Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
103/12.9YREVR
Relator: ANTÓNIO M. RIBEIRO CARDOSO
Descritores: TRIBUNAL COMPETENTE
IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
Data do Acordão: 12/06/2012
Votação: DECISÃO DO VICE-PRESIDENTE
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO
Sumário:
1 - A competência para a acção de impugnação de paternidade quer seja intentada pelo MºPº nos termos do art. 1841º do CC, precedida da averiguação prévia da viabilidade, quer seja intentada pelo marido da mãe, por esta ou pelo filho, nos termos do art. 1839º do CC, cabe aos tribunais de competência genérica, aos juízos de competência especializada cível, ou às varas cíveis (ou mistas), consoante o caso e não ao tribunal de família.
2 – A competência atribuída aos tribunais de família no art. 82º. nº 1, al. j) da LOFTJ refere-se apenas às acções prévias para averiguação da viabilidade das acções de investigação de maternidade, de paternidade ou para impugnação da paternidade presumida.
Decisão Texto Integral:
M…, requereu a resolução do conflito negativo de competência surgido entre o 2º JUÍZO DO TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES e a VARA DE COMPETÊNCIA MISTA, ambos da comarca de Setúbal, os quais, do mesmo passo que declinam a competência respectiva, mutuamente a atribuem para a tramitação dos autos de impugnação da paternidade que intentara contra I…, F… e A…, pedindo que o tribunal declare que os dois últimos não são seus filhos.
O processo foi instruído com certidão daqueles autos e, nomeadamente, dos despachos judiciais em conflito, com nota do respectivo trânsito em julgado.
O presente pedido de resolução do conflito foi intentado com observância da tramitação estabelecida nos arts. 115º e segs. do Código de Processo Civil.
Ouvidas as partes e o MºPº, nos termos do art. 117º-A, pronunciou-se o MºPº, em seu douto parecer, no sentido do deferimento da competência À Vara de Competência Mista.

Vejamos então.

Estão certificados nos autos os seguintes factos:
- No dia 25.10.2011 o ora requerente M… intentou na vara de competência mista da comarca de Setúbal acção contra I…, F… e A…, na qual formulou o seguinte pedido:
«A) Declarar o Tribunal, para todos os efeitos legais, que F…, nascida no dia 16 de Dezembro de 1967, na freguesia de Santa Luzia, concelho de Ourique, conforme assento de nascimento n.º…, lavrado em 13/0111968 na Conservatória do Registo Civil de Ourique, actualmente, após informatização, assento de nascimento n.º… da mesma Conservatória e Augusto Alexandre dos Santos, nascido no dia 4 de Maio de 1970, na freguesia de Cereal, concelho de Santiago do Cacém, conforme assento de nascimento n.º… lavrado em 3 de Junho de 1970 na Conservatória do Registo Civil de Santiago do Cacém, actualmente, após informatização, assento de nascimento n.º… da mesma Conservatória, não são filhos do aqui Autor, M…, nem têm por avoenga paterna J…. Consequentemente,
B) Deve ser ordenado o cancelamento nos indicados assentos de nascimento da paternidade que aí lhes é atribuída.»
- No dia 27.10.2011 foi na referida acção preferido o seguinte despacho:
«Nos presentes autos de acção declarativa de investigação de paternidade na forma ordinária em que é autor M… e réus I…, F… e A…, peticiona aquele que, pela procedência da acção, se declare que os referidos réus F… e A… não são seus filhos, devendo esses factos determinar os devidos cancelamentos perante o registo civil.
Cumpre apreciar liminarmente a presente pretensão.
Resulta do disposto no artigo 82.° n.º 1 al. j) da Lei nº. 3/99, de 13 de Janeiro, que compete aos tribunais de família proceder à averiguação oficiosa de maternidade, de paternidade ou para impugnação da paternidade presumida.
Decorre deste preceito que o presente tribunal é incompetente em razão da matéria que constitui o tema a decidir nos presentes autos.
Assim, essa incompetência material deste tribunal para conhecimento do mérito da presente acção constituí uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito da causa, que dá lugar à absolvição da instância - artigos 101.°, 105.º, 494.º alínea a), 495.° e 493.°, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, declaro o presente tribunal incompetente para conhecer, em razão da matéria, do pedido deduzido pelo autor M… contra os réus I… F… e A…, e, em consequência, indefere-se liminarmente a presente acção. Custas pelo autor. Notifique e registe.»
- Esta decisão transitou em julgado no dia 12.12.2011.
