Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
745/10.7PALGS.E1
Relator: ANTÓNIO CLEMENTE LIMA
Descritores: FURTO DO USO
ABUSO DE CONFIANÇA
Data do Acordão: 01/08/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: O crime de furto de uso de veículo, p. e p. pelo art. 208.º do CP, não abrange o mero abuso de uso, por não se verificar, designadamente, usurpação ilegítima.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 745/10.7PALGS.E1
Reg. 908

Acordam, precedendo conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – RELATÓRIO

1 – Incidências processuais relevantes – Decisão recorrida

Nos autos em referência, o arguido, A, acusado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO e demandado pela assistente, B, precedendo contestação, foi submetido a julgamento, em processo comum.

Em audiência de julgamento, (i) o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido decidiu, quanto ao pedido de indemnização civil, remeter as partes para os meios comuns, e, (ii) em sequência, por sentença de 26 de Março de 2012, o Mm.º Juiz decidiu julgar a acusação improcedente e absolver o arguido do crime de furto de uso de que vinha acusado.

2 – Recurso

A assistente interpôs recurso daquela sentença.

Extrai da motivação as seguintes conclusões:

«I. Existe contradição insanável. O facto não provado é incompatível com os factos provados em 3, 4, 5, 6, 7 e 8. O arguido face à matéria provada não só sabia que a sua era proibida, como penalmente punível. Efectivamente sabia que ao usar o carro fazia-o contra a vontade expressa do seu dono, tendo apenas deixado de o usar quando o veiculo foi apreendida pela GNR.
II. Qualquer homem médio na situação do arguido sabe que a sua actuação é proibida e penalmente punível, quando decide de forma livre, voluntária e consciente (8) , usar uma viatura, que não é sua (l), contra a vontade do proprietário( 4,5 e 6), continuando a faze-¬lo depois de ter sido interpelado para a entregar ( 2, 4, 5 e 6) e cuja actuação só termina com a apreensão do veiculo pela GNR (5) .
III. Face à matéria dada por provada, resulta claro que o arguido cometeu o crime de abuso de confiança p.p. no art° 205 do C.P., pois na verdade, o arguido ilegitimamente apropriou-se de coisa móvel que lhe foi sido entregue por título não translativo da propriedade. A sua conduta é punível criminalmente.
IV. O arguido sabia que a sua actuação era ilícita por ir contra a vontade da legítima proprietária do veículo, a qual lhe havia emprestado e posteriormente lhe solicitara a devolução.
V. O abuso de confiança consuma-se com a manifestação externa do acto de apropriação (...) Uma das mais frequentes e também mais concludentes - manifestações externas de apropriação é constituída pela recusa de restituição da coisa. O arguido ao recusar entregar a viatura, apropriou-se dela.
VI. Face à matéria dada por provada, deveria o Mtº Juiz a quo ter constatado que a mesma integrava o crime de abuso de confiança p.p. pelo artigo 205° do C.P. devendo prosseguir a decisão nesse sentido.
VII. Assim, constatando-se que os factos integravam objectiva e subjectivamente o crime de abuso de confiança, deveria o Mtº Juiz ter dado cumprimento ao 358°, nº3 do CPP, uma vez que havia alteração não substancial dos factos.
VIII. Aqui chegados, e após ter dado cumprimento ao 358°, nº3 do CPP, o Mtº Juiz deveria ter proferido sentença condenatória, apreciando o pedido de indemnização civil, em vez de remeter as partes para acção cível.
IX. Foram violados os artigos 205° CP e artigo 358° e 410° do CPP. Nos termos do artigo 343, n.º 1 do CPP, requer-se que as alegações sejam produzidas por escrito.
Termos em que se invocando o Douto Suprimento do Venerando Tribunal, deverá a Douta Sentença ser revogada e substituída por outra que tenha me consideração as questões que ora se suscitam.»

3 – Respostas ao recurso

A Dg,ª Magistrada do Ministério Público no Tribunal a quo respondeu, defendendo que o recurso não merece provimento.

