Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
74/14.7TASTR-A.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: UTILIZAÇÃO ABUSIVA DO PROCESSO
SANÇÃO PECUNIÁRIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 04/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - A sanção por “utilização abusiva do processo” (artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal) pode ser aplicada por despacho judicial, é independente do despacho de arquivamento do inquérito (despacho proferido pelo Ministério Público), e pode ser aplicada após a prolação de tal despacho de arquivamento, e mesmo que já no decurso da fase da instrução.

II - Exige-se que, antes de decidir, o juiz cumpra o princípio do contraditório, ouvindo o visado, e exige-se também que exista promoção do Ministério Público (que é titular do inquérito e da ação penal) no sentido da condenação por “utilização abusiva do processo”, não podendo o juiz, oficiosamente, proceder a uma tal condenação.

III - A condenação em custas criminais por denúncia com má-fé ou negligência grave pode ser cumulada com a condenação no pagamento da soma por “utilização abusiva do processo”, prevista no artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal, pois elas visam objetivos diferentes: uma sancionar o abuso do processo e a outra tributar as custas da instauração do processo.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de Instrução com o nº 74/14.7TASTR, da Comarca de Santarém (Santarém - Instância Central - Secção de Instrução Criminal - Juiz 2), a Mmª Juíza proferiu despacho, em 14-07-2015, no qual condenou A. (gerente da sociedade assistente) no pagamento de 6 UCs, ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal (utilização abusiva do processo).

A, inconformado com essa condenação, interpôs recurso, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. A decisão referência 68461964 colocada em crise, ao condenar o Recorrente na soma prevista no artigo 277º, n.º 5 CPP, fez uma incorreta interpretação e aplicação da referida norma, pelo que, não poderá deixar de ser revogada e substituída por outra que isente do pagamento da quantia em que foi condenado.

2. Por muito respeito que mereça o vertido na decisão, com a mesma não se pode concordar.

3. Com efeito a decisão, de que ora se recorre, centraliza a utilização abusiva do direito de queixa nos factos imputados aos arguidos em sede de requerimento de abertura de instrução, fundando a aplicação do pagamento da soma, na prova recolhida em sede de instrução e ainda com a circunstância da sujeição dos denunciados à posição processual de arguidos.

4. Porém, a aplicabilidade do disposto no artigo 277º do CPP apenas terá cabimento legal em sede de despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público.

5. Desde logo, não poderemos esquecer a inserção sistemática do artigo em apreciação, porquanto a norma do n.º 5 do art.º 277.º do CPP só se aplica em sede de inquérito, caso o mesmo termine por arquivamento.

6. Com efeito, da leitura da disposição em causa podem retirar-se, de imediato, seguramente, duas conclusões: a primeira é a de que a utilização abusiva do processo é referida à denúncia e ao exercício do direito de queixa, é de um desses atos processuais que resultará a utilização abusiva. Não será, já no decurso do inquérito, que a utilização abusiva se manifestará, o que bem se compreende, sabendo-se da condicionadíssima atividade que o denunciante ou queixoso pode desenvolver por sua iniciativa.

7. A segunda é a de que o facto de se ter concluído pelo arquivamento, e de o Ministério Público ter apontado para a inexistência de crime, ou de o arguido não o ter praticado a qualquer título, ou de ser legalmente inadmissível o procedimento, não determinam automaticamente a verificação de ter havido utilização abusiva do processo. É necessária mais qualquer coisa.

8. O certo é que o Tribunal a quo não efetuou uma apreciação dos factos relevantes, em termos de eventual utilização abusiva do processo, relativa à denúncia apresentada, mas sim relativa aos factos apreciados em sede de instrução.

9. Na verdade, o Tribunal a quo, em sede de decisão instrutória, decidiu pela não pronúncia dos arguidos e condenou a assistente em custas. Não poderá o Tribunal a quo lançar mão do disposto no artigo 277º, n.º 5 do CPP, para também condenar o gerente da assistente, quando esta já foi condenada nas custas da instrução.

10. Finda a fase de inquérito, e sendo requerida a instrução pelo assistente, não poderá ser o denunciante condenado nos termos do 277º, n.º 5 do CPP, porquanto a instrução apenas visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (artigo 286º, n.º 1 CPP).

11. A condenação do denunciante em soma ao abrigo do artigo 277º, n.º 5, do CPP, terá de ser promovida pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, e apreciada pelo Tribunal, após o decurso dos prazos previstos nos artigos 278º e 287º do CPP.

12. Em sede de instrução, o Tribunal apenas poderá condenar nas custas do processo, como de resto fez, e nunca na soma referida no artigo 277º, n.º 5, pelo que se impõe a revogação da decisão que condenou o recorrente.

13. Acresce que, tendo admitido a instrução, o Tribunal a quo aceitou que os factos denunciados constituem crime, pois um dos fundamentos para a não admissão de instrução é os factos não constituírem crime.

14. A instrução foi admitida e declarada aberta, não tendo o Tribunal a quo rejeitado o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

15. Na verdade, aquando da apresentação do requerimento de abertura de instrução, o Tribunal a quo, caso entendesse que os factos constantes da denúncia não constituíam crime, deveria ter rejeitado o RAI, evitando, dessa forma, que fosse desenvolvido “trabalho de forma absolutamente escusada, despropositada e sem fundamento” e “submeter à instrução os denunciados … e à posição processual de arguidos”, conforme resulta da decisão ora colocada em crise.

16. Na verdade, aquando do despacho que admitiu a instrução, o Tribunal já dispunha das certidões juntas com a denúncia, e que, na decisão em crise, reputa de relevantes para condenar o recorrente nos termos do artigo 277º, n.º 5 do CPP.

17. Ainda assim, o Tribunal a quo, e diga-se tal como a assistente, entendeu que os factos em apreciação eram suficientes para indiciar a prática do crime de falsificação, e, nessa forma, concluiu pela admissibilidade da instrução, ordenou a produção de prova testemunhal e documental e a constituição dos denunciados como arguidos.

18. Ao admitir a instrução, o Juiz de instrução efetuou uma apreciação liminar, nos termos da qual as diligências instrutórias não eram inúteis e que não seria redundante a não pronúncia.

19. A admissão da instrução, só por si, afasta a hipótese de se estar perante denúncia abusiva, de má-fé ou com negligência grave, por isso não poderá o denunciante, que se constituiu assistente e requereu a abertura de instrução, ser condenado nos termos do previsto no artigo 277º, n.º 5 do CPP.

20. Pelo que, também por esta razão deve ser revogada a decisão que condenou o recorrente ao abrigo do disposto no artigo 277º, n.º 5 do CPP.

21. O Tribunal a quo, apesar de ter ordenado a notificação do Recorrente para exercer o direito ao contraditório, não se pronunciou relativamente às questões levantadas no âmbito do mesmo.

