Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2035/08-2
Relator: ALMEIDA SIMÕES
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
CONTRATO DE MÚTUO
RESERVA DE PROPRIEDADE
APREENSÃO DE VEÍCULO
APREENSÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 09/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO CÍVEL
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário:
Perante duas correntes Jurisprudenciais opostas, não deverá ser indeferido liminarmente um pedido, por não ser manifesta a improcedência da pretensão.
Decisão Texto Integral:
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PROCESSO Nº 2035/08-2
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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“A” instaurou, no Tribunal de …, contra “B”, procedimento cautelar de apreensão de veículo e respectivos documentos, sem audição prévia do requerido, ao abrigo do artigo 15° do Decreto-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro, pedindo que fosse ordenada a entrega imediata da viatura automóvel da marca Opel, modelo Corsa C Van Diesel, com matrícula …, e os respectivos documentos, ao fiel depositário, a Sociedade “C”.
Alegou ter celebrado com o requerido um contrato de financiamento para aquisição a crédito do referido veículo, com reserva de propriedade a favor do mutuante, devidamente registado na Conservatória do Registo de Automóveis.
Não tendo o requerido pago as prestações a que estava adstrito, a requerente fixou-lhe um prazo para o fazer, sob pena de conversão da mora em incumprimento definitivo.
O requerido não pagou as prestações em falta, nem entregou a viatura, havendo o risco sério de o requerido dar descaminho ou ocultar a mesma, se souber de antemão que foi intentada a providência cautelar.
Invocou, ainda, que o bem está sujeito a depreciação quer pelo uso, quer pelo mero decurso do tempo.

O Sr. Juiz indeferiu a providência, sustentando que a reserva de propriedade só é admissível em benefício do alienante e não a favor do mutuante.

Inconformada, a requerente apelou, defendendo que estão reunidos os pressupostos para o decretamento da providência, uma vez que se encontra inscrita a favor da recorrente a reserva de propriedade da viatura e que o requerido não cumpriu as obrigações que originaram a constituição da reserva de propriedade.

Os Exmrs Desembargadores Adjuntos tiveram visto nos autos.

O tema nuclear do recurso, em face do teor da decisão recorrida e das alegações da apelante, consiste em determinar se há fundamento para o indeferimento liminar do procedimento cautelar, por manifesta improcedência do pedido (art. 234°-A nº 1 CPC), por não poder o mutuante, com reserva de propriedade registada a seu favor, usar contra o mutuário o procedimento cautelar previsto no artigo 15° do Dec. Lei 54/75, de 12 de Fevereiro.
Vejamos, então:

A jurisprudência não tem sido uniforme relativamente à questão enunciada, ou seja, se o mutuante, que tenha registado em seu favor a cláusula de reserva de propriedade, pode socorrer-se deste procedimento cautelar.

Uma corrente defende que, sendo o procedimento cautelar sempre dependente da causa que tenha por fundamento o direito acautelado, e dependendo a providência a que alude o artigo 15° Dec. Lei 54/75, de 12 de Fevereiro, da acção de resolução do contrato de alienação, o mutuante carece de legitimidade substantiva para a intentar, porquanto não outorgou tal contrato (cf artigos 5° e 18°).
Por outro lado, o artigo 409° do Código Civil não permite a cláusula de reserva de propriedade, a favor do mutuante, mas tão só relativamente ao alienante.
Invoca-se, ainda, que o disposto no artigo 6° n° 3 alínea f) do Dec. Lei 359/91, de 21 de Setembro, que se refere ao acordo sobre a reserva de propriedade, que deve constar dos contratos de crédito que tenham por objecto o financiamento da aquisição de bens e serviços, mediante o pagamento em prestações, sob pena de inexibilidade, respeita aos contratos de alienação, e não já ao mutuante.

Outra corrente, fazendo uma interpretação actualista e extensiva do artigo 18° do diploma em causa, conforme o artigo 9° do Código Civil, defende que é admissível a constituição da reserva de propriedade, com vista a garantir um direito de crédito de terceiro, abrangendo aquele artigo, não só o contrato de alienação, mas também o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda que originou a cláusula de reserva de propriedade.
Doutro passo, a letra e o espírito do artigo 409° do Código Civil abrange a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel, porquanto a finalidade última do contrato de mútuo é a de assegurar o pagamento da coisa ao seu alienante; na verdade, a venda com reserva de propriedade é uma alienação sob condição suspensiva, em que se suspende o efeito translativo, produzindo-se os demais.
A transferência da propriedade fica dependente de evento futuro, que, em regra, será o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte e daí que a hipótese mais frequente seja a da venda a prestações com espera do preço, em que se clausula, para maior segurança do vendedor, que a coisa vendida continuará a pertencer-lhe até o preço estar integralmente pago. É na relação pagamento integral do preço da coisa vendida/transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominii encontra a sua razão de ser e daí que é perfeitamente admissível a constituição de reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência de propriedade qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda.

Em face do que se deixou dito, verifica-se que a questão é controversa, o que obsta a que seja decidida definitivamente em sede de despacho liminar, por não ser manifesta a improcedência da pretensão.

Deste modo, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão impugnada e ordenando-se o prosseguimento dos autos com a produção da prova oferecida pela requerente.
Sem custas.
Évora, 25 Setembro 2008