Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
614/17.0T8SSB.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: EXTINÇÃO DA SOCIEDADE
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
1. A sociedade comercial dissolvida entra de imediato em liquidação, devendo os liquidatários requerer o registo do encerramento da liquidação, considerando-se a sociedade extinta pelo registo do encerramento da liquidação – art.º 160.º do C. S. C.
2. O regime previsto no art.º 162.º do CSC abrange apenas as ações pendentes em que a sociedade seja parte e venha a ser declarada extinta durante a pendência dessas ações.
3. Carecendo a Requerida de personalidade jurídica e consequente personalidade judiciária, não pode ser demandada.
4. Neste caso, a falta de personalidade judiciária constitui exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, e determina a absolvição da Requerida da instância – art.ºs 577.º, al. c), e 278.º, n.º 1, alínea c) e 3, do C. P. Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I. Relatório.
Banco AA, S.A. intentou o presente procedimento cautelar especificado para entrega do bem locado, previsto no art. 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25/02, contra BB, …Unipessoal, Lda., com sede no Edifício …, Apartado …, n.º …, Sesimbra, pedindo que se ordene a entrega judicial à Requerente da fração autónoma identificada pela letra “…” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em Cotovia – Casal Marise, lote …, freguesia de Sesimbra (Castelo), descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º … e inscrito na matriz sob o artigo ….
Para o efeito alegou, em síntese, ter sido celebrado com a Requerida um contrato de locação financeira imobiliária n.º 20005900, o qual teve por objeto a mencionada fração predial, a Requerida obrigou-se ao pagamento de 84 rendas mensais e deixou de efetuar o pagamento das rendas 60.º à 62.ª, tendo a Requerente, nessa sequência, procedido à resolução do contrato.
Apesar da resolução, a Requerida não procedeu à entrega voluntária do bem locado.
Juntou documentos e arrolou testemunhas.
Foi indeferida a dispensa de audição prévia da Requerida, a qual foi citada por carta registada expedida para a sua sede, sita no Edifício …, Apartado …, n.º …, Sesimbra, para deduzir contestação à providência, a qual veio a ser devolvida com a indicação de “não atendeu”.
Considerando-se que a Requerida estava citada nos termos do art.º 246.º, n.ºs 2 e 4 do CPC, foi proferida a competente sentença que julgou “ o presente procedimento cautelar procedente e, em consequência, decreta-se a providência cautelar para entrega imediata à Requerente da fração autónoma identificada pela letra “…” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em Cotovia – Casal Marise, lote …, freguesia de Sesimbra (Castelo), descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra sob o n.º … e inscrito na matriz sob o artigo …”.
Desta decisão veio CC, na qualidade de único sócio gerente da “Requerida”, declarada extinta desde 17 de dezembro de 2014, interpor o presente recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. A douta sentença recorrida é nula, pois a entidade contra quem foi decretada a
providência - a BB – … UNIPESSOAL, LDA., - se encontra extinta desde 17/12/2014.
II. A sociedade Requerida foi sujeita a procedimento administrativo de dissolução oficiosamente instaurado, tendo a respetiva liquidação sido concluída, nos termos do artigo 166º e publicada nos termos do artigo 167.º do Código das Sociedades Comerciais.
III. Por essa razão, nos termos do artigo 160º do Código das Sociedades Comerciais, a sociedade Requerida encontra-se extinta desde a indicada data.
IV. Nos termos do artigo 11º do Código de Processo Civil, quem tem personalidade jurídica, tem personalidade judiciária, consistindo esta na suscetibilidade de ser parte em processos judiciais.
V. A presente ação não se encontrava pendente na data em que se operou o encerramento da liquidação da ré (que já havia ocorrido há quase 3 anos aquando da propositura da presente ação), pelo que não tem aplicação nos presentes autos o disposto nos artigos 163º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164º, n.ºs 2 e 5, sendo que, a instância não se suspende, nem é necessário promover o incidente de habilitação.
VI. Tendo sido a presente providência cautelar proposta contra uma sociedade que se encontra extinta desde 2014, a presente providência cautelar padece do vício daí decorrente, que é o de falta de personalidade judiciária.