Extrai da minuta as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto pela Assistente/recorrente da Sentença de fIs. 339 a 349 que absolveu o arguido A, pela prática de um crime de furto de uso de veículo p. e p. pelo disposto no artigo 208, n° 1 do Código Penal, alegando em síntese que existe contradição insanável entre o acervo factual considerado como provado e o facto levado aos factos não provados e que a Sentença, em crise, incorreu em erro notório na apreciação da prova.
2. Sucede que o vício da contradição insanável entre factos provados e não provados, que a Assistente vem invocar, não consubstancia nenhum dos fundamentos de recurso elencado no n. °2 do artigo 410° do Código de Processo Penal.
3. Na verdade, e no que concerne à contradição insanável susceptível de consubstanciar fundamento de recurso, apenas a existente na própria fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão podem conduzir à declaração da nulidade da sentença, conforme preceitua o n.º 2 alínea b) do citado preceito, sendo essa contradição insusceptível de conduzir à declaração de nulidade da Sentença ora em crise.
4. Face ao exposto, considera o Ministério Público não assistir razão à Assistente/Recorrente devendo, nesta parte, ser o recurso julgado improcedente.
5. Pese embora, não tenha expressamente invocado a existência do vício de erro notório da apreciação da prova, outra não pode ser a conclusão a extrair das alegações e conclusões de Recurso da Assistente.
6. Na realidade, retira-se das conclusões de recurso da Assistente, que o Tribunal a quo, face à prova produzida, teria necessariamente que extrair a consequência do preenchimento do tipo objectivo e subjectivo do crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205 0 do Código Penal e, ao invés, absolveu o arguido da prática do crime de furto de uso de veículo, pelo qual vinha acusado, p. e p. pelo artigo 208º do mesmo diploma legal.
7. Assim, dúvidas não restam que o se pretende, é imputar à Sentença, ora em crise, o vício previsto no artigo 410°, n. °2, alínea c) do Código de Processo Penal, ou seja, erro notório na apreciação da prova.
8. Sucede que, face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, consideramos que se impunha, de facto, a absolvição do arguido e não a sua condenação.
9. A apropriação por parte do arguido não ocorreu de forma ilegítima. Na verdade, foi a própria Assistente, aqui Recorrente, que investiu o arguido na posse autorizada da utilização do veículo, ou seja, em nosso entendimento, o veículo entra na esfera de posse do arguido de forma lícita e autorizada, não tendo em momento algum, do julgamento resultado provado que o arguido, com a sua actuação, pretendia inverter o título da posse.
10. Assim, bem andou o Mm.º Juiz a quo quando extraiu a conclusão de que os factos praticados pelo arguido se reconduzem a um abuso do uso, ou seja, que a actuação do arguido excedeu os limites da autorização que inicialmente lhe foi conferida pela Assistente.
11. Mas, mais. Sempre se dirá que a utilização dada pelo arguido ao veículo da Assistente se manteve sempre dentro dos limites da actuação para a qual a Assistente o tinha autorizado, ou seja, para a circulação. Pretendeu o arguido, conforme ficou assente na matéria provada na Sentença, continuar a utilizar o veículo em seu benefício e proveito próprios, mas não que pretendeu fazer seu o veículo em causa nos autos, conforme invoca a Assistente.
12. Não se logrou fazer prova de que o arguido queria apropriar-se do veículo, ou seja, de que pretendia fazer sua a coisa que lhe havia sido entregue, a título de empréstimo, pela própria Assistente.
13. Consideramos deste modo, que a Sentença ora em crise, não merece qualquer reparo, pelo que deve o recurso ser julgado improcedente.»

O arguido respondeu também ao recurso, sem extractar conclusões da minuta, defendendo que o mesmo deve ser julgado improcedente.

4 – Admissão do recurso

O recurso foi recebido, por despacho de 6 de Julho de 2012.