22. O Recorrente exerceu o direito ao contraditório com os fundamentos de fls. 431 a 442, os quais o Tribunal deu por reproduzidos na decisão.

23. No âmbito do exercício do contraditório, o Recorrente invocou que não era admissível a aplicação da condenação prevista no artigo 277º, n.º 5 do CPP, no âmbito da instrução.

24. O Recorrente explicou também as razões que conduziram à apresentação da denúncia, justificando, inclusivamente por meio de documentos, que juntou ao exercício do contraditório.

25. O certo é que o Tribunal a quo não só não se pronunciou quanto à não aplicabilidade do artigo 277, n.º 5 do CPP, na fase da instrução, como também não se pronunciou quanto à motivação expendida pelo recorrente, e que determinou a apresentação da denúncia, ou sequer se pronunciou quanto aos documentos juntos com o exercício do contraditório.

26. O Tribunal a quo estava vinculado ao dever de se pronunciar sobre todas as questões levantadas pelo Recorrente no exercício do contraditório, tomando uma posição concreta quantos às mesmas, explicando as razões, de facto e de direito, pelas quais não as acolheu.

27. Do texto da decisão, o Recorrente deveria conseguir perceber quais os fundamentos que levaram a não acolher as razões constantes do exercício do contraditório, e, bem assim, qual a posição do Tribunal a quo quanto aos fundamentos de direito invocados.

28. O certo é que da decisão, ora colocada em crise, o Tribunal a quo, apesar de referir o uso do direito ao contraditório, não expendeu uma linha quando ao mesmo, seja no sentido do não acolhimento do arrazoado seja para se pronunciar quanto ao mesmo.

29. O Recorrente, expressamente, invoca que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre nenhum dos factos ou questões de direito, colocadas à apreciação do Tribunal a quo por meio do requerimento de fls. 431 a 442, através do qual exerceu o contraditório, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 277º, n.º 5 do CPP.

30. Independentemente da bondade ou inocuidade das questões, sob o ponto de vista jurídico, e da sua atinência ou não para a solução do conflito que é mister o Tribunal ter que decidir, exige a lei que o Tribunal emita pronúncia sobre todas elas, formulando um juízo de apreciação jurídico e de valoração para o objeto do processo ou para a resolução da questão material controvertida.

31. A Constituição impõe que as decisões dos Tribunais sejam fundamentadas na forma prevista na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1 da CRP) e, ao ter omitido pronúncia ou elaborado deficiente fundamentação, violou o tribunal recorrido, na decisão sob impugnação, os mencionados preceitos constitucionais e os artigos 97º, n.º 1 e 5, 374.º e 375.º do Código de Processo Penal.

32. Omitindo o dever de pronúncia sobre questões e factos especificamente levantados pelo Recorrente, determina a nulidade da decisão, nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea c) do CPP, o que pela presente via se requer.

33. Por outro lado, o Tribunal a quo condena o recorrente por uso abusivo do direito de queixa, em virtude de alegadamente ter conhecimento da existência de despacho a determinar a transferência de competência para a realização da inspeção a cargo dos arguidos.

34. Na verdade, das inúmeras certidões e requerimento apresentados quer junto da Autoridade Tributária quer dos arguidos, a F apenas teve acesso a documentos onde se fazia menção ao despacho do Diretor de Finanças de Leiria, porém, o despacho de transferência de competência nos termos do artigo 17º do RCIPT, é de notificação obrigatória ao gerente da F, e aqui recorrente, contudo, apesar de da AT estar vinculada ao dever de notificação, esta nunca foi concretizada nem lhe foi dado conhecimento direto do mesmo, conforme se demonstrou nos autos.

35. Não se compreende como pode o Tribunal a quo dar por provado que o Recorrente conhecia o despacho, quando esse alegado conhecimento do despacho é infirmado por todos os documentos juntos à denúncia, por via dos inúmeros pedidos de certidão de tal despacho.

36. No que respeita à menção da existência do despacho, das seis certidões pedidas e obtidas pela F, apenas consta um documento em que se faz menção ao tal despacho, uma “NOTA DO SAIT” (Doc. 1 anexo à denúncia, fls. 23 e 24), documento que a F considerou ser muito menos credível do que as duas certidões que confirmam a inexistência do tal despacho, atendendo até ao facto de ele ser uma “PROPOSTA DE VERIFICAÇÃO EXTERNA”, emitida, eventualmente por lapso, em 02/09/2013, ou seja, depois de ter sido determinada a sua realização.

37. Na verdade, a existência/inexistência de tal despacho, que deveria ter sido notificado ao Recorrente aquando do início do procedimento inspetivo, sempre foi colocada em causa quer junto dos arguidos quer junto da própria AT, sem que a questão fosse esclarecida, tanto assim, que a questão da inexistência do despacho foi levantada pelo impugnante em sede de impugnação judicial das liquidações efetuadas pelos arguidos (a coberto do despacho).

38. Não poderemos esquecer que a arguida M ciente da incompetência territorial da DF Santarém para proceder à inspeção à F, procedeu ao encerramento do procedimento inspetivo OI201300700, de 03.05.2013, no qual obteve a concordância do arguido MN

39. Assim, ciente da incompetência territorial da DF de Santarém, procedeu à abertura de novo procedimento inspetivo OI201301606, para, a coberto de alegada autorização da DF Leiria, proceder a inspeção à contabilidade da F.

40. A verdade, e os arguidos estavam cientes disso, é que as regras da competência territorial determinam que os procedimentos inspetivos têm de ser efetuados pelas Direções de Finanças da área territorial onde se situa a sede do sujeito passivo a fiscalizar, sendo que, a DF competente pode delegar atos de inspeção noutra DF, mediante despacho fundamentado do diretor de Finanças.

41. O certo é que a DF Leiria jamais emitiu qualquer ordem de serviço que permitisse a realização da inspeção à contabilidade da F, e, bem assim, ainda que tenha sido emitido o despacho de fls. 89 do autos, este despacho nunca poderia ser proferido pelo DF Leiria numa fiscalização iniciada pela DF de Santarém, a qual não tinha competência para emitir a Ordem de Serviço por a sede se encontrar situada fora da sua competência territorial.

42. Mais, o próprio despacho de fls. 89 dos autos (que a F nunca logrou obter), alegadamente emitido em 26/07/2013 na sequência de um pedido datado de 24/07/2013, reporta-se a uma “informação nº 120/2008 da DSPCIT - DF de Santarém”, e o ofício 3640 da DF de Leiria que alegadamente o remeteu a Santarém, fls. 88 dos autos, refere-se a um “Proc: ---”, sendo que a um pedido emitido em 24/07/2013, fls. 84 a 87 dos autos, não pode ter sido atribuído uma numeração de 2008, “informação nº 120/2008 da DSPCIT - DF de Santarém”.

