurídicas não devemos esquecer os factos provados, nomeadamente:
Em 23 de Julho de 2010, cerca das 02h15m, elementos da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica aprenderam, no “(…)”, explorado pela arguida/recorrente, no interior de três arcas frigoríficas, diversos artigos alimentares, por suspeita de anormalidade, que selaram;
Decorridos oito meses, sem que tais produtos, perecíveis, tivesse sido destruídos, pela entidade apreensora (ASAE), e informando a arguida que: os selos se haviam descolado, com a acção do frio; uma das máquinas avariara e os produtos deterioraram-se, com vista à resolução do problema (Este § deverá ficar a constar dos factos provados, devendo preceder o ponto n.º 8):
Por requerimento enviado à Direcção Regional de Lisboa e Vale do Tejo – Delegação de Santarém, da ASAE, e recebido em 23 de Março de 2011, veio a arguida, além do mais solicitar a autorização, com urgência, para desselar as arcas frigoríficas, conforme consta de fls. 129 a 130;
Por requerimento enviada aos Serviços do Ministério Público, e recebida em 20 de Abril de 2011, veio a arguida solicitar autorização para desselar, com urgência, as arcas frigoríficas, conforme consta de fls. 131 a 132;
Por requerimento enviado à Direcção Regional de Lisboa e Vale do Tejo – Delegação de Santarém, da ASAE, e recebido em 7 de Junho de 2011, veio a arguida solicitar a autorização, com urgência, para desselar as arcas frigoríficas, conforme consta de fls. 133;
Não houve resposta a tais requerimento, sendo certo que cerca de ano e meio depois, isto é, apenas em 2 de Dezembro de 2011, após diversas insistências realizadas pelo MP, inspectores da ASAE deslocaram-se às instalações do estabelecimento onde, antes do decurso do cerca de 18 meses, tinham aprendido produtos alimentares a destruir, tendo a arguida informado que tais produtos haviam sido lançados ao lixo, para evitar: contaminações, pois estavam deteriorados, e mais dispêndio de energia eléctrica.
Como é referido no parecer do MP: “… é este mesmo estado de necessidade que determinou balizou a apresentação, desde 23 de Março de 2001, pela arguida, de diversos requerimentos junto das entidades competentes (MP e ASAE) para resolver a questão da eliminação dos produtos alimentares apreendidos, sendo que estes o foram em 23 de Julho de 2010).
E só em 2 de Dezembro de 2011 (cerca de ano e meio depois) e após várias insistências feitas pelo magistrado do Ministério Público titular do inquérito onde foram efectuadas as apreensões, inspectores da ASAE se deslocaram às instalações onde se encontravam os produtos alimentares a destruir.
Por sua vez, o Tribunal a quo deu como não provado "Que os selos apostos nas arcas foram rasgados ".
Devendo a destruição deste tipo de produtos ser feita por entidades especializadas e devidamente credenciadas pelas entidades estatais competentes, e sendo da competência da entidade apreensora (ASAE) as diligências para tal operação, afigura-se-nos não ser de atribuir à arguida a responsabilidade criminal pelos factos constantes da acusação, tanto mais que a arguida referiu já não se encontrarem nas arcas frigoríficas os produtos apreendidos, devido ao facto de uma delas se ter avariado, o que motivou a que os produtos tivessem que ser eliminados, sem os condicionalismos previstos na lei, sendo certo que esta explicação não foi desmentida por outros factos trazidos a julgamento.
Sendo o crime por que a arguida foi acusada, e condenada, de natureza dolosa, entendemos que resulta da audiência de julgamento que a actuação da arguida se deveu a um conflito de interesses ou seja, entre a obrigação de manter os produtos alimentares apreendidos até que as autoridades competentes lhe dessem destino, e o direito à sua integridade física e dos clientes do seu estabelecimento comercial, decorrente dos perigos emanentes de produtos alimentares estragados, devido á avaria da arca congeladora. Verifica-se, assim, e em nosso entender. a existência de um direito de necessidade, cujos requisitos constam do artigo 34° do Código Penal.”
Concordamos, ainda que possamos estar a ser benévolos, com a parecer do MP, baseando-nos nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência, pois não era exigível que a actuação da arguida, perante um conflito de interesses, balizado entre a obrigação de manter, para além do prazo razoável, os produtos alimentares apreendidos, há cerca de dezoito meses, pelas entidades competentes, que nada fizeram, mesmo após diversas solicitações da arguida, para lhe darem destino, e evitar prejudicar o direito à sua integridade física e à dos clientes do seu estabelecimento comercial, decorrente dos perigos resultantes de produtos alimentares estragados, devido á avaria da arca congeladora.
Em face do exposto, não colide, com as regras da lógica e da racionalidade, considerar, excluído da ilicitude, o comportamento da arguida, por o integrar na previsão do direito de necessidade previsto no citado artigo 34° do Código Penal.
Em face do exposto, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, designadamente:
A invocação do n.º 1 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, considerando que o tribunal a quo devia ter censurado a conduta da ASAE durante o inquérito, o que não sucedeu;
A utilização de um método proibido de prova e, nomeadamente, o previsto no artigo 126.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) do CPPenal.


III – Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal, em declarar procedente o recurso, revogando a sentença recorrida, considerando, excluído da ilicitude, o comportamento da arguida, por o integrar na previsão do direito de necessidade previsto no citado artigo 34° do Código Penal, e absolvendo a arguida da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público, previsto e punido pelo artigo 355.º do Código Penal.
Sem custas.
(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora que rubrica as restantes folhas).

Évora, 15/10/2013

Maria Isabel Duarte
José Maria Martins Simão