5 – Visto – Parecer

Nesta instância, o Dg.º Magistrado do Ministério Público, louvado na resposta, é de parecer que o recurso não merece provimento.

6 – Objecto do recurso – Questões a examinar

O objecto do recurso, afora as questões cujo conhecimento de impõe ex officio, é definido e demarcado pelo teor das conclusões que o recorrente extracta da respectiva minuta – artigo 412.º, do Código de Processo Penal (CPP).

Assim, no caso, cabe fazer exame das questões suscitadas pela recorrente: (i) de saber se a sentença recorrida padece do vício de «contradição insanável», previsto no artigo 410.º n.º 2, alínea b), do CPP; (ii) de saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de jure, no ponto em que deixou de subsumir os factos apurados no tipo de abuso de confiança, previsto no artigo 205.º, do CP.

II – FUNDAMENTAÇÃO

7 – Do julgamento sobre a matéria de facto, em 1.ª instância

Importa, antes de mais, ter presentes os factos, tal como julgados no Tribunal a quo.

7.1 – Factos julgados provados

«1. Em data não exactamente apurada do mês de Setembro de 2010, o arguido A pediu a B, à data sua namorada, que a mesma lhe emprestasse o veículo automóvel com a matrícula 45-03-¬PU, que se encontrava estacionado perto da residência desta sita mp Beco do Cemitério, n.º 4, R/c Dt.°, em Lagos.
2. A B, que não tinha, à data, carta de condução, emprestou o seu automóvel ao arguido A, o qual o passou a utilizar.
3. Em data não exactamente apurada do mês de Outubro de 2010, a relação existente entre B e o arguido A terminou, momento em que este pediu a A que o mesmo lhe devolvesse o automóvel.
4. Apesar desse pedido de B, o arguido A não lhe devolveu o automóvel de que a mesma era proprietária, continuando a utilizá-lo em proveito próprio.
5. A utilização não autorizada do automóvel pelo arguido A durou até ao momento em que o veículo foi apreendido, o que aconteceu no dia 16 de Novembro de 2010, tendo o mesmo sido entregue a B no dia 14 de Janeiro de 2010.
6. No período compreendido entre o mês de Outubro e o dia 16 de Novembro de 2010, o arguido A utilizou o automóvel pertencente a B, contra a vontade desta.
7. O arguido agiu com o propósito, concretizado, de circular com o referido veículo, não obstante soubesse que o mesmo não lhe pertencia e que actuava sem autorização e contra a vontade da sua proprietária.
8. O arguido agiu como agiu, de forma livre, voluntária e conscientemente.»

7.2 – Factos julgados não provados

«Não se provou que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e penalmente punível, nem se provaram quaisquer outros factos susceptíveis de influir na decisão na causa ou com relevância para a mesma.»

7.3 – Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto

«A fixação dos factos provados e não provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e da livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma, partindo das regras da experiência, assim como da prova escrita e oral que foi produzida, aferindo-se quanto a esta o conhecimento de causa e isenção dos depoimentos prestados, conforme se passa a explicitar.
ln concretu, esteou a afirmação do núcleo fáctico do libelo acusatório, as declarações prestadas pela Assistente e demais testemunhas inquiridas, concatenadas com os documentos juntos aos autos.
A Assistente, de modo seguro e credível não deixou de descrever em audiência as condições em que entregou o veículo ao arguido, para que este o usasse, dando igualmente conta do momento em que deixou de consentir em tal utilização e lhe pediu a restituição do veículo.
Foi secundada, na parte em que o arguido não restituiu o veículo, pelo depoimento prestado por C que, como tal, se fixou.
Conjugados tais depoimentos, com o teor do auto de apreensão constante do processo, apreciados de harmonia com as regras da experiência, logrou o Tribunal fixar a vontade do arguido, compatível que é com os demais elementos objectivos apurados.
Por banda dos factos não provados, genericamente, pode-se dizer que a prova produzida em audiência foi, ou impeditiva da sua afirmação ou insuficiente em ordem a sustentá-la, assim se impondo reconduzir tal matéria à factualidade não provada.
Com especial acuidade, o imputado facto de o arguido saber a sua conduta proibida e punida por lei.
Ao diante, se verá que o não é, pelo que pela natureza das coisas, nunca tal facto poderia ser dado por provado.»