- Perante esta decisão, no dia 17.11.2011 o ora requerente M… intentou, desta feita, no 2º juízo do Tribunal de Família e Menores de Setúbal, nova acção contra os mesmos RR. na qual formulou idêntico pedido, juntando cópia da decisão referida proferida pela Vara Mista.
- Após ter sido ordenada a citação dos RR e ouvido o Mº Pº, foi proferido o seguinte despacho:
«M… instaurou a presente ação declarativa contra I…, F… e A…, pedindo que o tribunal declare que os dois últimos não são seus filhos.
Ora, de acordo com o previsto no artigo 82°, no 1, aI. j) da Lei no 3/99, de 13/01, compete aos tribunais de família "Proceder à averiguação oficiosa de maternidade, maternidade, de paternidade ou para impugnação da paternidade presumida." - o que não é manifestamente o caso.
Com efeito, tal como esclarece Tomé Ramião em "Organização Tutelar de Menores Anotada e Menores Anotada e Comentada", "Os Tribunais de Família e de Menores são incompetentes, em razão da matéria, para conhecer das acções de investigação de maternidade ou paternidade ou de impugnação de paternidade presumida, e apenas têm competência para as acções de averiguação oficiosa de maternidade (artigo 1808°, no 1 e 2 do CC), da paternidade (artigos 18640 e 18650, no 1 e 2 do CC) ou para impugnação da paternidade presumida (artigos 1838° e ss. do CC), como decorre do artigo 82°, no 1, al. j) da LOTJ e artigos 146°, ai. j) e 202° da OTM, acções e acções estas que visam o reconhecimento judicial da viabilidade dessas acções a propor.
Isto é, estes tribunais apenas têm competência material para as acções de averiguação oficiosa, e não para as acções de investigação de maternidade ou paternidade ou de impugnação de paternidade presumida, acções estas que dependem do reconhecimento judicial da sua viabilidade.
Para essas acções são competentes os tribunais comuns e não os tribunais de família. “ (5ª ed., p. 167)
Tendo, pois, em conta o exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 101º, 102º, nº 1, 105º, nº 1, 493º, nº 2, 494º, al. a) e 495º do CPC, declaro este tribunal incompetente em razão da matéria e, em consequência, decido absolver os Réus da instância, sem prejuízo do previsto no artigo 105º, no 2 do CPC.
Custas pelo Autor, no mínimo legal.
Registe e notifique»
- Esta decisão transitou em julgado no dia 10.05.2012.

Decidindo.
Estabelece o art. 82º, nº 1 al. j) da Lei 3/99 de 13/1 (LOFTJ) que compete aos tribunais de família “proceder à averiguação oficiosa de maternidade, de paternidade ou para impugnação da paternidade presumida.
As decisões opostas agora em conflito assentaram em interpretações divergentes desta mesma norma que expressamente invocaram.
A solução da questão passa, por conseguinte, por saber se, no caso, estamos perante uma acção para impugnação da paternidade presumida.
Nos termos do art. 1826º, nº 1 do Código Civil, “presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio tem como pai o marido da mãe”, menção que deve constar obrigatoriamente do registo do filho (art. 1835º, nº 1 do CC) cessando esta presunção, para além dos casos previstos nos arts. 1829º e 1829º do CC, caso a mãe faça “a declaração do nascimento com a indicação de que o filho não é do marido” (art. 1832º, nºs 1 e 2 do CC).
Nos termos do art. 1839º do CC, a paternidade presumida “do filho pode ser impugnada pelo marido da mãe, por esta, pelo filho ou, … pelo Ministério Público“.
A intervenção do MºPº ocorrerá, nos termos do art. 1841º do CC “a requerimento de quem se declarar pai do filho, se for reconhecida pelo tribunal a viabilidade do pedido. O requerimento deve ser dirigido ao tribunal no prazo de sessenta dias a contar da data em que a paternidade do marido da mãe conste do registo, procedendo “o tribunal… às diligências necessárias para averiguar a viabilidade da acção, depois de ouvir, sempre que possível, a mãe e o marido. Se concluir pela viabilidade da acção, o tribunal ordenará a remessa do processo ao agente do Ministério Público junto do tribunal competente para a acção de impugnação”.
É a esta acção de viabilidade prévia para propositura da acção de impugnação da paternidade presumida a ser intentada pelo MºPº junto do tribunal competente para a acção de impugnação e diligências necessárias para o efeito [1], que se reporta o art. 82º, nº 1 al. j) da Lei 3/99 de 13/1 (LOFTJ), e cuja competência é atribuída aos tribunais de família, cabendo a sua iniciativa, na economia do preceito, a quem se declarar pai do filho e a propositura da acção condicionada ao reconhecimento pelo tribunal a viabilidade do pedido [2].
