Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
13/18.6YREVR
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: RECUSA DE JUÍZ
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECUSA DE JUIZ
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I - No incidente de recusa de juiz não se aprecia a validade dos atos processuais em si mesma, nem a correção de determinados procedimentos adotados no processo pelo Juiz.

II - A lei prevê mecanismos processuais para impugnar as decisões reputadas de “erradas” ou ilegais, não sendo estas, objetivamente, motivo suficiente para fundamentar o pedido de recusa.

III - A não se entender assim, estaria aberto o caminho para, ao mínimo pretexto, como a prática de qualquer irregularidade ou nulidade processual, se contornar o princípio do juiz natural, constitucionalmente consagrado no artigo 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa.

IV - O que deve averiguar-se, no âmbito do pedido de recusa, é se existem ou não atitudes, no processo ou fora dele, significativas e relevantes, que permitam legitimamente desconfiar de uma intervenção objetivamente suspeita do Juiz.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.


1. No âmbito do Processo nº ----/17.4T8PTG, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre (Juízo Local Criminal de Elvas), PC vem suscitar o incidente de recusa de Juiz, nos termos do disposto no artigo 43º, nº 1, do Código de Processo Penal, com os seguintes fundamentos (em síntese):

- A Exmª Juíza proferiu um despacho, datado de 02-11-2017, no qual, erradamente, considerou o ora requerente notificado de um despacho anterior que havia declarado a incompetência do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre para tramitar os autos.

- A Exmª Juíza, erradamente, entendeu que o requerente tinha comunicado a sua morada ao processo, para efeitos de aí poder receber notificações por via postal.

- Ora, o requerente nunca sequer se dirigiu ao processo, ou, nele, prestou alguma declaração.

- A Exmª Juíza, também erradamente, considerou que o ora requerente foi oportunamente notificado para se pronunciar sobre a declaração de incompetência do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre para tramitar os autos, quando, até hoje, o requerente não foi notificado de coisa alguma, nem de nenhum despacho, nem de nenhuma decisão, nem de nenhuma promoção do Ministério Público.

- Por isso, foram intoleravelmente postos em causa os direitos fundamentais do ora requerente, como é o direito de conhecer pessoalmente as decisões que diretamente o afetam.

- Aliás, por esta amostra da conceção do processo por banda da Exmª Juíza, facilmente se advinha qual será a decisão (final) a ser proferida, nos autos, por essa Magistrada Judicial.

- Assim, não dando ao requerente o direito de conhecer as decisões que o afetam, e considerando existirem comunicações de morada que não ocorreram no processo, a Exmª Juíza não assegura, no futuro, as mínimas condições objetivas para se poder supor que julgará o ora requerente com suficiente imparcialidade.

- Caso a Exmª Juíza, que proferiu o despacho em questão, intervenha no julgamento, pode ser considerada suspeita, por existir risco, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

- Pela aparência gerada, pela referência a atos inexistentes nos autos, não estão reunidas as condições que afastem, de todos, o sério e grave receio de parcialidade da Exmª Juíza.

2. Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmº Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que deve ser desatendido o incidente de recusa, pronunciando-se nos seguintes termos: “do cotejo dos autos não resulta qualquer conduta da Mmª Juíza do tribunal a quo, designadamente na prolação do despacho interlocutório que considera aquele tribunal incompetente em razão do território, que, por si só e sem mais, permita alvitrar a desconfiança sobre a imparcialidade da mesma, não se vislumbrando qualquer motivo sério e grave que possa determinar o afastamento da Mmª juíza para se alcançar a almejada verdade material e a realização da justiça”.

3. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Dispõe o artigo 43º, nº 1, do C. P. Penal, que “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

O incidente da recusa apresenta-se, assim, como um expediente que visa impedir a intervenção de um Juiz em determinado processo quando existam razões sérias e graves suscetíveis de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, sendo que esta - a imparcialidade - é uma exigência específica de uma decisão justa, despida de quaisquer preconceitos ou pré-juízos em relação à matéria a decidir ou em relação às pessoas afetadas pela decisão.

A lei não define o que deve entender-se por motivo sério e grave, mas deixa claro que ele terá que ser adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz.

Como bem se refere no Ac. da R.C. de 10-06-1996 (in C.J., 1996, Tomo IV, pág. 63), a gravidade e a seriedade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz só são suscetíveis de conduzir à recusa ou escusa do Juiz quando objetivamente consideradas.

Não definindo a lei o que se considera gravidade e seriedade dos motivos, suscetíveis de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz, será a partir do senso e experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser avaliadas.

Ora, analisando toda a matéria constante do presente incidente de recusa de Juiz, não se vê que, no caso em apreço, haja qualquer motivo sério e grave que possa pôr em causa a imparcialidade da Exmª Juíza titular do processo.

À luz do senso e da experiência comuns, não constitui motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da Exmª Juíza, a apreciação que o requerente faz da forma como tal magistrada fundamentou o despacho em referência, e mesmo a serem verdadeiros (inquestionáveis) os erros (os lapsos, as imprecisões e as omissões) apontados pelo ora requerente a tal despacho judicial.