8 – Apreciação

Como acima se deixou editado, impõe-se apreciar e decidir as duas questões, suscitadas pela recorrente, (i) de saber se a sentença recorrida padece do vício de «contradição insanável», previsto no artigo 410.º n.º 2, alínea b), do CPP; (ii) de saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de jure, no ponto em que deixou de subsumir os factos apurados no tipo de abuso de confiança, previsto no artigo 205.º, do CP.

8.1 – Dos vícios da decisão

Ainda que a recorrente situe a dissidência relativamente à decisão da instância na invocação de um vício da decisão, não reportando um erro de julgamento, a questão estará, antes, na consideração subsuntiva dos factos ao tipo-de-ilícito em presença.

Vejamos.

8.1.1 – Da contradição insanável

Defende a recorrente, neste particular, que o julgamento, como não provada, da materialidade acima alinhada, é contraditório com o julgamento, como provados, dos factos como tal arrolados em 3 a 8.

E assim, na medida em que «qualquer homem médio na situação do arguido sabe que a sua actuação é proibida e penalmente punível, quando decide de forma livre, voluntária e consciente (8), usar uma viatura, que não é sua (1), contra a vontade do proprietário (4, 5 e 6), continuando a fazê-lo depois de ter sido interpelado para a entregar (2, 4, 5 e 6) e cuja actuação só termina com a apreensão do veiculo pela GNR (5)».

A tanto se opõem a Dg.ª respondente e o arguido, significando que o alegado não consubstancia o vício invocado, porquanto «apenas a existente na própria fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão podem conduzir à declaração da nulidade da sentença, conforme preceitua o n.º 2 alínea b) do citado preceito, sendo essa contradição insusceptível de conduzir à declaração de nulidade da Sentença ora em crise».

Vejamos.

O vício da decisão invocado, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, tal como prevenido na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, respeita a uma «incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação probatória e a decisão».

Na síntese inarredável de Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, «há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente» - «Recursos Penais», Rei dos Livros, 8.ª edição, Lisboa, 2011, pág. 77.

Afigura-se, no caso que a decisão revidenda, por si ou com recurso às regras da experiência comum, não revela o pretextado vício.

E assim, na medida em que se não figura contraditório nem reciprocamente excludente dizer que o arguido não estava ciente de que era proibido e lhe estava vedado continuar a circular com um veículo automóvel que a assistente, em tempo de namoro entre ambos, lhe havia emprestado, já depois da ruptura de tal relacionamento.

Com efeito, conceda-se, ao investir o arguido na posse do referido veículo, foi a própria assistente quem despoletou uma inércia, relativamente ao uso daquele, inércia de que, comprovadamente e (à luz dos factos, visto o pedido de devolução) o arguido, sem cuidado nem remorso, se aproveitou.

Termos em que se não poderá concluir, como se pretexta, que a comprovada continuação do uso do bem emprestado (mesmo em abuso, vista a interpelação, por parte da assistente, para que o arguido lhe devolvesse a viatura) seja contraditória com o improvado conhecimento, por parte do arguido de «que a sua conduta era proibida e penalmente punível».

Acresce dizer, ex officio e muito em síntese, que, do texto e na economia da sentença recorrida, se não verifica qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º n.º 2, do CPP.

Investigada que foi a materialidade sob julgamento, (i) não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, (ii) não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos provados ou entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, (iii) não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.

Termos em que, nesta parcela, o recurso não pode lograr provimento.