43. Na verdade, a necessidade de existência do despacho previsto no artigo 17º do RCPIT - Extensão da competência a outros serviços (Direção de Finanças) - está diretamente ligada com a regra da competência material e territorial para a prática de atos de inspeção, prevista no artigo 16º do RCPIT.

44. Situando-se a sede na Marinha Grande a DF competente seria Leiria, pelo que, nunca a DF de Leira poderia ter proferido o despacho conforme requerido pela DF de Santarém, sem previamente determinar a abertura de procedimento de inspeção nos termos do artigo 16 RCPIT.

45. Apenas depois de determinada a inspeção pela DF Leiria, esta poderia delegar na DF a extensão da competência para a realização de atos de inspeção ao abrigo de despacho fundamentado nos termos do artigo 17 do RCPIT.

46. Foi a existência/inexistência deste despacho fundamentado que determinou a apresentação da denúncia.

47. Inexistência que, de resto, se veio a confirmar (ainda que a F não tenha recorrido da decisão instrutória), dado que o despacho de fls. 89 dos autos é um despacho do Diretor de Finanças de Leiria, numa inspeção aberta ilegalmente na DF Santarém e para a qual não tem competência territorial, conforme a arguida M fez constar no Projeto de Relatório Inspeção a fls. 7, da certidão junta como Doc. nº 1 com a denúncia, quando concluiu pelo encerramento da inspeção correspondente à Ordem de Serviço N.º OI201300700.

48. Sendo que, a questão da competência será apreciada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, no âmbito da impugnação judicial apresentada das liquidações oficiosas efetuadas, sendo que, o Recorrente ainda acalenta a ideia de ver o processo reaberto em função de novas provas que venha a recolher.

49. Pelo que, demonstrado ficou que o recorrente apenas tomou conhecimento do despacho de fls. 89 - que não cumpre as regras de competência para a realização de atos de inspeção - na sequência do despacho do MP em sede de inquérito que a fls. 81 sicSolicite, à Direção de Finanças de Santarém, a remessa de certidão de todos os elemento pertinentes relativos ao procedimento inspetivo realizado à sociedade “F… Lda”, com o NIPC ---.”

50. Pelo que, deverá a decisão ser revogada e substituída por outra que isente o Recorrente da soma em que foi condenado.

51. Ao decidir, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 277º, n.º 5, 97º, n.º 1 e 5, 374 e 375 do CPP, e 205º da CRP”.

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, entendendo também que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Efetuado o exame preliminar e corridos os vistos, foi designada data para conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO
1 - Delimitação do objeto do recurso.

Duas questões, em breve síntese, são suscitadas no presente recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal:

1ª - Saber se o despacho recorrido enferma de nulidade, por estar insuficientemente fundamentado e por ter omitido pronúncia sobre questões que devia apreciar.

2ª - Determinar se, nos autos, se configura uma situação de utilização abusiva do processo, por parte do gerente da assistente, que justifique a sua condenação ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal.

2 - A decisão recorrida.
O despacho revidendo é do seguinte teor (integral):

“Em sede de alegações em debate instrutório pelo Ministério Público foi requerida a condenação em multa do gerente da sociedade ora assistente, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 277.º, n.º 5, do CPP.

Em sede de decisão instrutória, procedeu-se à notificação do gerente da sociedade ora assistente – A. - nos termos e para os efeitos previstos no artigo 277.º, n.º 5, do CPP, para, querendo, em 10 dias, exercer contraditório, por se nos afigurar podermos estar perante utilização abusiva do processo-crime pelo denunciante, podendo relevar manifesta má-fé no exercício do direito de queixa.

Veio o gerente da sociedade ora assistente - A - exercer o contraditório, com os fundamento melhor esgrimidos a fls. 431 a 442, os quais damos por reproduzidos para todos os efeitos legais, requerendo o indeferimento de condenação em multa, conforme requerido pelo Ministério Publico, por entender que se encontra demonstrado que não fez uma utilização abusiva do direito de queixa, utilizando o processo de forma lícita.

Aberta vista ao ministério Publico, a fls. 452 foi promovido nada mais ter a acrescentar às alegações orais produzidas em sede de debate instrutório.

Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o referido n.º 5 do artigo 277.º do Código do Processo Penal:
Nos casos previstos no n.º 1, sempre que se verificar que existiu por parte de quem denunciou ou exerceu um alegado direito de queixa, uma utilização abusiva do processo, o tribunal condena-o no pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC, sem prejuízo do apuramento de responsabilidade penal”.

Decorre, claramente, do texto-norma que a condenação no pagamento da referida soma pecuniária tem natureza sancionatória, é uma sanção por utilização abusiva do processo, é uma sanção “que tem natureza disciplinar e ordenadora”.

Por isso, deve ser proferida, apenas, depois de decorridos os prazos previstos no artigo 278.º do Cód. Proc. Penal.

O processo penal inicia-se e desenvolve-se mediante impulsos provocados pelos participantes processuais.

Começa com a aquisição da notícia do crime pelo Ministério Público, quer diretamente ou por comunicação dos órgãos de polícia criminal (que é a situação mais frequente), quer através de denúncia de uma qualquer entidade pública ou de um particular (art.º 241.º do Cód. Proc. Penal).

A queixa, nos crimes semipúblicos e nos crimes particulares, e, também, a acusação particular nos segundos, apesar de terem assento no Código Penal, são pressupostos processuais ou condições de procedibilidade, sem as quais o Ministério Público carece de legitimidade para promover o procedimento criminal (cfr. artigos 48.º, 49.º e 50.º do Cód. Processo Penal).

Titular do direito de queixa é o ofendido, que a lei define como titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (artigos 68.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Penal, e 113.º, n.º 1, do Cód. Penal).

A, na qualidade de sócio-gerente da sociedade ora assistente F…, Ldª, atribuiu aos denunciados M e MN, em sede de requerimento de abertura de instrução, factos suscetíveis, em abstrato, de integrarem a prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do Código Penal.

Qualquer direito subjetivo tem limites intrínsecos, a respeitar. Não pode ser exercido de qualquer modo, designadamente por forma chicaneira ou emulativa, ou seja, quando o titular, atuando, aparentemente, no âmbito formal de uma permissão normativa que constituirá o seu direito, fá-lo cavilosamente, sem pretender retirar qualquer benefício pessoal, antes almejando causar, e efetivamente causando, um prejuízo a outrem, situação em que haverá, pelo menos, um exercício inútil danoso.

O exercício de um direito é inadmissível (abusivo) quando só possa ter o escopo de provocar danos a outrem.

Noutra perspetiva, os direitos subjetivos são concedidos com uma determinada função. O abuso ocorrerá com o desrespeito por ela.