A acção cuja viabilidade foi reconhecida será intentada pelo MºPº junto do tribunal competente para a acção de impugnação, sendo certo que o art. 82º da LOFTJ não atribui aos tribunais de família a competência para as acções de impugnação de paternidade.
Resulta, aliás, de forma clara do art. 1841º, nº 4 (“se concluir pela viabilidade da acção, o tribunal ordenará a remessa do processo ao agente do Ministério Público junto do tribunal competente para a acção de impugnação”) a atribuição da competência a dois tribunais. Ao tribunal de família, por força do art. 82º, nº 1 al. j) da Lei 3/99, a competência para a averiguação oficiosa… para impugnação da paternidade presumida e aos tribunais cíveis (de competência genérica, juízos ou varas cíveis) a competência para a acção de impugnação da paternidade que, eventualmente, se siga [3], acção a que o legislador, no art. 1843, nº 2 se refere como acção de impugnação nos termos gerais.
Aliás, idêntica determinação – remessa ao MºPº junto do tribunal competente - é feita nos arts. 1808º, nº 4 [4] e 1810º [5] do CC, relativamente à averiguação oficiosa da maternidade e no art. 1865º, nº 5 do CC [6], relativamente à averiguação oficiosa da paternidade.
Caso a competência para a acção de investigação de maternidade ou paternidade ou de impugnação da paternidade coubesse aos tribunais de família, não fazia qualquer sentido que o legislador determinasse, como faz nos aludidos preceitos, que se o tribunal de família, após proceder às diligências necessárias concluir pela existência de provas seguras e pela viabilidade da acção, ordenará a remessa do processo ao agente do Ministério Público junto do tribunal competente para a acção de impugnação.
Do referido se conclui que os tribunais de família carecem de competência para a acção de impugnação da paternidade, independentemente de quem a propõe, mesmo no caso de ter havido a acção prévia para averiguação da viabilidade.
Mas no caso a questão é ainda mais clara uma vez que a acção não é proposta pelo MºPº, nem foi precedida da averiguação prévia da respectiva viabilidade.
Não sendo a competência, legal e expressamente atribuída a outro tribunal, cabe a mesma aos tribunais de competência genérica (art. 77º, nº 1, al, a) da LOFTJ), aos juízos de competência especializada cível (art. 94º e 99º da LOFTJ) ou às varas cíveis (ou mistas) (art. 97º da LOFTJ), consoante o caso.
Conclui-se do referido, e outros considerandos não se me afiguram necessários, que a competência para a presente acção de impugnação da paternidade cabe à vara de competência mista e não ao tribunal de família.

Pelo exposto, decidindo o presente conflito, atribuo a competência à Vara de Competência Mista da comarca de Setúbal.
Sem custas.
Évora, 6.12.12
(António Manuel Ribeiro Cardoso)
(Vice-Presidente)
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[1] Veja-se a similitude das diligências a proceder pelo tribunal para efeitos de análise prévia, existentes entre esta acção (art. 1841º, nºs 2 e 3) e a averiguação oficiosa de maternidade (art. 1808º , nºs 2 e 4) e de paternidade (art. 1865º, nºs 1, 2 e 5).
[2] Cfr. neste sentido os acs. da RL de 18.10.2001, in proc. 85848, documento nº RL200110180085848, e de 22.03.2007, in proc. 9505/06-2, ambos in www.dgsi.pt.
[3] Cuja legitimidade activa cabe ao MºPº ou para a acção a intentar, nos termos do art. 1842º, pelo marido, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade; pela mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento; ou pelo filho, até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.
[4] “Se a maternidade não for confirmada mas o tribunal concluir pela existência de provas seguras que abonem a viabilidade da acção de investigação, ordenará a remessa do processo ao agente do Ministério Público junto do tribunal competente, a fim de a acção ser proposta”.
[5] “Se, em consequência do disposto no artigo 1808.º, o tribunal concluir pela existência de provas seguras de que o filho nasceu ou foi concebido na constância do matrimónio da pretensa mãe, ordenará a remessa do processo ao agente do Ministério Público junto do tribunal competente a fim de ser intentada a acção a que se refere o artigo 1822.º; neste caso é aplicável o disposto na alínea b) do artigo anterior.”
[6] “Se o tribunal concluir pela existência de provas seguras da paternidade, ordenará a remessa do processo ao agente do Ministério Público junto do tribunal competente, a fim de ser intentada a acção de investigação”.