8.1.2 – Do crime de furto de uso de veículo – Tipo objectivo de ilícito – Subtracção – Punibilidade do abuso de uso

O arguido vinha acusado pela prática de um crime de furto de uso de veículo, previsto e punível, nos termos do disposto no artigo 208.º, do CP, no segmento que aqui importa, nos seguintes termos:

«quem utilizar automóvel […], sem autorização de quem de direito, é punido com pena […]».

Como sublinha José de Faria Costa (no «Comentário Conimbricense do Código Penal», Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 134), «dentro do universo vasto e complexo da patrimonialidade entendeu-se por bem fazer sobressair, aqui, a protecção do mero uso».

E adianta (pág. 134, § 1):

«Mas não de todo e qualquer uso indevido ou ilegítimo, isto é, não sustentado em uma autorização de quem de direito, não apoiado em um qualquer título».

E sublinha (pág. 139, § 12):

«E se quem autoriza – perguntemo-nos – limitar o uso do veículo a um determinado fim ou a um certo período temporal, cometerão o crime em apreço todos os que violarem os limites daquela precisa autorização? Estamos convictos de que a resposta outra não pode ser que negativa […]. Admitir-se neste quadro a punição do agente seria pressupor como punível, penalmente punível, o abuso do uso. O que o legislador quis foi considerar penalmente punível o furtum usus. Por outras palavras: aquele quis proteger o uso, não em todas as suas manifestações ou refracções, mas sim defender aquela particular situação juridicamente relevante (o uso) de uma forma particular de ataque: da sua usurpação ilegítima. Pensar-se punir as situações de abuso de uso seria, em nosso juízo, um intolerável e a nenhum título fundamentado alargamento das margens da punibilidade […]

A doutrina assim enunciada, em que nos revemos, ainda que congraçando o apoio da pluralidade da doutrina e da jurisprudência, não está isenta de controvérsia.

Ressaltam-se, com vénia, as inarredáveis considerações de José António Barreiros [em «Crimes contra o Património», Universidade Lusíada, 1996, pp. 125-134 (127)], no ponto em que distingue a subtracção para uso, o abuso de uso e o excesso de uso, incluindo os casos de abuso de uso na previsão do artigo 208.º, do CP, em vista, designadamente em vista da literalidade da norma que, na letra como no espírito, não exigirá o acto de subtracção, bastando-se com a mera utilização.

Sem embargo, tais considerações tiveram réplica em Teresa Pizarro Beleza e Frederico Lacerda da Costa Pinto (em «A tutela penal do património após a revisão do Código Penal», Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1998, pp. 67/68), concluindo «que se deve entender a acção típica “utilizar” no sentido de “usar para a sua finalidade funcional”, isto é, a condução, limitando o tipo aos casos em que o agente “subtraiu o veículo para usar” e efectivamente o fez.

No mesmo sentido, Frederico Lacerda da Costa Pinto, «Furto de Uso de Veículo – Contributo para o estudo do artigo 304.º do Código Penal», AAFDL, 1987, pp. 45 e segs.

Veja-se ainda, a respeito, Paulo Pinto de Albuquerque (no «Comentário do Código Penal», Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, pág. 574, nota 10):

«O uso abusivo do veículo não é crime de furto de uso. Isto é, não comete o crime de furto de uso o agente que, estando autorizado a utilizar o veículo dentro de certas condições estabelecidas pelo legítimo proprietário ou possuidor, o utiliza sem respeito por essa condições, por exemplo, para além do período temporal do empréstimo».

Reportam-se ainda, com particular interesse, até ao presente, de Carlos Codeço, «O Furto no Código Penal e no Projecto», Athena Editora, 1981, e o estudo de Paulo Saragoça da Matta, «Subtracção de Coisa Móvel Alheia – os efeitos do admirável mundo novo num crime ‘clássico’», no «Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 993-1032.

Na jurisprudência, para além dos citados, seja na sentença recorrida, seja no recurso e nas respectivas respostas, vejam-se ainda, por mais recentes e significativos, os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Março de 2003 (Proc. 03P2727), e, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26 de Janeiro de 2011 (Proc. 152/09.4GDCBR.C1), e de 29 de Fevereiro de 2012 (Proc. 482/10.2PAVFR.C1), disponíveis em www.dgsi.pt.