O processo penal tem a finalidade primordial de aplicação da lei penal aos casos concretos, ou seja, tem, essencialmente, uma função instrumental, sendo por essa via que se averigua e decide sobre a ocorrência, ou não, de um facto qualificado como crime e, na afirmativa, se se aplica uma sanção penal ao(s) responsável(is) pela sua prática.

Abusiva será, seguramente, a utilização do processo penal para fins que não sejam os assinalados, pervertendo-o em instrumento de desígnios que lhe são alheios.

O conceito de utilização abusiva do processo penal foi introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, correspondendo à necessidade que se fazia sentir de sancionar comportamentos com contornos semelhantes àqueles que moldam a figura jurídica da litigância de má-fé em processo civil.

Fazer uma utilização abusiva do processo penal não é, em substância, diverso de “fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal” (artigo 542.º, als. a) a d), do CPC).

Assim, tanto faz uma utilização abusivo do processo aquele que apresenta uma queixa ou uma denúncia cuja falta de fundamento não ignora, ou não devia ignorar, ou que altera conscientemente a verdade dos factos, como aquele que usa o processo para conseguir um objetivo ilegal ou reprovável.

Necessário, mas também suficiente, é que se reúnam os elementos que permitam concluir, com segurança, que a denúncia ou a queixa são infundadas, que o denunciante ou o queixoso não ignorava, ou não devia ignorar, a sua falsidade, ou que alterou conscientemente a verdade dos factos, ou ainda que usou o processo para conseguir um objetivo ilegal ou reprovável.

Ora, não podemos deixar de olvidar que A, na qualidade de sócio-gerente da sociedade assistente F., Ldª, atribui aos denunciados M e MN, em sede de requerimento de abertura de instrução, a falsidade de documentos emitidos pela Autoridade Tributária, nomeadamente, do auto de ocorrência e do projeto de relatório de inspeção tributária, onde invoca o assistente ser falsa a afirmação que consta no auto de ocorrência de que a DF de Santarém tenha sido autorizada pela DF Leiria a proceder a uma inspeção ao exercício de 2009 da contabilidade da F.

No entanto, constata-se que não podia o gerente da sociedade desconhecer que tal despacho existia, porquanto, através de certidão emitida em 29.11.2013 pela AT de Alcanena, foi emitida certidão ao representante legal da sociedade ora assistente, onde consta, a fls. 9, ponto 3, “Despacho de 30.08.2013, pedido de autorização para a realização de atos de inspeção e respetivo despacho de 24.07.2013”.

Nessa mesma certidão, a fls. 23 dos presentes autos (e fls. 16 da referida certidão), consta referência ao despacho do Diretor de Finanças de Leiria, de 2013-07-26, de autorização para o procedimento inspetivo, bem como a fls. 24 dos autos (fls. 17 da certidão) consta parecer da SAIT onde se refere “foi solicitada autorização para a realização de ação inspetiva por esta Unidade Orgânica - despacho de autorização do Diretor de Finanças de Leiria, de 2013-07-26, para promover procedimento inspetivo no âmbito de IRC e IVA, ao exercício de 2009”.

Constata-se ainda que, em sede de inquérito, o referido despacho do Diretor de Finanças de Leiria, encontra-se junto aos autos, a fls. 89, datado de 26 de julho de 2013, onde se constata que a DF de Leiria refere que poderá a DF de Santarém promover procedimento inspetivo ao contribuinte identificado no âmbito do IRC e IVA, ao exercício de 2009.

Pelo que, não poderia o gerente da sociedade assistente desconhecer que tal facto não é falso, quando foi notificado através de certidão de diversos documentos, onde diversos funcionários fazem referência a tal despacho do Diretor de Finanças de Leiria, datado de 26.07.2013.

Pelo que, mostra-se, pois, claramente abusiva a utilização do processo-crime pelo gerente da sociedade ora assistente, sendo o comportamento do mesmo inaceitável, relevando, além do mais, manifesta má-fé no exercício do direito de queixa, alterando conscientemente a verdade dos factos.

Por outro lado, o Tribunal não pode aceitar comportamentos como o do gerente da sociedade ora assistente, suportando despesas, e desenvolvendo trabalho de forma absolutamente escusada, despropositada e sem fundamento, como é o caso sub judice.

Acrescido da circunstância de submeter à instrução os denunciados, sujeitando-os a todo o formalismo processual, e à posição processual de arguidos.

Face a todo o supra exposto, condeno o gerente – A. - da sociedade ora assistente F. Ldª, em 6 (seis) UC, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 5, do CPP, ex vi artigos 544.º do CPC e 4.º do CPP.

Notifique e D.N.”.
3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da nulidade do despacho recorrido.

Sustenta o recorrente que o despacho sub judice enferma de nulidade, por estar insuficientemente fundamentado e por ter omitido pronúncia sobre questões que devia apreciar.

Entende o recorrente, em breve resumo, que o tribunal a quo, apesar de ter ordenado a sua notificação para exercer o direito ao contraditório (perante uma questão suscitada pelo Ministério Público - a condenação por utilização abusiva do processo -), não se pronunciou, como devia, relativamente às questões invocadas no âmbito do exercício desse direito (nessa sede, o recorrente alegou que não era admissível, em instrução, a aplicação da condenação prevista no artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal, e explicou as razões que conduziram à apresentação da denúncia - inclusivamente através da junção de documentos -, sendo certo que o tribunal, no despacho revidendo, não só não se pronunciou quanto à não aplicabilidade, na fase da instrução, do preceituado no artigo 277, nº 5, do C. P. Penal, como também não se pronunciou em relação à invocada motivação para a apresentação da denúncia, nem se pronunciou relativamente aos aludidos documentos).

Em suma: na opinião do recorrente, o tribunal a quo, no despacho sub judice, devia ter-se pronunciado (e não o fez, minimamente) sobre todas as questões levantadas na sua exposição de fls. 431 a 442 (efetuada no exercício do contraditório), devia ter tomando uma posição concreta quantos às mesmas (de molde a conseguir perceber-se quais os fundamentos que levaram a não serem acolhidas as razões constantes dessa exposição), e, não o fazendo, violou o disposto nos artigos 97º, nºs 1 e 5, 374º e 375º, todos do C. P. Penal, e no artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (que impõe que as decisões dos tribunais sejam fundamentadas - na forma prevista na lei ordinária -).

Assim, e ainda segundo o recorrente, não tendo existido pronúncia sobre as aludidas questões e acerca dos referidos factos, isso implica a nulidade da decisão recorrida, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, al. c), do C. P. Penal, nulidade que o recorrente expressamente invoca.

Cumpre apreciar e decidir.

Em primeiro lugar, há que aquilatar da correção processual do que está alegado.
O que se discute é a fundamentação de um despacho judicial (que condenou o recorrente em determinada soma pecuniária) e não a fundamentação de uma sentença.