VII. Ora, sendo a falta de personalidade judiciária da Requerida insuscetível de sanação, não podia o tribunal recorrido ter proferido sentença, ainda que no âmbito de providência cautelar contra a sociedade Requerida.
VIII. Assumindo a natureza de pressuposto processual, mostrando-se em falta a personalidade judiciária, tal falta constitui exceção dilatória obstativa do conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da instância, tendo presente o disposto nos artigos 11º, 278º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil.
IX. Tal necessária consequência resulta claramente julgada no âmbito dos doutos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 27/03/2008, proferido no processo n.º 0831264 e do Tribunal da Relação de Lisboa em 10/07/2014, no âmbito do proc. n.º 78408/13.7YIPRT.L1-2 disponíveis em http://www.dgsi.pt: “A falta de personalidade judiciária da ré obsta, pois, à continuação da lide, sendo que, importa a absolvição da instância da ré – cfr. artigos 11.º, 576.º, n.º 2 e 577.º, al. c) do CPC.”
X. Por outro lado, face à pré-extinção da Requerida relativamente à data do Requerimento Inicial na presente providência, existe, nos presentes autos, o vício de falta de citação, porquanto a mesma foi efetuada após a sua extinção em decorrência do disposto no artigo 188º nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil.
XI. O Banco Recorrido tem pleno conhecimento, porque lhe foi oportunamente comunicado, que a sociedade Requerida no âmbito da presente providência cautelar se encontra extinta, desde 17/12/2014.
XII. E que lhe sucedeu validamente na sua posição contratual o ora Recorrente, tendo sido o mesmo quem tem assumido e cumprido todas as obrigações decorrentes do presente contrato, designadamente com o pagamento das rendas devidas, pagamento de seguros, etc.
XIII. O Banco ora Requerente, desde que o ora Recorrente assumiu a posição contratual da extinta sociedade Recorrida e desde que o mesmo assumiu a exploração do estabelecimento a ele correspondente, sempre tem enviado a correspondência relativa ao contrato para a loja e não para a sede da sociedade.
XIV. Acresce que o Banco ora Requerente enviou todas as cartas registadas juntas aos presentes autos, no sentido da interpelação para pagamento e no sentido de comunicar
a resolução do contrato para a morada da antiga sede da sociedade Requerida que se encontra extinta, onde o Banco sabia perfeitamente que tal correspondência não seria recebida, como efetivamente não foi, conforme pode constatar-se dos comprovativos de devolução das cartas ao remetente constantes do doc. 3 junto com a petição inicial.
XV. Assim, não pode considerar-se, nem que houve qualquer interpelação por parte do Banco ora Requerente, pois a carta com esse intuito não foi nem corretamente endereçada nem recebida, conforme prova constante dos autos, nem, pelos mesmos motivos se pode considerar que houve válida e eficaz resolução do contrato.
XVI. Note-se que nos termos do artigo 13º, n.º 2 do contrato de locação financeira, junto como doc. n.º 1 com o Requerimento Inicial “a comunicação da resolução considera-se efetuada e eficaz desde que tenha sido enviada para a última morada que o Locatário tenha indicado ao locador.”
XVII. Assim, a resolução só seria válida se tivesse sido enviada pelo Banco Requerente para a morada para onde o Banco enviava toda a correspondência desde há vários anos.
XVIII. Acresce que o ora Recorrente há vários anos que exerce a sua atividade comercial no locado, tendo sido agora abruptamente desapossado do seu estabelecimento comercial e estando desde 17 de janeiro impossibilitado de exercer a sua atividade, facto que lhe está a causar inúmeros prejuízos, tanto pela suspensão da sua atividade, como pelos danos à sua imagem que toda esta situação lhe causou.
XIX. Assim, e devendo a providência ser declarada extinta, deve o imóvel voltar
imediatamente à posse do ora Recorrente.
NESTES TERMOS e nos mais de Direito que V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso de Apelação e em consequência deve ser revogada a providência cautelar decretada e a posse do imóvel devolvida ao Recorrente.