Com o abono de tais doutrina e jurisprudência, pode pois concluir-se que, conhecido o princípio do mínimo de intervenção da sanção penal, dito da sanção penal com a função de ultima ratio, o artigo 208.º, do CP, não levou a protecção do uso do veículo ao ponto de alcançar, na sua previsão normativa, o abuso de uso, em que se não verifica, designadamente, uma usurpação ilegítima.

Revertendo ao caso e ao recurso sub inde, tem de concluir-se que, à míngua da factos bastante e, designadamente, em vista da comprovada inverificação da falada usurpação ilegítima, pelo arguido, do veículo da assistente, aquele não podia deixar de ser absolvido, como foi, do crime de que vina acusado, de furto de uso de veículo, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto no artigo 208.º n.º 1, do CP.

Termos em que, nesta fracção, o recurso da assistente não pode lograr provimento.

8.2 – Do crime de abuso de confiança

Defende a recorrente, neste particular, que os factos que o Tribunal recorrido julgou provados consubstanciavam a autoria material, pelo arguido, de um crime de abuso de confiança, p. e p. nos termos do disposto no artigo 205.º, do CP.

E assim, na medida em que «resulta da matéria provada que o arguido ilegitimamente se apropriou de coisa móvel que lhe tenha [tinha] sido entregue por título não translativo de propriedade».

Mais alega que, isto constatado, o Tribunal devia ter lançado mão do disposto no artigo 358.º n.º 3, do CPP, e condenado o arguido pela prática deste crime.

Afigura-se, sem desdouro para o douto argumentário trazido pela recorrente, que os factos julgados provados na instância não consentem a pretendida subsunção.

E assim, por um lado, tendo presente o disposto no invocado artigo 205.º, do CP, no plano do tipo objectivo de ilícito, na medida em que não resultou sedimentada materialidade de facto que consinta ter como presente a indispensável «apropriação», uma apropriação qua tale, referenciada por Eduardo Correia (na Revista de Legislação e Jurisprudência, 90.º, 36) e lembrada, como a teoria «do acto manifesto de apropriação», por Jorge de Figueiredo Dias (no «Comentário Conimbricense do Código Penal», Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 103, § 22), na medida em que se não provou que o arguido, que recebeu o veículo da assistente uti alieno, haja posteriormente passado a comportar-se, relativamente a ele, uti dominus.

No caso, tanto quanto se deixou assente, o arguido nunca ultrapassou as fronteiras do uso do veículo da assistente, para passar a comportar-se como dono do mesmo.

De par, e na presença de um «crime de congruência total» (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 107, § 31), também no plano do tipo subjectivo de ilícito, se não verifica provado o indispensável dolo relativamente à totalidade dos elementos do tipo objectivo de ilícito.

Por que assim, e deixando precludida a questão atinente à comutação prevenida no artigo 358.º, do CPP, não podia o Tribunal a quo, na ausência de prova dos elementos típicos do crime acusado, de furto de uso de veículo, aportar à respectiva apreciação e decisão um crime outro, de abuso de confiança.

Termos em que, também neste segmento, o recurso não possa lograr provimento.

9 – Responsabilidade tributária

Em vista do disposto no artigo 515.º n.º 1, alínea b), do CPP, e do decaimento no recurso, cumpre condenar a assistente recorrente em taxa de justiça, a fixar por referência à complexidade da causa, nos termos prevenidos no artigo 8.º n.º 5 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.

III – DISPOSITIVO

10 – Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: (a) negar provimento ao recurso interposto pela assistente B; (b) condenar a assistente recorrente na taxa de justiça que se fixa em 3 (três) unidades de conta.

Évora, 8 de Janeiro de 2013

António Manuel Clemente Lima (relator) – Alberto João Borges (adjunto)