Quanto aos despachos, estabelece o artigo 97º, nº 5, do C. P. Penal: “os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

Já relativamente ao ato decisório sentença (ou acórdão, se proferido por um tribunal coletivo), a lei impõe uma fundamentação especial, como resulta do disposto no artigo 374º do C. P. Penal, que, sob a epígrafe “requisitos da sentença”, dispõe:

1. A sentença começa por um relatório, que contém:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.

2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

3. A sentença termina pelo dispositivo que contém:
a) As disposições legais aplicáveis;
b) A decisão condenatória ou absolutória;
c) A indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com crime;
d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal;
e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.
4. A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas”.

Por sua vez, estatui o artigo 379º do C. P. Penal, sob a epígrafe “nulidade da sentença
:
1. É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 389º-A e 391º-F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º;

c) Quando o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2. As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 414º, nº 4.

3. Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.

Perante estas disposições legais, verificamos, desde logo, que nenhuma razão assiste ao recorrente quando invoca (cfr. conclusão 32ª extraída da motivação do recurso) que a omissão de pronúncia detetada “determina a nulidade da decisão, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP”.

Com efeito, o disposto no artigo 379º do C. P. Penal aplica-se apenas às sentenças (e não aos meros despachos, por maior relevância que tenham), sendo ainda que, num sistema legal construído com base no princípio da tipicidade das nulidades, não faz qualquer sentido (com o devido respeito por diferente opinião) recorrer ao direito processual civil para, desse modo, tentar cominar uma omissão não qualificada dessa forma pelo legislador processual penal.

Assim, e neste ponto, o recorrente labora em manifesta confusão (sempre com o devido respeito), já que a decisão revidenda é um despacho e não uma sentença.

Depois, esquece ainda o recorrente o preceituado nos artigos 118º a 123º do C. P. Penal.

Com efeito, a lei processual penal (artigo 118º do C. P. Penal), sob a epígrafe “princípio da legalidade”, consagra, no domínio da violação ou da inobservância das suas disposições, que as mesmas só determinam “a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei” (nº 1 do preceito legal em causa), e que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular” (nº 2 do mesmo preceito legal).

Ora, a invocada omissão de fundamentação do despacho judicial em causa não está consagrada, em qualquer preceito legal, como nulidade, e, não o estando, há que recorrer ao prevenido no transcrito artigo 118º, nº 2, do C. P. Penal (“nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular”).

Constituindo (essa alegada omissão) uma irregularidade, está a mesma sujeita à disciplina prescrita no artigo 123º, nºs 1 e 2, do C. P. Penal, onde se dispõe: “qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado” (nº 1 do preceito); “pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado” (nº 2 do mesmo preceito).

Assim sendo, mesmo a proceder o recurso nesta vertente, a pretensão recursiva não poderia ser atendida nos termos em que foi formulada (pede o recorrente: “deverá a decisão ser revogada e substituída por outra que isente o recorrente da soma em que foi condenado”).

Na verdade, o despacho revidendo, caso fosse inválido (por falta de fundamentação), teria de ser substituído por outro despacho, no qual se sane a irregularidade detetada, novo despacho este que (até para garantir o duplo grau de jurisdição), teria de ser proferido pelo tribunal a quo, e não, obviamente, por este tribunal ad quem.

Caso procedesse, nesta matéria, a argumentação do recorrente, a consequência seria o prejuízo do conhecimento das demais questões suscitadas no recurso, e não a revogação, pura e simples, da decisão recorrida, e a sua substituição por outra que “isente o recorrente da soma em que foi condenado”.

Assim, neste primeiro aspeto, e resumidamente:
- A falta de fundamentação de despacho decisório que não seja de mero expediente (como é o caso do despacho recorrido) constitui mera irregularidade.

- Atento o princípio da legalidade e da tipicidade prevenido no nº 1 do artigo 118º do C. P. Penal, não cominando a lei, expressamente, aquele vício com nulidade do ato, o ato ilegal é irregular, nos termos do seu nº 2 do mesmo preceito legal.

- Essa irregularidade afeta o valor do ato praticado (do despacho proferido), não podendo ser considerada suprida ou sanada, pelo que, conforme decorre do disposto no artigo 123º, nº 2, do C. P. Penal, impunha-se ordenar a sua reparação.

- Ou seja, tal patologia, a verificar-se (o que decidiremos de seguida), determina a invalidade do ato (do despacho revidendo) e dos termos processuais subsequentes (pelo mesmo inquinados), e, em consequência, o despacho sub judice, a ser inválido por falta de fundamentação, tem de ser substituído por outro (a proferir pelo tribunal a quo, e não, obviamente, por este tribunal ad quem), em que seja reparada a patologia detetada (e ficando, consequentemente, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso).

- Caso proceda a argumentação do recorrente neste ponto (falta de fundamentação, e omissão de pronúncia, do despacho revidendo), é isso (e só isso) que podemos e devemos decidir (e não revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que “isente o recorrente da soma em que foi condenado”).

Em segundo lugar, assim devidamente colocados os termos da questão, há que aquilatar da validade substancial do que vem alegado nesta sede.

Estabelece o artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

A obrigação de fundamentação dos despachos judiciais, em sede processual penal, é a que consta do acima transcrito artigo 97º, nº 5, do C. P. Penal, que determina que os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

Em breve síntese, e sem grande rigor expositivo, a obrigação de fundamentação dos atos decisórios dos tribunais, constitucionalmente imposta, decorre da necessidade de controlo (quer pelos sujeitos processuais, quer pelo público em geral) da administração da justiça, da exclusão do caráter potencialmente voluntarista e demasiado subjetivo do exercício da atividade jurisdicional (é preciso conhecer da racionalidade e da coerência argumentativa dos juízes, quando proferem as suas decisões), e, por último, da possibilitação de uma melhor estruturação dos eventuais recursos das decisões judiciais (permitindo aos sujeitos processuais uma análise, clara, precisa e rigorosa, de tais decisões, com vista a ponderarem sobre a interposição de recurso e a instruírem o mesmo).

Contudo, o dever de fundamentação não constitui (não pode constituir) uma qualquer operação épica, em que os juízes ponderam e analisam todos os assuntos submetidos à sua apreciação pelos sujeitos processuais, mesmo quando esses assuntos são totalmente despidos de relevância.

Se assim fosse, se os juízes tivessem, necessariamente, de decidir todos os assuntos que os sujeitos processuais tivessem por bem propor à sua apreciação, nos precisos termos em que estes o quisessem fazer, chegaríamos, como é bom de ver, a uma situação completamente incontrolável, em que os juízes teriam de escrever, basicamente, acerca de alegações absurdas (totalmente despiciendas e absolutamente inócuas) e potencialmente infindáveis.