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Contra alegou o Requerente, concluindo, no essencial, nos termos seguintes:
1. A falta de personalidade judiciária não determina, automaticamente, a extinção da instância quanto à parte que carece de personalidade, desde que possa suprir-se, conforme resulta claramente do artigo 6º, n.º 2 do CPC.
2. O Apelado desconhecia até à data a extinção da Requerida.
3. É agora evidente a falta de capacidade judiciária da Requerida, todavia, ela pode ser sanada.
4. O art. 162º do CSC refere a sua aplicação para ações pendentes, o que efetivamente é o caso, pois a extinção da Requerida apenas foi conhecida com as alegações de recurso e deve aplicar-se analogicamente tal disposição, atendendo que, a lei não previu situações similares às dos autos.
5. É plausível que só agora tendo tomado conhecimento da dissolução e do encerramento, possa o Apelado, requerer o prosseguimento da procedimento cautelar contra a generalidade dos sócios, ou seja, na pessoa do Apelante, único sócio da Requerida, sem necessidade de suspensão ou habilitação.
6. Para sanar a irregularidade, deve ser ordenado ao Tribunal “a quo” a convidar o Requerente, nos termos do art.6, nº 2 do CPC, a suprir a falta de legitimidade passiva por falta de personalidade judiciária sanando a exceção dilatória nos termos do art. 278º, nº 3 do mesmo diploma e permitindo requerer o prosseguimento contra o sócio, nos termos do art. 162º, nº 2 do CSC e assim proceder à citação acima referida.
7. Face a todo o exposto, deve ser negado provimento ao recurso e ordenar o Tribunal a quo a convidar o Apelado a sanar a exceção dilatória de falta de capacidade judiciária da Requerida, mantendo-se todos os atos praticados até à data.
8. A extinção por absolvição da instância apenas deve acontecer, se o Requerente Apelado não sanar a irregularidade e não requerer o prosseguimento contra os sócios, nos termos do art. 162º, nº 2 do CSC.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil -, constata-se que a questão essencial decidenda consiste em saber se a Requerida tem ou não personalidade judiciária para ser demandada e, na negativa, qual a consequência jurídico - processual.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Factos provados.
Na decisão recorrida foi dado como assente a seguinte factologia.
1. A Requerente é uma sociedade que tem por objeto a celebração de contratos de locação financeira imobiliária.
2. No exercício da sua atividade, o Requerente celebrou, em 12 de Julho de 2012, com a Requerida o contrato de locação financeira imobiliária nº 20005900.
3. Este contrato tinha por objeto a fração autónoma designada pela letra “…”, que corresponde à Loja …, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito em Cotovia – Casal Marise, Lote …, freguesia de Sesimbra (Castelo), concelho de Sesimbra, descrito na Conservatória de Registo Predial de Sesimbra sob o número …8 e inscrito na matriz sob o artigo nº ….
4. A propriedade do imóvel está inscrita a favor do Requerente.
5. O registo do encargo de locação financeira foi já cancelado junto da Conservatória do Registo Predial.
6. Nos termos do mencionado contrato, pela locação do imóvel eram devidas pela Requerida 84 rendas mensais, com o valor de € 995,51, indexadas à Euribor a 6 meses do dia 05.07.2012, e as restantes indexadas à Euribor do início do período, arredondado à milésima.
7. O imóvel foi entregue à Requerida.
8. A Requerida não pagou as rendas que no âmbito do contrato em apreço se venceram em: 15.06.2017 no valor de € 738,39 (parte da 60ª renda); 15.07.2017 no valor de € 1.030,60 (61ª renda); e 15.08.2017 no valor de € 1.030,20 (62ª renda).
9. Não tendo a Requerida dado cumprimento às suas obrigações através do pagamento das rendas vencidas, não obstante para tal interpelada, o Requerente veio comunicar-lhe, por carta registada com aviso de receção, datada de 23 de Agosto, a resolução do contrato de locação financeira em apreço, nos termos da cláusula 13ª das Condições Gerais do contrato.
10. Nos termos da referida cláusula 13.ª, sob a epígrafe “Resolução”:
“Um – O Contrato poderá ser resolvido por qualquer das partes com fundamento no incumprimento das obrigações que assistam à outra parte.