O requerente não apresenta, pois, factos indiciadores de que a conduta da Juíza em causa possa ser considerada suspeita, sopesando a questão de um ponto de vista objetivo (e não à luz da alegação do requerente), tudo se alicerçando, bem vistas as coisas, no subjetivismo do requerente e na formulação de meros considerandos jurídicos (considerandos que, eventualmente, poderiam servir de base a um requerimento de aclaração do despacho colocado em crise, ou a um requerimento de arguição de nulidades de tal despacho, ou a um requerimento de recurso, mas considerandos que, a nosso ver, são totalmente inócuos para a pretendida “recusa de juiz”).

Limita-se o requerente, no essencial, a fundamentar o incidente de “recusa de juiz” no facto de a Exmª Juíza ter proferido um despacho que o requerente entende ser errado e indevidamente fundamentado, por, em tal despacho, se considerar o arguido notificado (quando não o foi) e, ainda, por se considerar que o arguido indicou nos autos a respetiva morada (quando não o fez).

Com efeito, e como se nos afigura linear, tem de haver uma especial exigência quanto à objetiva gravidade da causa de suspeição de um Juiz, pois que, de outro modo, estava facilmente encontrado o meio de contornar o princípio do juiz natural, afastando-o dos autos por qualquer motivo (alicerçado, por exemplo, em discordância com uma decisão interlocutória do julgador, como sucede in casu).

É que, a recusa do juiz, visando a imparcialidade do julgador, tem que ser deduzida com fundamentos pessoais concretos relativos à pessoa do Juiz visado, valorados, repete-se, de acordo com os critérios do senso e da experiência comuns (do juízo de um cidadão de formação média), não bastando a mera discordância, ainda que fundamentada, quanto ao decidido no despacho invocado pelo ora requerente.

Dito de outro modo: a prática de determinados atos ou a adoção de certos procedimentos (quer adjetivos, quer substantivos) por parte de um Magistrado Judicial, num concreto processo, só pode relevar para a legitimidade e procedência da recusa de Juiz, se neles, por eles ou através deles, for possível apercebermo-nos (e apercebermo-nos inequivocamente) de um propósito de favorecimento de um sujeito processual em detrimento de outro, ou se for possível detetarmos (também inequivocamente) uma qualquer posição ou atitude de prejuízo ou preconceito, inadmissíveis face ao objeto do processo.

Ou seja, no incidente de recusa não se aprecia a validade dos atos processuais em si mesma, nem a correção de determinados procedimentos adotados no processo pelo Juiz, mas, isso sim, o que deve averiguar-se é se existem ou não atitudes, no processo ou fora dele, significativas e relevantes, que permitam legitimamente desconfiar de uma intervenção objetivamente suspeita do Juiz.

Este tribunal superior, no âmbito do incidente de recusa de juiz, não pode ser chamado a decidir sobre a validade, a regularidade ou a pertinência de determinados atos processuais, porque, por um lado, existem para isso mecanismos processuais próprios (já acima aflorados), e, por outro lado, porque, in casu, e ao contrário do que entende o requerente, a conduta processual adotada pela Exmª juíza, objetivamente analisada, não denota uma qualquer posição ou atitude face ao objeto do processo ou aos sujeitos processuais, atitude que seja, minimamente, apta a gerar desconfiança acerca da imparcialidade de tal Juíza.

Mesmo que se entendesse que a decisão da Exmª Juíza se devesse reputar de errada, nem assim tal legitimaria a formulação de qualquer juízo quanto à falta de imparcialidade ou isenção da mesma.

Na verdade, e repete-se, a lei prevê mecanismos processuais para impugnar as decisões reputadas de “erradas” ou ilegais, não sendo estas, objetivamente, motivo suficiente para fundamentar o pedido de recusa. A não se entender assim, estaria aberto o caminho para, ao mínimo pretexto, como a prática de qualquer irregularidade ou nulidade processual, se contornar o princípio do juiz natural, constitucionalmente consagrado no artigo 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa.

Como bem se escreve no Ac. da R.L. de 10-01-2001 (in www.dgsi.pt, sob o nº RL200101100042833), “o direito à recusa do juiz não se acha no erro extremo da decisão, segundo a ideia de que, ultrapassando determinado limite de desconformidade com a Lei, o juiz deve ser afastado da causa. O êxito da recusa deve assentar, em regra, na verificação de circunstâncias extrínsecas ao desenrolar da causa, pois ao contrário correr-se-ia o risco de toda e qualquer decisão errada poder ser considerada motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança de que fala o artigo 43º, nº 1, do C. P. Penal”.

Em face do que se deixou dito, temos de concluir que as razões invocadas pelo requerente, valoradas de acordo com os critérios do senso e experiência comuns, não permitem, manifestamente, formular qualquer juízo de desconfiança ou suspeição quanto à imparcialidade e isenção da Exmª Juíza, sendo que a discordância quanto ao decidido por esta magistrada no âmbito do Processo nº ---/17.4T8PTG, relativamente às questões afloradas neste incidente de recusa, não é, por si só, fundamento bastante para questionar a falta de imparcialidade de tal magistrada, e, portanto, para fundamentar o pedido de recusa.

4. Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o pedido de recusa formulado por PC.

Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 08 de março de 2018

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Maria Filomena de Paula Soares)