A esta luz, o despacho revidendo encontra-se, do ponto de vista formal e substancial, devidamente fundamentado, de facto e de direito, não lhe sendo assacável irregularidade por falta de fundamentação (ou por omissão de pronúncia).

Senão vejamos:
- A questão decidida em tal despacho foi colocada pelo Ministério Público à consideração do tribunal (era a da condenação do recorrente ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 5, do C. P., Penal).

- O tribunal ouviu o ora recorrente acerca da pretensão exposta pelo Ministério Público, tendo o recorrente tomado posição sobre o assunto, numa longa exposição (fls. 431 a 442).

- A Mmª Juíza decidiu a questão suscitada pelo Ministério Público, e fundamentou a sua decisão (no despacho sub judice), mas, objetivamente, escusou-se a rebater uma série de factos (e de circunstâncias) alegados pelo ora recorrente naquela sua longa exposição, já que, obviamente, os considerou irrelevantes.

- Lendo o despacho recorrido, são apreensíveis e perfeitamente inteligíveis, quer para os sujeitos processuais quer para este tribunal de recurso, os argumentos utilizados pela Mmª Juíza, estando devidamente explicado e explicitado, no despacho em causa, o processo racional que levou a Mmª Juíza a considerar abusiva a utilização do processo-crime pelo gerente da sociedade assistente (o ora recorrente).

- Aliás, o recorrente, na motivação do recurso, mostra ter compreendido perfeitamente os motivos que estão na base da decisão proferida pela Mmª Juíza, apenas deles discordando (e, por isso, rebatendo-os em sede de recurso).

- Os juízes não estão obrigados (como acima já dissemos) a discorrer sobre todos os argumentos utilizados pelos sujeitos processuais, a considerar relevantes todos os assuntos, a escrever sobre aquilo que não releva nem convence.

- O que se exige aos juízes (quando proferem despachos) é, isso sim, que as soluções adotadas estejam suficientemente fundamentadas e sejam compreensíveis, e a decisão revidenda, como já dissemos, obedece a tais requisitos.

- O facto de o recorrente divergir da decisão tomada em primeira instância, não concordando com os argumentos aí expendidos, é legítimo, é próprio, e é até fundamento do presente recurso.

Em conclusão: o despacho recorrido não violou qualquer exigência legal de fundamentação (não está insuficientemente fundamentado), nem, além disso, omitiu pronúncia sobre questões que devia apreciar.

Em face do que vem de dizer-se, e em toda esta primeira vertente, o recurso não merece provimento.

b) Da utilização abusiva do processo.

I - Dos factos relevantes para a decisão.

Compulsados os presentes autos de recurso independente em separado, deles resultam os seguintes factos e circunstâncias processuais (com relevo para a decisão que agora nos ocupa):

1 - O recorrente A, na qualidade de gerente da sociedade “F., Ldª”, apresentou denúncia, nos serviços do Ministério Público junto do Tribunal de Santarém, na qual descreve factos suscetíveis de consubstanciarem a prática de um crime de falsificação de documento, contra os inspetores de finanças M e MN.

2 - O Ministério Público procedeu a inquérito, e, no despacho final, procedeu ao arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº 2, do C. P. Penal (por não ter sido possível obter indícios da prática, pelos denunciados, do crime de falsificação de documento em questão).

3 - Não concordando com o despacho de arquivamento, a ofendida “F. Ldª”, através do seu representante legal (o ora recorrente A), solicitou a sua constituição como assistente nos autos e requereu a abertura de instrução.

4 - No requerimento para abertura da instrução, e além do mais, o ora recorrente A, na qualidade de sócio-gerente da sociedade assistente “F, Ldª, atribui aos denunciados (M e MN) a falsidade de documentos emitidos pela Autoridade Tributária, nomeadamente do auto de ocorrência e do projeto de relatório de inspeção tributária, invocando ser falsa a afirmação, que consta do “auto de ocorrência”, de que a Direção de Finanças de Santarém foi autorizada pela Direção de Finanças Leiria a proceder a uma inspeção, ao exercício de 2009, da contabilidade da assistente.

5 - Ao ora recorrente, na qualidade de representante legal da sociedade assistente, tinha sido emitida, em 29-11-2013, pela Autoridade Tributária de Alcanena, uma certidão, onde consta:

- “Despacho de 30-08-2013, pedido de autorização para a realização de atos de inspeção e respetivo despacho de 24-07-2013”.

- Referência ao despacho do Diretor de Finanças de Leiria, datado de 26-07-2013, de autorização para o procedimento inspetivo, bem como referência a que “foi solicitada autorização para a realização de ação inspetiva por esta Unidade Orgânica - despacho de autorização do Diretor de Finanças de Leiria, de 2013-07-26, para promover procedimento inspetivo no âmbito de IRC e IVA, ao exercício de 2009”.

6 - A Direção de Finanças de Santarém foi, pois, expressa e claramente, autorizada pela Direção de Finanças Leiria a proceder à dita inspeção, relativa ao exercício de 2009, da contabilidade da sociedade assistente.

7 - Também em sede de inquérito foi junto o referido despacho do Diretor de Finanças de Leiria, datado de 26-07-2013, onde, sem dúvidas ou hesitações, se refere que a Direção de Finanças de Santarém pode promover o aludido procedimento inspetivo.

8 - O ora recorrente, na posse da aludida certidão, não desconhecia (não podia desconhecer) que a alegação da falsidade do “auto de ocorrência” (onde, neste, se afirmava que a Direção de Finanças de Santarém tinha sido autorizada pela Direção de Finanças Leiria a proceder à referida inspeção) era uma alegação infundada e totalmente desprovida de verdade.

9 - O ora recorrente, com essa sua denúncia, e agindo conscientemente, alterou a verdade dos factos.

II - Do conceito de “utilização abusiva do processo”.
No despacho revidendo (subsequente ao despacho onde se decidiu não pronunciar os arguidos), procedeu-se à condenação (em 6 UCs) do gerente da sociedade assistente (o ora recorrente), nos termos e para os efeitos previstos no artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal, considerando-se ter existido, por parte do mesmo, uma “utilização abusiva” do processo-crime (manifesta má fé no exercício do direito de queixa).

Na motivação do recurso, o recorrente alega, em síntese, que o disposto no artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal, não é aplicável na fase da instrução, apenas tendo cabimento legal em sede de despacho de arquivamento do inquérito (despacho proferido pelo Ministério Público), e, além disso, que a situação posta nos autos não configura um caso de utilização abusiva do processo.

Por razões de precedência lógica (e até de preclusão), começamos por analisar o conceito de “utilização abusiva do processo”, verificando se o caso posto nos autos nele se pode integrar, e, depois, concluindo pela afirmativa, iremos apreciar e decidir a questão de saber se o dispositivo legal que prevê o sancionamento dessa “utilização abusiva do processo” é, ou não, aplicável na fase da instrução.