(…)
Seis – Sendo o contrato resolvido nos termos deste artigo, o Locatário continuará
vinculado às suas obrigações e deverá abandonar de imediato e devoluto o imóvel.”
11. A Requerida não procedeu à restituição do imóvel.
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Nos termos do art.º 607.º/4 do CPC, aplicável ex vi art.º 663.º/2, considera-se ainda assente:
12. Consta da certidão permanente junta aos autos, a fls. 99 e 100, subscrita em 3 de abril de 2018, referente à Requerida “BB – …, UNIPESSOAL LDA”, com sede em Edifício …, Apartamento …, n.º …, Sesimbra, que pela Ap. …/20141217 foi registada na Conservatória de Registo Comercial de Lisboa a “Dissolução e Encerramento da Liquidação”, tendo sido registada na mesma data, pela Inscrição 3, o “Cancelamento da Matrícula”.
13. Consta ainda dessa certidão que CC (ora recorrente) é titular único da quota de € 15 000,00 e seu gerente.
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2. O Direito.
A questão essencial a decidir consiste em saber se a Requerida tem personalidade judiciária e, na negativa, qual a respetiva consequência jurídico processual.
Defende o recorrente que nos termos do artigo 160º do Código das Sociedades Comerciais a sociedade Requerida encontra-se extinta desde a data da sua dissolução e encerramento, ou seja, desde 17 de dezembro de 2014, pelo que deixou de ter personalidade jurídica e personalidade judiciária, devendo ser absolvida da instância, por não ser sanável essa exceção dilatória.
E sustenta a recorrida desconhecer até à data a extinção da Requerida, sendo evidente a falta de capacidade judiciária desta, mas que pode ser sanada, fazendo uma interpretação analógica do art.º 162º do CSC, que refere a sua aplicação para ações pendentes, o que efetivamente é o caso, pois a extinção da Requerida apenas foi conhecida com as alegações de recurso, pois a lei não previu situações similares às dos autos.
Vejamos, pois, de que lado está a razão.
Prescreve o art.º 5.º do Código das Sociedades Comerciais (doravante, CSC), que “As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras”.
Nos termos desta disposição legal as sociedades comerciais gozam de personalidade jurídica e existem, como tais, desde a data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem.
Assim, o próprio contrato pelo qual se constitui a sociedade, para além de respeitar a forma legalmente estabelecida, está sujeito a registo comercial, o qual é obrigatório, e destina-se a dar publicidade à situação jurídica das sociedades comerciais, tendo em vista a segurança do comércio jurídico, a requerer no prazo de dois meses após a sua constituição - art.ºs 1.º e 3/1, al. a), e 15.º/2 do C. Registo Comercial. A obrigatoriedade de registo do contrato de sociedade comercial decorre também do art.º 18.º, n.º5, do C. S. C.
Ao ato constitutivo de sociedade, ainda que não registado, é aplicável o disposto no Código das Sociedades Comerciais, nos termos do art.º 13.º/2 do C. Registo Comercial.
A sociedade comercial não registada carece de personalidade jurídica, pois que o registo definitivo do contrato é elemento constitutivo dessa personalidade (artº 5.º do C. S. C.), mas é-lhe reconhecida a personalidade judiciária, por força do disposto no artº 12º, al. d) do C. P. Civil.
E a personalidade jurídica de uma dada sociedade, iniciada com o registo definitivo do contrato pelo qual se constituiu, só finda com a sua extinção, o que ocorre com o registo de encerramento da liquidação.
Com efeito, dispõe o artigo 146.º, n.º 2, do CSC, que a “sociedade em liquidação
mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas
Por sua vez, estipula o artigo 160.º, n.º 2, do mesmo CSC que, “A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação”.
Assim, só após a conclusão da liquidação e elaborado o registo de encerramento desta, cessa a personalidade jurídica da sociedade, passando a considerar-se a mesma extinta.
A sociedade dissolvida entra de imediato em liquidação, devendo os liquidatários requerer o registo do encerramento da liquidação, considerando-se a sociedade extinta pelo registo do encerramento da liquidação, como flui expressamente do art.º 160.º do C. S. C. – cf. Paulo Olavo Cunha, “Direito das Sociedades Comerciais, 6.ª edição, Almedina, pág. 1053.