Sob a epígrafe “arquivamento do inquérito”, dispõe o artigo 277º do C. P. Penal:

1 - O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento.

2 - O inquérito é igualmente arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes.

3 - O despacho de arquivamento é comunicado ao arguido, ao assistente, ao denunciante com faculdade de se constituir assistente e a quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil nos termos do artigo 75º, bem como ao respetivo defensor ou advogado.

4 - As comunicações a que se refere o número anterior efetuam-se:

a) Por notificação mediante contacto pessoal ou via postal registada ao assistente e ao arguido, exceto se estes tiverem indicado um local determinado para efeitos de notificação por via postal simples, nos termos dos nºs 5 e 6 do artigo 145º, do nº 2 e da alínea c) do nº 3 do artigo 196º, e não tenham entretanto indicado uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento;

b) Por editais, se o arguido não tiver defensor nomeado ou advogado constituído e não for possível a sua notificação mediante contacto pessoal, via postal registada ou simples, nos termos previstos na alínea anterior;

c) Por notificação mediante via postal simples ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e a quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil;

d) Por notificação mediante via postal simples sempre que o inquérito não correr contra pessoa determinada.

5 - Nos casos previstos no nº 1, sempre que se verificar que existiu por parte de quem denunciou ou exerceu um alegado direito de queixa, uma utilização abusiva do processo, o tribunal condena-o no pagamento de uma soma entre 6 UC e 20 UC sem prejuízo do apuramento de responsabilidade penal”.

O conceito de “utilização abusiva do processo”, previsto no nº 5 do transcrito preceito legal, foi introduzido pela Lei nº 48/2007, de 29/08.

O Código de Processo Penal já previa a censura da conduta abusiva do advogado (cfr. o disposto no artigo 326º, al. b), de tal diploma legal), mas o novo conceito, introduzido pela referida Lei nº 48/2007, respeita ao abuso do processo pelo próprio sujeito processual que a ele recorre.

No tocante aos elementos substantivos, integradores do conceito em análise, e a nosso ver, deve considerar-se que existe uma “utilização abusiva do processo” sempre que exista uma denúncia efetuada de má-fé ou com negligência grave.

As circunstâncias reveladoras dessa má-fé (ou dessa negligência grave) são, entre outras possíveis, o uso da denúncia (e do processo subsequente) para fins que não visem as finalidades do processo penal (aplicação da lei penal substantiva), o uso da denúncia para prossecução de desígnios patrimoniais (ou outros) indevidos (ilegais ou simplesmente reprováveis), e, obviamente, o relato, na denúncia, de factos manifestamente infundados (factos falsos, falsidade esta que o denunciante não ignorava ou não devia ignorar) ou de factos cuja verdade foi conscientemente alterada pelo denunciante.

Como bem se assinala do Ac. do T.R.P. de 27-11-2013 (relator Neto de Moura - acórdão que está disponível in www.dgsi.pt -), “tendo o processo penal a finalidade primordial de aplicação da lei penal aos casos concretos, faz uma utilização abusiva do processo todo aquele que o usa para fins que não sejam o assinalado, pervertendo-o em instrumento de desígnios que lhe são alheios. Necessário, mas também suficiente, para a condenação por utilização abusiva do processo é que se reúnam os elementos que permitam concluir, com segurança, que a denúncia ou a queixa são infundadas, que o denunciante ou queixoso não ignorava, ou não devia ignorar, a sua falsidade, ou que alterou conscientemente a verdade dos factos, ou ainda que usou o processo para conseguir um objetivo ilegal ou simplesmente reprovável”.

Olhando o caso concreto destes autos, constata-se que o recorrente, na qualidade de sócio-gerente da sociedade assistente, atribuiu aos denunciados M e MN (inspetores tributários), em sede de requerimento para abertura da instrução, a falsidade do “auto de ocorrência” e do projeto de relatório de inspeção tributária, invocando ser falsa a afirmação, que consta de tal “auto de ocorrência”, de que a Direção de Finanças de Santarém tinha sido autorizada pela Direção de Finanças de Leiria a proceder a uma inspeção, ao exercício de 2009, da contabilidade da assistente.

Ora, o recorrente não desconhecia (não podia desconhecer) a existência de um despacho a conceder tal autorização, uma vez que ao recorrente havia sido entregue uma certidão onde, expressa e claramente, constava a referência a tal despacho, e, bem assim, estavam explicitados os exatos termos do mesmo despacho.

A esta luz, concluímos, como bem concluiu o tribunal recorrido, que é “claramente abusiva a utilização do processo-crime pelo gerente da sociedade ora assistente, sendo o comportamento do mesmo inaceitável, relevando, além do mais, manifesta má-fé no exercício do direito de queixa, alterando conscientemente a verdade dos factos”.

Alega o recorrente, na motivação do recurso, que o facto de o Ministério Público ter concluído, após realização do inquérito, que não foi praticado qualquer crime, não determina automaticamente a verificação da “utilização abusiva do processo”.

Nesta alegação assiste inteira razão ao recorrente (o arquivamento do inquérito, ainda que com fundamento no disposto no artigo 277º, nº 1, do C. P. Penal, não determina, automaticamente, a condenação do denunciante nos termos do nº 5 do mesmo preceito legal).

Porém, tal alegação do recorrente é aqui inócua, pois não foi esse (nem poderia ser) o motivo da sua condenação por “utilização abusiva do processo”.

Invoca ainda o recorrente que o despacho que declara aberta a instrução constitui como que uma espécie de “caso julgado” quanto à possibilidade de condenação por “utilização abusiva do processo”: ao não rejeitar a instrução, por inadmissibilidade legal da mesma (nomeadamente, por os factos constantes do requerimento para abertura da instrução não constituírem crime), o tribunal afasta (definitivamente) a hipótese de poder vir a concluir que a denúncia que esteve na base do processo é abusiva.

Com o devido respeito, esta alegação carece totalmente de sentido, porquanto a conclusão de que denunciante prosseguiu, com a denúncia, fins estranhos ao processo penal (a conclusão de que foi efetuada pelo denunciante uma “utilização abusiva do processo”), pode surgir com maior evidência (pode impor-se) no decurso da instrução, mediante (e após) a realização das inerentes diligências.

Em suma: a situação posta nos autos, e ao contrário do alegado na motivação do recurso, configura um caso de utilização abusiva do processo.

III - Da condenação por “utilização abusiva do processo” na fase da instrução.

Resta apreciar a questão de saber se o dispositivo legal que prevê o sancionamento da “utilização abusiva do processo” pode ser aplicado na fase da instrução (saber se o disposto no artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal, é, ou não, aplicável em tal fase processual).

Como bem escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2ª edição, 2008, pág. 722, nota nº 55 ao artigo 277º), a sanção da utilização abusiva do processo “tem natureza disciplinar e ordenadora, não viola o princípio da proporcionalidade nem constitui bis in idem,” sendo que “o tribunal não está vinculado às conclusões do Ministério Público no final do inquérito”.

Ou seja, a sanção em causa pode (e deve) ser aplicada por despacho judicial, sendo independente do despacho de arquivamento do inquérito (despacho proferido pelo Ministério Público), e pode (e deve) der aplicada após a prolação de tal despacho de arquivamento, e mesmo que já no decurso da fase da instrução.

Exige-se, isso sim, que, antes de decidir, o juiz cumpra o princípio do contraditório, ouvindo o visado.

Exige-se também, a nosso ver, que exista promoção do Ministério Público (que é titular do inquérito e da ação penal) no sentido da condenação por “utilização abusiva do processo”, não podendo o juiz, oficiosamente, proceder a uma tal condenação (esta nossa conclusão decorre da estrutura acusatória do processo penal português e da inserção sistemática do artigo 277º, nº 5, do C. P Penal - nas disposições procedimentais relativas à fase de inquérito -).

Tudo isso (cumprimento do princípio do contraditório, e prévia promoção do Ministério Público) foi devidamente observado no caso sub judice.

Na verdade, pode ler-se na “decisão instrutória” de não pronúncia, proferida pelo tribunal a quo: “por, em sede de alegações em debate instrutório, ter sido pelo Ministério Público requerida a condenação em multa do gerente da sociedade ora assistente, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 277º, nº 5, do CPP, e por se nos afigurar podermos estar perante a utilização abusiva do processo-crime pelo denunciante, podendo revelar manifesta má-fé no exercício do direito de queixa, e a fim de não ser proferida qualquer decisão surpresa, antes de mais notifique o gerente da sociedade assistente - António Manuel Duarte Castro Alexandre – para, querendo, em 10 dias, exercer contraditório”.

Esta determinação judicial foi cumprida, o visado pronunciou-se, e só depois foi prolatado o despacho revidendo.

Mais: a sanção em análise, que apenas pode ser determinada por despacho judicial (despacho fundamentado, e despacho que é recorrível pelo visado), não só deve ser aplicada depois de decorridos os prazos previstos no artigo 278º do C. P. Penal (possibilidade de “intervenção hierárquica” no final do inquérito), como pode até ser aplicada no decurso da fase da instrução, verificando-se, em tal fase (face a novos elementos entretanto carreados para os autos, que não constavam do inquérito, ou perante elementos já existentes no inquérito mas que se revelaram, agora, de modo diferente), que a denúncia foi feita com manifesta má-fé ou com negligência grave.

Na fase de instrução, exige-se (agora por redobradas razões) que exista promoção do Ministério Público e que seja cumprido o contraditório.

Ao contrário do que parece entender-se na motivação do recurso, não tem aqui relevo a circunstância de, para a fase de instrução, não existir uma norma idêntica à do artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal (prevista para a fase de inquérito).

Com efeito, sendo a instrução a fase processual que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (cfr. artigo 286º, nº 1, do C. P. Penal), subjaz ao despacho que põe termo a tal fase processual (se for um despacho de não pronúncia, como sucede in casu) o mesmo tipo de juízo de insuficiência indiciária que está presente no despacho que encerra o inquérito (por arquivamento).

Ora, assim sendo, cabendo ao Juiz de instrução, no final da instrução, tal como ao Magistrado do Ministério Púbico no final do inquérito, avaliar dos indícios e aquilatar das provas recolhidas, nada nos permite afirmar que os mesmos magistrados estejam impedidos de, na instrução, chegarem à conclusão de que a denúncia apresentada é falsa e que foi feita de má-fé (ponto é que tal avaliação seja impulsionada pelo Ministério Público, tal como, a nosso ver, e repete-se, decorre da estrutura acusatória do processo penal português).

Alega-se ainda, na motivação do recurso, que o tribunal a quo, tendo decidido pela não pronúncia dos arguidos e tendo condenado a sociedade assistente em custas (nas custas da instrução), não podia, ao mesmo tempo, lançar mão do disposto no artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal, para também condenar o recorrente (gerente da sociedade assistente).

Sempre com o devido respeito, trata-se de uma alegação sem sentido, porquanto a sociedade assistente foi condenada, dada a não pronúncia dos arguidos, nas custas relativas à instrução, e o ora recorrente foi condenado, em despacho posterior à decisão instrutória (no despacho recorrido), numa sanção por “utilização abusiva do processo” que está prevista no artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal e que que tem natureza disciplinar e ordenadora, não equivalendo ao pagamento de custas processuais.

Não há, pois, aqui, qualquer sobreposição de sanções ou de normas sancionadoras, já que uma das condenações é em custas (e foi proferida contra a sociedade assistente), e a outra, proferida contra a pessoa do ora recorrente, não corresponde ao pagamento de custas, possuindo uma natureza totalmente diferente (tem natureza disciplinar e ordenadora).

Mais: mesmo que o condenado fosse o mesmo (e não o é), e mesmo perante o disposto no artigo 520º do C. P. Penal (o denunciante paga custas “quando se mostrar que denunciou de má fé ou com negligência grave”), as realidades se distinguiriam.

Na verdade, e como escreve Paulo Pinto de Albuquerque (ob. citada, pág. 1279, nota nº 5 ao artigo 520º), “a condenação em custas criminais por denúncia com má-fé ou negligência grave pode ser cumulada com a condenação no pagamento da soma por utilização abusiva do processo, prevista no artigo 277º, nº 5, pois elas visam objetivos diferentes: uma sancionar o abuso do processo e a outra tributar as custas da instauração do processo”.

Em jeito de síntese (no ponto que temos vindo a analisar), e transcrevendo as palavras constantes da resposta ao recurso apresentada, em primeira instância, pela Exmª Magistrada do Ministério Público (cfr. fls. 227 destes autos): “só depois de consolidada a decisão de arquivamento do inquérito - o que não sucede enquanto essa decisão é hierárquica ou judicialmente sindicável -, pode o tribunal sustentar uma decisão de condenação por utilização abusiva do processo; o exercício do poder/dever de o Ministério Público promover a condenação ao abrigo do artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal, não fica precludido pela circunstância de o assistente vir requerer a abertura da instrução”.

Assim, e em conclusão, o denunciante pode, na fase da instrução, ser condenado na sanção prevista no artigo 277º, nº 5, do C. P. Penal, como (e bem) o foi in casu.

Face a tudo quanto ficou dito, é de manter a decisão revidenda, sendo de improceder o recurso.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs..

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 12 de abril de 2016

(João Manuel Monteiro Amaro)

(Maria Filomena de Paula Soares)