Segundo este Autor, a liquidação consiste no apuramento da situação patrimonial da sociedade dissolvida, com vista a distribuir os seus bens remanescentes, reembolsando os sócios das suas entradas de capital e, sobrando bens, partilhando entre eles os lucros finais de exploração.
Ora, a sociedade Requerida (BB – …, Unipessoal, Lda.) encontrava-se extinta à data da propositura desta providência cautelar ( 19/10/2017) tendo sido inscrita no registo comercial, em 17 de dezembro de 2014, a sua dissolução e encerramento da liquidação, isto é, a Requerida está extinta desde esta data.
Repare-se que o art.º 162.º do C. S. C. apenas permite que nas ações pendentes em que a sociedade seja parte prosseguem após a sua extinção, mas é substituída nessas ações pela generalidade dos sócios, justamente por a partir dessa data deixarem de ter existência jurídica, perderem a qualidade de pessoa jurídica coletiva – art.º 162.º do C. S. C.
Registado, em 17 de dezembro de 2014, o encerramento da liquidação da sociedade Requerida, considera-se a mesma extinta desde a referida data e, como tal, carecida de personalidade jurídica.
Na verdade, estando a Requerida extinta desde 17 de dezembro de 2014, em 19 de outubro de 2017, data da instauração da presente providência, carece de personalidade jurídica e consequente personalidade judiciária, tratando-se de uma realidade à qual nem o direito processual concede personalidade judiciária – cf. Remédio Marques ”Ação Declarativa à Luz do Código Revisto”, 3.ª edição, pág. 360.
É que com a inscrição no registo do encerramento da dissolução, a sociedade extinta perde a sua personalidade e capacidade judiciárias, mas não se extinguem as relações jurídicas de que era titular, como flui do disposto nos arts.162º, 163º e 164º do C. S. C. – cf. Acórdão do STJ de 26/06/2008, Col. Jur. STJ, T-II, 2008, pág. 140.
A personalidade judiciária é a suscetibilidade de ser parte processual. E só pode ser parte processual quem tiver personalidade judiciária ( art.º 11.º do C. P. Civil).
De acordo com o critério da coincidência, como ensina Teixeira de sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 136 e segs., a personalidade judiciária é concedida a todas as pessoas jurídicas, singulares ou coletivas, e a “todo o ente juridicamente personalizado tem igualmente personalidade judiciária, ativa e ou passiva”.
Assim, “O critério geral fixado na lei para se saber quem tem personalidade judiciária é o da correspondência (coincidência ou equiparação) entre personalidade jurídica (ou capacidade de gozo de direitos) e a personalidade judiciária” – cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, pág. 109/110.
Não sendo reconhecida personalidade jurídica à “Requerida” é óbvio que também carece de personalidade judiciária ( no mesmo sentido, o Acórdão do T. R. de Lisboa, de 05/11/2015, Proc. n.º 1461-13.3TVLSB-A.L1-6 ( Regina Almeida).
Ora, a falta de personalidade judiciária é insanável, salvo nos casos previstos no art.º 14.º do C. P. Civil, razão pela qual não é inaplicável o disposto no seus art.ºs 6.º/2 e 278.º/3.
Posto isto, em termos de pressupostos processuais, há que ter presente que, nos termos do disposto no artigo 11.º do C. P. Civil, só é suscetível de ser parte numa ação, ou seja, só possui personalidade judiciária, a pessoa, singular ou coletiva, que disponha de personalidade jurídica, salvas as exceções previstas no artigo 12.º do mesmo código.
Resumindo, não tendo a sociedade Requerida personalidade jurídica desde 17/12/2014 (data da sua extinção), não tem, de igual modo, personalidade judiciária (artigo 11.º do C. P. Civil), pois que não estamos, no caso em presença, perante qualquer uma das exceções previstas no já referido artigo 12.º.
E a falta de personalidade judiciária não é passível de sanação, tal como resulta do disposto no artigo 14.º do C. P. Civil, a contrário.
No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/7/2017, proc. n.º 78408/13.7YIPRT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, afirmando: “Julgando-se não ter a ré personalidade judiciária e não sendo possível a respetiva sanação, a par da absolvição da instância da mesma deve ser ordenado o desentranhamento da contestação que deduziu”.
Assim também decidiu este coletivo em Acórdão de 9/2/2017, proferido na Apelação n.º 598/15.9T8OLH.E1, em caso idêntico ao dos presentes autos, e onde se exarou:
Carece de personalidade jurídica e consequente personalidade judiciária a sociedade comercial extinta, não podendo, por isso, demandar ou ser demandada.
Neste caso a falta de personalidade judiciária constitui exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, e determina a absolvição dos réus da instância – art.ºs 577.º, al. c), e 278.º, n.º 1, alínea c) e 3, do C. P. Civil”.
A falta de personalidade judiciária constitui, pois, exceção dilatória (artigo 577.º, al. c), do C. P. Civil) insuprível, de conhecimento oficioso (artigo 578.º do C. P. Civil), que determina a absolvição do réu da instância (artigo 278.º, n.º 1, alínea c), do C. P. Civil).
Com efeito, contrariamente ao defendido pelo recorrido, não há que fazer qualquer interpretação analógica ao art.º 162.º do CSC, cujo âmbito de aplicação abrange apenas as ações pendentes em que a sociedade seja parte e venha a ser declarada extinta na pendência dessas ações, desde logo por inexistir qualquer lacuna na lei, a qual prevê expressamente que as ações propostas contra quem não tem personalidade judiciária fica submetida ao regime do art.º 278.º/1, al. c), do C. P. Civil, regime diverso daquele, e, por outro lado, por inexistir qualquer analogia, por não procederem as razões justificativas da regulamentação do caso previsto no art.º 162.º do CSC, ou, como ensina Oliveira Ascensão, “O Direito”, 7.ª Edição, pág. 435, “Não basta uma semelhança de descrição exterior da situação: é necessário que haja semelhança sob o ponto de vista daquele efeito jurídico”.
Acresce que a norma do art.º 162.º do CSC tem natureza excecional [1] face ao regime regra contido na alínea c) do n.º1 do art.º 278.º do C. P. Civil, o que afasta o recurso a esse instituto, como flui expressamente do art.º11.º do C. Civil.
Finalmente importa sublinhar que a questão da falta ou nulidade de citação da Requerida não se coloca, já que não poderá ser citada realidade sem existência jurídica.
Concluindo, por falta de personalidade judiciária da Requerida, à data da propositura da providência, impõe a sua absolvição da instância.
Procede, pois, a apelação.
Vencido no recurso suportará o Requerente/recorrido as custas respetivas, atenta a falta de personalidade jurídica e judiciária da entidade indicada como Requerida – art.º 527.º/1 do C. P. C.
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IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. A sociedade comercial dissolvida entra de imediato em liquidação, devendo os liquidatários requerer o registo do encerramento da liquidação, considerando-se a sociedade extinta pelo registo do encerramento da liquidação – art.º 160.º do C. S. C.
2. O regime previsto no art.º 162.º do CSC abrange apenas as ações pendentes em que a sociedade seja parte e venha a ser declarada extinta durante a pendência dessas ações.
3. Carecendo a Requerida de personalidade jurídica e consequente personalidade judiciária, não pode ser demandada.
4. Neste caso, a falta de personalidade judiciária constitui exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, e determina a absolvição da Requerida da instância – art.ºs 577.º, al. c), e 278.º, n.º 1, alínea c) e 3, do C. P. Civil.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida, absolvendo a Requerida da instância, por falta de personalidade judiciária, nos termos do 278.º, n.º 1, alínea c), do C. P. Civil.
Custas da apelação a cargo do Requerente/recorrido.

Évora, 2018/05/24
Tomé Ramião
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro


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[1] “As normas excecionais são normas que, regulando um sector restrito de relações com uma configuração especial, consagram para o efeito uma disciplina oposta à que vigora para o comum das relações do mesmo tipo, fundadas em razões especiais, privativas daquele setor de relações” – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Noções Fundamentais do Direito Civil”, 1.º, 6.ª edição, pág. 76.